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FICHA TÉCNICA TÍTULO:
A Pedra de Toque Augusto Gouveia EDIÇÃO: edições Vírgula® (Chancela Sítio do Livro) AUTOR:
CAPA:
Ângela Espinha Alda Teixeira
Lisboa, dezembro 2020 ISBN:
978-989-8986-33-7 475995/20 REGISTO IGAC N.º 3191/2019 © AUGUSTO GOUVEIA
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DEPÓSITO LEGAL:
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PAGINAÇÃO:
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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao(s) seu(s) autor(es), a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. Assim mesmo, quaisquer afirmações, declarações, conjeturas, relatos, eventuais inexatidões, conotações, interpretações, associações ou implicações constantes ou inerentes àquele conteúdo ou dele decorrentes são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).
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Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.
Por opção do autor o texto não segue o novo acordo ortográfico. PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500
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Na aventura da Vida, à Tina, à Cláudia e ao Ricardo
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ÍNDICE
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CAPÍTULO I – Uma Veterinária em Apuros . . . . . . . . . . . . . .
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CAPÍTULO II – O Criptograma Enigmático . . . . . . . . . . . . . .
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Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
CAPÍTULO III – Portugal Templário e um Salto a Milão . . . 121 CAPÍTULO IV – O Médio Oriente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
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CAPÍTULO V – A Travessia do Egipto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 CAPÍTULO VI – A Arábia Saudita e Tabuk . . . . . . . . . . . . . . . 267 CAPÍTULO VII – Creta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331
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CAPÍTULO VIII – Regressar a Casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 399
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PREFÁCIO
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A Pedra de Toque é aquele livro que numa escrita simples, nos revela palavra a palavra e linha a linha ritmos e cenários que nos transportam para os tempos do tempo. Numa envolvência entre pontos comuns à vida do autor e um enredo que nos remete para a História, conta a história entre factos dela, a ficção da aventura da descoberta e o apetite em levar essa descoberta mais além…e revisitar a História. E revisitar. E estudar. E compreender. E enriquecer com ela. Percebemos que não há acasos, que um nexo de ligação existe, que o ecumenismo faz mais sentido que nunca e que a riqueza é afinal aquilo que somos na imperfeição saudável que corporizamos. E que as revelações são mesmo isso… revelações, que exigem que estejamos preparados para as ver de tão objetivas que são, mas que exigem predisposição para tal. Está disposto? Entre o real e o misticismo somos pingados com aquelas factualidades que nos levam a viajar. Viajar pelo livro, pelo tempo, pelas civilizações, pelas crenças, pelas lendas e suas riquezas, mas ainda assim o autor tem o cuidado de estimular o leitor a exigir de si mais enquanto leitor. E não será mau ler o livro do autor com um mapa ao pé. E um lápis e, já agora, uma régua. Grande exercício. E tão simples que no meio da ficção testemunha uma pedagogia factual onde aqui e acolá nos diz para parar e ir saber mais. Somos exortados a isso. E à segunda que o lemos vamos buscar mais. 9
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As histórias da história aqui descrita desafiam o leitor a compreender as histórias da História e a voltar às histórias do livro para retomar o seu conhecimento sobre a História. Contado na pessoa de uma jovem simples num local improvável e com uma vida banal ganha ainda mais força. A força de que no grande sistema que é o universo, afinal o lugar de cada um está justificado e não é por acaso. A palavra assume aquele toque que a torna numa pedra essencial na construção dessa muralha de testemunho de civilização que é a necessidade, hoje, de olharmos para a história com a compreensão de que não a podendo mudar no passado a devemos utilizar na construção de um mundo melhor. Temos essa obrigação.
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Prof. Dr. Carlos A. Pinheiro Silva
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CAPÍTULO I
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Uma Veterinária em Apuros
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vento soprava forte com rajadas e feria-me a cara que já estava crestada de tanto gelo. Passavam algumas raparigas em amena e alegre cavaqueira, como se nada mais importasse, dirigiam-se a um café que havia ali próximo, louras, muita loura tinha este país e logo eu que sou morena. “Bem, pode ser que aqui os homens prefiram as morenas.” E a rua parecia não ter fim, “raio de cidade esta, o que é que me passou pela cabeça vir para Reiquiavique”. Tirei o curso de veterinária em Lisboa e fugi da crise, mas também do colo da minha mãe, como disse o Abrunhosa, que frio de gelado, parece que estou dentro de um cubo de gelo, ainda bem que já estou a chegar à clínica. E com este torpor de pensamento lá abri a porta para a sala de espera. Uns canitos orelhudos olharam-me com ar desconfiado, “também estes não gostam de ter por cá estranhos”, pensei. Dirigi-me à recepção e perguntei à enfermeira num islandês muito rudimentar (e ensaiado): — Bom dia Bryndís! Como estão hoje as marcações? — Bom dia Lara! Temos três cães, dois gatos e acho que um lagarto, sei lá, não percebi bem. — Lagarto? 11
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— Sim um bicho desses rastejantes, que nojo. — E a Bryndís lá foi buscar as fichas e preparar-se para me ajudar. — Manda entrar o primeiro, Bryndís —, disse-lhe eu enquanto abotoava a bata. Entrou uma cadela gorda, pêlo comprido tipo Lassie a rebolar-se e de olhos esbugalhados com a dona à frente. E não é que as duas eram parecidas? Pareciam matrioskas, pensei. A cadela mal conseguia respirar, antes resfolegava, “vá vamos pô-la na marquesa”. De repente, entra um tipo por ali adentro com uma pressa tal que derruba um pequeno candeeiro, passa-me o cão que trazia com ele, um Islenskur fjárhundur (cão pastor islandês) e diz-me numa língua estranha algo que supus ser “fica com o cão, toma o cão”, e depois um tiro, o som de um tiro, e vejo o homem estendido à minha frente. Atrás dele, dois encapuzados com pistolas continuavam a disparar contra o desgraçado. Eu fiquei de pedra, a Bryndís agachou-se, tremia e balbuciava em islandês, a dona da cadela encostou-se à parede e acho que pedia aos gritos para não lhe fazerem mal. Um dos tipos aproximou-se do homem, que parecia estar morto, mexeu, remexeu, procurava qualquer coisa, mas acho que não encontrou, porque falou para o outro e abanou a cabeça como que a dizer que não. Olharam para os cães, um rosnava, o outro escondeu-se debaixo de uma bancada e, de repente, pegaram num deles e saíram dali com mais pressa com que entraram. Estava tudo em estado de choque quando se ouviram sirenes. Muitos polícias, por todos os lados, entraram de pistola em punho e começaram a metralhar perguntas, perguntas quase aos gritos, causando ainda mais confusão, mas a Bryndís lá falou com eles naquela língua-de-trapos e foram-se embora a correr, deixando para trás outros polícias que nos disseram para não tocarmos em nada.
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A partir daqui, tivemos todas um ataque de choro, mesmo as clientes que estavam na sala de espera, e os cães ladravam, ganiam, ladravam, mais o cão que ali ficou. E o cadáver ali, tudo cheio de sangue por todo o lado. Um dos polícias mandou-nos sair e fomos para a sala de espera, o cão ficou para trás e o polícia disse à dona do cão que o mantivesse calmo e quieto. A mulher ficou a olhar para o cão e para o polícia e, com um olhar, não sei se de medo se de espanto, disse, apontando para o cão: “Aquele não é o meu cão”. “Não é o seu cão?” “Não, não é, este não é o meu cão”, repetia assustada, como se quisesse estar enganada. “Os assaltantes levaram-me o cão “Mas porquê? Então, se não é o seu cão, de quem é?” Foi aí que me lembrei, o cão era do tipo que estava morto, e agora? “O quê? O cão era do tipo assassinado?” No meio disto tudo, chegou a Ingrid, minha colega e dona da clínica veterinária, que depressa se inteirou de tudo. Entretanto mais polícias chegavam, tiravam notas, pediam a identificação de toda a gente e ali mesmo, num escritório de apoio, começaram a interrogar todas as pessoas uma a uma, incluindo eu. Tudo foi dito como aconteceu e, não tendo havido contradições, mandaram-nos embora. Disseram que depois nos contactariam se fosse preciso, e encerraram a clínica, para desespero de todas nós — pois pressentimos que iria estar fechada por algum tempo, o bastante para pôr em causa pelo menos parte do ordenado. O cão agora sem o dono ladrava e rosnava com as orelhas fitas; ali ficou e foi depois levado quase à força pela polícia para a Central de Investigação (equivalente à nossa Polícia Judiciária). Voltei para casa, ou melhor, para o meu quarto. A noite já tinha caído. Tinha entrado às três horas da tarde, apanhei um susto de morte e ia agora para o meu quartinho alugado mesmo no centro de Reiquiavique, tão pequenininho 13
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quanto caríssimo, mas no centro como eu gosto. Entrei, fiz um bule de chá de camomila, como se isso me acalmasse. E lá me pus a comer bolachas a eito e a encher a barriga daquela chazada, enrolei-me num roupão a ver televisão, sem perceber nada, porque estava tudo dobrado em islandês, mas não interessa, televisão era televisão e se em Portugal via, aqui também tinha de ver, vício era vício. Deixei-me dormir no cadeirão, de vez enquanto vinha-me um pânico dos últimos acontecimentos em pesadelos e lá ia dormitando a tracejado. Dei um salto, sentindo o coração a sair-me pela boca; alguém batia à porta com uma força tal que até tremiam os papéis que tinha no chão. Estava em pânico absoluto e a tremer como varas verdes. — Quem é? — perguntei, encolhida. — É a polícia, abra a porta. Lara Gauvia? Miss Lara? Open the door! Miss Gauvia? — “Bolas! É a polícia!” A bater-me à porta com esta força e a estas horas… Olhei para o relógio, eram quatro da manhã. “Que raio me quer a polícia a estas horas?” — Wait a moment, please. — Esperem um pouco. — Ajeitei o roupão, reparei que não me tinha despido e abri a porta. À minha frente estavam dois polícias que me pareceram enormes, identificaram-se com uns crachás e uns papéis (que não entendi) e disseram ao que vinham. — Precisamos que venha à esquadra por causa do cão. É veterinária, não é? — Sim, sou. Mas o que tenho eu a ver com o cão? O cão não é meu. — Venha connosco, que na Central explicamos tudo. Vesti ainda mais roupa, porque aquele era um país de gelo, e lá fui. Ia no carro que parecia da polícia e de repente pensei “e se isto é um assalto? Um rapto? E se não são polícias? Bem, 14
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com toda esta parafernália, parecem ser. Que raio, aqui sozinha metida num carro de polícia às quatro da manhã.” Lá chegámos por fim, as portas da Central estavam abertas e havia um grande rodopio de gente. Os polícias pararam o carro, abriram-me a porta e acompanharam-me à entrada. Passaram-me então a uma senhora que me pediu para a acompanhar e me levou até uma daquelas salas que se veem nos filmes, apenas com um espelho (e há sempre alguém do outro lado a ver-nos), uma mesa, duas cadeiras e uma luz. — Espere um pouco, por favor — disse num inglês impecável —, alguém virá falar consigo. — E ali fiquei. “Bem, se calhar vão fazer-me esperar horas para me enervar e depois interrogar-me, é o costume nos filmes. Mas eu estou doida ou quê? Não há motivos para me preocupar, não fiz nada. Ou tenho? Ou fiz?” Enquanto me debatia com estas angústias, mais me enervava. De repente, a porta abriu-se e entrou um agente. — Olá como está? É a miss Lara Gauvia? — Gouveia — disse eu, — não Gauvia. — Gouveia, ah! Sim, desculpe Miss Galveia — “OK, por mim está bem assim” — é veterinária, não é? — Sim, sou. — Há quanto tempo está na Islândia? — Há dois meses. — Gosta de estar cá? — É diferente, não desgosto, estou cá há pouco tempo, mas faz muito frio. — Sim faz, mas também temos dias bons. — “Este tipo não me trouxe aqui só para falar do tempo, que raio me quer?” — O que pretende de mim? — perguntei, para ver se descobria depressa o que se passava e o que me queriam. Fosse o que fosse, pelos vistos era urgente. — Bom! É por causa do cão. 15
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— Do cão? Mas o cão não é meu. — Sim nós sabemos, era do sujeito que foi abatido. — Abatido? Mas abatido como? Aquilo não foi um roubo ou algo do género? — Não, mas não interessa. O que é que o homem lhe disse exactamente? Repita palavra por palavra. — Ah! Isso é que eu não posso fazer, falava uma língua estranha, apontava para mim e para o cão, e para o cão e para mim, e de repente… — “Estava a levar tiros, sei lá!” — Na altura, a sensação que tive foi que ele estava a dizer-me para que eu ficasse com o cão, ou que me dava o cão ou que tratasse do cão, não faço a mínima. — O quê? — Não faço a mínima, quer dizer, não percebi nada, não sei nada. — Venha comigo ver o cão — disse o agente —, o cão deve ter qualquer coisa. Achamos que quem acabou com o tipo ia à procura de qualquer coisa e, como não encontrou, levou o outro cão por engano, pensando que o cão escondia alguma coisa. Só que… enganaram-se e levaram o cão errado. E lá fui à pressa atrás do polícia pelos corredores, passámos por umas celas ou calabouços, como chamam em Lisboa, descemos umas escadas, e mais escadas e mais dois corredores, e eis que, numa sala vazia, lá estava o cão. Via-o atrás de uma porta, através de uma janela de vidro, enrolado sobre si mesmo; devia estar com frio. O agente que estava comigo digitou num intercomunicador, falou qualquer coisa, esperámos, e passado pouco tempo, apareceram dois polícias, estes vinham fardados. Abriram a porta, tentaram entrar e o cão pôs-se logo de pé, rosnava e ladrava com uma agressividade que não era para brincadeiras, parecia que tinha o diabo, transformou-se numa máquina de matar, era a sensação que tínhamos. 16
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— Está a ver? Queremos ver se esconde alguma coisa, mas tem sido isto a noite toda, não deixa ninguém aproximar-se, já pensámos em dar-lhe um tiro e pronto, ficava prontinho para escarafuncharmos à vontade. Foi então que pensei em dar-lhe uma oportunidade e mandei buscá-la para ver se lhe dava um calmante ou anestésico e assim podermos mexer-lhe à vontade. Olhei para ele, depois para o cão pronto a atacar, e respondi: — E como quer que eu me aproxime do cão? — Não sei, você é que é a veterinária, desenrasque-se. Se não quiser arriscar, fico com a consciência tranquila e mata-se o cão, pronto. — Matar o cão? Mas matar um animal que só está assustado e a defender-se com tudo o que pode? Ele bem pressente que de vocês não virá nada de bom, está a defender-se. — Dr.ª, isso da psicologia é muito bonito, de tratar bem os animais ou lá o que quiser para justificar o cão, mas nós temos é de vê-lo por fora e por dentro. Este “por dentro” soou-me a algo definitivo. Olhei para o cão outra vez e, numa tentativa de fuga, respondi-lhe: — Porque é que não foram buscar a dona da clínica, que também é veterinária e tem muitos anos de clínica? Eu sou só licenciada há três anos, há casos que me escapam ainda. — Muito bem Dr.ª, estou a ver — disse o agente ou polícia, sei lá o posto que o homem tinha —, assim sendo, abatemos o bicho e resolve-se a situação. — Espere lá, eu não disse que não fazia nada, deixe-me tentar, mas matar o animal não é solução. Traga-me duas ou três folhas de papel. Um dos polícias fardados saiu a correr e trouxe quase uma resma de papel. Peguei em três folhas e disse aos agentes: — Eu vou entrar e a seguir fecham logo a porta. — Olharam para mim como se eu não estivesse boa da cabeça. O agente que parecia 17
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deter mais autoridade disse então aos outros, “Se o cão a atacar, matem o cão.” Não sei quem tinha mais medo de quem, se eu do cão, se o cão de mim, a situação era arriscada, senão perigosa. Entrei, a porta fechou-se, o cão ficou em estaca num rosnar ameaçador e parecia surpreendido, mas não deu parte de fraco, rosnava mais alto ainda. Encostei-me à parede ao lado da porta fechada, deixei-me escorregar e fiquei sentada, peguei nos papéis com as duas mãos e pus-me a olhar para eles, desviei o meu olhar, baixei a cabeça com se estivesse a ler e assim fiquei. O cão rosnou ainda um bom bocado, depois ladrou, e eu permaneci sentada de cabeça baixa, sem mexer um músculo — pudera, estava rígida de medo —, foi ladrando menos já de uma forma entrecortada, sentou-se e ficou a olhar-me. Não que eu estivesse a ver, mas sentia-o. Depois olhava-me mexendo a cabeça para os lados como que a perscrutar-me, olhei para o relógio, tinha passado mais de uma hora. Agora, sim, ia tentar. Amarrotei uma folha e atirei-a para o canto oposto àquele em que estava o cão. Ele levantou-se de imediato, olhava para mim e para o papel sem saber como reagir, ainda me fitou, mas decidiu-se pelo papel; foi até lá e cheirou-o, não ligou e foi para o mesmo sítio, sentou-se. Atirei-lhe outro papel amachucado, agora para cima dele, tudo isto sem o olhar de frente. Foi cheirá-lo, nada, voltou a sentar-se. Já só tinha uma folha. Amarrotei-a também e fi-la rolar de modo que ficasse entre mim e ele. Veio na minha direcção, devagarinho, cheirou novamente e sentou-se mesmo diante de mim. De olhos baixos, pensei, “bolas, devia ter trazido a resma, e agora? Uhm! Talvez dê.” Comecei a tocar o chão com os dedos como se estivesse a tocar piano, o cão olhou e abanou a cauda. Quase comecei aos pulos de contente, estava quase, quase. Pus-me de gatas e comecei a imitar um cão a brincar (mais ou menos, porque eu não sou um cão), ele estranhou 18
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um pouco, mas entrou na brincadeira. Ladrava, mas a brincar ao desafio eu já lhe conseguia mexer e depressa estávamos a rolar no chão a brincar. Pus-me de pé e disse, “Senta!”. Ele, não se sentou, não reconheceu a língua. Apontei para o chão de forma autoritária e ele . Deitou-se. Uf! Tinha conseguido, tinham passado duas horas. Bati na janela da porta e disse aos polícias, “tragam água e comida para o cão. E para mim, já agora. Não entrem por favor.” Não demorou muito e já estávamos os dois a comer lado a lado. Os agentes tinham ido à cantina e trouxeram queijo, fiambres e pão, além da água, num prato para o cão e uma garrafa para mim. Bom, a fera estava domada. Saí pela porta, os polícias riam e abanavam a cabeça de aprovação e até mereci palmadinhas nas costas. — E agora? — perguntei. — Agora vai falar com o Chefe — disse-me um deles. — Tudo bem, vamos lá. Fizemos o caminho inverso e fui ter a um gabinete grande, onde me disseram para esperar. Não demorou mais que cinco segundos e aí estava um outro que eu não conhecia. — Obrigado — disse-me ele —, o meu nome é Horgen, estou a chefiar este caso. Já sei que dominou o cão, e agora quero que o veja com todos os meios que tiver para ver se ele tem alguma coisa, por fora e por dentro, o cão tem de ter alguma coisa. — Bem, é preciso radiografá-lo, fazer ressonâncias magnéticas, ecografias, análises — Pare, pare lá, faça o que entender, não deixe é escapar nada. — Mas, Chefe — disse-lhe eu, também para me sentir importante —, porque não chama a dona da clínica para fazer isso, uma vez que é veterinária como eu e já tem muitos anos de prática? Eu já tinha perguntado antes porque não foram buscá-la a ela. Eu sou apenas uma colaboradora e com poucos anos de carreira. Acho melhor ser ela a fazer isso tudo ao cão. 19
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O Chefe olha para mim muito sério e diz-me, “ela não pode”. — Não pode? Ora essa, não pode porquê? Ela sabe, tem os equipamentos todos. Porque é que ela não pode? Não quer? — Não, não pode mesmo, foi assassinada em casa esta noite. — A minha boca abriu-se de espanto. — Antes de irmos ter consigo, fomos buscá-la, pelas razões óbvias que explicou, e encontrámo-la morta em casa. Foi então que resolvemos utilizá-la para além de tratar do problema do cão podermos excluí-la ou não como suspeita. Eu ia caindo. — Suspeita de quê? Eu não sei de nada eu não fiz nada — Sim, sim, nós sabemos, acalme-se, já sabemos tudo sobre si e não tem nada a ver com isto, mas o facto é que está envolvida. — Envolvida eu? Só por acaso e azar, estava no sítio errado à hora errada. — Espere, eu expliquei-me mal — diz-me o Chefe. — Como era a sua patroa ou chefe ou lá como queira chamar? Descreva-ma por favor. — Espere lá a Ingrid morreu? Morreu mesmo? Não pode ser, era a minha tutora… e agora? Morreu, tem a certeza? Não pode ser. — Sim, tenho a certeza, também foi assassinada. — Mas, mas… — Dr.ª, esqueça o mas, e diga-me lá como ela era. — Bem, era simpática, sabia de clínica de pequenos animais… — Sim, sim, não é isso, descreva-a como figura. — Bem, era morena, olhos castanhos, pele clara, estatura média, nem gorda nem magra, nem parecia sueca. Olhe, era assim normal sei lá, como eu. — Exactamente, exactamente, isso mesmo. 20
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— Isso mesmo o quê? — Era parecida consigo. Na pressa, os mesmos que mataram o tipo na clínica e levaram o cão enganado, cometeram o mesmo engano e mataram a sua tutora, como diz. Erram três vezes, os desgraçados. — Mas porquê? Onde é que eu encaixo nisso? — Achamos que é provável que depois de terem dado pelo engano do cão, se tenham dirigido a casa dessa Ingrid para a questionarem sobre o que lhe terá dito o tipo que mataram antes de ser assassinado, havia sinais de alguma tortura antes de acabarem com ela. Eu estava petrificada mais uma vez, o pesadelo continuava, nada me parecia real. — E o cão? — Qual cão? — O cão que levaram por engano. O que é que lhe aconteceu? Abandonaram-no? — Bolas, eu já sabia a resposta, porque é que perguntei? — Ah! Esse cão, encontrámo-lo morto, todo esventrado e sem pele. O que quer que seja que procuravam, não encontraram. Agora voltemos a si. É que temos um problema. Isto é, você e nós. Eu já não dizia nada, a partir daquele momento só ouvia, ausentei-me, só ouvia o Chefe como se estivesse ao longe, noutro planeta. — E o problema é que, nesta altura, os contratados (referia-se assim aos assassinos), já sabem que foi você quem trocou palavras com o tipo que assassinaram, e não sabem que você também não sabe nada, mas irão fazer-lhe a si o mesmo que à infeliz Ingrid. Virão atrás de si. Eu só não me urinei e não vomitei porque fiquei apatetada, muda e quieta, acho que me agarrei aos braços da cadeira com 21
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uma força tal que quase os parti, fiquei a olhar extasiada de medo. — E agora? — Agora e para já vamos ver do cão. Já o tem sob controlo, não? — Sim, penso que ele já estabeleceu algum laço comigo. — Vamos buscá-lo então. Descemos à cave onde deixei o cão, à porta estava um polícia que fez continência ao Chefe, que mandou abrir a porta. — Sr. Chefe — disse eu com ares de importante —, eu vou entrar sozinha, já vi que ele tem a coleira e a trela ainda presa e vou trazê-lo comigo. Quero que se afastem e sigam à minha frente, nós iremos atrás. Não façam gestos bruscos nem mostrem medo, andem normalmente e esqueçam que está aqui um cão. Os polícias olharam para mim como quem diz — olha-me esta! Entrei, acocorei-me e chamei-o, “anda, anda cá, bonito cão, bonito, anda, vem”, já tinha o meu cheiro, ganhou novamente confiança e veio sentar-se ao pé de mim, peguei na trela e mandei abrir a porta. — Vá, vamos, sigam, temos de ir à clínica e chamar a Bryndís para me ajudar. — Quem? — A enfermeira, preciso de ajuda para fazer tudo aquilo que me pediram. — Não, não queremos mais ninguém metido nisto, tem de fazer tudo sozinha. Eu olhei para ele e quase que lhe chamei ignorante, mas contive-me: — Chefe, não é possível fazer o que me pede sem ajuda, não é mesmo. — Então arranjo aqui um agente para ajudar e pronto, tem de chegar. “Bonito”, pensei eu, vai ser lindo. 22
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— Dr.ª, antes de irmos à clínica vai experimentar uma coisa aqui na esquadra. — Aqui? — Sim já vai ver. Chegamos a um hall, tenho o cão preso pela trela na mão direita, a mão esquerda na outra ponta da trela com o cão à esquerda ao meu lado, quando o Chefe nos manda parar. Parámos, o cão sentado de olhar atento, e eis que vem de lá um agente com uma espécie de raquete direito ao cão. O que é que ele foi fazer… O bicho atirou-se a ele com uma força a ladrar e a rosnar duma maneira que aterrei de joelhos no chão e caí para a frente, “quietos, quietos”, gritei com a força que tinha, “esconda essa porcaria, eu não disse para não se meterem com o cão?” Nesta altura, já eu me estava a levantar com os joelhos escalavrados e irritada com aqueles gajos. Xiça, será que a polícia não percebe os civis? Bolas para estes gajos, que já me aleijei. Lá tive de acalmar outra vez o bicho. “Já percebi, isso é um detector de metais, não é? Dê cá isso, devagar, pelas minhas costas, sem alaridos e não olhe para o cão.” Peguei naquela porcaria, que pesava que se fartava, e pedi instruções de como é que aquilo funcionava. Não era difícil. Com calma, dei aquilo a cheirar ao cão, ainda desconfiado, e lá fui passando o detector por todo o corpo do animal, centímetro a centímetro, nada apitou, não acendeu luz nenhuma, nada. “Veja o rabo do cão”, disse o Chefe. “Quer dizer a cauda ou o rabo, Chefe?” Então não é que o gajo se desatou a rir mais aquela gente toda! Passei a raquete pela cauda e nada, também não acusou nada. — Vais acompanhar-nos à clínica — disse o chefe ao que tinha trazido a detector —, vamos. Fomos então, agora numa espécie de SUV, e rapidamente chegámos à clínica, fechada. Batemos à porta, um polícia abriu-a e fez a continência, entrámos. O chão da sala de consultas ainda 23
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estava cheio do sangue da véspera. “Bolas para isto”, arredámos todo o material e equipamento de modo a não pisar o sangue e os polícias ficaram a olhar para mim, à espera de ordens. Olhei à minha volta, tudo virado do avesso, olhei para os agentes, pareciam uns canitos à espera como os outros, e foi aí que me dei conta, estes são os meus domínios, aqui mando eu, posso mandar fazer uma treta qualquer que estes gajos obedecem. E não estive com meias medidas, “ponham isto tudo de pé e arrumem como puderem, vá rápido, que temos que fazer”. Olharam para o Chefe, este abanou a cabeça de assentimento e lá tinha eu polícias enfermeiros. Enquanto isso pesei o cão, calculei a dose do calmante e dei uma injecção subcutânea, esperei um bocadinho até começar o efeito e os polícias também acabaram por ajeitar as coisas, pelo menos já tinha espaço. Optei por injectar um anestésico fixo numa dose mínima e com calma, o cão lá se deixou dormir. Fui buscar o leitor de microchips, acreditando que havia um chip que identificasse o animal e pudesse rastrear o dono. Comecei pelo pescoço, primeiro à esquerda, depois à direita, percorri ambas as espáduas, o tórax, o abdómen, atrás das orelhas, enfim, acabei por tentar ver em todo o lado, não fosse o chip ter-se deslocado, pensei eu, o que às vezes acontece, mas, nada, nada de nada. Não tinha chip. Tinha de ir ao raio-X. “Meus senhores, vamos lá então, vou-lhes dizer como devem segurar o cão para que eu faça vários planos de raio-X. Depois de seguro, o cão deve estar imóvel, perceberam? OK!” E lá fui ensinando, como se estivesse a dar uma aula prática sem explicações. “Tu seguras aqui, tu pões as mãos ali, agora quietos.” Lá fui percorrendo o cão todinho, da cabeça à cauda, em todos os planos possíveis mais aqueles que inventei; correu tudo bem, nada como ter militares a ajudar. O aparelho de raio-X da Ingrid, desgraçada da Ingrid, era muito bom, boa resolução, fácil impregnação, fácil revelação, deve ter custado 24
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AUGUSTO GOUVEIA
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caro como.… Cala-te Lara, não digas asneiras. “Então?”, disse o Chefe, “e agora?” “Agora vamos ver o que encontramos”, respondi-lhe eu, também curiosa. Agarrei naquele montão de “chapas” e fomos ver em contraluz. Vi e revi, revi e vi, tornei a ver e nada, tudo normal, até o ângulo de Norberg-Olsen estava bom. “Quem?”, perguntou o Chefe, “viu esse nome?” “Chefe, não é quem, é o quê, coisas de veterinária, não interessa.” “Então com o raio-X nada, não é?” “Sim, raio-X nada.” “E a seguir?” “Vamos às ecografias.” “Vamos a isso.” Reforcei um pouco o anestésico e comecei as “ecos”, através do monitor lá fui vendo o coração, pulmões, rins, fígado etc. etc. O cão já estava todo besuntado de gel e a temperatura a descer, mas eu tentava, tentava. Ou aquilo estava tudo bem, ou não tinha sido capaz de ver alterações. Nos raio-X ainda dava uns toques, agora nas ecografias, chiava mais fino, sabia o suficiente para dar com grandes alterações, mas coisas pequenas não, era preciso ter olho treinado e eu ainda não chegava lá. Mas, de qualquer forma, se era um objecto que procuravam, isso não, eu daria por ele, não estava lá. Fixei as imagens no monitor, mostrei ao Chefe e… nada. “O que vamos fazer a seguir?”, pergunta o Chefe com pouca esperança. “Para já, podemos fazer um hemograma completo, é fácil. Se houver alguma alteração no plasma ou nas células, podemos depois pesquisar.” “Vamos a isso então.” Peguei no anterior esquerdo do cão, apanhei a veia com muita dificuldade por causa da anestesia que eu ia controlando passo a passo, mas lá consegui. Introduzi a amostra no aparelho que fazia tudo, outro que deve ter custado os olhos da cara e, passado pouco tempo, lá saíram os resultados — nada. Estava tudo bem. — Raios, não querem lá ver que o cão tem saúde a mais? — diz o Chefe. — E agora, há mais coisas a fazer?
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