Coliseu Eterno
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Ricardo Salgueiro Roque
FICHA TÉCNICA
título: Coliseu Eterno
autor: Ricardo Salgueiro Roque
edição: Edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro)
revisão: Patrícia Espinha
arranjo de capa: Ângela Espinha
paginação: Alda Teixeira
Lisboa, maio 2023
isbn: 978-989-9028-77-7
depósito legal: 511698/23
©
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Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.
Esta é a história de dois amigos e da sua viagem pelo Coliseu Eterno. Algumas vezes intensa, outras triste e outras ainda alegre, certo é que a jornada terá sido especial.
Um dos dois amigos, o mais velho, Máximo, achou por bem levar o mais novo, Veríssimo, num longo passeio repleto de novos horizontes, novas descobertas e sérias constatações. O mais novo não sabia da existência de um outro mundo para além daquele que conhecia.
Mas, afinal, perguntas tu: quem eram estes dois? O mais novo, Veríssimo, era, como tantas vezes sucede, amigo do mais velho e nutria por ele uma grande admiração. Máximo não era nem demasiado velho nem demasiado jovem, pode-se dizer que estava numa idade que aos olhos do mais novo parecia ser a ideal.
O jovem fulgor tinha levado a infância a desejar alcançar a idade de Máximo ou, pelo menos, os benefícios que pensava auferirem com ela. Caracterizava-o, a Máximo, um espírito aberto, leve e livre.
Sempre muito convicto e orgulhoso da sua rectidão, não tinha a presunção de ser perfeito. Dono de uma fanfarronice quase infantil, resultado de se ter em boa conta pelas razões certas, revelava-se incorruptível e em todos os momentos o que fazia era reflexo do seu bom fundo. Por vezes, não resistia em ostentar os seus elevados valores e princípios, sentia até um certo prazer em esfregá-los na cara do mais novo que, a espaços, punha a carroça à frente dos bois. Oca-
sionalmente, Máximo, por ser tão espirituoso e descontraído, não se distinguia do mais novo. Certo é que, uma vez por outra, eram quase como duas crianças grandes e da mesma idade, quase…
Máximo repudiava a violência, a sacanice, as conversas de sarjeta e todas as iniciativas provenientes da maldade. Algumas vezes, sem querer, quando focado e perante alguma injustiça, revelava-se duro nas suas observações, talvez por serem tão assertivas e de ângulos vincadamente rectos, afinal de contas ninguém é perfeito. Máximo também não era. Percebia-se com o tempo que era assim por uma boa causa, um Bem maior. Apesar de tudo, notava-se nele um esforço para tornar as suas reflexões mais delicadas e circunflexas. Embora nem sempre parecesse, Máximo, de alguma forma, continha-se. Sempre pronto e disponível para aconselhar, jamais se rendia à inflexão, se fosse caso disso revelava-se receptivo para aprender com o mais novo. Máximo observava o mundo de uma forma bastante particular. Abraçava o passado, mas nem por isso se agarrava a ele com demasiada determinação. Sabia muito bem que o tempo é como água que flui, tentar segurá-la cerrando a mão é como ir contra o inevitável. O tempo pretérito era muitas vezes uma herança que por demasiadas vezes lhe soava mal, inconsistente e incoerente. Tinha perfeita consciência de que se abraçasse regras caducas, o mais provável seria repetir erros de forma inconsciente e em demasia. Importante para ele era construir e contribuir para a descoberta de um futuro melhor, um menos sofrido, mais agradável e sereno. Insistir e persistir no erro não fazia parte da sua forma de estar.
Veríssimo, adulto há menos de uma década, era um estarola, um bon vivant com pretensões a Casanova. Para mal dos seus pecados estava longe de ser o mais bonito da sua rua, coisa que parecia não o abalar grandemente já que não se inibia de gozar com a sua próPreview
pria figura, o que, surpreendentemente, parecia sensibilizar ou talvez comover o público feminino. Paralelamente, pela introspecção, sensibilidade e empatia que revelava, mostrava-se como um diamante em bruto, e, como todos os diamantes em bruto, teria de ser lapidado. Em comum, estes dois companheiros de estrada, de épocas tão diferentes, conservavam uma grande lealdade e amizade um para com o outro, assim como o gosto pela vida e pelas coisas mais simples que esta tem para oferecer.
Pois vamos ao que interessa: a viagem destes dois pelos horizontes do Coliseu Eterno.
Máximo – Veríssimo, preciso de saber se te encontras pronto para esta viagem ou se, ao contrário do que penso, é prematuro levar-te comigo.
Veríssimo – Que pergunta a tua, Máximo! É óbvio que sim, estou mais do que pronto, aliás, já nasci pronto!
Máximo – Será mesmo assim? E diz-me, estarás tu disponível para aprenderes alguma coisa?
Veríssimo – Mas que raio, não te estou a compreender! Porventura alguém com juízo poderá não estar disponível para aprender?
Máximo – Percebo o teu espanto, mas pretendo inquirir-te sobre estes assuntos a fim de saber se estarás preparado para a caminhada. Esta será longa, por vezes dura e cheia de provações, embora intercalada de momentos muito especiais, de enorme alegria e beleza.
Veríssimo – Pois bem, Máximo, se o que me perguntas é se estou aprestado para as dificuldades que a estrada trouxer, a minha resposta é que nunca antes estive tão disposto a isso!
Máximo – Disso não duvido. Nunca foste tão adulto como és agora, é certo, mas não te esqueças de que ainda ontem estavas no berço.
Veríssimo – Talvez, meu querido velho. No entanto, como sabes, aprendo rápido e sinto que sei mais do que a idade aparenta!
Máximo – Muito bem. Para já, farei de conta que acredito. Quero ter a certeza de que a meio da viagem não te tornarás um bebé chorão, um “queixinhas”. Sabes que é muito incómodo passar o tempo com quem não faz mais do que se lamentar por tudo e por nada.
Veríssimo – Deves estar a fazer confusão, ó Máximo! Será que bateste com a cabeça em algum lado?
Máximo – Bebes demasiada Coca-Cola, meu filho! Não te excites, já percebi que a tua vontade é maior do que o juízo, ainda assim
dar-te-ei o benefício da dúvida. Vamos sem mais demoras!
Veríssimo – Deixa-te de histórias e avancemos por essa estrada fora! Em frente!
Máximo – Em frente, para os lados, para trás, para baixo e para cima, o caminho é o que quisermos que seja, esse o que traçamos.
Veríssimo – Sim, sim! Claro! Que seja! Por favor, vamos de uma vez por todas, bom homem!
Foi pela alvorada que partiram em direcção a uma planície situada perto de onde moravam. O silêncio já não era silencioso, para além das suas vozes juntavam-se as da natureza. O sol despontava e o céu azul-escuro mesclado com púrpura protagonizava o seu teatro mile-
nar. As cores, os tons da paisagem, sucediam-se como uma bela pintura, uns atrás dos outros. À medida que os animais despertavam, iam completando uma orquestra sublime. Cada um parecia tocar um instrumento diferente do outro, provando a quem duvidasse que aquele mundo era tanto dos homens como da própria natureza em si. O mundo natural permanecia ali, intocado, há muito e muito tempo antes do primeiro homem ter nascido.
Enquanto Máximo e Veríssimo caminhavam por uma vereda de ciprestes, veio à baila uma estranha conversa sobre extraterrestres.
Veríssimo – Ó Máximo, tu já imaginaste se do lado de lá destes ciprestes estivessem uns E.T. prontos para nos levar para o planeta deles?
Máximo – Oh! Não tenho eu pensado noutra coisa, meu cabeça de vento!
Veríssimo – Estou a falar a sério! Não acreditas em extraterrestres?
Máximo – Acredito pois!
Veríssimo – É que estou aqui a pensar nuns com quatro olhos, quatro braços e quatro pernas! Seriam parecidos connosco, mas com o dobro das nossas qualidades! Não poderíamos fazer nada perante a sua superioridade e ficaríamos à sua mercê!
Máximo – Ó Veríssimo, não me faças rir! Não acredito que os extraterrestres pudessem ser esses quadrúpedes de que falas. Afinal quem bateu com a cabeça foste tu. Não me digas que andas pelas ruas a apagar candeeiros com a testa!?
Veríssimo – Velho Máximo, tens as vistas curtas, que falta de imaginação!
Máximo – Nada disso, antes vejo algo muito mais lógico e razoável do que tu, que só pensas em ventanias!
Veríssimo – Como assim, sua alteza o Máximo?
Máximo – Ora repara bem, meu jovem desatento: quantos há na Terra que são como nós?
Veríssimo – Como nós? Como assim?
Máximo – Ora como nós, capazes de raciocínio!?
Veríssimo – Não há dúvida de que somos os únicos!
Máximo – Então e não se te afigura que, por ser assim, parece mais que fomos nós, a espécie humana, quem chegou de outro mundo?
Veríssimo – Realmente, colocando as coisas nessa perspectiva, sim, assim parece. Somos verdadeiramente distintos de tudo quanto há no mundo.
Máximo – E já reparaste tu que entre as milhares e milhares de espécies que habitam no nosso planeta, somos os únicos capazes de discernir entre o Bem e o mal, o certo e o errado? Que somos os únicos capazes de usar a razão e compreender o Bem universal, esse que nos é intrínseco e natural logo à nascença.
Veríssimo – Vejo-me realmente obrigado a concordar contigo, meu caro. E estás convencido de que por causa disso a nossa espécie é extraterrestre?
Máximo – Creio que, perante todas as espécies do mundo, por virtude das nossas características tão distintas e singulares em relação às outras, somos do mais extraterrestre que pode haver por estas bandas. É garantido que somos os mais diferenciados de todos, e, justamente, porque nascemos com esta bendição do raciocínio.
Veríssimo – A julgar pelo estado em que se encontra o mundo, convém dizer que, por vezes, essa bendição parece andar bastante disfarçada. Não achas, meu velho Máximo?
Máximo – A quem o dizes, meu caro cérebro de ouro…
Veríssimo – Não penses que não me apercebi do teu sarcasmo, ó nobilíssimo cientista! Posto isto, crendo nós que Deus existe, então só poderá ter sido por obra Sua que o Homem chegou à Terra. Ou consideras outra perspectiva? E se essa dádiva recebemos, este mundo tão belo, por que razão tanto o degradamos?
Máximo – Como sabes de outros Outonos, penso que Deus é efectivamente o Deus do Universo e tudo quanto existe é porque tem uma função a cumprir. Repara nessa obra divina e nota como nada foi deixado ao acaso, inclusive o que parece efectivamente ter sido. Tudo reage entre si, tudo se transforma, tudo se interconecta num encaixe perfeito. Eis a bonita natureza de todas as coisas. Eis a harmonia.
Porém, não façamos confusão, o mundo não vive em piloto automático. É precisamente por isso que não nos devemos precipitar em delegar à Deidade a responsabilidade dos nossos actos, seja no bom ou no mau cumprimento da nossa função como seres humanos conscientes, razoáveis e benevolentes. Não nos restam dúvidas, nós que temos fé, de que o Altíssimo nos inspira e auxilia caso as nossas intenções e acções sejam boas e coerentes umas com as outras. O destino do mundo está nas mãos dos homens. Muito me parece que Deus nos concedeu o livre-arbítrio para que andemos de mãos dadas não apenas com o mérito daquilo que se faz de Bem, mas também com o demérito daquilo que se faz de mal, sobretudo quando se impõe sofrimento aos outros. Não somos estranhos à responsabilidade dos nossos actos, pois que sejam benevolentes e contrários a tudo o que é afecto ao mal.
Veríssimo – Sim, estou de acordo contigo, mas não me respondeste na íntegra!
Máximo – Respondi-te, pois! Tu é que estavas distraído, talvez a tua mente tenha divagado para alguma princesa. O que procuro dizer é que todos nós, homens e mulheres, estamos na Terra para cumprirmos com a nossa função humana de forma benevolente, ou, no mínimo, sem causar dano. É da maior importância que, dentro dos contornos do livre-arbítrio, optemos incessantemente pelo Bem. É na sua prática rotineira que provaremos, de forma efectiva, o grande mérito da força, beleza, dignidade e grandeza de espírito. Esses graciosos ingredientes cuja falta enfraquece a alma. Especialmente, e mais ainda, se a carência destes tão-pouco nos preocupar ou incomodar, se a voz da consciência em nada nos alarmar.
Em suma, considero que estamos aqui para evoluir a alma e provar a qualidade da mesma na exacta proporção do Bem que formos, o Bem que fizermos aos outros e ao mundo, e do mal que nos abstivermos de fazer. Encaro a vida como uma triagem onde temos a oportunidade de fazer o Bem. As captações para um mundo melhor exigem que se esteja à altura desse mundo, que se é digno e merecedor dele. Porventura imaginavas tu que entrarias no Céu, lugar divino por tantos e tantas vezes aclamado, se não estivesses apto a permanecer nele? A razão é esclarecedora e coerente com o pensamento lógico: em Deus não se pode fazer tudo o que se quiser desprezando o sofrimento dos outros. Tudo para que mais tarde, no Inverno da vida, sem seriedade, sem pedir perdão, sem nenhuma empatia, piedade ou compaixão, aquele que agiu injustamente se convença de que a mera flexão das palavras apagará e camuflará as más acções de uma vida entregue a corrupções, violências e maldades de toda a ordem. Certamente que perante a origem da razão, à luz da verdade e do Bem, não há crueldade que não se veja, nem mentira que permaneça oculta.
E por cada vez que se confundir o mal com o Bem – julgando-se que pela imposição de sofrimento a outros se estará a cumprir o Bem, partindo única e exclusivamente de uma perspectiva não partilhada por quem não se revê nela – tal é o mais claro sintoma de que se desconhece verdadeiramente o que é o Bem.
Veríssimo – Velho tolo, acreditas mesmo nesses termos? Tiraste essas fantasias de algum conto de fadas? A meu ver é a glória, uma vida plena e com poucas privações aquilo que me parece o grande objectivo desta vida! A mim, mais me parece que a boa vida é aquela em que faço o que tiver de fazer para chegar ao topo, para conquistar riquezas e a admiração dos demais!
Máximo – Infelizmente, assim pensas tu e muitos outros míopes como tu. É precisamente por essa forma de pensar, e de estar, que degradamos o que é bom, o que é belo e natural. É por isso que tantos não evoluem revelando-se limitados inconscientemente. Assim se reprova nesta grande prova que é a vida. Dessa forma não se vai a lado nenhum, caro Veríssimo! Talvez gostes de te repetir pelas praças do sofrimento sem nunca atingires o teu máximo potencial.
Veríssimo – Compreendo o que dizes, ou penso que compreendo. Contudo, não me parece de todo vantajoso trocar o mais fácil pelo mais difícil, ainda por cima por algo de que não se tem a certeza, que não se vê e tão-pouco se pode tocar.
Máximo – É exactamente por isso que devemos ser bons. Na vida os que procedem de coração puro abraçam o verdadeiro mérito e são beijados pela verdadeira glória. Ou não te parece óbvio que o homem tudo faz a troco de recompensas, mas quando a troco de nada, pelo simples prazer de fazer o Bem, de o ser, de o permitir aos outros e às gerações futuras, facilmente se desmobiliza, rendendo-se à voz do egoísmo e individualismo, sucumbindo ao clamor interno
do interesse pessoal acima de qualquer outro? Sejamos melhores do que o oportunismo, maiores do que as tentações. Se não podemos ser maiores do que todas as tentações, sejamos, pelo menos, maiores do que aquelas que implicam o sofrimento de outros, sejamos superiores à injustiça que a parcialidade pode trazer e aceitemos o que a razão, de forma imparcial, nos diz, até mesmo quando não nos agrada o que ela nos diz.
A honestidade intelectual, no seu estado mais puro, leva-nos à compreensão de tudo o que nos dispusermos a compreender, inclusive as nossas falhas, erros e enganos. A honestidade intelectual, proveniente da razão mais isenta, é dos estados mais nobres que o intelecto poderá atingir.
Almejemos a algo parecido com o Nirvana, tão mencionado pelos budistas. O grande prémio da vida não me parece que se traduza em posses, mas na qualidade da nossa conduta perante a multiplicidade, volatilidade e vulnerabilidade do livre-arbítrio. Ou crês que deste mundo levarás alguma riqueza para o próximo a não ser a nobreza de carácter, fruto de uma vida sob a alçada do Bem? É da elevação da alma que tratamos, caro Veríssimo, e bem podes acreditar que não há nada mais valioso do que a própria alma. Eis que o mérito nos pertence por cada vez que optamos pelo mais difícil, mas correcto, em detrimento do mais fácil, embora incorrecto. A benevolência, a empatia, a compreensão do sofrimento do outro vale mais do que qualquer posse.
Espanta-me, após ter ouvido as tuas palavras, que realmente tenhas fé no Todo-Poderoso. Parece-me, de certa maneira, que pensas acreditar em Deus muito mais do que realmente Nele acreditas.
Veríssimo – Como te atreves a dizer isso!? Acredito em Deus, rezo e presto-lhe todas as honras e homenagens que estão ao meu alcance!
Máximo – Sim, porém fazes tudo isso de forma dogmática, mecânica e sistemática. Na verdade, não páras para reflectir e esqueces-te de fazer coincidir as tuas teóricas convicções com a tua conduta diária, inclusive nas coisas mais simples do dia-a-dia. De certa forma, meu jovem, revelas-te incompleto e, em parte, carente da compreensão do verdadeiro teor divino, esse que é o motor central do Bem. É que mais do que te deixas tocar e contagiar pelos preceitos originais de Deus, interiorizando estes como parte inseparável de ti, sem te dares conta, valorizas mais os rituais e preceitos religiosos do homem.
Acredite-se ou não em Deus a idade deve mover-nos na direcção de uma melhor compreensão daquilo que é o Bem, muito mais do que tudo o resto.
Veríssimo – Estou confuso, como podes dizer isso se frequento as missas, se rezo e contribuo para a minha paróquia?
Máximo – Repara, caro Veríssimo, a religião não é mais do que a interpretação que os homens fazem de Deus, logo estaremos sempre sujeitos à sua parcialidade e falibilidade interpretativa, já para não falarmos do desfasamento temporal e intelectual dos tempos de hoje em relação aos tempos ancestrais aquando dos primórdios da religião.
Por outro lado, Deus continuará sempre a ser Deus, seja Ele bem ou mal interpretado pelos juízos tão comummente tendenciosos e parciais dos homens.
A razão conta-me outra história, uma muito mais lógica, científica, razoável, amiga e em sintonia com aquilo que realmente é o
Bem, alicerçado num pressuposto de não sofrimento. Deus, acima de qualquer outra interpretação humana, é o expoente máximo da razão e do Bem universal. A palavra Deus, por si só, representa e guarda em si as valências de uma elevação inultrapassável e inatingível, revela-nos um modelo a seguir: o Bem, mas um que se verifique, na prática, verdadeiramente bom e coerente com a ideia do Bem, um Bem que não provoque sofrimento aos outros, um que tolere e compreenda, um Bem que perdoe, que é piedoso e compassivo, um Bem que deixe margem para a redenção. O Bem nunca é arbitrário, nunca se rege por dois pesos e duas medidas, nunca é parcial, muito menos toma nas suas mãos o que só pode estar nas mãos de Deus, punindo implacavelmente homens, mulheres ou o mundo natural.
O Bem não é o mal. O Bem deixa-nos uma senda a percorrer, a senda desse monumento espiritual e intelectual ao qual gosto de chamar, o sumo Bem.
Seja qual for a nossa convicção política, crença, ou religião que professamos, nada é mais importante do que respeitarmos universalmente o que é o Bem partilhado e compreendido por todos, abstendo-nos de provocar sofrimento aos outros e à natureza, repudiando toda a violência e considerando todos como iguais. Proceder desta forma não é sintoma de fraqueza, mas, sim, um grande sinal de fortaleza, boa formação e maturidade de espírito.
Se os homens insistem em interpretar Deus de formas erradas, discriminando, o problema não é de Deus mas dos homens. Por isso tenho como princípio não respeitar a forma mais do que o conteúdo. Ou seja, para mim, fundamental são as fundações, os valores, os princípios divinos. A minha religião e a forma como a manifesto são consequência das minhas fundações, valores e princípios. A minha conduta, o amor e respeito que tenho por todos, sejam semelhantes
ou diferentes de mim, revelam aquilo em que realmente acredito. O conhecimento, o estudo, acima de tudo a vida na prática, mais do que na teoria, levou-me à compreensão do outro, a não ser parcial, impediu-me de rejeitar ignorantemente a configuração humana diferente da minha. A razão levou-me a respeitar todos de igual maneira. Não basta afirmar que se acredita em Deus. Para se respeitar genuinamente Deus tem de se respeitar todos os homens e mulheres à face da Terra, especialmente os que nos são diferentes e com os quais não partilhamos tantas tradições, semelhanças e afinidades. Numa postura de respeito por todos reside uma grande nobreza intelectual e espiritual, um grande mérito, o mérito da compreensão e da empatia. Afinal, Ele não deixou nada ao acaso.
E adianto-te mais, Veríssimo, tenho a certeza de que se respeitar estas raízes e diretrizes, estas premissas do Bem, estarei a homenagear Deus, e por sua vez todos os homens e mulheres à face da terra. A diferença é bela, tem carácter e personalidade, é filha da natureza. Como monótono e aborrecido seria o mundo se tudo e todos fossem iguais.
Não há maior contradição do que dizer-se que se ama a Deus para depois não se compreender, intolerar e violentar outros. Impor sofrimento, divisão e iniquidade, garantidamente não é o propósito do Bem.
Veríssimo – Estou a gostar de te ouvir, meu caro. Continua. A estrada à nossa frente é longa e o tempo imenso.
Máximo – Portanto, embora respeites os mecanismos e procedimentos da religião que segues, tal não significa forçosamente que respeites os princípios divinos. Quantos não são crentes, mas capazes de fazer e infligir os maiores males?
A mim parece-me que acima da religião está Deus, e Deus, a meu ver, é o Bem perfeito, assente no pensamento razoável, lógico, um Bem autêntico e ausente de sofrimento. Por isso me inspiro naqueles, como Jesus Cristo, que despertam em mim a nobreza de alma e que, pelo seu exemplo, me inclinam para a fé em Deus.
Veríssimo – E se o meu Deus e aqueles que me inspiram forem diferentes do teu Deus e dos que te inspiram?
Máximo – A legitimidade e liberdade que tens para escolher os exemplos que segues é a mesma que a minha. Se te inspiras em homens bons, que repudiam o ódio, a inveja, o ciúme, o egoísmo, a violência, a injustiça, a segregação, a intolerância e a discriminação, em síntese todas as fontes do mal, então somos como irmãos gémeos que nasceram diferentes. Longe de mim supor que a minha religião é melhor do que a tua, tão-pouco pretendo forçar-te a eleger a minha como a eleita. A religião não se deve impor, quando muito deve-se partilhar. Mais te digo, se a tua religião é diferente da minha e se te ajuda a ser um homem mais compreensivo e tolerante, respeitador da diversidade humana e do mundo natural, então incentivar-te-ei ao culto da tua religião. Regra geral, as religiões, quando sem fanatismos, proclamam bons valores e bons princípios. Mais importante do que a quem rezamos, são as intenções que nutrimos e revelamos quando rezamos.
Veríssimo – Sendo que a razão me guia, não posso deixar de concordar contigo, bom homem. É correcto, justo e legítimo que cada um seja livre para prestar culto a quem quiser, desde que não provoque sofrimento a ninguém, nem aos das mesmas convicções nem aos de convicções diferentes.
Máximo – Ora nada mais óbvio nem mais lógico e sensato do que aquilo que acabas de dizer. É justamente por isso que é tão importante o laicismo dos Estados.
Veríssimo – O laicismo dos Estados? Alto aí, Máximo, o que dizes roça o pecado!
Máximo – Relaxa, jovem amigo, não te exaltes. Primeiro escuta o pensamento, as emoções e os apegos não devem interromper todos os raciocínios. Peço-te apenas para considerares algo de muito simples que nada tem a ver com poderes ou não professar a tua fé. Pecado? Antes pelo contrário.
No que toca ao aparelho de Estado poucas coisas serão tão responsáveis e construtivas quanto o seu laicismo. E não te esqueças de que te digo isto sendo também eu um crente. Ora tenta compreender o que te vou expor, mas por favor não feches precipitadamente a porta ao bom entendimento da vida e de tudo quanto a constitui e nela participa. O que, aos teus olhos, te parece divino?
Veríssimo – Muito bem, acompanhar-te-ei neste exercício, a meu ver dificílimo! Pois muito me parece que divino é tudo aquilo que o Bem universal engloba.
Máximo – Certo. E o que é que o Bem universal reúne?
Veríssimo – Da forma o mais célere e sucinta possível, dir-te-ei que o Bem universal reúne tudo o que é considerado absolutamente justo e devido ao Homem, por direito natural, desde a nascença. É tudo o que é naturalmente, originalmente e empiricamente bom para todos os homens e mulheres sem excepção, de forma equitativa e independentemente das diferenças que existam entre si. O Bem universal é o bem que, quando a mente e o espírito estão sãos, vem inscrito no nosso ADN a partir do primeiro fôlego. Na verdade, é um
bem óbvio e simples que, à partida, deveria estar inerente de forma indissociável a todos os homens e mulheres à face da Terra.
Máximo – Precisamente, jovem promessa! Mas, explica-te melhor, que propriedades o constituem? Diz-me, pelo menos, algumas, por favor.
Veríssimo – Com certeza que entre elas estarão os preceitos divinos originais: o não ser corrupto, não roubar, não mentir, não matar, não ser violento, ser piedoso, compassivo, tolerante, benevolente, compreensivo e empático, em suma tudo o que provém do Bem. É, fundamentalmente, evitar a todo o custo prejudicar seja quem for e respeitar a liberdade do outro como queremos que o outro respeite a nossa, e mais ainda! É o direito a amar livremente, o direito à paz, à amizade e ao não-sofrimento, é o direito ao livre-arbítrio. É também o dever de ajudar quem sofre assim como o direito a ser ajudado quando em sofrimento. Tenho a certeza de que muitas outras características me escaparam, mas creio ter-me feito entender.
Parece-me que o Bem universal é tudo isto sem discriminação, sem distinguir diferenças entre uns e outros.
Máximo – Muito bem! E porque ainda não estou senil, é rigorosamente como disseste, a razão não me deixa outra alternativa senão a de corroborar contigo todas essas belas e magníficas premissas que atribuíste ao Bem universal. Para reforçá-las, eu diria que o Bem universal constitui ainda parte do Bem supremo, o mais divino de todos os bens que se podem ter e ser. O Bem supremo, esse cujo único interesse é o bem de todos, sem restrições. Certamente é o bem que devemos como o bem que nos é devido.
Veríssimo – A razão é coerente. As nossas interpretações realmente parecem coincidir, ó Máximo.
Máximo – Verifico que, de facto, é assim. Posto isto, damos por encerrada esta discussão. É tempo de mudarmos de ares. Visitaremos agora outros palcos onde o sofrimento é atroz, a agonia inqualificável e a tristeza penosa. Se existem infernos na terra, ali será um deles!
Veríssimo – A falar assim deixas-me apreensivo e receoso, mas se consideras importante a nossa passagem por essas bandas então não terei como dizer-te que não. No entanto, Máximo, esqueceste-te do tema que ainda há momentos apreciávamos: o laicismo dos Estados.
Máximo – Nada disso, caríssimo, não me esqueci. Tudo tem o seu devido tempo e lugar. Vamos primeiro até lá e logo regressaremos onde ficámos na nossa conversa. III
A vereda de ciprestes e a planície há muito tinham ficado para trás. Era final de tarde e chegavam à orla de uma cidade distante. O céu estava nublado, escuro e deprimido. Estranhamente aqueles anuviamentos não eram constituídos por vapor mas, sim, por um fumo negro pestilento, algo de artificial manipulado pelo homem e absolutamente demoníaco. Os céus rangiam os dentes de cólera, e as verdadeiras nuvens, situadas mais acima, não compreendiam o porquê de tanto tumulto.
À medida que se iam aproximando da cidade o rastro de destruição tornava-se cada vez mais evidente. Do ar choviam bombas, sirenes gritavam ao longe em histeria. O choro de crianças, pais, mães e avós era ensurdecedor, sangue derramado por todo o lado, as ruas
e as casas completamente arrasadas. O sofrimento era estrondoso, para os que ali estavam naquele dia o fim do mundo tinha chegado.
Máximo – Repara, bom Veríssimo, já te deste conta daquilo que os homens são capazes de fazer uns aos outros? Anos a fio destroem-se mutuamente, às vezes por séculos e até milénios. Entregues e consumidos pelo mal, rendidos à intolerância, à ganância e ao ódio, enleados, cegos por estes, esvaziam-se da justiça para cometer atrocidades, e, sem a noção da malignidade dos seus actos, ainda reclamam o apoio, patrocínio e legitimidade desta.
Julgas tu que todo este ambiente de destruição é digno de Deus?
Se, tal como eu, consideras que Deus, esse Grande Mestre de todas as coisas visíveis e invisíveis, é ele próprio a mais perfeita expressão de paz, de amor, de amizade, de tolerância e de tudo quanto deve ao Bem, pergunto-te se te parece que comprar a guerra, incentivá-la e dar razões para ela poderá ter alguma legitimidade divina? Por acaso entendes que Deus, sendo Ele o Bem, seria capaz de promover a guerra, fazendo a sua propaganda? Consegues imaginar Deus, Senhor do Bem supremo, a instigar à guerra iniciando-a? Ou antes pelo contrário, incentivando à paz segundo a preservação do respeito por todas as nações, povos e seus territórios?
Veríssimo – Meu Deus! Que drama! Isto é gravíssimo! O que testemunho aqui é o absoluto horror! Constato que me habituei tanto a ver estes cenários apocalípticos na televisão, nos filmes e nas redes sociais que, à distância, me tornei alheio e indiferente. Percebo agora nunca ter tido a verdadeira percepção da natureza absolutamente diabólica natural e inerente à guerra. Não há justificação alguma para tamanho sofrimento! De uma coisa tenho a certeza, Deus nada tem a ver com o que se passa aqui. Deus, sendo bom, tal como acre-
ditamos que é, certamente repudia a guerra e castiga os homens violentos, opressores e agressores. Tenho a certeza de que Deus, a estar de algum lado, estará do lado dos oprimidos, invadidos, colonizados e expulsos das suas próprias terras. Estará do lado de todos quantos forem vítimas de interesses económicos, políticos, religiosos ou de que natureza for. Sendo Deus bom e a guerra indubitavelmente má e perversa, como poderia Ele estar associado a estes crimes? Deus é a antítese de todo o mal. Na violência nunca existe o Bem.
O que testemunhamos aqui, neste palco de guerra, é a mais pura das desgraças. A destruição imposta é prova indubitável da presença de um grande mal!
Máximo – Haverá algo mais óbvio do que aquilo que acabas de constatar por via da mais simples, elementar e acessível razão? E não será esta conclusão tão razoável quanto correcta, isenta e justa?
Veríssimo – Sem dúvida, bom homem, como poderia ser de outra forma!? A guerra, a segregação, as ausências de tolerância, de justiça e harmonia, são características do mal. Já o respeito por todos, a medida justa e o equilíbrio são naturais ao Bem.
Máximo – Parece-me que dizes tudo e que tudo quanto dizes é tanto melhor, mais correcto e mais justo quanto mais empático e compreensivo te revelas em relação ao sofrimento alheio. Muito bem, caro Veríssimo! Percebes agora, entre muitas outras coisas que previnem e afastam as guerras, também a importância do laicismo para a estabilidade dos Estados?
Veríssimo – Creio que sim. Finalmente vislumbro um Bem maior e mais elevado do que o simples facto de abraçarmos com demasiada força e apego o capricho de vermos associada ao aparelho de Estado a nossa religião. Parece-me agora mais evidente do que nunca. Se bem entendi a lógica para a qual me chamas a atenção,
concluo que as vantagens são essenciais. Num Estado laico, a religião vive na sua própria esfera, independente da esfera do Estado, este último funciona isento e imparcial, justo, como um simples organismo político de administração nacional, imune à eventual tracção e influência de uma religião em concreto. Desta forma, as diferentes pessoas que compõem o tecido social, mesmo que pertencendo a diferentes credos, são livres de professar a religião que bem entenderem sem se sentirem excluídas, discriminadas ou abandonadas pelo poder político. Por fim, constato como sendo lógico e razoável que, para Deus, seja muito mais importante não se destruir seja o que for ou quem for, nem se apropriar de nada nem de ninguém em seu nome, já que tal comportamento seria contrário ao Bem, à tolerância e ao respeito por todos.
Independentemente do Deus e da religião que se siga, nada será mais importante do que todos coexistirem pacificamente, em harmonia, liberdade, democracia, paz e respeito mútuo, em consonância com o livre-arbítrio intrínseco à condição humana.
Caro Máximo, o que de início parecia tão complicado afinal revela-se muito simples. Obrigado por me fazeres ver!
Máximo – De nada, meu caro amigo, é para isso que aqui estou. Agora sim, compreendes a grande perspectiva, aquela que é maior do que todos nós.
Que verdadeiro valor tem um capricho quando podemos ser absolutamente justos sendo isentos e imparciais em relação a todos?
Não valerá muito mais acolher a equidade e afastar as quezílias desnecessárias? Tomar a iniciativa de uma guerra, seja por que motivo for, não vale nem uma vida que se perca! Como homens de bem, o nosso compromisso divino é com Deus, não com os interesses. Este é um compromisso que está acima de qualquer interesse humano
que se revele egoísta e incoerente com os preceitos divinos. O nosso compromisso é com a última verdade, essa que é também a primeiríssima, o nosso compromisso é com a justiça divina, com o Bem universal e o Bem supremo. Para que estes se cumpram da melhor forma possível é incontornável o recurso à razão, à sua lógica e ao bom senso, porém estes só serão devidamente acedidos se abrirmos mão das correntes de aço que agrilhoam a mente e o espírito, impedindo-os de alcançar a evolução em elevação.
A nossa religião, seja ela qual for, não é maior do que o Bem, mas é certo que o verdadeiro Deus, seja ele quem for, é a materialização desse mesmo Bem e de tudo o que dele deriva. Não vejamos apenas o que queremos ver caro Veríssimo, vejamos o que é absolutamente justo e razoável que se veja.
Veríssimo – Começo a aperceber-me de que Deus é muito mais o Bem, o razoável e o que é justo do que qualquer dogma que os homens possam conceber nas suas quadradas cabeças. Parece-me, de facto, que não devemos confundir o que é a nossa religião com o que é a nossa nacionalidade. O ideal de liberdade e justiça, no que toca a este tema, é que possamos professar a religião que bem entendermos independentemente do país onde residamos. A minha religião é uma coisa, a minha nacionalidade é outra. O meu país não deve ser a minha religião, nem a minha religião deve ser o meu país. Naturalmente correcto é o laicismo do Estado. Sem este laicismo que enaltece a imparcialidade, muitos seriam os que cairiam numa visão tendenciosa, precipitando-se na discriminação daqueles que professassem outras religiões. Quando somos parciais esquecemo-nos de que outros, tal como nós, também existem e têm exactamente o mesmo direito a existir, a viver nas convicções que são as