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FICHA TÉCNICA título: O Fazedor de armenhas autor: Acácio Gomes edição: Edições Ex-Libris® (Chancela do Sítio do Livro)
Lisboa, fevereiro 2021
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imagem da capa: Pintura de Jean-François Millet imagem da contracapa: Maria Joana Pereira da Silva e familiares (1948) grafismo da capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira
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isbn: 978-989-9028-11-1 depósito legal: 476835/20 © Acácio Gomes
Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.
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DEDICATÓRIA
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À memória do nosso primo Cândido Correia de Andrade e dedicado a todos os familiares dos Correia, Santos, Pereira, Coelho, Silva, Alves, Andrade, Gomes e Nicolau
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Contada de avós para netos, esta é a história de uma família com origem no lugar do Fijô na Vila da Feira, que viveu ao longo de 5 séculos, teve uma Princesa de apelido, o escravo Josué que engravidou a viúva Ti Maria do Bicho e depois casou com ela, o António Silva com a alcunha de o Doido, um jovem assassino, que chega ao século XX com a Mãe Velha e onde não faltam pelo caminho dramas, romances, ciúmes, desastres, tragédias e muito mais como adiante se verá Baseada em 118 documentos existentes nos Arquivos da Torre do Tombo
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Sebastião Alves
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(1582-1662)
Namoro e casamento
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Sebastião Alves nasceu no Lugar do Fijô, na Vila da Feira, no início da década de 1580, no seio de uma família de lavradores que trabalhavam as suas terras, tanto junto ao Rio Cáster como no Lugar da Eira, naquela altura sendo considerado como situado nos “Arrabaldes da Vila”. Era brincalhão por natureza, mas muito tímido quando se tratava de abordar alguma rapariga da Vila. As brincadeiras em criança foram dando lugar, já mais crescido, às partidas e aventuras mais ou menos temerárias com os amigos. A infância, uma parte do tempo, era passada no Lugar da Eira, para onde os pais o levavam, quando aí se deslocavam para os trabalhos agrícolas de sementeira na primavera, de rega e colheita no Verão. Aos seis anos, aí encontrou a sua primeira amiga, Rosa, cujos pais tinham um pequeno casebre perto da eira da família de Sebastião Pires, o pai. Foram dias de brincadeiras intermináveis que, normalmente, chegavam ao fim com o chamamento da mãe de um deles. Uma grande parte das vezes, quando lhe diziam para se irem embora, ele queixava-se por não o terem chamado para comer. Aos oito anos, Sebastião iria ter um grande desgosto que o marcaria por muitos anos. A Rosa, que ele considerava ser a sua namorada, foi-se embora com os pais para uma terra longínqua, um sítio chamado Paramos, de que ele nunca tinha ouvido falar. Sebastião Alves era o filho mais velho de Sebastião Pires e de Maria Alves, moradores na época no Lugar do Fijô, junto ao Rio Cáster. Teve mais dois irmãos, que nasceram na casa dos pais, no dito lugar, António 7
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Alves, baptizado a 26 de Janeiro de 1592 na Igreja de S. Nicolau, e Isabel Alves, baptizada a 12 de Outubro de 1594, na mesma igreja, pelo padre Francisco Soares. Entrando na época dos dentes do siso, Sebastião Alves passou a ajudar o pai nos trabalhos agrícolas, aproveitando alguns momentos para plantar armadilhas para pássaros, quer na eira, quer nos campos perto do rio. Às vezes, pescava trutas que abundavam nos meses da Primavera e do Verão, embora fosse desaconselhado pelo pai, uma vez que podia incorrer em pesadas penalizações. Nos Domingos em que conseguia escapar dos trabalhos do campo, encontrava-se com os amigos para percorrer terras vizinhas, especialmente nos dias de festa. O pai, atento, chamava-o à atenção quando via aproximarem-se os companheiros que o vinham desafiar. Sebastião Alves sempre trabalhou e viveu da actividade agrícola, apesar de em algum momento ter pensado que gostaria de ser carpinteiro. Mas tornou-se conhecido pelos seus dotes de improvisação na construção de galinheiros, currais de ovelhas e, sobretudo, de armadilhas para caçar todo o tipo de aves. Com os companheiros da época, o João, o Francisco e o André, ia muitas vezes à caça, sobretudo para o Lugar da Eira de Cima onde os pais tinham um terreno, e nas matas vizinhas havia muitas espécies comestíveis e cujas peles podiam ser aproveitadas. Mas temiam sempre entrar nalguma coutada privada pois isso constituiria crime punível. Sebastião Alves tinha dois cães treinados para farejar especialmente coelhos e lebres e, em conjunto com os companheiros, conseguia reunir às vezes de seis a oito cães, quando iam à caça em terrenos maninhos ou nas matas circundantes. Levavam facas, lanças, forquilhas compridas com dois dentes de ponta afiada e, às vezes, um arco e flechas que ele próprio tinha construído mas nunca serviu de nada pois nunca acertou em animal algum. O tipo de caça dependia muito do que encontravam. No meio das matas, tornava-se difícil devido aos muitos arbustos, às giestas, às silvas e 8
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ao tojo mas, às vezes, encontravam um animal selvagem de maior porte, como os veados. Apenas uma vez viram, ao anoitecer, um javali que, ao ouvir os cães ladrar, se pôs em fuga por um buraco entre as silvas que indicava que talvez as suas crias ali estivessem. Eles não continuaram no seu encalço, uma vez que o buraco aberto entre as silvas e o tojo em que ele tinha entrado já se encontraria numa área de coutada do Conde da Feira. A pesca da truta, do barbo, das bogas e de outras espécies, abundantes no rio, era uma actividade que requeria cautelas. Ele e os companheiros iam por vezes pescar para o Rio Cáster, mas sempre com cuidados extremos. É que o Conde da Feira tinha estabelecido uma coutada sobre essa parte do rio, apesar de o Foral da Feira definir que a pesca nos rios não pagava direitos. Por isso, quando iam apanhar peixe, deixavam sempre alguém a vigiar na Ponte do Fijô para o caso de aparecer algum representante do Conde. O peixe muitas vezes encontrava-se escondido em buracos na pedra das bermas, nas raízes de árvores à beira do rio, especialmente choupos, salgueiros, videiras e canaviais, e a técnica que usavam consistia na utilização de uma vara comprida ou de uma cana, enfiando-a nesses buracos, e o peixe saía estonteado e era apanhado com uma rede em forma de concha na ponta de uma vara que tinha sido concebida por Sebastião. A par desta actividade, sobretudo lúdica, Sebastião Alves começou a desenvolver alguma arte, de início na construção de armadilhas para pássaros. Usando canas, varas de salgueiros e outros materiais semelhantes, cortados das árvores com uma foice, e que abundavam ao longo do Rio Cáster, fazia gaiolas, armenhas e armadilhas, usando vimes para assegurar a sua robustez. As armenhas tinham um formato de pirâmide e o seu tamanho dependia dos pássaros que se queria apanhar. Costumava colocá-las ao longo do rio, nos campos na altura das colheitas e nas eiras, onde a passarada aparecia. Ao longo do rio apanhava algumas aves canoras como melros e pintassilgos, os quais começou a coleccionar, tendo construído junto à casa dos pais uma enorme gaiola onde os pássaros 9
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passavam o dia a cantar. Chegou mesmo a apanhar rolas e perdizes que abundavam em toda a região. Em determinada altura aconteceu um percalço lá em casa. Durante a noite, uma raposa tinha entrado por um buraco existente no galinheiro, tendo levado uma galinha poedeira e deixado mortos alguns pintos. Constatando o estado do galinheiro, Sebastião decidiu levar a cabo a tarefa de construir um galinheiro robusto que fosse à prova do ataque das raposas. A destreza que tinha adquirido na construção de armenhas fez com que aplicasse esse método para fazer o galinheiro. Munido de uma foice, foi com o irmão António à procura de canas, de varas e vimes, que ia seleccionando de acordo com o tamanho e a consistência que achava adequados. Ao fim de algumas horas chegaram a casa carregados com dois grandes molhos com os referidos materiais e, no dia seguinte lançou-se na construção de um novo galinheiro, com a ajuda do irmão. Meses mais tarde seria a vez de construir prateleiras onde eram guardados alguns frutos que se destinavam a ser consumidos no Inverno, especialmente maçãs, figos e laranjas. Normalmente, por baixo da fruta era colocada uma camada de palha de trigo ou centeio que assegurava que se conservasse durante vários meses, melhorando o seu sabor ao longo desse tempo. Este seu jeito e habilidade, começou a tornar-se conhecido em toda a zona da Vila e dos lugares dos arrabaldes, sendo os seus companheiros em parte responsáveis por espalharem esta fama, pelo que Sebastião começou a ser solicitado para ajudar sobretudo na construção de galinheiros, dado os ataques das raposas que tinham vindo a crescer na região. Para além da pesca e da caça, aquele grupo de companheiros de Sebastião Alves tinha especial predilecção pela tradicional feira dos Vinte que se realizava todos os dias 20 de cada mês. Naquela época, iam sobretudo à procura de aventuras e de encontrar raparigas para namorarem, quando não tinham de lá estar também a procurar vender produtos comercializados pelas suas famílias e, sobretudo, para assistir a jogos ou artes de saltimbancos que sempre apareciam.
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A Feira que daria origem ao nome da Vila realizava-se, na Idade Média, no interior e junto ao próprio castelo. Com efeito, este foi ganhando imensa importância no decorrer dos tempos, sendo o núcleo das Terras de Santa Maria e o centro de um famoso Mercado onde eram vendidos os mais importantes produtos, começando-se a chamar a este mercado “Feira”, denominação que se estendeu à povoação, situada nas terras baixas da encosta do castelo, a “Vila da Feira”, nome este mantido até à década de 80 do século XX. Já no século XVII, a feira realizava-se num lugar chamado Rossio, um terreno tradicionalmente pertencente em comum ao povo da Vila, um local espaçoso, com árvores e de terra batida, nas terras baixas da encosta do castelo, junto a Rio Cáster, e no Verão não se limitava à troca de produtos, dando lugar a festas espontâneas, bailaricos e jogos que entretinham o povo. Havia ainda vendedores de água fresca e vendedores de limonada que deambulavam de um lado para o outro, apregoando o seu produto. Havia naturalmente os vendedores de vinho que traziam as suas pipas em carros de bois e as deixavam expostas em locais estratégicos para o público ver que o produto ali estava para consumo. O vinho era bebido em malgas ou escorria das cabaças e alegrava as vidas das gentes. Esta feira era conhecida em toda a região da Terra de Santa Maria. Havia gente que vinha de bem longe tanto para vender como para comprar. Além das bebidas mencionadas, também se vendiam aguardentes, hidromel e outras misturas altamente embriagantes. Ao cair da tarde, viam-se os bêbados deitados nas valetas ou encostados a alguma árvore, enquanto outros já em estado de coma alcoólico eram levados de padiola. No ar sentia-se o cheiro de fritos e de porco assado, de frutas secas e de especiarias. Para além dos que vinham oferecer os produtos mais comuns provenientes do cultivo da terra, tais como o trigo, o centeio, a cevada, o milho painço e a aveia, havia sempre também as farinhas para fabricar o pão bem como os vendedores de unguentos, de mézinhas para as diversas maleitas e sobretudo os especialistas em reparar todo o tipo de instrumentos ou de vestuário. Os vendedores de açúcar, sal e espe11
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ciarias, especialmente a pimenta, eram sempre muito procurados, bem como os que vendiam doces e joias para adorno feminino. A partir de Junho, apareciam as vendedeiras de camarinhas, um fruto cujo arbusto floresce entre Março e Maio, nas zonas de dunas de Portugal, com flores masculinas e femininas, em cachos que surgem na extremidade dos ramos. As pétalas são cor rosa-pálido nas flores masculinas e habitualmente ausentes nas flores femininas. Em Junho aparecem os primeiros frutos, brancos e comestíveis, que são trazidos em açafates e vendidos na feira. Mais ao fundo do Rossio, encontrava-se a feira dos animais, em particular bezerros e bois, porcos, coelhos e galinhas. Os interessados passavam de tamancos pela bosta que exalava um cheiro característico. Desde os tempos dos primeiros reis portugueses que tinham sido instituídas as cartas de feira que estipulavam as suas regras. Assim, “a todos os que arribassem à feira não seriam tomados seus animais de sela e de albarda, animais de tiro, portanto, para nenhuma carga, nem eles seriam obrigados a qualquer serviço na ida para a feira, enquanto nela andassem, nem quando a suas casas regressassem. Não seriam presos, nem acusados, nem demandados, por nenhum malefício em que se vissem alegadamente culpados, salvo se fosse feito na vila, ou nos seus termos, ou – claro está – na própria feira. Não seriam citados nem demandados por quaisquer dívidas, provenientes de heranças ou outras, excepto se fossem provocadas por compras e vendas que houvessem tido o seu lugar na feira. Os feirantes, forasteiros e os habitantes locais eram também autorizados a andarem armados no recinto para sua defesa pessoal, dos seus e dos produtos à venda, e podiam servir-se de qualquer tipo de montada. Finalmente, preceituava-se que nem os oficiais régios nem os dos concelhos fizessem correição na feira e, se a esta viessem, o fizessem tão-só para comprar ou vender.”1
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Com o Foral da Vila da Feira de 1514, os vizinhos e moradores da terra da Feira e de Santa Maria ficam isentos de pagarem portagem de todas as coisas que comprarem e venderem uns aos outros, “na dita terra de qualquer qualidade e nome que seja. E também o serão de qualquer coisa que comprem para seu uso aos homens de fora, de qualquer sorte ou maneira que seja. Somente pagarão portagem das coisas que venderem aos homens de fora e das que comprarem aos homens de fora.”2 À medida que se ia fazendo adulto, Sebastião Alves aumentava a sua habilidade na construção de galinheiros, cercas, gaiolas de pássaros, prateleiras para a fruta ou armenhas. No entanto, tinha mantido a sua timidez de outrora. O seu acanhamento seria consequência de se sentir intimidado perante as raparigas, possivelmente por ter ficado traumatizado com a ida de Rosa com os pais para Paramos. Era comum os seus companheiros brincarem com o assunto, especialmente o André, o que o deixava ainda mais constrangido. Mas o pior era a sua mãe que passava o tempo a perguntar-lhe: — Quando é que começas a namorar, rapaz? À medida que os anos iam passando, os seus companheiros iam casando e os pais cada vez mais preocupados e, de cada vez que se casava mais um, perguntava-lhe a mãe: — Quando é que te casas homem? — Primeiro é preciso namorar. Respondeu Sebastião Alves, desta vez. O tempo foi passando e por volta dos 27 anos de idade, numa das feiras dos 20, iria ter oportunidade de dar um passo em frente, numa questão que o não apoquentava mas que começava a afligir a sua mãe. Ele tinha passado a ponte de Fijô sobre o Rio Cáster e foi olhando em redor e prestando a atenção ao espectáculo a que já estava habituado. Nos acessos ao largo da feira concentravam-se os pedintes, os estropiados, os cegos, os mudos e os aleijados, descalços e em farrapos, lamu-
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https://issuu.com/villadafeira/docs/separata_virtual_36_foral_da_vila_d 13
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riando as suas vidas e pedindo uma esmola ou um naco de qualquer coisa que pudessem tragar. Foi numa Sexta-feira, na Feira dos Vinte de Março, que Sebastião, entretanto já feito homem, encontrou a mulher da sua vida. Maria Gonçalves, de seu nome, costumava acompanhar os pais à Feira dos Vinte, especialmente nos meses com menos chuva, onde aproveitavam para vender alguns produtos da terra, especialmente feijão, trigo e centeio, que cultivavam nas margens do Rio das Lajes. Ele já a tinha visto uma vez em casa do tio João Pires mas, nessa altura, ela teria pouco mais de 12 anos. Quando a viu desta feita, Sebastião Alves ficou pasmado com a sua desenvoltura e, ganhando uma coragem sem precedentes, pôs de lado a sua tradicional timidez quando estava junto de raparigas da mesma idade, dirigindo-lhe a palavra. — Boa tarde, prima! Disse Sebastião ao passar por Maria Gonçalves na Feira dos Vinte, do mês de Março de 1609, apanhando-a de surpresa. — Quem disse a vossemecê que eu sou sua prima? Respondeu ela desaforada. — Olhe que ainda somos primos! Continuou Sebastião um bocado encavacado, com o rubor a cobrir-lhe a face. — Isso diz vossemecê só para meter conversa! Maria era conhecida por ser atrevida e as três amigas que seguiam com ela, deram umas risadinhas à espera da reacção do rapaz que, para elas, já andaria pela casa dos 25 anos. — Eu só queria convidar para beber uma limonada. Não foi propriamente brilhante a abordagem do jovem Sebastião Alves que ficou a remoer as respostas. Mas, acabou por pagar uma limonada às quatro raparigas e perguntar o que é que elas andavam a fazer na feira se não traziam nada para vender. — E vossemecê, o que é que tem para vender? Perguntou a atrevida Maria Gonçalves. A coisa ficaria por ali, mas teve desenvolvimentos na Feira dos Vinte de Junho seguinte. Tanto quanto se sabe, foi nessa feira realizada a um Sábado que Maria Gonçalves e Sebastião Alves iniciaram realmente o 14
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namoro que acabaria em casamento. Maria e Sebastião tinham de facto algumas afinidades familiares as quais, por certo, ajudaram ao desenlace, uma vez que uma prima comum tinha entretanto levado um recado a Maria Gonçalves. Nessa tarde, enquanto os pais de Maria se dedicavam à venda dos produtos que tinham trazido de Proselha, esta foi-se encontrar com Sebastião, aproveitando para ir vendo os contorcionistas e os gigantónios que deambulavam por entre a populaça. Ali começou o namoro que duraria vários meses até Sebastião e Maria combinarem que chegara a altura de ele ir pedi-la em casamento, uma vez que ele tinha andado a protelar a abordagem aos pais de Maria. E foi assim que, no Domingo 9 de Maio de 1610, Sebastião se encheu de coragem, saiu de casa no Lugar do Fijô, atravessou a ponte de madeira do Rio Cáster, passou o Rossio, subiu a ladeira da encosta do Castelo, e começou a percorrer a pé a estrada de pedra da Vila da Feira até Proselha, a antiga via romana. A distância entre a sua casa e o Fundo da Aldeia deveria representar umas duas milhas, não mais do que isso. Pelo caminho foi encontrando gente que seguia nos dois sentidos, soldados do Castelo apeados e homens a cavalo que ele conhecia. Ao entrar na quingosta de S. Gião, uma parte da estrada que poderia tornar-se assustadora sobretudo à noite, propícia a assaltos de meliantes, Sebastião começou a olhar para cima e verificar que a estrada se afundava cada vez mais, tendo como única paisagem as matas a umas três varas acima do caminho. Aquele percurso um bocado lúgubre não lhe augurava nada de bom, achava ele, e já começava a arrepender-se de ter encetado tal demanda. Quando passou a capela de S. Gião, Sebastião perguntou a um dos passantes, um jovem que ia em direcção contrária, onde é que era a casa de Diogo Alves. — Não tem que enganar, respondeu o rapaz. É a terceira casa do Fundo da Aldeia, depois de passar a ponte das Carregueiras. Era bem perto. Depois de passar a ponte, ainda ia remoendo no que havia de dizer, mas lá se encheu de coragem e foi bater à porta dos pais de Maria com a intenção de pedir a filha em casamento. Eles já estavam 15
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à espera, até porque o irmão mais novo da mãe, Domingos Gonçalves que tinha casado com Maria André, filha de João Pires, tio de Sebastião, já os havia avisado. Sebastião tinha assim à sua espera os futuros sogros, Diogo Alves e Maria Gonçalves, que tinha o mesmo nome da filha, que o receberam bem dispostos, oferecendo-lhe fogaça e vinho. Sebastião Alves tinha-se preparado levando a melhor vestimenta que possuía, uma camisa de linho branca, com uma túnica castanha que lhe dava até aos joelhos e uma calça justa até aos pés, da mesma cor, com uns sapatos bicudos pretos, chamados puntilhas, de cabedal. Tradicionalmente, nos trabalhos no campo andava descalço ou usava umas sandálias com correias ou uns socos de madeira, de nome chapins, mais próprios para o Inverno.3 Ao passar o alpendre, Sebastião ouviu umas risadinhas e uns comentários que não entendeu, mas logo percebeu que se tratava de Maria e das suas amigas ou vizinhas. Acanhado, com as mãos atrás das costas como costumava ficar quando na missa se sentava na parte de trás da Igreja de S. Nicolau, Sebastião ainda gaguejou um bocado no início da conversa mas lá foi adiantando que vinha pedir a filha dos donos da casa em casamento. Entretanto, foram aparecendo as raparigas que acompanhavam a futura noiva, desatando a tagarelar, o que fez com que a futura sogra as chamasse à razão. Nesse mesmo dia ficou fixada a data do casamento que se realizaria na Igreja paroquial de Santo André de Proselha, no segundo Domingo de 1611, uma semana e meia antes da Festa das Fogaceiras, precisamente daí a 8 meses. A Festa das Fogaceiras realiza-se anualmente no dia 20 de Janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro da Vila da Feira. Esta festa remonta a 1505, época da peste em Portugal. Segundo a tradição, os Condes do Castelo e da Vila da Feira prometeram a São Sebastião realizar uma festa anual em 3
http://www.conventocristo.gov.pt/data/Documentos/palestr%20vest%20pdf.
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sua honra se o santo livrasse os feirenses da peste. O “voto” da promessa seria uma fogaça, bolo cujo formato foi inspirado nas quatro torres do castelo. São Sebastião tornou-se assim o santo padroeiro de todo o condado da Feira. No entanto, o povo deixou de satisfazer a promessa de entrega da fogaça entre 1749 e 1753 e a peste regressou às terras de Santa Maria nesse período. A tradição voltou então a cumprir-se, sem nenhuma outra interrupção. A tradição exige que, no decorrer desta festa, as meninas fogaceiras, vindas de todas as terras da Vila da Feira, desfilem no cortejo cívico e na procissão, vestidas de branco, com faixas à cinta de variadas cores, levando à cabeça uma fogaça. As fogaças são enfeitadas com pequenas bandeirolas de papel.4 Após vários meses de contínuo namoro, Sebastião Alves iria casar na igreja antiga de Proselha com Maria Gonçalves, perante o padre André Dias, que reporta o seguinte: “Aos nove dias do mês de Janeiro de 1611 anos, nesta Igreja de Santo André de Proselha, recebeu Sebastião Alves, filho de Sebastião Pires e de sua mulher Maria Alves, moradores em Fijô, da freguesia da Feira, a Maria Gonçalves, filha de Diogo Alves e de sua mulher Maria Gonçalves, moradores nesta freguesia de Santo André de Proselha, em minha presença André Dias, cura nesta igreja, e por mim foram apregoados, conforme ao sagrado concílio tridentino, e não tiveram impedimento nenhum, e foram recebidos em face da Igreja. Testemunhas que presentes estavam: Diogo Manuel, Domingos Dias, Gonçalo Francisco e António Alves.”5 Sebastião Alves, filho de Sebastião Pires e de Maria Alves, do Fijô, e Maria Gonçalves, filha de Diogo Alves e de Maria Gonçalves, de Proselha,
http://www.dulcerodrigues.info/historia/pt/historia_festa_fogaceiras_pt.html Arquivo Nacional da Torre do Tombo: https://digitarq.adavr.arquivos.pt/viewer? id=1256843 4 5
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tinham afinidades familiares, sendo possível que fossem primos, mas não em primeiro grau, situação frequente naquela época em que havia primos que se casavam entre si, desde que não houvesse nenhum impedimento canónico. Já o casamento dos pais de Sebastião Alves é seguramente anterior a 1587, uma vez que os registos iniciais da paróquia da Vila da Feira são dessa altura e não aparece o seu registo a partir dessa data. De qualquer modo, os primeiros anos de vida de Sebastião Pires, Maria Alves, Diogo Alves e Maria Gonçalves, pais dos noivos e os antepassados mais antigos conhecidos de Maria Joana Pereira da Silva, a Mãe Velha, uma descendente directa de Sebastião Alves, terão sido vividos até à idade adulta sob a regência de D. Catarina e do cardeal D. Henrique, durante a menoridade de D. Sebastião. Dado que não existem ainda publicados nos arquivos digitais da Torre do Tombo registos paroquiais anteriores a 1604 relativos a Proselha e anteriores a 1587 relativamente à Vila da Feira, pode-se situar o nascimento dos progenitores do casal Sebastião Alves e Maria Gonçalves, possivelmente em meados da década de 1550, na mesma altura em que nasceu o infeliz rei de Portugal que conduziu o País à desgraça. O casamento de Sebastião Alves com Maria Gonçalves, filha, em 1611 foi uma celebração muito especial, realizada na Igreja paroquial de Proselha que distava muito pouco da casa dos pais de Maria. Para além dos convidados da freguesia, familiares e vizinhos, chegou uma grande comitiva da Vila da Feira com os pais, avós, tios, primos e outros elementos das famílias Pires, Alves e Gonçalves, bem como o André, o Francisco e o João, os antigos companheiros de aventuras de Sebastião Alves, acompanhados das respectivas mulheres, que ele fez questão de convidar. No final da cerimónia, seguiram todos pela estrada abaixo, quase em procissão, até à casa de Diogo Alves e de Maria Gonçalves, mãe. Pelo caminho, havia quem atirasse flores e trigo aos noivos. Felizmente estava um dia de sol, embora frio, e Sebastião Pires fez questão de contratar um músico espanhol aquartelado no castelo da Feira, de nome German Alvarez, para animar a festa e o bailarico que se
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lhe seguiu. Alvarez tocava um instrumento de cordas medieval e vinha acompanhado de mais dois tocadores, um de pífaro e outro de alaúde. O repasto foi realizado na eira junto ao palheiro, cujo acesso era por detrás da casa de Diogo Alves, em mesas improvisadas e bancos de correr feitos de troncos. Houve comida e bebida em abundância nesse dia. Além do caldo de legumes com toucinho, havia carne de porco assado, galinha e uma caldeirada de carneiro, tudo acompanhado de sêmea, pão feito com farinha de trigo e centeio. O vinho, a aguardente e o hidromel foram servidos sem restrições, apadrinhados pela presença do padre André que, nesse dia, teve de ser ajudado a ir para casa pois já não se aguentava das canetas. O padre André Dias era conhecido em toda a região pois deslocava-se em cima do seu jumento, conhecido como o burro do Cura de Proselha, que o levava para toda parte. Quando o padre André ficava um bocado toldado, o burro trazia-o direitinho até casa que se situava junto à Igreja e onde ele morava como uma prima, a dona Amélia. Mas, no dia do casamento não tinha trazido o burro para a boda, pelo que foi necessário levá-lo a casa. Ainda se discutiu se o deviam levar no carro de bois, mas Diogo Alves alvitrou que se devia levar numa padiola. Houve uma mulher que tinha vindo da Vila da Feira e que não conhecia bem os hábitos da freguesia que ainda disse: — Parece mal levar o senhor cura numa padiola. Mas os fregueses, como o cura André costumava chamar aos paroquianos, fizeram orelhas moucas e, no fim do repasto, já depois de comerem as sobremesas, houve quatro homens mais robustos que se apresentaram como voluntários para desempenhar a tarefa. Ainda havia para comer os doces que nesse dia abundavam. Tinha sido cozido um grande bolo no forno, feito de trigo e beterraba que seria distribuído antes do final do repasto e havia doces diversos, de ovos e de figos, regueifas, cavacas e ainda outras frutas da época ou guardadas para o Inverno. Alertados pela informação que circulava, juntaram-se também muitos pedintes à entrada da casa, não só da terra mas sobretudo das aldeias vizinhas, aos quais foi distribuído pão e vinho e algumas sobras. 19
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A festa culminou com o bailarico em que o alaúde marcava o compasso. Os mais jovens saltaram para a eira para chamar as raparigas. Um ou outro mais velho ainda tentou dar uns passos de dança, mas depressa se retirava com dores de rins, dado que o vinho e aguardente também não ajudavam. Foi sem dúvida um dos casamentos mais badalados e comentados em toda a região naquele ano de 1611, tanto mais que alguns pares que ali se formaram dariam mais tarde também em casamento.
Entre a vida e a morte
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Sebastião Alves foi viver com Maria Gonçalves para a casa dos sogros, no Lugar do Fundo da Aldeia, um pouco acima da ponte da Ribeira das Lajes, conhecida como ponte do Moinho das Carregueiras, na antiga estrada real que ligava ao Castelo. Entretanto, foi-se adaptando à sua nova vida numa aldeia que pouco conhecera até ao casamento, passando a participar em todos os trabalhos domésticos e na agricultura que o sogro desenvolvia nas terras junto ao moinho. Rapidamente, começou a constar-se na aldeia a sua habilidade na construção de cercas, de galinheiros, de prateleiras, de gaiolas e armenhas, facto que fazia com que os vizinhos lhe viessem pedir ajuda em muitas circunstâncias. Ao contrário de Sebastião, Maria Gonçalves era tudo menos tímida. Era extrovertida e não se deixava intimidar facilmente, juntando à sua volta as raparigas da sua idade e um pouco mais novas. Iam às festas juntas e ocupavam lugares na igreja em grupo. Inseparáveis. Às vezes, o padre André Dias tinha de as mandar calar durante a missa, pois elas nem se coibiam de comentar sobre os outros e de soltarem os seus risinhos, perturbando a cerimónia.
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Depois do casamento, as amigas do grupo continuaram a visitá-la amiudadas vezes. Algumas delas, ainda solteiras, perguntavam-lhe por vezes: — Quando é que falas com o teu homem para nos apresentar os amigos dele? — Acho que eles já estão todos casados. Respondia Maria. Antes de casar, era ela quem tomava a iniciativa de organizar convívios entre as amigas, de preparar cantigas para as desfolhadas, liderando as actividades lúdicas. Todas trabalhavam na agricultura ou na actividade doméstica. Era costume, no Inverno, juntarem-se na eira de Diogo Alves a escolher o feijão, separando algum que se apresentasse com bicho. Maria continuava a ir com o pai à Feira dos 20 na Vila da Feira, mas agora acompanhada por Sebastião que passou a ajudar Diogo Alves nessa tarefa mensal. Normalmente levavam um saco de leguminosas no burro que tinham em casa e, por vezes, legumes frescos e fruta seca que era guardada em prateleiras de um ano para o Inverno seguinte. Tudo dependia da época do ano. Os dias foram passando e o casal ia-se tornando mais unido, embora coubesse a Maria a iniciativa numa boa parte das vezes, sobretudo quando se tratava de alguma actividade fora de casa. Quando se conheceram, Maria gostou logo de Sebastião, mas achou-o “muito acanhado”, como ela costumava dizer às amigas. Mas os meses durante o namoro e a convivência após o casamento foram fortalecendo a sua relação ao mesmo tempo que Sebastião se ia desinibindo com ela mas também com os familiares e vizinhos da casa de Diogo Alves. No final do mês de Junho de 1611, os dias iam crescendo e o tempo de Inverno já tinha passado, houve mudanças, não na sua relação, mas no comportamento de Maria que começou a sofrer alterações que a apoquentavam. Perdera aquela vivacidade e espontaneidade de outrora e apresentava queixas a que não estava habituada, sentindo-se mal e com vómitos, a comida habitual caia-lhe mal e nada lhe dava gosto comer, até que a mãe, que já tinha reparado naquela mutação de humor, lhe disse: — Se calhar estás grávida. 21
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Nessa noite, Maria contou a Sebastião, o qual também já tinha notado a mudança de humor, que a mãe lhe tinha dito que se calhar estava grávida. Se assim fosse, ela achava que se devia falar com pai para se construir um quarto só para eles. Sebastião concordava com isso e decidiram ir falar com Diogo Alves para ver como se podia solucionar esta questão. Até ali, eles tinham estado todos a dormir no mesmo aposento sob o mesmo tecto, o único quarto que existia na casa. A habitação onde viviam pertencia a Diogo Alves e Maria Gonçalves, e não diferia muito das casas da época. As paredes eram em pedra, a cobertura era em colmo, uma palha compactada que não deixava entrar a chuva de Inverno, mas que tinha de ser sempre reparada no final do Verão. Quando se subia depois da ponte das Carregueiras, a casa de Diogo Alves era a terceira do lado direito. Tinha um acesso ligeiramente inclinado, junto à estrada da Feira, que dava directamente para o quinteiro e para o alpendre e daí para os currais por trás da casa. Ao lado da casa tinha um outro acesso onde ficava o carro de bois. A casa era pequena, tendo somente dois compartimentos. A entrada era feita pela cozinha, logo no início do quinteiro, tendo ao fundo uma porta para o quarto. Ao entrar na cozinha, tinha logo à esquerda um amontoado de lenha ao lado de um forno onde costumava ser cozido o pão. A cozinha era paralela à estrada e tinha do lado direito uma mesa comprida, com um banco corrido de cada lado e um armário ao fundo onde eram guardados os pratos, colheres de pau, certos alimentos e o azeite. Entre esse armário e a porta que dava para o quarto havia um postigo que, no tempo frio, ficava fechado com um janelo de madeira e, por baixo, uma salgadeira onde era guardada a carne de porco para todo o ano bem como dois potes de barro. O maior continha azeitonas dentro de água e já curtidas. O pote mais pequeno continha pingue e rojões de porco no meio. Do lado esquerdo, entre o forno e a porta do quarto, encontrava-se a lareira grande, com um banco de correr grande paralelo e um banco mais pequeno entre a lareira e a dita porta.
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Nos dias invernosos, após a ceia, sentavam-se todos no banco corrido frente ao lume. Quando havia alguém de fora, havia mais espaço no banco pequeno. A lareira não tinha chaminé propriamente dita, mas uma abertura na parte de cima para deixar sair o fumo, a única parte que não era em colmo mas coberta com algumas telhas. Entre o forno e a parede da lareira existia um pau comprido onde eram penduradas as chouriças e os salpicões, quando os havia. Na parede havia dois tachos grandes em cobre, uma relíquia que passava de mãe para filha, onde eram feitos os rojões. Frente ao banco corrido existiam duas pedras rectangulares que suportavam uma grelha e onde era feito o fogo. Ao lado, existia ainda um pote grande com água e duas panelas de tripé em ferro, onde eram feitos os cozinhados, bem como umas tenazes de ferro, um abanador de palha e uma vassoura feita de giestas. No quarto propriamente dito, encontravam-se duas camas no chão, uma em cada canto, forradas em pano de linho e enchidas com palha de trigo ou de centeio. Na parede havia um janelo pequeno que dava para o lado Sul, por cima de onde ficava o carro de bois. Entre as duas camas existia um tear mas que há muito não era usado. A entrada da casa está virada a nascente enquanto do lado da estrada a casa fica virada a Norte. Ao fundo do quinteiro, do lado nascente, encontra-se um alpendre coberto com uma estrutura de troncos de madeira com tábuas por cima, onde ficam guardadas algumas alfaias. O acesso à parte de cima faz-se por uma escada de madeira, encostada à parede nascente. Passados uns dias, depois da conversa entre Sebastião e Maria, foram ambos falar com os pais para saber se se podia construir mais um quarto, até porque já estavam à espera do seu primeiro filho. Diogo Alves perguntou a Sebastião como é que ele estava a pensar acrescentar mais um quarto se o espaço já era pequeno demais. Sebastião Alves, que já tinha pensado no assunto, deu uma sugestão: — Podemos fazer um quarto por cima do alpendre. — E como é que isso será? Perguntou o sogro um bocado incrédulo. 23
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Sebastião fez valer a sua habilidade em trabalhos do género — embora realmente não se tratasse de um caso semelhante — a construir cercas ou galinheiros, e explicou que seria possível fazê-lo com vigas de madeira, paredes em tabique com ripas e saibro a cobri-las e com um telhado de colmo, virado para norte. Ao lado da casa, depois da porta da cozinha, fariam uma escada em pedra até à parte de cima do alpendre e poder-se-ia aproveitar a parte debaixo para guardar alfaias e o pote das azeitonas. Diogo Alves disse que ia pensar no assunto e aconselhar-se com o Ti Domingos Pedreiro, especialista nessas coisas, uma vez que tinha sido ele quem tinha feito os currais dos bois e da vaca, do porco, do burro e das ovelhas, e ainda o galinheiro. No Domingo seguinte, Diogo Alves encontrou-se com o Ti Domingos na missa na Igreja de Santo André e abordou-o para saber se ele poderia ficar responsável pela obra, tendo-lhe explicado do que é que se tratava. Este, porém, respondeu-lhe que nesta altura do ano, nos dias de Verão, é quando tem mais serviço. Acrescentou, no entanto, que poderia ajudar a orientar a construção. Quanto às Marias, a mulher e a sogra, andavam entusiasmadas com a perspectiva do nascimento de um descendente e de terem em breve uma criança que enchesse de alegria aquela casa. Tornava-se necessário pensar na roupa para a criança. Todos queriam adivinhar se era menino ou menina e questionavam a futura mãe. — Logo se verá — respondia invariavelmente Maria, rindo da pergunta. Sebastião Alves, entretanto, passava o tempo a imaginar como seria o quarto, até sonhava de noite com isso e com o nascimento da criança que Maria trazia no ventre. Com um bocado de telha de barro partida fez um desenho na eira com uma espécie de planta de como ficaria a casa, o quarto de cima do alpendre e os currais. Chamou o sogro para ele dar uma opinião, explicando-lhe como é que ele estava vislumbrar a obra e quanto poderia ser necessário gastar. — Coisa pouca, dizia ele.
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Diogo Alves achou que seria melhor ver o que é que se tinha de comprar e o que é que se podia arranjar dentro de portas. Sebastião explicou que a parte que era necessário mesmo comprar seriam algumas vigas, toros, caibros, pregos, dobradiças e a fechadura, as ripas e o saibro para tapar as frinchas, porque o colmo tinham de sobra e varas para cobrir o tecto e suportar o telhado de colmo também havia no mato junto à eira, um pouco mais ao fundo. E as vigas e os caibros podiam ser feitas com pinheiros que existiam no mato e choupos que havia nas Carregueiras em grande quantidade. Aí o sogro atalhou e disse: — Acho melhor fazer o telhado com telha mesmo, até porque vamos ter mais uma alma em nossa casa. De seguida, combinaram irem falar com o Ti Domingos Pedreiro para analisar com ele a viabilidade do projecto e a compra do material necessário e ver em que medida seria necessário contratar algum trabalhador das obras, que tivesse ferramenta própria. No Domingo seguinte, depois da missa, o Ti Domingos veio a casa de Diogo Alves para ver com eles o projecto. Reuniram-se na eira onde Sebastião tinha feito o seu desenho com um pedaço de telha e o vizinho deu algumas sugestões que eram plausíveis mas obrigavam à compra de outros materiais. A sugestão principal era que se podia aproveitar para prolongar a escada com uma parede separada da parede existente da casa, encostada ao quarto, e fazer assentar toda a estrutura do quarto em cima dos muros de pedra com vigas que iriam ser suportadas por essa nova parede e pela parede do lado dos currais. Com essa nova parede podiam fazer uma arrecadação, uma dependência para arrumação de produtos, tanto mais que a casa da eira ainda ficava distante e, no Inverno, às vezes apanhavam uma grande molha para ir buscar qualquer coisa. Seria uma construção muito mais sólida, mas aproveitando materiais já existentes do alpendre, sobretudo as madeiras. O entusiasmo do Sebastião crescia de dia para dia, a ponto de Maria dizer que nunca o tinha conhecido assim.
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