A atribulada religiosidade da tia Ilda
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“Sejamos simples e calmos, Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...”
Alberto Caeiro - Heterónimo de Fernando Pessoa, O Guardador de Rebanhos
À MI, minha companheira dos bons e maus momentos.
Às minhas filhas Carla Maria, Paula Alexandra e netos Maria, Carolina e Tiago.
À memória de Ilda Rocha Martins, nossa tia.
Às gentes do Pedrogão de São Pedro.
FICHA TÉCNICA
TÍTULO: A atribulada religiosidade da tia Ilda
AUTOR: José Maria Araújo Balhau
EDIÇÃO: Edições Ex-Libris® (Chancela do Sítio do Livro)
REVISÃO: Maria Gabriela Ferreira (Letra a Letra - Revisão de Texto)
ARRANJO DA CAPA: Carolina Araújo Gonçalves
PAGINAÇÃO: Carolina Araújo Gonçalves
Lisboa, fevereiro 2024
ISBN: 978-989-9028-99-9
DEPÓSITO LEGAL: 526958/24
© JOSÉ MARIA ARAÚJO BALHAU
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha neta Carolina que, entre os espaços escolares livres, se disponibilizou e empenhou na definição e tratamento do design da capa e contracapa, das imagens inseridas no texto e na tarefa da paginação.
Agradeço a Sandra Pena, da editora Sítio do Livro, a disponibilidade e simpatia com que sempre me recebeu para esclarecimentos e ajuda na formatação do livro.
Agradeço a Maria Gabriela Ferreira (Letra a Letra – Revisão de texto) o seu empenho e profissionalismo na revisão do texto do livro.
Agradeço, por fim, à MI, minha mulher, o apoio e a inestimável e útil assistência que me deu nas versões preliminares, nomeadamente em aspetos relacionados com lembranças no convívio comum com a tia Ilda, bem como em aspetos relacionados com a revisão do texto. Preview
Todos nós, humanos, ao entrar no “trem” da vida, carregamos o ADN dos nossos pais e as circunstâncias, por acréscimo, lugar e ambiente onde nascemos, princípios que nos são incutidos, decisões nossas e dos outros, consentidas ou não, afetam e determinam o nosso percurso existencial. O caso da tia Ilda não podia fugir à regra.
A circunstância de ter nascido (9 de março de 1924) e ter sido criada num ambiente rural, inóspito, de uma aldeia do interior
- Pedrogão de São Pedro, concelho de Penamacor, distrito de Castelo Branco -, conjugada com a pouca sorte de ter sido abandonada pelo pai quando ainda não tinha nascido, determinou, em grande parte, o seu caminhar na vida.
Por razões desconhecidas, mas que se adivinha assentarem em carência de meios a não permitir sustentabilidade à família e, como depois se veio a constatar, evidente desamor, o pai emigrou para a Argentina e por lá constituiu nova família. Desligando-se e desobrigando-se, em absoluto, de quaisquer responsabilidades, deixou à sorte a sua mulher grávida da tia e já com ela quatro filhos a criar (dois rapazes e duas raparigas).
Assim, com início nada prometedor, os acontecimentos na infância, adolescência, juventude e idade madura da tia, como o leitor perceberá ao longo do livro, foram-se sucedendo, com dissabores sobre dissabores.
O seu apego, muito forte, ao cristianismo, com fé inquebrantá-
vel, antes e depois de entrar na vida religiosa, levou-a ao propósito de ir ao encontro, determinada, sem interrogações e cedências, daquilo em que acreditava, do seu Pai do Céu.
A circunstância de, a partir de um dado momento, eu ter entrado na família, ao casar com uma das suas sobrinhas, colocou-me na situação privilegiada de ter conhecido muito da sua vidatanto quanto me foi possível! -, o que permite levar por diante o propósito de, como relator, levar a vós, leitores, muito honrado, o seu percurso.
Decidi escrever e publicar o livro por julgar o percurso da tia
Ilda valioso e pedagógico, pelas peripécias e incidentes pessoais, mas também por levantar um pouco o véu do que se passa, e se vai passando, no interior de instituições religiosas, nem sempre transparentes e de fácil acessibilidade.
Julgo poder espoletar, por outro lado, a quem tenha interesse e a tal se disponibilize, um olhar mais profundo e atento sobre a Beira Baixa, ao longo de décadas do século passado, nos costumes e nas questões da religião, da psicologia, da sociologia e da ética. Permite ainda homenagear e preservar a memória da tia, pensando, essencialmente, nos familiares e pessoas nascidas e criadas em Pedrogão de São Pedro e aldeias vizinhas, algumas que, tendo com ela convivido, têm-na ainda bem presente.
Se o meu propósito de escrever e publicar o livro, para dar conhecimento do atribulado percurso religioso da tia, é, nas circunstâncias e peripécias por que passou, valioso pertinente e merecia ou não ser divulgado, e se consegui dar ou não ao livro o interesse e qualidade desejável, caberá a vós leitores ajuizar!
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IPedrogão de São Pedro, aldeia onde a tia nasceu e foi criada
1.
A povoação de Pedrogão de São Pedro, onde nasceu e foi criada a tia Ilda, é uma freguesia do concelho de Penamacor, distrito de Castelo Branco, situada numa pequena elevação, onde, no núcleo mais antigo, lá mesmo no cimo, por entre enormes pedregulhos graníticos, se encontra e se destaca um grande depósito de água.
À volta do depósito, existem ruas e ruelas, com casas rústicas, uma capela (Santo António) e um calvário, com a base e as três cruzes em pedra granítica.
A atribulada religiosidade da tia Ilda
Na parte baixa, a aldeia possui, como na parte alta, interessante património religioso e civil edificado, com alguns vestígios romanos, destacando-se a Igreja Matriz, algumas capelas (Nossa Senhora da Graça, Nossa Senhora das Dores e do Espírito Santo), casas senhoriais (entre elas o Solar da família Marrocos) e fontanários.
Património Religioso e Civil Edificado da Freguesia de Pedrogão de São Pedro
Casa e calçada graníticas
Os usos e costumes das gentes do Pedrogão, quer profanos quer religiosos, não diferem muito dos observados em toda a região da Beira Baixa. Inserido na sub-região da Beira Interior Sul (distrito de Castelo Branco), as suas gentes estavam sujeitas aos condicionalismos que aconteciam em toda a Beira Baixa, designadamente, entre outros, o isolamento, que perdurou, de geração em geração, ao longo da história, devido a escassas vias de comunicação, levando-as a assimilar e a preservar o saber acumulado, com expressão numa cultura rica, própria e singular, de vivências, alegrias, sentimentos e desejos, a diferir das restantes regiões do país, mais permeáveis a influências externas.
É assim que encontramos no Pedrogão e em outras povoações da Beira Baixa, com pequenas nuances, as mesmas músicas tradicionais, práticas profanas, rituais religiosos, provérbios e ditos populares, baseados na experiência de vida, bem como relatos dos mesmos mitos e lendas adaptados às crenças das gentes de cada povoação.
Não foi por acaso que, no que respeita à música tradicional, grandes investigadores empreenderam pesquisas nas aldeias da Beira Baixa, tendo como alvo os cantares tradicionais, como foram os casos, entre outros, de Fernando Lopes Graça e Michael Giacometti e, mais próximo de nós, José Afonso.
Ainda no que às músicas tradicionais diz respeito, excluindo a atribuição de origem exclusiva e inequívoca a uma ou outra povoação - exemplos, entre outros, Moda da Azeitona, a Malpica do Tejo, as Armas do meu Adufe, a Idanha -, aparecem músicas de atribuição generalizada, das quais não se conhece a sua oriPreview
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gem, em cujas letras, com toadas, por vezes, diferenciadas, cada povoação introduz elementos vivenciais e locais seus, adaptando-as à sua realidade.
Um outro exemplo de tal adaptação, bem marcante, acontece em algumas lendas, como na “Praga dos Gafanhotos” com povoações - Alcains, Escalos de Cima, Pedrogão de São Pedro e outras - a reivindicar para a sua terra o milagre da intervenção do seu santo padroeiro na resolução do problema da praga dos gafanhotos que ameaçou, segundo a lenda, em dado momento histórico, destruir as suas hortas e searas.
O milagre deu-se, segundo a lenda, com “nuvens de gafanhotos” a esbarrarem contra as paredes da igreja, por intervenção de São Pedro, padroeiro dessas povoações.
No tempo da infância e adolescência da tia Ilda, as gentes do Pedrogão ocupavam-se de atividades agrícolas (homens e mulheres), de tecelagem (mulheres) e ainda de atividades relacionadas com a construção civil e ofícios em outros domínios (homens), dentro e fora do concelho, com maior incidência em Penamacor e Castelo Branco.
Mas, para melhor perceber o meio e envolvência ambiental onde a tia Ilda nasceu e foi criada, é importante referenciar Penamacor, sede do concelho onde se insere a freguesia do Pedrogão de São Pedro.
Enquanto sede de concelho, localizada a dez quilómetros de distância, a vida das gentes do Pedrogão não pode dissociar-se de uma forte dependência e ligação a Penamacor. Além da necessidade de lá se deslocarem para tratar de assuntos administrativos (camarários, de finanças e de registos na Conservatória, etc.) e fazer compras, os habitantes do Pedrogão, com os habitantes das aldeias vizinhas, terão ainda suportado e sofrido, em tempos passados, com forte probabilidade, as mesmas agruras e sofrimentos que os habitantes de Penamacor quando das incursões bélicas de outros povos para penetrar em território português.
Como nos dizem os compêndios de história, e deles nos servindo, Penamacor teve uma importância muito grande na defesa do território português - há vestígios e registos anteriores e
posteriores ao tempo de Dom Sancho I -, face a incursões bélicas, quer nos tempos mais recuados, com as invasões romanas e árabes, quer mais recentes, com as Invasões Francesas. Essa sua importância foi-lhe dada por dispor de um espaço alto e rochoso, estratégico sobre a fronteira, com declives naturais a permitir visualizar ao longe e ao perto o inimigo.
Foi assim que, tirando partido dessa mais valia, Dom Sancho I mandou ali construir um castelo e uma muralhada à sua volta, para defesa dos habitantes da vila e da região, perante as investidas dos inimigos.
Ao longo história de Penamacor foram-se sucedendo alterações no castelo e na fortaleza, de modo a reforçar os meios de defesa, com intervenções de reis posteriores ao reinado de Dom Sancho I, designadamente Dom Afonso III, Dom Fernando e Dom João IV.
A partir do século XIX, devido a várias circunstâncias, entre elas o progresso urbano, foi retirada a guarnição militar e, com isso, deu-se o progressivo abandono do castelo e fortaleza, restando hoje, apenas, a torre de menagem e a Domus Municipalis.
A importância histórica de Penamacor, com o castelo e fortaleza reconhecidos como Monumento Nacional (Decreto de 1973), é motivo de orgulho dos seus habitantes e dos habitantes das aldeias à volta, entre eles, naturalmente, do Pedrogão de São Pedro, enquanto pertencentes ao concelho e também pelas sentidas e vincadas marcas da sua envolvência, no passado, nas ações bélicas de defesa da região e de todo o território português.
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Infância e Adolescência
A infância e adolescência da tia Ilda, com o abandono desumano e cruel da família pelo pai, passou a ter ingredientes para um despertar para a vida amargo e infeliz, num ambiente a ser sustentado e suportado apenas pela mãe, que se foi valendo, com enormes dificuldades e pesados sacrifícios, da gestão dos parcos recursos de que disponha, com coragem, engenho e sabedoria. Na alimentação, além de ajudas familiares, valia-se dos produtos agrícolas que colhia na horta, tratada esforçadamente por ela e pelos filhos. Do pouco peixe que chegava à aldeia, normalmente
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sardinha, comprava uma apenas e dividia-a pelos cinco filhos. Para suprir a falta de roupa para muda, metia os filhos na cama, enquanto as únicas peças que possuíam eram lavadas e postas a enxugar.
Além dos referidos expedientes, a mãe da tia Ilda, para suprir as dificuldades, recorria ao exercício da tecelagem em tear manual, com o uso de fitas de tecidos de várias cores, feitas de roupa em desuso, de que resultavam mantas de retalhos, para fregueses de povoações vizinhas e de uma povoação de Espanha (Salvaterra do Extremo). Aqui se deslocava num velho burro, acompanhada por um ou outro filho ou filha, por acidentados e perigosos trilhos, cheios de escarpas a rodear as cercanias, altamente vigiados pelos carabineiros, na mira de surpreender os contrabandistas.
A profunda religiosidade da tia, repetidamente a nós contada, despertou quando o padre na sua primeira comunhão, aos sete anos, se voltou para todas as crianças e lhes pediu para pedirem a seus pais e mães perdão pelas suas faltas. Agarrada à mãe, chorou por não ter pai a quem pedir perdão. Misturando as suas lágrimas às lágrimas da filha, a mãe abraçou-a e disse-lhe para não chorar porque o seu pai era Jesus. A partir de então, a tia Ilda passou a considerar que Jesus seria o seu Pai, seu fiel companheiro, seu guia, nos bons e maus momentos, nos tortuosos e acidentados caminhos da vida.
Seguindo a sua devoção, ia participando nos atos religiosos da igreja. Ali se refugiava para curtir as suas mágoas, a sua dor, e esquecer a ausência do seu pai terreno. Em casa, ajudava a mãe Preview
na lavagem da roupa e participava no fabrico e venda de pão, negócio que permitia acrescentar preciosos tostões ao orçamento familiar.
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