Nasci em Belmonte-Castelo Branco (no ano em que se foram dois vultos que muito me marcaram, e à cultura portuguesa – Sebastião da Gama e Teixeira de Pascoaes). Residi (uns bons anos) na Póvoa, a quando da Primária e das idas-e-vindas a Lisboa para frequentar o Liceu (Gil Vicente) e a Universidade (ISCSP-U). Mais tarde, mudei-me para a Linha do Estoril e acabei por assentar arraiais no Pai do Vento-Cascais. Dei aulas em escolas do ensino básico e secundário, entre 1975 e 1983: Vila Franca de Xira, Póvoa de Santa Iria, Montijo, Cascais, Parede, Belém-Algés, Albarraque. Depois do mestrado, em Social Education (U. Boston), fiquei ligado ao ensino superior politécnico: fugaz passagem pela ESE de Beja e ancoragem na ESE do Instituto Politécnico Setúbal (onde sou professor coordenador). No nomadismo diário pelo meu “triângulo das bermudas” (Cascais-Setúbal-Ericeira), vou perdendo a paciência nas filas intermináveis de trânsito mas recupero-a no trabalho de campo (mais de hortelão-jardineiro que de antropólogo) e, nos cafés, sempre com o mar por perto, onde vou alinhavando escritas disto e daquilo. Fora isso, passo o tempo na escola (de onde nunca saí… desde os meus 7 anos). E aí me reencontro na alegria das aulas e na etnografia crítica daquele microcosmo idiossincrático.
FA[r]DO ESCOLAR
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FA[r]DO ESCOLAR
PRIMÁRIA - LICEU - UNIVERSIDADE
episódios etno-ficcionados de uma saga estudantil - 1960/1974 com contrapontos sobre a contemporaneidade
«Já se escreve não propriamente com a experiência, mas com a memória dela.» Manuel António Pina, entrevista ao Ípsilon, 17/06/11, p. 8.
EDIÇÃO:
Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro)
TÍTULO:
FA[r]DO ESCOLAR AUTOR:
LUÍS SOUTA PREFÁCIO:
João Ruivo CAPA:
Design de JL Andrade a partir da pintura O Meu Pião – Memórias d e Louro Artur (1996), ó leo sobre tela 54x65 cm. IPS, Serviços Centrais. REVISÃO:
Ana Laura Metelo Araújo PAGINAÇÃO:
JL Andrade.com e Ana Bela Aguizo 1.ª EDIÇÃO:
Lisboa, Março 2014 ISBN: 978-989-8714-00-8 DEPÓSITO LEGAL Nº 368979/13 © LUÍS SOUTA PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Av. de Roma nº 11 – 1º Dtº | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt Apoio IPS
O autor não segue o ‘A’O90; o livro está redigido segundo a “antiga” (e identitária) ortografia, a que respeita a “memória etimológica”.
Para os meus netos Afonso e Santiago no desejo ardente de que encontrem nas suas futuras escolas liberdade, alegria, felicidade, aprendizagens úteis – tudo aquilo que escapou a Arcílio.
INDICE PREFÁCIO O SUSTENTÁVEL PESO DA ESCOLA
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I. PRIMÁRIA 1.UM PIVETE
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2. QUE LATA!
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3. O CUSTOSO
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4. GRANDE JOGO
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5. BOLAS CONFISCADAS
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6. O PUXANÇO
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7. CANICHO
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8. BATAS BRANCAS
31
9. SANTINHOS
33
10. A INVASÃO DE GOA
35
11. TRESLER
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12. RECADOS
39
13. A RÉGUA
41
14. ESOTERISMO TERMINOLÓGICO
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15. AULAS NOCTURNAS
45
16. EXAME DA 4ª
47
17. EXAMES DE ADMISSÃO
49
18. FÉRIAS GRANDES
51
II. LICEU 19. TURMA DE GALFARROS
55
20. TORRICELLI À PORTUGUESA
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21. TABU LINGUÍSTICO
59
22. NÃO CONTAM PARA A NOTA
61
23. A BUFA
65
24. AS FALTAS
67
25. PARTIDAS
69
26. BAIXA A TOLA
71
27. LUGARES MARCADOS
73
28. CHEFE-DE-TURMA
75
29. A TRAPEIRA
77
30. OS PONTOS
79
31. COPIANÇO
81
32. ARTES & TRETAS
83
33. TIRA-LINHAS
85
34. EXAME DE 5º ANO
87
35. A PSICÓLOGA
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36. EXPLICADORES
93
III. UNIVERSIDADE 37. ENTREI NA UNIVERSIDADE
99
38. NICHO DE DIVERSIDADES
101
39. EXAMES A MATA-CAVALOS
103
40. FOME DE LIVROS
107
41. ORDINÁRIOS OU VOLUNTÁRIOS
111
42. REBELDIA ESTUDANTIL
113
43. PROVA ORAL
117
44. 11º MANDAMENTO: NÃO COPIARÁS!
119
45. MISSÕES IMPOSSÍVEIS
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46. CHUMBO PERMANENTE
127
47. REPROVAÇÃO BENDITA
129
48. LIVRE DE SANEADOS
133
49. PRAXES, PARA QUE VOS QUERO?
137
EPÍLOGO 50. (IN)ESPERADA PROFISSÃO
143
NOTAS Notas (de contemporaneidade)
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Notas do Autor
161
PREFテ,IO de JOテグ RUIVO
«Há na memória um rio onde navegam Os barcos da infância» Os Poemas Possíveis, José Saramago.
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O SUSTENTÁVEL PESO DA ESCOLA
Confesso que nunca gostei da escola. E tenho, hoje, a percepção de que de algum modo fui sujeito a feitiço, ou a algum desígnio dos deuses, porque para ela entrei aos quatro anos, e aí me mantenho aos sessenta… E tão fadado destino refinou-se com o tempo, porque, vai já quase para quarenta anos, que me dedico, tal como o autor desta obra, à formação de professores, o que indicia uma perversa vontade de atrair à profissão os melhores alunos, para que a instituição escolar se perpetue por todos os tempos dos tempos. Se é a isto que Luís Souta, interessantemente, ousa chamar de “fardo escolar”, então eu estou muito bem colocado para perceber o que ele quer transmitir aos seus leitores. Hoje, há uma outra clivagem que se detecta: há alunos que gostam de ir à escola, mas detestam ir às aulas… No meu tempo (meu e do Luís) não havia estudos que comprovassem coisas tão simples e, digamos até, por demais evidentes. Evidentes, para nós, claro, que vivemos a escola por dentro desde a mais tenra idade. E, talvez por isso, as minhas angústias têm sido suavizadas, porque também se escreve por aí que ninguém escolhe a profissão de professor por engano, porque, na realidade, é a única que temos a obrigação de conhecer bem, dado que todos estamos condenados a observá-la por dentro, quase todos os dias, ao longo da nossa vida. Porém, ao longo desses percursos, tal como nós, a escola também mudou. Umas vezes envelheceu demais, outra quis fazer-se de nova, com cosmética adquirida no linguajar pedagógico, mas, quase sempre, os professores conseguiram fazê-la renascer das cinzas em que os políticos e as políticas a enjeitaram, porque os efeitos da educação só dão resultados a médio e longo prazo e, logo, não se adequam aos calendários eleitorais dessa gentinha.
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Luís Souta
É por esse esforço permanente dos docentes, raramente reconhecido e recompensado, que, felizmente, a escola dos nossos dias é bem diferente e melhor do que a escola de que nos fala Luís Souta nesta obra. Conheço bem o Luís, migrante geográfico e académico, professor e investigador de primeira água, ao qual me ligam várias cumplicidades. Homem da geração do Maio de 68, com tudo o que isso representa, os seus textos, plasmados neste livro, pretensamente evocativos da memória da sua infância e juventude durante a ditadura de Salazar e Caetano, são muito mais do que isso. São textos com um profundo contexto e sentido ideológico, de crítica a um país e a uma escola elitistas, onde os retratos da pobreza, da selectividade, do autoritarismo arbitrário e do medo afloram em cada uma das suas narrativas, sempre com uma linguagem desprendida, simples, acessível, e fortemente motivadora da leitura e do leitor. Há quem talvez lhes chamasse relatos de “Histórias de Vida”, que os investigadores da sociologia e da história da educação por vezes privilegiam através da utilização do “método biográfico”. E, aqui, nesse restrito sentido académico, o livro de Luís Souta trespassa as portas do memorialismo e apresenta-se-nos como uma obra difícil de contornar pelos investigadores da educação. Ali está retratada toda a sociedade e a escola de um tempo em que as liberdades e a cidadania pouco valiam, onde o peso de uma guerra colonial esmagava as jovens gerações, onde o currículo formal transmitia a ideologia dominante e o poder discricionário das pequenas autoridades e do Estado, onde a escola perpetuava as desigualdades sociais e onde o grupo de pares e o currículo oculto mantinham um papel determinante na formação do carácter dos jovens que haveriam de ajudar a fazer uma revolução. Tal como as leituras “alternativas”, que ajudaram o autor desta obra, durante a universidade, a adquirir uma nova consciência social, também a leitura deste livro deve motivar os jovens professores a reflectir sobre um país
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e uma escola a que ninguém deve querer regressar, pese embora a escola portuguesa atravesse um momento de grandes desafios, só paralelos às ameaças que a espreita. Mas é também nos grandes momentos dilemáticos da acção, que os professores e os educadores sempre revelaram ser possuidores de forças internas que lhes permitem olhar de frente as oportunidades e, neste particular momento, saberão adequar o sistema às condicionantes que lhes querem impor, quase numa tentativa de regresso aos idos tempos das personagens das crónicas desta obra. Entregues a si próprios, sem acompanhamento nem adequada e suficiente formação complementar, os docentes sentem sobre os seus ombros o peso da enorme responsabilidade que lhes é imputada pelo Estado e pelas famílias. Vítimas de uma angustiante solidão profissional, cativos dentro das quatro paredes da sala de aula onde trabalham, quantas vezes em condições desmoralizadoras, rodeados de muros e cercas metálicas de várias origens e com diferentes significados, os docentes atingem perigosos estádios de desencanto, de desilusão e desmotivação profissional. Hoje, a profissão de professor caracteriza-se por oferecer poucos estímulos, incentivos, e até razões para que os docentes se envolvam num processo de motivação e evolução qualitativa das suas capacidades pessoais e profissionais. Hoje, alguns professores trabalham em condições tão desanimadoras que não conseguem enfrentar com autonomia e liberdade as contradições que, dia-a-dia, encontram dentro das escolas e junto das famílias dos educandos. Proclama-se uma escola inclusiva numa sociedade que não acolhe os excluídos. Pretende-se promover uma escola para todos numa sociedade em que o bem-estar e a cultura só estão ao alcance de alguns; em que a escola não consegue integrar os filhos das famílias vitimadas por políticas de incúria. Políticas essas que
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Luís Souta
acentuam o desemprego, o trabalho infantil, a iliteracia, a delinquência, a violência doméstica e coagem muitos pais a verem a escola obrigatória como um obstáculo à incorporação dos filhos no mundo do trabalho, já que esta não lhes é apresentada como uma solução meritocrática, porque as políticas e os políticos se revelaram incapazes de tomar medidas que evitassem as clivagens entre os que tudo têm e os que pouco ou nada possuem. Arvora-se uma escola em que os valores transmissíveis não encontram acolhimento em inúmeros lares, porque são constituídos por famílias disfuncionais. Uma escola onde se exige o cumprimento de currículos obsoletos, a aplicação e correcção de provas de avaliação de conhecimentos, muitas delas de duvidosa validade, e onde a máquina burocrática da administração escolar obriga a reunir em órgãos, departamentos, comissões, sessões de atendimento… Esta é a autêntica escola pública a quem se dirige Luís Souta e em que trabalha a maioria dos nossos professores. A escola em que também é preciso que os docentes tenham tempo para ensinar e os alunos encontrem momentos para aprender. Por tudo isso, as páginas que o autor aqui nos revela, enquanto experiência única, porque pessoal e intransmissível, são também uma enorme lição de esperança e de educação para o futuro: porque relevam a capacidade e a possibilidade de sobrevivência e de resistência às adversidades que muitas vezes a vida nos coloca no caminho, para que as vejamos como um desafio, a superar.
João Ruivo Professor (Instituto Piaget e Centro de Investigação de Políticas e Sistemas Educativo – CIPSE – do IP de Leiria)
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PRIMÁRIA
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«Na escola da tortura repetida» Sonetos, Antero de Quental.
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1. UM PIVETE
A escola, nos primeiros anos da primária, era para ele uma aflição, quase uma tortura. A régua lá estava para castigar a falta de estudo, a burrice crónica, o mau comportamento, e tantas outras coisas, que aos poucos ia descobrindo que davam punição. Regras, se as havia, só o professor as conhecia, e nunca lhas chegou a dizer. No dia-a-dia da escola as situações embaraçosas e humilhantes sucediam-se. Uma delas consistia em o professor delegar o seu poder, enquanto se ausentava temporariamente, num aluno mais velho da 3ª classe 1, normalmente um daqueles com argumentos de peso e altura. Nesses momentos deixava de o olhar como colega e sentia que preferia a autoridade natural do professor àquele arremedo de prepotência, que tinha como destinatários privilegiados os mais pequenos, ou seja, os da 1ª classe. – Posso ir lá fora à retrete? – pediu o Arcílio. – Não! Espera pelo recreio – respondeu impiedosamente o Bino, substituto do professor que, para se parecer mais com este, pegava na cana-da-índia e a sacudia ameaçadoramente. – Por favor, estou à rasquinha! – Faz as contas e está calado. – Deixa lá!… Estou quase a fazer nas calças – insistiu Arcílio, quase a medo. Mas como a agitação aumentasse na sala, Bino deixou de lhe prestar atenção e foi-se ocupar do grupo da 3ª classe, que mais dificilmente aceitava este poder de alguém do mesmo nível. Só lhe voltou a dar atenção
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quando o colega de carteira de Arcílio anunciou em altos berros que o seu companheiro estava todo borrado. Mil olhos se viraram para ele e os risos não paravam. – Desanda lá para fora, vai limpar-te. Logo havia de haver merda nesta altura, em que o professor não está. Vão chamar a Dona Eulália! Ela que trate disto. E a empregada, a Dona Eulália, lá tratou do garoto conforme pôde, ou seja, mal e porcamente, face às circunstâncias do desaire e às deficientes condições sanitárias que por ali existiam. E nisto se passou o tempo do recreio. Voltou Arcílio ao contacto com os colegas na fila de entrada. Os dichotes foram mais que muitos. – Que cheirete! – Chega-te para lá! – Que pivete! O professor teve que intervir, atraído pelo barulho, e também pelo cheiro peculiar que se fazia sentir por aqueles lados. A paz só a voltou a encontrar Arcílio com a ida antecipada para casa, a mando do professor, que desse modo pôs cobro a uma situação para a qual não havia saída pedagógica para além do banho e da roupa lavada.
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2. QUE LATA!
Arcílio tinha a sensação que o professor, apesar de ser o omnipotente director da escola primária, não mandava lá grande coisa no recreio e nas casas de banho, e ainda menos nos jardins e na horta 2. Esses eram os domínios da Dona Eulália, a contínua. Aí, ela punha e dispunha e a garotada lá ia andando a toque-de-caixa, fazendo o que ela lhe ordenava. Saíam para o recreio na habitual correria para chegarem primeiro à retrete – cubículo apertado, com uma simples latrina, onde só podia estar um de cada vez, e portanto os primeiros a chegar não perdiam o precioso tempo do intervalo na bicha que naturalmente se formava. Um dia viram que lá dentro havia uma lata de metal. Mas para que era aquilo?! Não tardou a esperada explicação. A Dona Eulália, que não dera pela saída da catraiada, lá vinha a gesticular, adiantando as suas directivas: – A partir de agora os meninos fazem o chichi para dentro da lata, ouviram? Surpresa geral que se transformou num uníssono porquê?, que ficou sem resposta, pois a Dona Eulália foi, entretanto, chamada pelo professor. Saber o que este fazia durante o intervalo era outra das coisas que os intrigava. Não lhes parecia que ele se divertisse muito, pois raramente aparecia no recreio e quando o fazia era para lhes ensinar umas tretas: marchar, direita-volver, à-esquerda-rodar e outras similares, que ele dizia serem muito importantes para quando andassem na tropa ou na Mocidade Portuguesa; esta, claro está, só para aqueles que continuassem os estudos. Nos dias subsequentes, o recreio passou a ter um novo motivo de interesse: lançar o jacto do chichi para
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o interior da lata era mesmo divertido. Era preciso pontaria e até fazia um barulho bem engraçado. Mas a brincadeira trouxe também o pretexto para novos ralhetes. Havia sempre os que aproveitavam a distracção de algum ou a falta de pontaria de outro para irem a correr fazer queixinhas: – Dona Eulália, o Arcílio não está a fazer para a lata. E lá vinha a Dona Eulália, pressurosa, a pôr ordem nos seus domínios. – Ó rapaz, faz isso direitinho, parece que és cego. Não vês que assim as plantas não crescem? Ah! Estava esclarecida a questão. Então a beleza das flores do jardim da escola devia-se ao contributo da miudagem. E a Dona Eulália que passava o tempo a dizer que eles nunca ajudavam, que só sabiam estragar. Ingrata!
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3. O CUSTOSO
Depois do recreio, o que mais os entusiasmava na escola era, sem dúvida, os bonecos-da-bola. Todos os tostões amealhados eram trocados por aqueles rebuçados (que ninguém chupava) pois de bom só tinham os cromos. O gosto estava naquela caderneta que se ia enchendo, muitas vezes à custa de alguns surripianços familiares ou de uns trocos não devolvidos aquando dos recados a mando da mãe. Os heróis do mundo da bola ali apareciam embrulhadinhos em volta de um rebuçado amarelo e pegajoso. O eterno suspense da compra, no quiosque dos jornais, era algumas vezes acompanhado da desilusão dos cromos repetidos. Então, lá se entrava no mercado paralelo do «tens p’rá troca?», pergunta repetida com maior frequência à medida que se caminhava para o fim da colecção. Para Arcílio o fim nunca mais chegava. O custoso nunca mais saía! Nesse ano era o Palma da CUF aquele com quem se sonhava, e cuja aquisição equivalia à bola de catchum. Ninguém tinha uma bola daquelas. Bolas semelhantes só no campo do Telhal, nos domingos de futebol em que o Povoense lá se ia batendo para não descer de divisão. A caderneta acabou por se completar, mas o lugar do custoso, que assim dava jus ao nome, continuava em branco. Já não valia a pena comprar mais cromos, pois agora só saíam repetidos e a lata dos rebuçados ainda ia a meio, e eles tinham a certeza que o Palma da CUF estava lá bem no fundo. Se Arcílio tivesse muito dinheiro comprava a caixa toda, e assim tinha a certeza de que ganhava a bola. Foi então que apareceu o Durval, colega mais velho, natural de Angola, a dizer que em Vialonga, terra de
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onde vinha diariamente, conseguia arranjar o custoso; só precisava de cem escudos. «Uma nota e logo das grandes! Como é que vou arranjar tanto dinheiro?» matutava o Arcílio. Lá o conseguiu… na gaveta da loja do pai. O Padre Mariano com certeza lhe perdoaria esse pecado, pois no meio do «pequei por pensamentos, palavras e obras» ia lá ele saber que ali andava furto! Seguiram-se dias de inquietação e desassossego. O tempo passava e o Durval não cumpria o prometido; as desculpas seguiam-se umas atrás das outras. «O melhor era levar a caderneta», disse o Durval por fim. E foi assim que lá ficou a nota de cem, a caderneta, a bola de catchum e o custoso… esse Palma da CUF, cuja cara permaneceu no maior dos mistérios.