A Criação do Homem ou
A Cegueira do Padre Eterno Face ao caos que impera na Terra, Deus - indignado com a incúria e crueldade humanas e já arrependido da sua Criação - decide antecipar o Apocalipse. Como Deus leal, pretende, porém, avisar os Homens de seus intentos. Com esse fim desce à terra, em Pessoa, à procura de um profeta capaz de redigir claramente esta sua última Revelação. O diálogo satírico processa-se em língua vernácula, na qual a palavra Deus - muito embora sem destinatário explícito - teima em sobreviver no dia-a-dia.
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ISBN 978-989-8821-47-8
Entre a longínqua data do seu nascimento e sua morte recente,
ANÓNIMO
nada há digno de registo na vida apagada do autor.
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A CRIAÇÃO DO HOMEM OU
A CEGUEIRA DO PADRE ETERNO
ANÓNIMO
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FICHA TÉCNICA edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: A Criação do Homem ou a Cegueira do Padre Eterno autora: Luísa Amorim capa: Sandra Rocha paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, maio 2017 isbn: 978-989-8821-47-8 depósito legal: 423798/17 © Luísa Amorim
publicação e comercialização:
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dedicado às mitologias petrificadas das mais exemplares civilizações monoteístas
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........ que é o homem? : “cadáver adiado que procria” (F. Pessoa)
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Nota Editorial: à laia de Prefácio O autor, que a si mesmo se nomeou anónimo, não permite que aqui se lhe retire o véu de anonimato que o envolve. Lógico. A instâncias de aqueles que não largam a porta da nossa Casa (facto que impede o cumprimento dos nossos afazeres profissionais) limitamo-nos a adiantar que se trata de um velho reformado que, nos longínquos tempos da sua juventude, exerceu, entre outras, a profissão de intérprete, com uma larga experiência linguística, comprovada por escritos publicados, ou ilustrados por selos oficiais e demais carimbos. Em sua vasta produção predominam os textos de carácter científico, só aqui e ali entremeados de breves fragmentos recreativos, para alijar o espírito do peso das poeiras dos foliantes que terá sido obrigado a manusear ao longo da sua carreira profissional. Vive agora com mais calma, justificável pelo atestado médico (em anexo), exigido pelo rigor da verdade editorial, para que esta não fique omitida no concerto das verdades que aqui profusa e generosamente serão desbaratadas connosco, indignos receptores desta última Emissão Divina. 9
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O seu autor tem, finalmente, tempo disponível para se entregar à investigação, até mesmo de obras interditas de carácter teológico, por exemplos: o Alcorão e o Talmude babilónico. (Esta informação é estritamente confidencial: contamos com a vossa inteira discrição, caros leitores. Não convém que passe para a manga de esbirros secretos, que possam tingir de negro o ocaso da vida merecidamente pacata do nosso autor. Caluda!) De que trata a presente obra? Eis o que pretendem saber os mais curiosos, habituados a saltar páginas para chegar depressa ao fim. O próprio autor, numa entrevista que nos concedeu, tentou subinterpretar-se. Mas suspeitamos que nunca os artistas foram os melhores intérpretes das suas obras. Só podemos acrescentar que ele – que, até à data, tem andado aos pulinhos inofensivos – resolveu dar aqui o grande salto sobre o abismo. E permitimo-nos ainda observar que a Revelação aqui publicada não se revela de forma linear: mantém-se um tanto oculta pelo denso estilo envolvente, de precisão anatómico-filosófica, a que os críticos deram o nome de “labiríntico-parentético”. E só acaba por se tornar clarividente aos espíritos mais argutos. (Só, pois, para a reduzida e renitente minoria dos escolhidos.) 10
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Trata-se, em suma, de uma invulgar experiência metafísica, que revela o pleno grau de maturidade que o autor atingiu. Queira Deus que haja alguns leitores à sua altura, capazes de vencer os obstáculos dos recantos e rincões que se lhes irão deparando no trajecto – encetado este, aliás, voluntariamente. (E lá se costuma dizer que “quem corre por gosto não cansa”). Mas serão esses largamente recompensados pelo enriquecimento enciclopédico que, por acréscimo, ficarão a dever ao nosso autor, que vazou algum do seu grande saber – acumulado em sua vida de velho experiente – nesta obra e, por consequência, no vaso de nossos espíritos ignaros. Posto que tais leitores se disponham a munir-se de invulgar – diria mesmo, no caso presente – da sobre-humana paciência que Deus lhes queira conceder (deduzida de Suas infindas reservas) Oxalá: Alá é grande! Mas, como nos ensina o velho ditado: “não há nozes sem dentes” e sem querer nada feito, não desistam, e serão ainda recompensados pela imensa Graça de Deus Nosso Senhor. Estes são os votos sinceros da Sorriso Editora, sempre às vossas ordens. 11
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No caso, porém, de não se acharem devidamente gratificados por esta (a)ventura espiritual, serão compensados do parco investimento efectuado por um folheto edificante, de leitura fácil, (edição nossa) que, de bom grado, distribuiremos gratuitamente. Não hesitem, pois, dirijam-se a nós:
Sorriso Editora Rua da Alegria, 77 r/c esq. 123-567 Vista Alegre
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Notas preliminares 1. Homem (com Maiúscula), é uma designação generalizante de humanidade que engloba, por suposto, homens e mulheres (independentemente de sua muita ou nula humanidade) * Confirmação de Deus: servi-me deste vocábulo símplice para nomear as minhas abjectas criaturas: eles e elas. 2. O termo cegueira do título não é blasfemo. Deus próprio o adoptou (vide pp. 20, 23, 49), prova de que não ficou ofendido. E permitiu até que entre os interlocutores se processasse um estreitamento de relações, de início puramente formais. 3. 3 *** a 5***** asteriscos representam – para encurtar o discurso e o extenso aparato crítico (a que obrigaria um trabalho sério e rigoroso) – o comentário lógico e zombateiro de gargalhadas satânicas. 4. Ortografia: em desacordo com o novo acordo ortográfico luso-brasileiro. 13
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A Revelação Autor: Pois assim foi, assim mesmo: Revelação divina apócrifa que, apesar de tardia, ainda nos chegou a tempo (Deus seja louvado!), antes de executada a profecia do extermínio apocalíptico. Vou tentar não perder o fio à meada: se Deus me ajudar a levar a cabo tão espinhosa tarefa e eu não perder a orientação pelos meandros do percurso. Em dia Y (data aqui desnecessária como mera serviçal da memória ou simples registo de calendas) fui eu testemunha estupefacta do evento a referir. O sopro que me fustigou, homem enfraquecido pela idade e incrédulo por natureza, obrigou-me a cair de joelhos, única posição que – como iria verificar no decurso da cena inicial – seria adequada ao momento, face a face com Interlocutor tão inesperado. Só pude balbuciar em direcção imprecisa (de onde viria aquela poderosa respiração?) qualquer coisa como: – Quem é? Alguém pretende falar comigo? Pois que me responda! 15
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E obtive a informação desejada de uma voz sem corpo, voz incomum de timbre impreciso. (Tentando ser mais exacto: entre o baixo e o barítono). A voz ganhou mais corpo, mas ainda não captável ao ouvido do autor, treinado apenas por estímulos acústicos nitidamente terrenos. O meu Interlocutor, não propriamente logo de seguida (que Ele não admite ordens de ninguém), ao ver-me assim sem fala, incapaz de lhe interromper o fluxo respiratório, respondeu de moto próprio: – Sou Eu, homem de Deus, teu Deus e Senhor (!!!) A partir daqui justificam-se, suponho, os pontos de admiração da já mencionada estupefacção. Fiquei abismado: haverá algum mortal que ache tudo isto natural? E, se o diálogo não se ficou por aqui, foi porque foi Ele a fazer as despesas iniciais da conversa. Recuperada a presença de espírito, só pude tartamudear, ainda incrédulo: – Que coincidência, Senhor, por acaso estava agora mesmo a pensar em Vós! Deus: E tu, gentio, acreditas em acasos? Pois fica a saber que só há casos e ocasos.
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Esses casos coincidentes não são acasos, são a minha Vontade em exercício. Entendes? Autor: Custa-me a acreditar, Deus meu! Creio-me vítima de uma alucinação. A que título vos dignais a aparecer-me? A mim, ínfima criatura de fé vacilante? Eu não sou digno de que entreis em minha morada. Como e por que vos dirigis a mim? Deus: Sou Eu, sim, homem tíbio, servo meu de pouca fé, não duvides! Escolhi-te a ti, homem X, e descansa (Eu sou a discrição em pessoa) que respeitarei aqui o anonimato sob que teimas esconder-te. Pois Eu conheço e penetro – mesmo em puro estado de latência – os segredos mais íntimos que os Homens ocultam nos recantos mais recônditos de seus farfalhudos corações. Os meus divinos e sumamente potentes raios X (a nomenclatura é pura coincidência) são incomparavelmente mais eficazes do que as inventivas contrafacções de reles aprendizes humanos. A propósito, e antes de passar ao essencial, que já à partida se esclareça: foi de mim que todos os assim-chamados inventores receberam a inspiração para todas os inventos de que se vangloriam.
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Agora vamos a ti, homem X, com ou sem nome de baptismo expresso. Eu sei que, se revelasse ao mundo o significado do teu apelido, terias garantida a primeira acha para a tua fogueira. Autor: Ó Senhor, achas, crês que sim? Deus: Qual crença, qual carapuça! Quem tudo sabe – como tu sabes que Eu sei que tu sabes – já não precisa de acreditar em mais nada. Pura lógica, homem: assim acabam-se as dúvidas, é um descanso. Voltando ao teu nome: sei que vem de muito longe, que data dos velhos tempos dos cruzados e de outros mais ou menos fanáticos. Autor: Pois é, Senhor, e saberás, então, que, se não tivesse ardido tanta fé por esse mundo fora, não teria eu nascido, neto-bisneto desses e de outros tantos pecadores. Senhor, creio dever arrepender-me aqui do chorrilho de culpas dos meus antepassados. Mas, vendo bem, também Tu... (Ai Senhor, desculpa, só agora notei que estou a tratar-te por “Tu”. A verdade é que, querendo manter as devidas distâncias entre nós, torna-se um tanto difícil comunicar conVosco.) 18
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Deus: Deixa-te de cerimónias, homem! Trata-me lá por tu, que eu não me importo. Autor: Obrigado, Senhor. Como ia dizendo (e Deus me perdoe): também Tu, em princípio, tiveste a tua quota-parte de responsabilidade no estado degenarado a que chegou nossa humana condição. Ora repara: já teus primeiros filhos (e esses tinham praticamente tudo o que se pode desejar num paraíso terreal) abusaram da confiança que neles depositavas, recordas-te? Daí a minha suspeita: não terá havido um pequeno erro de cálculo da tua parte no acto da criação? Mais parece um acto de fraco ente humano... (Curta pausa: com uma ruga na testa Deus parece reconsiderar)
Deus: Falas com acerto, homem X, é isso mesmo: “o amor é cego e vê”. Não é assim que cantam os ceguinhos pelas esquinas da tua terra? Eu, pelo menos, creio ter ouvido isso, lá nas minhas Alturas, num fadinho à portuguesa. Como não entendi logo à primeira, pensei que a dificuldade me advinha da má captação da rede. 19
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Agora, cá em baixo, começo a ver e a ouvir mais claro: aprendi, sim, a entender causalidades de longa data. O meu amor às minhas criaturas cegou-me! E quanto me tenho arrependido, homem X! Os Homens têm-me custado os olhos da cara, para não falar das muitas noites de insónia. E isso explicará algumas das minhas reacções mais veementes ao longo dos séculos. Para nenhuma delas hava alternativa válida. Presentemente as coisas chegaram a tal ponto, que me obrigam a intervir uma vez mais, em Pessoa! A prova é que estou aqui a falar contigo e não deleguei o assunto a embaixadores. O meu Filho celestial, esse, coitado, já se fartou de sofrer por vossa causa. Autor: Tens razão, Senhor. Alguma vez teria passado pela cabeça de um deus (quer dizer um Deus omnipotente) os requintes a que chegou a boçal humanidade? *** Deus: E queres saber que os Homens, com as suas melopeias bem flauteadas, quase lograram convencer-me da fraternidade universal, cantada nos hinos de milhões aos abraços e aos beijinhos... Se eles se dispusessem a pôr a melodia em prática, isso seria, sim, música para meus ouvidos. 20
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Não, nunca Eu teria esperado o progresso inconcebível de meus tataranetos. Requintaram em malvadez, mais safados que o meu neto Caim! *** (Interrompe-se, ouve-se um soluço)
É, pois, por se tratar de um assunto de extrema importância que me volto a intrometer – Pessoalissimamente, repito – nos negócios dos Homens, desesperando já de que eles, por si sós, resolvam mais este sarilho em que se meteram. E oxAlá não me venha a arrepender para todo o sempre deste meu aviso da última hora! Necessito agora (e tanto tentei, em vão, achar melhor candidato) que me rendas o serviço que só de ti requeiro. Não por teus fracos méritos, como tu próprio sabes. (Disso falaremos a seu tempo e teremos de aguardar o Juízo Final do meu Tribunal de Contas e Processos. Ver-se-á então.) Escolhi-te, meu servo, pura e simplesmente por tua comprovada competência linguística. Parece-me, aliás, pelo que conheço da tua lavra, que pecas um pouco por excesso, exagerando na superlatividade, conforme te dá na realíssima gana. Careces de mais equilíbrio, homem. Deus te dê o desconto! Mas, aqui para nós, talvez tenha sido esta tua faceta exaltada – sem temor a Deus nem ao diabo – que atraiu as minhas atenções sobre a tua pessoa. 21
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