As flores de plástico não morrem

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Uma história a vários autores em tempos de pandemia

Thais Lozano • João Pedreira • Luís Pereira • Vítor Almeida • Teresa Gama • António Soares • Mariana Pedreira • Dário Carvalho • Nuno Estêvão • Christiane Monteiro • Nuno Sousa • Rui Pereira • Luís Pedreira

As flores de plástico não morrem

Uma parteira que quer acabar com a própria vida. Um assassino profissional que se apaixona por quem não deve. Um inspetor com vários crimes por resolver. Traição, culpa, remorso, amor. Vários sentimentos, várias personagens, várias histórias. ‘As flores de plástico não morrem’ é um livro escrito durante o confinamento de 2020, de forma encadeada, por vários autores de diferentes pontos do país – e não só – cujo objetivo comum foi transformar os tempos de incerteza numa experiência única e inesquecível.

As flores de plástico não morrem Uma história a vários autores em tempos de pandemia


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TÍTULO: As flores de plástico não morrem AUTORES: Thais Lozano, João Pedreira, Luís Pereira, Vítor Almeida, Teresa Gama, António Soares, Mariana Pedreira, Dário Carvalho, Nuno Estevão, Christiane Monteiro, Nuno Sousa, Rui Pereira e Luís Pedreira. EDIÇÃO GRÁFICA: edições Vírgula® (Chancela Sítio do Livro)

1.ª EDIÇÃO janeiro 2021

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ISBN: 978-989-8986-34-4 DEPÓSITO LEGAL: 476308/20

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PAGINAÇÃO: Madalena Miguel Almeida GRAFISMO DE CAPA: Madalena Miguel Almeida e Mário Luz

© Thais Lozano, João Pedreira, Luís Pereira, Vítor Almeida, Teresa Gama, António Soares, Mariana Pedreira, Dário Carvalho, Nuno Estevão, Christiane Monteiro, Nuno Sousa, Rui Pereira e Luís Pedreira

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por Thais Lozano

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“Talvez seja uma espinha que tenho desde que a minha mãe morreu. Ficou entalada e dói-me sempre que algo se mexe dentro de mim. Pica-me e enterra-se cada vez mais e creio que agora chegou ao fundo. Vou-me sem ter sido feliz mais da metade dos dias da minha vida, e sem ter podido ajudar as pessoas que precisavam de mim e em mim confiavam. Lamento, Laura. Obrigado”.

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Obrigado? Não, não se escreve obrigado numa carta de suicídio. Obrigado porquê, por todos me terem empurrado até aqui? O que se escreve, então? Adeus? Também não. Se nem sequer sei de quem me despeço. Essa é outra, veremos quem me encontra, se agora ninguém sai de casa. Pelo cheiro, dizem. Mas eu sei lá se os meus vizinhos sabem a que cheira um morto. Em todo o caso, porque é que me preocupo com isso? Não me diz respeito, boa sorte a quem me encontrar. Despreocupo-me dessa parte e começo a pensar em como fazê-lo. Primeiro, a carta. Fazem-no em todos os filmes. Até a colocam com um envelope bonito apoiada numa jarra com flores frescas. Por falar nisso, quem tem flores frescas todos os dias? Eu não tenho nem jarras nem envelopes... Vou deixá-la em cima da mesa.

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Onde íamos? Isso, primeiro a carta, já está. Agora vamos lá. Não é fácil suicidarmo-nos com o que temos em casa. O típico são os comprimidos, uma overdose e acabou-se. Abro a farmácia e ao rebuscar encontro paracetamol, uma caixa com pensos, pó de talco e cinco comprimidos de ibuprofeno, três deles fora de validade. E isso importa? Se estão fora de validade? Claro que não, às vezes tens cada coisa... Mas siga, com comprimidos não pode ser, porque não posso sair de casa e muito menos sem saber o que tenho de comprar. Imagino a cena. "Olá, queria um pacote de comprimidos, assim, variados, que façam reação... É para um suicídio". Descartado. Cortar as veias na banheira é outra opção muito de filme mas mete dó, com a casa de banho que deixei tão limpa depois de tantos dias de quarentena aborrecida. As pessoas estarão a limpar tanto como eu? És mesmo louca, de onde surgiu isso? O teu problema é... Abre-se a persiana do apartamento em frente. Parece que a querem abrir, mas foi falso alarme. Está fechada há pelo menos dois meses, desde que foram para lá viver. As outras não, só a daquela janela. Já imaginei de tudo, até um quarto de perversões estilo Cinquenta Sombras. O teu problema é... que não te queres suicidar – penso, voltando ao tema. Ou que não te atreves. Cagona, sempre foste uma cagona. Tinha prometido a mim mesma que o faria, 10

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devia‑lhe isso, falhei para com ela. E voltei a pensar na Laura e na cama em que nos conhecemos enquanto ela dilatava. — Sou a Júlia e vou ajudar-te a trazer esse menino ao mundo – tinha as apresentações aprendidas de memória, depois de tantas pacientes... — Prazer – respondeu. — Sou a Laura e morro de dores. Dá-me qualquer coisa, por favor. Devo reconhecer que não era a resposta mais original que uma futura mamã me tinha dado, mas simpatizei com ela. Tinha umas covinhas simpáticas e as maçãs do rosto levantadas, o que lhe conferia uma cara de eterno sorriso mesmo quando sofria. Disse-lhe que ainda não podíamos fazer nada em relação a isso e respondeu-me que tudo bem, que eu é que sabia. Que confiava em mim. "Confio em ti", disse-me. Maldita a hora. Sabendo o que sei agora ter-lhe-ia dito que não, que não confiasse, que saltasse da cama com as últimas forças que tinha antes que o pequeno se encaixasse entre os ossos da pélvis e fugisse de mim. Estávamos todos um bocado malucos com isto do coronavírus, o hospital estava completamente tomado pela pandemia. Ninguém queria dar à luz nestas circunstâncias mas a Laura parecia pouco preocupada com tudo o que ocorria ao seu redor. Estava ali de passagem. Teria o seu bebé e iria 11

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embora. E o pai? Ou iria sozinha? Ainda não tinha coincidido com ele. Não cheguei a fazê-lo, na verdade. Quando tudo aconteceu não tive coragem de sair do quarto e falar com a família. Mandei um colega, alguém muito mais empático e com mais tacto que eu, alguém perfeito para soltar aquele "houve complicações, a mãe e o bebé faleceram, lamentamos muito". Recordo uma vez mais aquele momento, falhei à Laura. E ao seu bebé. Nem sequer sei como se ia chamar. Outra vez a persiana? Mas vais levantá-la ou não? Com aquela brincadeira o vizinho tira-me do meu círculo de culpabilidade. A verdade é que era giro. Via-o de vez em quando através das outras duas janelas que, essas sim, tinham a persiana levantada. O único vizinho bonito do bairro e eu a pensar em suicidar‑me. Sirenes. Aplausos. Aproximo-me da janela para a fechar. A mim ninguém me aplaude. Espera, Será que me sorriu? Não é boa altura, rapaz, neste momento sou um despojo. Contagiada com o vírus que apanhei no hospital, enojada em casa e a ponto de acabar com tudo. Sim, sorriu-me. O que faço? Nada, estúpida. Não foi para ti. Terá sorrido por alguma coisa que lhe contou a mulher desde o sofá. Além disso não tem cara de estar a sorrir, é mais o contrário... Anda, continua com as tuas coisas. O jantar, a videochamada de grupo que volto a recusar. 12

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Não vêem que não quero falar? O filme que deixei a meio. Ai jesus, que tarde é. E eu sem me suicidar. Acho que o vou deixar para amanhã. "Boa desculpa, Júlia". Esta última parte digo-a em voz alta, entre tosse. Cada vez que falo sai o vírus em forma de catarro. A noite caiu. Na verdade é uma noite maravilhosa, estrelada, silenciosa. Ninguém pode sair à rua, claro que é silenciosa. No mesmo momento e para o universo me calar a boca, começo a ouvir um ruído. Alguém a arrastar qualquer coisa. Olho lá para fora e vejo-o. O vizinho empurra um berço de bebé pelo passeio. Um berço novo em folha, ainda tem o plástico. Deixa-o junto ao contentor e volta a correr para o portão. Quem deita ao lixo um berço novo? Olho outra vez para a janela dele e de repente compreendo tudo. A persiana está levantada, a janela, aberta de par em par. A luz projectase de dentro para fora. A parede, meio pintada de azul claro. Na janela está pendurado um brinquedo com várias formas de animais. "Daniel" – leio. É assim que se ia chamar. Daniel.

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w ie capítulo 2.

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por João Pedreira

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Lembro-me bem do primeiro. Era um miúdo. Pouco mais de 20 anos, homossexual assumido e viciado em praticamente todas as drogas pesadas. O vício aproximou-o de grupos perigosos, os problemas foram aumentando, até que acumulou demasiadas dívidas com as pessoas erradas. — É a tua estreia, Dimitri. As mãos vão-te tremer, nos primeiros tempos é melhor segurares a arma com as duas. Quando tens a pessoa à tua frente o treino específico não te vai servir de nada. E não feches os olhos, não vires a cara. São regras fundamentais. Lembra-te que isto não é pessoal. É um trabalho como qualquer outro, e és pago para o executar da melhor maneira possível, nada mais. Eram os experientes conselhos de Boris. Boris é um tipo desagradável. Feio de nascença, tem ainda o bónus de uma cicatriz que lhe percorre a testa na diagonal. Dois dentes de ouro brilham-lhe na boca quando sorri e o hálito a tártaro é absolutamente insuportável. A barba, essa, não a deve cortar há anos. É um emaranhado cinzento-branco que se alonga quase até meio do peito. Mas eu não posso deixar de me sentir eternamente grato. Quando Boris me recrutou eu não era mais do que um trapo. Órfão de pai e mãe desde bebé, delinquente

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infantil, juvenil, júnior. Tinha percorrido todos os escalões das casas de reabilitação mas encontrava sempre uma forma de fugir. A máfia russa revelou-se uma verdadeira vocação para mim. Nesse primeiro trabalho safei-me bem. Quer dizer, o miúdo não morreu imediatamente, o que foi desagradável. Inevitavelmente as mãos tremeram, e o tiro saiu para o lado errado do peito. Tive que corrigir com um segundo tiro direto à cabeça, ignorando as súplicas do jovem. Sabia que, na verdade, era um favor que lhe fazia. Tive mais dificuldades em alguns dos trabalhos seguintes, quando me mandavam “limpar” – é o termo oficial – mulheres e, ocasionalmente, jovens ainda na adolescência. Mas fui aperfeiçoando rapidamente e em menos de nada era um assassino de primeira categoria. Sinto-me orgulhoso. “Qualquer um se sente orgulhoso quando sabe que é um dos melhores no que faz” – penso frequentemente. Chego mesmo a ser minucioso nos meus trabalhos, levando à letra a palavra “limpeza”. Sou bem pago, ainda por cima. Vivo desafogadamente com alguns investimentos em imóveis e dinheiro espalhado por vários bancos na Suíça e outros offshores. Não estava à espera do efeito Laura na minha vida. Conheci-a num trabalho, claro, quando fui designado para limpar Estefânia Flores. 18

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Laura era a sua melhor amiga e sabia tudo sobre ela. Inclusive o seu envolvimento numa pequena célula terrorista. Laura não tinha nada a ver com o assunto, e passava a vida a tentar que a amiga abandonasse tais companhias, mas sempre sem sucesso. Foi sem surpresa que soube da sua morte às mãos da máfia russa. Todos temos os nossos hábitos, vícios, manias. Eu tenho a minha mania: Compareço sempre aos funerais das minhas vítimas. Sempre de longe e à paisana, como um qualquer transeunte curioso. No funeral de Estefânia estavam apenas seis pessoas. Cruzei o olhar com Laura ao longe e algo estranho aconteceu. Nunca saberia dizer se foram as covinhas nas bochechas ou o facto de ela se estar a rir num funeral. A rir? Mas quem raio se ri num funeral? Em tantos funerais nunca tinha visto ninguém a rir. Quando ela passou mais perto percebi. Não era riso. Laura tinha uma face tão radiosa e bela que parecia que ria mesmo quando chorava. De repente, percebi. Tinha que a conhecer, tinha que falar com ela, tinha que a cheirar, tocar naquela face incrível, sentir aquele corpo curvilíneo. Nunca me tinha sentido assim e, minucioso e metódico como sou, estava preocupado por me sentir descontrolado. Comecei por segui-la, algo que a profissão me ensinou tão bem, mas desta vez com intuitos bem diferentes. Descobri 19

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rapidamente que Laura era professora de Geografia, não tinha Instagram mas tinha Facebook, era licenciada, solteira, popular e, acima de tudo, claramente feliz. A vida feliz de Laura mexia ainda mais com as minhas entranhas. Nunca tinha imaginado uma vida “normal” de uma família comum, um emprego de 40 horas semanais, vencimentos banais, listas de compras, remodelar uma casa, férias na praia, e de repente… tudo isto fazia sentido se a imaginasse ao meu lado. Apresentei-me num Starbucks quando a Laura estava a corrigir testes dos alunos. Lindíssima, com aquele sorriso radiante entre as covinhas das bochechas. Pedi licença para me sentar, conversa de circunstância, mas suava abundantemente. Porque raio estava a suar desta maneira? Eu que nunca suo, nem mesmo nos trabalhos mais sangrentos. Sabia que não era um às nisto de relacionamentos, mas tive sorte e percebi-o imediatamente: Laura também se sentira atraída por mim. Fui obrigado a mentir várias vezes, o meu emprego era o de gestor bancário, era solteiro mas vinha de uma relação longa (para parecer um tipo experiente), tinha vários amigos mas poucas vezes saía para festas e jantares, era no geral um homem muito sozinho e dedicado ao trabalho. Bem, esta última parte era mesmo verdade. 20

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Confiante, decidi arriscar um pouco mais: — Está a ser um prazer e uma enorme surpresa conhecer-te, Laura. Mas não posso deixar de notar que pareces um pouco triste. Permite-me que te pergunte: És sempre assim, ou há algo de especialmente triste neste momento? Laura respondeu tristemente: — Não, não sou sempre assim. Infelizmente, na semana passada morreu a mina melhor amiga. Dimitri ensaiou a sua melhor expressão de espanto e pesar. — Oh! Sinto muito. Foi de repente ou de alguma doença? Serenamente, Laura olhou para mim sem expressão e falou com uma voz firme, que eu não tinha ouvido até aí: — Deverias saber melhor que eu, uma vez que foste tu que a mataste.

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w ie capítulo 3.

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por Luís Pereira

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