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TÍTULO:

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FICHA TÉCNICA Contributos e Reflexões para a História de Caria Vitor Manuel Mendes de Sousa EDIÇÃO: Edições Ex-Libris® (Chancela do Sítio do Livro) AUTOR:

ILUSTRAÇÃO DA CAPA: Primeiro plano, Capela de Santo António; segundo plano, antigo edifício da Casa da Torre. ARRANJO DE CAPA: Filipa da Câmara Pestana PAGINAÇÃO: Alda Teixeira

Lisboa, julho 2020

978-989-8867-93-3 469587/20

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ISBN:

DEPÓSITO LEGAL:

© VITOR MANUEL MENDES DE SOUSA

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao(s) seu(s) autor(es), a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. Assim mesmo, quaisquer afirmações, declarações, conjeturas, relatos, eventuais inexatidões, conotações, interpretações, associações ou implicações constantes ou inerentes àquele conteúdo ou dele decorrentes são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).

PUBLICAÇÃO:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

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AGRADECIMENTOS

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Em primeiro lugar a todos os que de algum modo colaboraram e incentivaram para que eu conseguisse levar esta tarefa até ao fim. Ao Lourenço Moura pelas fotos, disponibilidade e apoio que me manifestou. Ao Mário Tomás pelas variadas fontes documentais e fotográficas que me disponibilizou. (De registar a riqueza da sua recolha fotográfica, religiosa, etnográfica e documental. Para quando um apoio autárquico para que estes testemunhos do passado vão para um local onde possam ser apreciados por todos?) À Angélica Maximino, bibliotecária/arquivista, pela competência, disponibilidade e ajuda que sempre me dispensou em todas as vezes que a solicitei na Biblioteca e Arquivo da J. F. de Caria. Ao José Pinto Almeida (Zé Félix) pelo incentivo, disponibilidade e imensa paciência com que leu e releu os meus textos; neutro, como eu lhe pedira, mas também com a sugestão e o conselho amigo, oportuno. Não posso esquecer o Sr. Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias, filho do historiógrafo Luiz Fernando Carvalho Dias autor de várias obras e de anos de investigação, alguma dela dedicada à história da cidade da Covilhã. Para que não se perdesse todo o trabalho de seu pai, Miguel Nuno e esposa, através de um blogue, têm dado a conhecer aos interessados pela história desta cidade e região, muita da documentação recolhida. Queria salientar a amabilidade que sempre me manifestou, apesar de não me conhecer. Agradecer imenso os esclarecimentos e alguns elementos documentais que entendeu por bem facultar-me nas várias vezes que o contactei.

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Por último, mas sempre primeira; agradecer o apoio e a compreensão da minha família. Pedir desculpa pelas muitas horas que não lhe dei; pelos momentos que roubei ao tão necessário convívio. Oxalá tenha sido por uma boa causa!

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Ao meu filho Antรณnio. Que lembre, sempre, com carinho, a Caria que o viu crescer.

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ÍNDICE Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 17 19

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I – Sobre as origens de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – O Alfoz da Covilhã – As Inquirições de D. Dinis na Beira – Reflexões . . . . . . – Afinal, quem fundou Caria, o dayam (deão) Martim Caria ou o bispo D. Rodrigo (Fernandes)? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Uma janela do tempo para as origens de Caria: um documento do Séc. XIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – E o nome Caria? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Caria na mira das disputas entre a Covilhã e bispos da Guarda . . . . . . . . . . . – O bispo Frei João Martins I e o Compromisso entre Caria e Covilhã . . . . . . . – Ano de 1315 (Era de Cristo). Contenda entre o Bispo da Guarda e o concelho da Covilhã perante o rei D. Dinis por afrontas na aldeia de Caria – 1315, junho 25, Covilhã confronta o bispo em Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – 1324, julho 22, A Covilhã confronta o Bispo, na Guarda . . . . . . . . . . . . . . . . . – 1324, agosto 19, A Covilhã novamente em Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Ainda a propósito do bispo Dom Gogotere (Guterres I) . . . . . . . . . . . . . . . . . – Os Jantares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Outros Tributos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – A propósito dos Paços do bispo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – 1364, março, 25 – Carta de concessão de privilégios do rei D. Pedro I ao bispo da Guarda, Vasco de Menezes, Igreja da Guarda e moradores de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – D. Luis da Guerra I, bispo da Guarda em Caria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Bispo da Guarda, Frei João Manuel II e as ferrarias em Caria . . . . . . . . . . . . . – Sé vacante durante quase 30 anos. O lugar de Caria perde honras e isenções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – O Bispo da Guarda, Martim Afonso de Melo e a igreja de Caria . . . . . . . . . . – Conclusão de Origens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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II – Evolução da malha urbana de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 – Do núcleo primitivo à Idade Moderna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 – Toponímia – ruas e número de polícia a meio do século XIX . . . . . . . . . . . . . 79

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III – Novos Contributos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – O Foral de Caria, sim ou não? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Itinerários régios – o rei D. Fernando em Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Capela de São Domingos, noutros tempos… . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Intenções e préstimos da Capela do Espírito Santo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Sobre as Capelas de S. Sebastião, S. Marcos e S. António . . . . . . . . . . . . . . . . – Sobre a fonte do Ruivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – A ponte de S. Sebastião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – O mistério de Lavacolos!.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – A ribeira de Lavacolos no Tombo dos limites do concelho da Covilhã, em 1534 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Caria – 1 de dezembro 1551. Auto da demarcação dos termos da vila de Covilhã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – A Invasão Francesa de 1810 – 1811 (de Masséna) – Mortes em Caria . . . . . – Turbulência do Liberalismo. O padre Francisco, prior da Vila de Caria, manda uns quantos para a cadeia, em agosto de 1829 . . . . . . . . . . . . . . . . . . – O Reverendo Prior e moradores da Vila de Caria contribuem com dinheiro para o Governo do rei absolutista, D. Miguel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Os priores/párocos de Caria nos séculos: XVII, XVIII, XIX . . . . . . . . . . . . . . . . . – Usos e costumes da Igreja – um testemunho de Caria no Séc. XVII . . . . . . . – A propósito do Concelho de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – Eleição do Administrador do concelho da vila de Caria – janeiro de 1836 – As Casas da Câmara de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . – A propósito de Correio… A Posta em Caria (1809) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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IV – Maldades que nos fazem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 – Os Correios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 – A Estação de Caminho-de-ferro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 V – Notas Soltas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Documentos: Doc. 1. Limites prováveis do primitivo alfoz da Covilhã (segundo o foral) . . . . Doc. 2. Herdades em LAVACOLOS (BELMONTE) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 3. Herdades em LAVACOLOS (BELMONTE) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 4. As estalagens e albergarias medievais beirãs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 5. Localidades visitadas pelo rei D. Fernando (1367-1383). . . . . . . . . . . . .

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Doc. 6. Itinerário de D. Fernando (1367-1383) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 7. Itinerário de D. Fernando (1367-1383) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 8. Detalhes sobre a Posta de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 9. Detalhes sobre a Posta de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 10. Carta sobre a Posta de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 11. (16/02/1836) – Carta do Governador Civil de Castelo Branco incluindo a ata da Eleição para Administrador do Concelho de Caria. . . . . Doc. 12. (16/02/1836) – Carta do Governador Civil de Castelo Branco (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 13. Excerto de um documento de 1 de janeiro de 1843 sobre a ponte de S. Sebastião. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doc. 14. Lei n.º 1:701 – Eleva à categoria de Vila a povoção de Caria. . . . . . . . Doc. 15. Portaria que designa a constituição heráldica da bandeira, armas e sêlo da Vila de Caria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Fotografias Foto 1 e 2. Casa da Torre – fachada principal e traseiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 3 e 4. Ruínas da Capela de São Domingos. Reconstrução em 1986 . . . . . Foto 5. Casa do Povo. Segundo a tradição na raiz deste edifício estava a Capela do Espírito Santo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 6. Pormenor da Capela de Santo António ainda com a escadaria lateral e antigo candeeeiro de iluminação pública . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 7, 8 e 9. Igreja Matriz – pormenores das fachadas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 10 e 11. Igreja Matriz – Pormenor do teto da Capela-Mor. Caixotões com os Apóstolos, Sacristia da Irmandade do Santíssimo, 1807 . . . . . . . . . Foto 12. Fonte do Ruivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 13 e 14. Entrada da Vila de Caria do lado da Ponte de São Sebastião. Cheias na Ribeira de São Sebastião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 15 e 16. Lavadeiras na Ribeira Sant´Ana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 17, 18 e 19. Correios, anos 50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 20 e 21. Nos primórdios da Estação de Caria. Estação de Caria, gare de via larga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 22 e 23. Pormenores do Cais da Gare de Caria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 24 e 25. “A camioneta da carreira”. Antiga paragem entre o Largo do Cruzeiro e a Trincheira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foto 26. Painel de memórias à espera de uma visita!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Fontes e Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

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Introdução | 13

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INTRODUÇÃO

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Este livro não tem ambições de historiador ou de monografista, já que não sou possuidor de tais atributos. Tem, sim, aspirações cívicas, daí que o encare mais como um exercício de cidadania. A ideia nasceu no 90.º aniversário da elevação de Caria a vila (19/12 /2014), quando pretendi colaborar na Exposição realizada a propósito da efeméride com um trabalho que abordasse o passado histórico e as origens desta nossa terra. Não é sair muito do senso comum, pensar que vilas e aldeolas possam ser como os indivíduos. Nascem, crescem, vivem e, por vezes, em variadas circunstâncias, também morrem. Naturalmente, tiveram o seu passado e o seu presente e, neles, terão projetado o futuro. Estranhamente, Caria parece não ter tido passado. Bem, passado teve, certamente, mas sumiu-se! Encovou-se num “raio de um canto” tão recôndito, que é difícil dar com ele! Procuram-se datas; detalhes sobre certos momentos da vida civil ou religiosa; a origem de determinado nome; a fundação de determinada capela; saber da vida social, dos usos e costumes de outras épocas… As respostas são reduzidas, de quase nada! Custa a acreditar, sobretudo quando temos conhecimento de que, desde as suas origens e ao longo de séculos, bispos, priores, vigários, nobres, senhores, juízes, militares, administradores de concelho enfim, gente ilustre que viveu aqui e que, pela sua suposta cultura, teriam obrigação de muito mais! Provavelmente preocupou-os mais o legado pessoal que o legado coletivo. Também é verdade que nesta região, como noutras do nosso país, a espaços, a História perdeu-se. Arquivos, espólios concelhios e das

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paróquias rurais esfumaram-se; por roubo, queimados ou simplesmente perdidos, por incúria dos homens e também pelas vicissitudes do tempo. Ainda assim, apesar das razões referidas, é notório que em Caria não houve a preocupação de se acautelar o passado. Quando assim acontece, aqui como noutros lugares, não havendo registos documentais que fixem a identidade da comunidade, é natural que com o passar dos tempos e das gerações, a imaginação e o bairrismo das gentes sintam necessidade de engrandecer, de envaidecer, de elevar as honras da sua terra. E numa piedosa tentação vai de criar, inventar, muitas vezes, factos históricos que, à força de repetição acrítica, entraram e viajaram na Memória Coletiva, sendo até publicados na bibliografia local sem se provar ou justificar a sua veracidade. Certamente, com o propósito de indagar e dar a conhecer o passado desta vila cariense, publicaram-se, no concelho, algumas obras. Os autores fizeram-no com os meios que conseguiram, como puderam e entenderam. Louve-se o impulso e o esforço. Este meu trabalho procura ser mais um empenho de continuidade; trazer novos elementos e reflexões à História de Caria. Apesar das limitações e da distância aos grandes centros, numa razoável bibliografia, bibliotecas, fontes digitais, arquivos nacionais, regionais e locais, encontrei pedaços de História ligados à vida e gentes desta vila. Na minha narrativa procurei entrelaçar e alinhar estes retalhos de memória, ao longo dos séculos. Mas, sei que a História de um lugar e suas gentes nunca se esgota ou conclui. Como ciência que se reporta ao passado, haverá sempre a possibilidade de novos contributos e novas interrogações. Oxalá apareçam, para bem do conhecimento e gáudio dos carienses. No que diz respeito às transcrições de documentos, nunca esteve subjacente qualquer intenção de uma edição erudita. No entanto, tive o cuidado de respeitar o sentido global de tudo o que trabalhei. Dizer também que procurei escrever de uma forma simples, para todos. Por vezes, não foi fácil. Daí, a minha preocupação de juntar notas explicativas às partes do texto que se referiam a épocas mais distantes no tempo, com linguagem de mais difícil leitura e compreensão.

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Introdução | 15

A terminar, que o leitor, benévolo, desculpe os erros, lacunas, omissões e imprecisões. Apesar de todo o meu esforço, tenho consciência das minhas limitações.

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Sobre as origens de Caria | 17

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Sobre as origens de Caria

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Sobre as origens de Caria | 19

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Neste olhar sobre as origens de Caria não vamos referir-nos aos tempos mais longínquos dos variados povos, da mistura de sangues, das civilizações e sobreposições culturais, bem visíveis nos achados arqueológicos, disseminados, aqui e ali, no chão e na paisagem do nosso concelho1 ou região. Não é esse o propósito deste livro. Queríamos, sim, guiar o discorrer desta escrita para os séculos da Formação de Portugal. Da reconquista, defesa e reorganização dos espaços; em que os Reis concediam Honras,2 Coutos,3 Cartas de Foral4 e Povoamento5, esperando a prosperidade e a defesa de cada palmo de terra conquistado ao denso matagal ou aos inimigos fronteiriços.

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O Alfoz6 da Covilhã – As Inquirições7 de D. Dinis na Beira – Reflexões

Situar a génese de Caria é ter de procurar na região medieval entre o Côa e o Zêzere; por onde entraram invasores, arrasando, queimando,

A propósito de Caria, veja-se bibliografia de Jorge Alarcão, Aurélio Ricardo Belo, Emílio Hübner, general João de Almeida 2 Honra – Terra privilegiada pelo rei e que era concedida à nobreza. 3 Couto – Terra privilegiada pelo rei e que era concedida ao Clero. 4 Carta de Foral – Documento concedido por um rei ou por um senhorio (nobre, eclesiástico) a uma povoação com as normas de relacionamento entre os habitantes e para com o rei ou senhor. Esta carta dava um estatuto de privilégio ou de exceção. 5 Carta de Povoamento – Carta de foro a fomentar o povoamento de regiões ermadas (despovoadas). 6 Alfoz – Nome de origem árabe usado durante a Idade Média na Península Ibérica. Tinha o significado de distrito rural e era encabeçado por uma vila importante (neste caso a Covilhã). 7 Inquirições – Grandes inquéritos mandados fazer pelo rei aos seus direitos e bens. (Era preciso fortalecer e centralizar o poder régio e aumentar os seus rendi1

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saqueando e onde se deram incontáveis avanços e recuos de Cristãos e Árabes. Os escassos registos documentais que resistiram ao passar dos tempos, ao vandalismo ou à incúria dos homens, indicam-nos o alvorecer de Caria no antigo Alfoz da Covilhã medieval, feito de terra vasta, que se alargava, aproximadamente, do Côa ao Tejo; onde o rei ansiava e incentivava a colonização, fundação e reedificação de lugares, bem como o arrotear de grandes e primitivas áreas incultas. Deste território, em lugar que não conseguimos definir com exatidão, depois de querelas entre as autoridades da Covilhã e a diocese da Guarda, o Termo8 de Caria seria desanexado, mais tarde. Entre as dúvidas ou imprecisões surgidas neste olhar de descoberta de documentos sobre estes séculos, há algo que se crê, ter por certo: Caria fez uma boa parte da história do seu caminho, ligada à Covilhã e aos bispos da Guarda. Seguindo o encadeamento histórico e no propósito de reunir o máximo de referências que sejam concordantes e contribuam para um pouco mais de luz sobre as origens da vila cariense, importa considerar as Inquirições9 do rei D. Dinis, na Beira, ordenadas por carta de 9 de Agosto de 1314.

mentos. Aos ouvidos do rei chegavam os abusos cometidos por senhores da Nobreza e da Igreja nos direitos e terras da Coroa. Eram necessárias medidas para controlar a situação. A partir de 1220, D. Afonso II e seus sucessores tiveram essa preocupação. Segundo o historiador Oliveira Marques, as Inquirições de D. Dinis foram as que mais contribuíram para o fortalecimento do poder régio.) 8 Termo – Refere-se a uma localidade com o espaço rural que a circunda, podendo ser de pequena ou grande dimensão; por vezes, esse espaço contém pequenas povoações. Durante séculos, Caria pertenceu ao Termo da Covilhã. 9 Sobre este assunto, veja-se “Inquirições de D. Denis na Beira I, Separata do I Volume do Arquivo Histórico de Portugal – Lisboa, 1934, de José da Cunha Saraiva.” Ou no ANTT – Inquirições de D. Dinis, Livro 9, pág. 33 – 35 / Livro 3 de Inquirições de Entre Beira e Além Douro.

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Naquela época, Caria fazia parte das terras do “Julguado10 da Couilhaam”. Vejamos, então, o que é que as testemunhas, ali escolhidas e juradas sobre os Santos Evangelhos, disseram aos enviados do rei: Item / A aldeya que chamam Caria dizem as testemunhas que o dayam 11Martim

caualeria12

Caria ficou em esse logar ante que fosse pobrado huma

do herdamento13 de sseu padre e pobroua e foy filhando (tomar

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(deão)

por força, furtar) do herdamento14 do concelho e em esto mataromno e veio hy o bispo dom Rodrigo filhar quamto avia per razom que era dayam

e reffertoulho (contestar) o concelho de Couilhaam que lhis nom filhasse o sseu e escomungoos e andarom gram tempo escomungados e fez esta aldeya de Caria em que moram bem dozentos homeens que todos fazem

foro15 ao bispo da Guarda e mete hy ho bispo sseus juízes e seu chagador16 e sseu mordomo17 E nom querem hir a juízo dos juízes de Covilhaam

nem obedeçem ao concelho em nenhuma rem (coisa, questão, circunstância) nem querem receber mordomo delrrey18 E esta poboa se começou des

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tempo delrrey dom Sancho prestumeiro19.

Julguado – Circunscrição de carácter judicial que prossupõe a presença de um magistrado régio. 11 Deão – Título de dignidade eclesiástica logo abaixo do bispo ou arcebispo e que preside ao cabido. Cabido – conjunto dos cónegos de uma catedral. 12 Herdade de cavallaria – Termo antigo para designar herdade sem cultura. 13 Herdamento – Termo antigo para designar: domínio, herdade, prédio rústico 14 Herdamento do concelho – Espaço rural diretamente afeto aos moradores da vila (neste caso, Covilhã), onde se faziam as culturas agrícolas. 15 Foro – Prestação ou tributo a pagar em géneros ou em dinheiro. 16 Chagador – Funcionário de ação policial e de apoio aos juízes; competia-lhe chegar (a direito) os que se afastassem das normas. 17 Mordomo – Cobrador dos rendimentos do bispo. 18 Mordomo delrrey – Cobrava os impostos do rei, entregava citações e fazia execuções judiciais. 19 Prestumeiro – O último, isto é, D. Sancho II. 10

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Sentença20 [Nom sse defenda esta aldeya per razom donrra e entre hy o mordomo ou andador21 ssegundo foro e custume de Couilhaam e no juíz meta hu se segundo o fforo de Couilhaam]

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Como já sublinhámos, as Inquirições são fontes de enorme importância dadas as informações únicas que nos fornecem. No entanto, convém não esquecer que têm o grande problema de não nos apresentarem, em muitos casos, datas ou os documentos originais. Teremos ainda de ter sempre presente que era a memória dos mais idosos (respeitados e idóneos) que os escrivães do rei registavam; numa escrita e língua que foram mudando ao longo do tempo, havendo sempre (como é natural) a possibilidade de se perder ou acrescentar algo no recontar e recopiar dos testemunhos. De um modo geral, foi nestas Inquirições de D. Dinis que alguma bibliografia publicada no concelho de Belmonte tirou conclusões e adiantou datas relacionadas com as origens de Caria que tivemos a oportunidade de ler e as quais respeitamos. Porém, porque alguns conteúdos referidos nos suscitaram alguma estranheza e interrogações, procurámos para este nosso trabalho outras interpretações e caminhos, dentro do possível, fundamentados. A título de exemplo e sem pretensão alguma de recensão22, vejamos, agora, no que discordamos de algumas afirmações publicadas neste concelho sobre as origens de Caria, das quais, por razões que se compreendem, não citaremos obras nem autores: 1 – A propósito do nome “Caria” referido em 1226 numa bula23 do papa Honório III, afirma-se o seguinte:

As declarações dos inquiridos eram apontadas pelo escrivão. Depois, vinha a sentença: decretada, posteriormente, pelo rei ou aplicada de imediato, no local, pelo (s) seu (s) representante (s). 21 Andador – Cobrador de rendas ou foros do concelho. 22 Recensão – Breve apreciação crítica de um livro ou de um escrito 23 Sobre este assunto, ver “Mestre Silvestre e Mestre Vicente, juristas da contenda entre 20

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“A primeira vez que aparece, até hoje, o nome Caria nos documentos medievais é como gentílico e não como topónimo.” 24

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Em jeito de primeiro comentário, consideramos a certeza desta afirmação no mínimo, estranha, dado que Caria é multimilenar. Em várias regiões do Mundo (com diferentes grafias e pronúncias) há muito que dá nome a lugares e sobrenome a pessoas. A seguir, diremos que no texto desta bula de Honório III com que se pretende sustentar a afirmação em análise, não há gentílico nenhum. Para ser gentílico, a forma erudita teria de ser “cariense”; ou então, uma outra forma construída (ver nota, em baixo). Ora, tal não é o caso deste documento papal. 2 – Talvez com o desejo, conveniência ou propósito de associar o documento de1226 (atrás citado) ao “dayam (deão) Martim Caria” que é referido nas Inquirições de 1314, afirma-se também o seguinte: “…Em 31 de janeiro de 1226, aparece referência ao cónego e depois

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Deão da Sé da Guarda.”

Sobre este assunto, diremos que, de facto, 31 de janeiro de 1226 é a data de uma bula em que o papa Honório III se dirige ao deão, ao chantre25 e ao cónego Caria da Guarda, incumbindo-os de determinada missão. Porém, o documento não refere: “depois Deão da Sé da Guarda”. E, diremos ainda mais o seguinte: quer a versão em latim, quer a traduzida, não referem o nome Martim. No texto, vemos, apenas, “cónego M. Caria”, isto é, com o “M ” abreviado. Então, por conjetura, seria Mendo? Martinus? Mem? Menendus? Martinho? Miguel? Martim? Marcus?

D. Afonso II e suas irmãs” – 1963, pp.. 158,159, 601, de António D. de Sousa Costa. 24 Topónimo: Caria Gentílico: Cariense. Ou, usando a partícula “de” como no caso: Pedro de Caria. 25 Chantre – Alto dignitário eclesiástico no Cabido de uma catedral, que correspondia a diretor do coro.

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3 – Ao que parece, já com a pretensa associação a que nos referíamos anteriormente realizada, podemos ler ainda na mesma publicação que “Cerca de 1245, este cónego da Guarda terá sido donatário26 de uma póvoa agrícola que tomou o seu nome, Caria. É o que se infere de alguns documentos e das Inquirições de 1314.” Ora, apesar de se invocar inferência, estranhamos muito estas afirmações, já que tanto o texto das Inquirições de 1314 como os documentos (bulas27 de 31/01/1226 e de 17/02/1226) não referem a data de 1245!.. 4 – Depois, a publicação que estamos a citar, faz referência a uma outra personagem supostamente ligada às origens de Caria, o bispo D. Rodrigo, dizendo: “…Devia já ser bispo da Guarda nos começos de 1250, porque nessa

data segundo rezam as Inquirições de D. Dinis de 1314, apossou-se dos bens que o Cónego Deão da Sé da Guarda, Martim Caria, deixara na loca-

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lidade deste nome.”

Esta é mais uma afirmação insólita e dúbia já que, sobre este assunto, estas Inquirições não citam a data de 1250 nem referem “Cónego Deão da Sé da Guarda”. Aliás, sobre este assunto concreto, causa-nos um certo espanto quando lemos o ar descontraído e ligeiro de determinados conteúdos inscritos em alguma da bibliografia publicada no concelho de Belmonte. E, dizemos isto porque ao longo desta investigação lemos, consultámos e chegámos a procurar alguma opinião a estudiosos do Clero e de Instituições medievais. O sentimento comum é de que o vandalismo e roubos ocorridos durante as invasões que atravessaram esta região, o desleixo vergonhoso dos cónegos28 encarregados

Donatário – Pessoa que beneficiou de uma doação. In, “Mestre Silvestre e Mestre Vicente…” 28 Sobre o desmazelo e outras incúrias por parte dos cónegos do Arquivo da Sé, leia-se “Diocese e Districto da Guarda” – 1902, pág. 161,162,163, de José Osorio da Gama e Castro 26 27

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do “corpus” documental específico da Sé e o incêndio que destruiu o seu Cartório no Séc. XIX levaram a que a informação sobre determinadas épocas da história da Diocese da Guarda seja muito escassa. Daí, dizer-se que é uma verdadeira “dor de cabeça” para quem procura saber algo sobre os bispos e membros do Cabido29 relativo a tempos mais remotos. Perante isto, a não ser que coisa nova se descubra em algum arquivo secreto na Sé ou Paço Episcopal, digamos que do imbróglio: Cónego, Deão, M. Caria, nada se sabe; e, por mais que procuremos, também não é muito (para o que importava saber) o que se conhece da carreira eclesiástica ou administrativa do bispo D. Rodrigo. (Rodrigo Fernandes (1248-1267) – nome por que é conhecido na relação nominal dos bispos da Diocese da Guarda.)

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Afinal, quem fundou Caria, o dayam (deão) Martim Caria ou o bispo D. Rodrigo (Fernandes)?

Como afirmámos anteriormente, não é muita a documentação que nos permita formular certezas à cerca destes eventuais fundadores. No entanto, há fontes datadas do séc. XIII e XIV com indicadores preciosos. Do século XIV, as Inquirições de 1314 que já transcrevemos, são de extrema importância. Apelaríamos, pois, à sua leitura interpretando, passo a passo, mas num registo neutro; isto é, sem a tentação fácil de avançar datas e factos que lá não estão, forçando enquadramentos com a cronologia histórica. Assim, surgirão, certamente, alguns detalhes pertinentes que abrirão caminhos para possíveis respostas à questão que se levanta. Em primeira observação, verificamos que os registos30 das Inquirições feitas em Caria são pobres em pormenores relacionados com

Cabido – conjunto dos cónegos de uma catedral. Convém relembrar que na maioria dos casos não havia fonte documental. O registo possível era, apenas, o que a memória das “testemunhas douvida” (tradição oral) ainda abrangia. 29 30

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estas duas personagens; ou seja, por exemplo, em datas, vivências, episódios. Sobre o dayam (deão) Martim, os registos não citam o Cabido a que pertencia, como também não afirmam, explicitamente, que ele fundou Caria. Dizem-nos que veio povoar uma “herdade de cavallaria” do herdamento de seu pai, sito em território do concelho da Covilhã. Mas, não nos dizem de que modo o fez; com que gente; que força de braços atraiu para desbravar e semear em terras tão despovoadas, feitas de vasto e denso matagal, neste interior de Portugal medieval. No entanto, se seguirmos o fio da leitura das Inquirições, ficamos a saber que depois de instalado em suas terras, com o decorrer do tempo, o “dayam” (deão) começou com os maus hábitos da época, de que a Nobreza, Clero e Senhores faziam uso e abuso: “… Foy filhando31 do herdamento do conçelho (Covilhã) e em esto mataromno…” Ora, grande dano deve ter causado às gentes da Covilhã para que se chegasse a tal extremo!.. Mas, convirá não esquecer que o herdamento do concelho era o espaço rural afeto aos moradores da vila covilhanense – o chão para as suas culturas. Era dali que comiam; e sabiam o quanto lhes custara conquistar à paisagem agreste. Por isso, defendiam-no, contra quem fosse, até à morte! E assim, assassinado, lá se foi o “dayam (deão) Caria”. O texto das Inquirições é omisso sobre os pormenores desta morte. Também não nos diz nada sobre as terras do deão… (Seria bom saber que forma e tamanho teriam tomado, com o passar do tempo. Se a herdade se transformara em vários casais.32 Quem seriam as suas gentes que ali faziam pela vida? Era preciso arrancar à terra o pão, o vinho, o linho e as miudezas, suportando, muita vez, a intempérie, a fome e moléstias. Naquele tempo a vida era pior que madrasta!)

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Filhando – Furtando, roubando, apanhando à força. Casal – Na Idade Média, era um aglomerado de duas ou três casas num meio rural.

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Não se sabe muito do que aconteceu a seguir; ao que parece, o concelho da Covilhã teria tomado posse de tudo o que pertencera ao dayam (deão) Martim. Mas, pelos vistos, não por muito tempo, já que pelo ar da narrativa das testemunhas das Inquirições, num repente, em jeito de honra, vingança e direito, veio a nossa segunda personagem, o bispo dom Rodrigo (Fernandes) que lançou mão a tudo o que havia: “…E veo hy o bispo dom Rodrigo filhar (apanhar, roubar) quamto avia per razom que era dayam (deão).”

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Em nossa modesta opinião, pensamos que não deve ter sido assim tão rápido. O bispo teria preocupação bem mais importante que já vinha dos seus dois antecessores. Era o caso da delimitação das fronteiras da sua diocese (Guarda) que confinava com as de Coimbra, Viseu e Évora. Por causa destas fronteiras, há muito que se davam agitadas querelas, atropelos e violências entre os prelados destas dioceses. A propósito de disputas, tivemos a oportunidade de ler um episódio que aconteceu junto ao rio Mondego, onde choveu “bofetada da grande e salpicos de sangue” entre o bispo da Guarda, D. Martinho Pais, o bispo de Viseu e respetivas comitivas!..33 (Dá que pensar, pois a missão da Igreja deveria ser a cura das almas, a paz e o amor entre os homens, a vontade de Deus; porém, naquele tempo, a ambição e o poder calavam as consciências e falaram imensas vezes, mais alto.) Mas, os prelados não defendiam só a diocese; também tratavam dos seus próprios interesses… Noutras partes do conteúdo das Inquirições34 de D. Dinis de 1314 tivemos oportunidade de observar que o bispo dom Rodrigo era o Senhor de duas aldeias, Magazell e Bemquerença, feitas em herdamenVer os contornos deste episódio In, “Diocese e Districto da Guarda” – 1902, pp. 396,397, de José Osorio da Gama e Castro. 34 Veja-se “Inquirições de D. Denis na Beira I, Separata do I Volume do Arquivo Histórico de Portugal – Lisboa, 1934, de José da Cunha Saraiva.” 33

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tos de homens vizinhos da Covilhã. Tinha dois casais na aldeya dos Çimquo e três casais e outros herdamentos na freguesia de Reffega. Era, também, dono de metade da aldeya de Lageosa. Arranjou todos estes bens durante o reinado de D. Afonso III. Uns comprados, outros ganhos (não se diz como) e outros filhou-os (roubou-os) como parece ser este caso no concelho da Covilhã que estamos a analisar. Daí, a nossa convicção de que o bispo Rodrigo tenha aparecido em cena não por razões de honra ou vingança pelo que acontecera ao“dayam (deão) Caria” mas, talvez, por ter aqui uma oportunidade de diminuir a influência que os bispos Tibúrcio e Egas Fafes de Coimbra tinham conseguido na área de Belmonte, onde haviam comprado herdades e concedido várias cartas de foral e povoamento. Assim, as terras que apanhasse por estas paragens vinham mesmo a calhar… Então, indiferente a rogos ou consciência, com a impunidade da época, vai de arranjar património, deitando a mão a tudo o que quis, apesar dos oficiais e gentes da Covilhã contestarem: “Que lhis nom filhasse (roubasse) o sseu (o que era seu).” (Era assim naquela época! Não será exagero dizer que os representantes da Igreja cometiam atropelos como se o mundo fosse seu. A soberba e arrogância clericais abusavam da sua influência. Com as “costas quentes” pela autoridade e prestígio do Papa35 e alguma complacência da parte dos reis, arrogavam-se a tudo. E, quando os prelados eram contrariados e alguém se opunha, agitavam logo a exco-

Os Papas que hoje representam milhões de católicos e governam a minúscula cidade-estado do Vaticano tiveram um enorme poder de intervenção nos reinos cristãos medievais que se sobrepunha a reis e imperadores. Aprovavam e anulavam enlaces de reis e rainhas; fomentavam revoltas e a deposição de quem governava; excomungavam e lançavam o interdito a regiões e a reinos. No ano de1245, o papa Inocêncio IV ameaça e depõe o imperador germânico Frederico II e, em Portugal, retira os poderes de governo ao rei D. Sancho II para dar ao irmão, D. Afonso III. 35

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munhão.36 Era a arma fatal perante uma sociedade humilde, temente a Deus e sempre apavorada com as consequências de tal maldição!) Na leitura das Inquirições, verificamos que foi o que aconteceu ao Concelho da Covilhã. Eles protestaram contra o usurpar das suas terras e o bispo fulmina-os com a excomunhão, por muito tempo: “… Escomungoos e andarom gram tempo escomungados...” Foi assim que arranjou um Couto37sem falar com o rei nem dar troco às autoridades da Covilhã! E, pelo que se infere de fontes documentais posteriores, o bispo Rodrigo e a Covilhã devem ter andado, sempre, de “candeias às avessas”, arrastando as discórdias ao longo de anos.

Uma janela do tempo para as origens de Caria: um documento do Séc. XIII

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Se as testemunhas das Inquirições de 1314 já nos diziam que fora o bispo Rodrigo quem fizera esta aldeia, o conteúdo de um pergaminho38 medieval fazendo referência a uma39 “carta de composição de 3 de outubro de 1280 “vem trazer-nos preciosa informação e, de certo

A excomunhão – A Igreja dispunha desta pena religiosa que implicava graves consequências de ordem social e política. O excomungado era afastado da comunhão dos fiéis, como um banido da sociedade. A Igreja rejeitava-o. A família podia abandoná-lo. As igrejas e os sacramentos eram-lhe vedados e o seu nome de condenado anunciado bem alto. Todos se afastavam. E com a morte, seria o inferno. Curiosamente, o excomungado poderia pagar para ser perdoado; de contrário, continuaria a sua maldição. (Estranha, esta justiça da Igreja!..) 37 Couto – Terra privilegiada pelo rei e que era concedida ao Clero. 38 Consultar Pergaminhos, doc. n.º 27, Arquivo Municipal da Covilhã 39 Carta de composição ou contenda – Documento com raiz jurídica muito antiga; a historiografia jurídica remonta a sua origem ao direito germânico. Através de uma composição, um acusado era obrigado a pagar uma compensação à parte ofendida. Uma contenda ou uma composição podia acontecer, por exemplo, entre particulares; entre o rei e um concelho; entre um concelho e um senhorio e/ou uma aldeia. 36

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modo, uma confirmação. Atente-se pois, no começo da referida carta,40feita por Domingos Gil, tabelião41 do rei na Covilhã, a rogo e mando do concelho da Covilhã e do bispo42 que, à época dos factos, era Frei João Martins I: “Sabbam todos quantos esta carta virem e leer ouvirem que commo

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ffose contenda e demanda antre o onrrado padre Dom ffrey Ihoane pela graça de Deus Bispo da Guarda e sseu cabido da h~ua parte E os juyzes e

o Conçelho de Covilhaa da outra ssobre departimentos43 dos herdamentos que ssom contheudos na carta do Bispo Dom Rodrigo que aja paraiso que deu aos de Caria por termho…”

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Conforme afirmámos, o início deste registo medieval vem trazer importantes indícios sobre a fundação de Caria e a sua ligação ao bispo Rodrigo. Ajuda-nos também a cimentar a convicção da existência de Caria em data anterior a 1280; e já agora, aguça a curiosidade sobre o porquê desta contenda ligada às divisões dos herdamentos inscritos na carta do já tão referido “Bispo Dom Rodrigo.” Provavelmente, coisas mal resolvidas entre a diocese da Guarda e autoridades da Covilhã que estarão ligadas a procedimentos e situações tortuosas do passado… Da parte que nos toca nas deduções deste pequeno extrato medieval, involuntariamente, deparámo-nos a pensar que, afinal, o bispo Rodrigo levara a dele avante. Confirmam-se os factos das Inquirições. Ao que parece, com tudo o que esbulhara à Covilhã deve ter feito a aldeia de Caria como já fizera outras aldeias, de outros herdamentos. Porém, levanta-se aqui um “mas”, tendo em conta duas afirmações dos jurados carienses nas Inquirições de 1314:

Mais tarde, em 1315, esta carta haveria de ser lida na presença do rei D. Dinis. Tabelião – Oficial público que faz documentos públicos, escrituras, treslados, reconhecimento de sinais, etc., em que se requer a autenticidade legal. 42 Bispo Frei João Martins I (1278-1301) 43 Departimento – Palavra antiga com significado de divisão, demarcação de termos, de herdades 40 41

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1 – Que fora o bispo Rodrigo o fundador de Caria. (“…e fez esta aldeya de Caria.”) 2 – Que o começo desta póvoa aconteceu ainda no tempo do rei D. Sancho II. (“… E esta poboa se começou des tempo delrrey dom Sancho prestumeiro.” 44 )

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Ora, fazendo fé neste testemunho, podíamos daí deduzir que Dom Rodrigo não a começou; e isto, pela simples razão de que ele ainda não era bispo da diocese da Guarda45 enquanto reinou D. Sancho II. No entanto, conhecendo-se o significado de “poboa” no séc. XIII, não será leviano presumir que os herdamentos referidos no episódio dayam Caria / conçelho de Couilhaam a que o bispo deitaria as mãos, podem muito bem ter sido o pouco que se começara a edificar ainda no tempo do dito rei Sancho prestumeiro. Sendo este o caso, mais pormenor menos pormenor, a coisa bate certo. Com território surripilhado e a toque de “excomunhão”, tudo se conjuga para que tenha sido Dom Rodrigo Fernandes o fundador de Caria. Presumivelmente deve ter feito como bem entendeu. As autoridades da Covilhã, apesar de constrangidas pela excomunhão, apelaram, possivelmente, para D. Afonso III. Só que o rei de Portugal teria mais em que pensar. Andaria ocupado na reorganização e pacificação do reino, após a crise e lutas com seu irmão D. Sancho II; e, outras preocupações lhe chegariam com as pretensões castelhanas sobre a posse do Reino do Algarve. Assim, esta usurpação do bispo Rodrigo ao concelho da Covilhã (como muitas outras, feitas noutros lugares pelo Clero e Nobreza) continuaria a passar, impune. (A propósito de impunidade é pertinente referir que foi uma boa parte dos bispos portugueses, que enchendo os ouvidos ao Papa Inocêncio IV com verdades, meias verdades e conveniências, fizeram com Prestumeiro – Quer dizer o último; neste caso o rei D. Sancho II. O bispo Rodrigo (Fernandes) aparece na primeira cúria solene ocorrida em Ourém, em novembro de 1248, já com o rei D. Afonso III. Ver In, D. Afonso III, de Leontina Ventura, 2009 44 45

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que este pontífice retirasse a regência de Portugal a D. Sancho II e nomeasse D. Afonso III para defensor e governador do reino. Daí, a possibilidade deste monarca ter de mostrar-se algo generoso e reconhecido; na conveniência de querer mostrar que estava a respeitar o que prometera a alguns Senhores e à Igreja portuguesa, no acordo de Paris. Por isso, entre o que o rei doou e em tudo o que fingiu não saber, os primeiros anos do seu reinado seriam para as classes dominantes da época um perfeito “mar de rosas”.) Voltando ao que nos interessa, digamos que foi ainda em tempos de confusão e desorganização instaladas no reino que o bispo Rodrigo Fernandes terá feito a aldeia de Caria como terra sua. Provavelmente promoveu a fundação da primitiva igreja e arrogando-se em Senhorio destas terras que usurpara à Covilhã, honrou-as, abusivamente, concedendo privilégios aos moradores sem que o rei ou seus representantes locais lhos tivessem autorizado. E, como era habitual, exigiu, certamente, fidelidade, colocando ali funcionários46 seus que aplicassem a sua justiça e cobrassem as suas rendas aos camponeses e moradores carienses. Não conseguimos documentação que nos desse informação rigorosa sobre os tempos que se seguiram, no que diz respeito a este bispo e a Caria e aos naturais protestos por parte da Covilhã. Sabe-se que continuou à frente dos destinos da Diocese da Guarda; e enquanto duraram no Reino as boas graças da Coroa, é muito provável que tenha continuado a agir como quis, na sua própria conveniência e a do seu bispado… Até que, possivelmente ainda em 1266, muito zangado, acabaria por retirar-se para Viterbo47, acompanhando e apoiando outros bispos portugueses num extenso rol de queixas e acusações contra o rei D. Afonso III, junto do papa Clemente IV. Aí, viria a falecer em 06/09/1267.

Ver no texto das Inquirições de Caria. Viterbo (Itália) – Conhecida como a cidade dos Papas. No séc. XIII muitos pontífices tinham ali residência de campo, passando lá mais tempo que no Vaticano. O papa português João XXI está sepultado em Viterbo.

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E o nome Caria?

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Não encontrámos fonte documental ou opinião credível que nos desse resposta. Em páginas anteriores, já dissemos que o nome Caria é ancestral. Mesmo o respeitado Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo diz no seu famoso Elucidário, a propósito de Caria do bispado de Lamego, haver em Portugal algumas terras com este nome e ser ela antiquíssima; mas, não sabia a razão de onde lhe provinha tal nome. Há também quem considere a hipótese de origem árabe. Porém, no meio de tal incerteza, há uma clara evidência: não foi o bispo Rodrigo Fernandes que inventou este nome. Em modesta opinião, inclinamo-nos para aqueles herdamentos do “dayam (deão) Caria “que o Concelho da Covilhã agregou e a que o bispo deitaria a mão. É bem provável e natural que, com o decorrer do tempo, os primeiros moradores e os vizinhos mais próximos começassem a chamar aquele sítio de“Poboa Caria”.

Caria na mira das disputas entre a Covilhã e bispos da Guarda Na época a que nos temos referido ao longo destas páginas, por todo o reino, Senhores, Nobreza e Clero arrogavam-se em comportamentos e atropelos reprováveis: cobrando direitos indevidos; alargando os seus domínios; usurpando terras dos concelhos e até do próprio rei. E passavam impunes, como se de atos normais se tratassem. Isto tudo, perante um povo calado e uma administração e justiças locais pouco eficazes, assistindo, muitas vezes, indiferentes por conluio ou impotentes por medo de represálias. Foi assim com o bispo Rodrigo Fernandes que, aparentemente deixaria a Diocese da Guarda e a Covilhã em conflito por causa das terras onde se fundara Caria. Com intenção e conveniência de por cobro a tal situação, seria o prelado D. Frei João Martins I – já referido na carta de composição de 3 de outubro de 1280 – quem procuraria com os juízes e concelho da

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Covilhã a possibilidade de um entendimento. São os contornos deste acordo que a seguir iremos abordar.

O bispo Frei João Martins I e o Compromisso entre Caria e Covilhã

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Como dizíamos, baseados no que transparece da leitura das Inquirições de 1314 e do documento de 3 de outubro de 1280, desde o tempo do bispo Rodrigo Fernandes que este assunto de Caria seria a pedra no sapato das autoridades da Covilhã; daí, a eventual conveniência de um esforço da parte da Diocese da Guarda para melhorar relações e solucionar diferendos. Assim, talvez se compreenda melhor o facto de vermos D. Frei João Martins I, um dos bispos sucessores, figurando em tal questão. Também é verdade que nos últimos anos de D. Afonso III, as relações deste monarca com a maioria das dioceses portuguesas tinham azedado e de que maneira! O rei nunca perdoara o teor e o exagero das queixas que os sete bispos tinham levado ao papa Clemente IV. Então, foi quase uma guerra aberta. A diocese da Guarda seria uma das visadas. Aliás, Frei João Martins tinha sido vítima disso mesmo.48 Ora, se a tal facto se acrescentar ainda o que se apurara nas Inquirições Gerais49 e as intenções já manifestadas por D. Dinis, também a este bispo, prudente e experimentado, interessaria repor legalidades no bispado. E quer tenha sido por estas razões ou não, pelo que tivemos oportunidade de ler na fonte medieval já mencionada, foi em cordial negociação que em 1280 Frei João e autoridades do concelho da

Frei João tinha sido transferido para o bispado da Guarda pelo papa Nicolau III, a 24/12/1278. Mas, como eram grandes as discórdias entre D. Afonso III, a Igreja portuguesa e o Papa, só a 28/10/1279 aparecem sinais do bispo, já com D. Dinis a governar. 49 Em 1258, D. Afonso III ordenou Inquirições Gerais (Douro e Beira Interior), tendo-se apurado várias violações cometidas principalmente pela Igreja, o que levou o monarca a determinar que as propriedades régias usurpadas deveriam voltar para posse da Coroa. 48

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Covilhã chegaram a um compromisso escrito sobre as terras de Caria; acordo este que aquelas autoridades levariam, ao longo dos tempos, muito a sério. Vejamos, então, em traços gerais, os aspectos mais relevantes deste acordo, feito numa quinta-feira, 3 de outubro de 1280, em “carta de composiçom”50certificada por “Domingos Gil, publico tabellion51 de nosso ssenhor el Rey en Covilhaa”, a rogo dos juízes do concelho da Covilhã, do bispo D. Frei João Martins I e seu Cabido:

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— Que anualmente, no mês de junho, pela festa de São João Batista, o bispo e seus sucessores dessem ou fizessem dar ao Concelho da Covilhã trinta libras de dinheiros52 da moeda de Portugal. — Quando o concelho da Covilhã enviasse até seis cavaleiros, em seu negócio, ao lugar de Caria, os moradores teriam a obrigação, duas vezes ao ano, de lhes prover (fornecer) o seguinte53Jantar: dois carneiros, oito galinhas, cem pães, doze alqueires de cevada e seis almudes de vinho. (Como veremos, estes Jantares foram, ao longo dos anos, motivo de controvérsia.) — A obrigação de todos os anos, no dia de São João Batista, os juízes de Caria irem jurar nas mãos dos juízes da Covilhã, como sinal do cumprimento do que estava acordado e escrito no compromisso.

Faz parte dos Pergaminhos, doc. n.º 27, Arquivo Municipal da Covilhã. Tabellion (Tabelião) – Oficial público que faz documentos públicos, escrituras, treslados, reconhecimento de sinais, etc., em que se requer a autenticidade legal. 52 Dinheiro – Nome de moeda adoptada em Portugal, usada até 1433; 1 libra = 240 dinheiros. 53 Jantar – Obrigação que tinham algumas terras de aposentar e sustentar (pelo menos uma vez por ano) os representantes oficiais e suas comitivas que ali viessem, em missão. Para evitar os abusos, mais tarde, as populações converteram este tributo em quantias fixas de dinheiro. 50 51

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— Se porventura, o bispo Frei João Martins ou outro qualquer dos seus sucessores não desse ou fizesse dar as trinta libras, o concelho da Covilhã penhoraria os homens de Caria. — Os juízes e concelho da Covilhã prometiam defender os moradores de Caria como seus vizinhos. — Os da Covilhã declaravam a sua boa vontade e consentimento. Que o bispo e seu Cabido fossem livremente e em paz e fizessem o que entendessem nos herdamentos; dali em diante, não pediriam mais nada sobre tal assunto, a não ser dos conteúdos do compromisso. — Concediam também a Caria uma certa autonomia; digamos que uma espécie de Jurisdição Cível (delitos menores). Se houvesse alguém que devesse ser admoestado ou castigado, os homens de Caria que o castigassem; mas, se fizesse coisa de que devesse ser justiçado (delito grave, crime) que lhe fizessem justiça os juízes e o Concelho da Covilhã. — E, perante o bispo, cónegos, homens-bons54 de Caria, juízes, outras autoridades e homens-bons da Covilhã foram desanexados e demarcados os limites dos herdamentos que o bispo Rodrigo dera aos de Caria, com a seguinte configuração: “Parte com herdamento d’Apariço Paes e em commmo vay aa pedra da

Ervedeira55 e dy commo vay aas fontes da Eirada56 (Tenrada?) e dy acima do Val Longo e dy commo sse vay aas çimas das cabeças de Val Longo e em commo vay aas çimas das cabeças da Chorroseira (Chorroeia?) e desi commo sse vay ao marco do bregeo (breges?) e em ao marco velho que esta

Homens-bons – A documentação medieval caracteriza-os como os mais ricos, os mais notáveis, os mais respeitáveis chefes de família, as pessoas honradas por excelência dentro de cada povoado. 55 Ervedeira – Do português antigo, local onde havia ervedeiros ou seja, medronheiros. 56 Eirada – Quantidade de cereais ou legumes que se estendia de cada vez, na eira. Local onde se fazia a eirada. 54

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em çima do Val do Pereiro na carreira57 que vay pera o Salgueiro e desi ao marco58 novo que ffez poer o Bispo em essa mesma carreira commo vay pera o Salgueiro adeante vertente aguas59 contra Caria.”

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Ao observarmos o conteúdo desta descrição medieval, verificamos que, apesar de passados mais de sete séculos, os nomes de alguns lugares, os limites, a situação geográfica e configuração da parte sul do território de Caria de hoje é muito semelhante à da época de 1280. Repare-se nos topónimos: Val Longo, Val do Pereiro, Salgueiro. E apesar de tudo aquilo que não consigamos identificar e situar, dá para ver que o Bispo Rodrigo era Senhor, legal ou não, de toda a área para lá da ribeira de Santa Ana, que confinava com os concelhos do Fundão e Covilhã, de hoje. Referir ainda que, neste pedaço de território, havia de nascer a Quinta60 do Monte do Bispo (agora Monte do bispo), instituída por um dos senhores bispos diocesanos, para seu descanso e entretenimento. Nela seria fundada uma capela, com a invocação da virgem e mártir Santa Luzia. Com este Acordo seria desanexada mais uma parcela de território do vasto Alfoz da Covilhã. Depois de alguma arrastada discórdia, D. Frei João Martins I conseguira resolver a questão. E ao que parece, obtivera o entendimento até com alguma condição de exceção. Porém, nas entrelinhas do compromisso, há pormenores que nos despertaram as seguintes reflexões: 1 – Quando em outubro de 1280 o tabelião Domingos Gil usa as expressões “contenda e demanda”, ficamos mais convictos da existên-

Carreira – Termo antigo que designa: estrada ou caminho estreitos; carreiro. Não se sabe quem mandou colocar este marco novo no caminho do Salgueiro; se o bispo Rodrigo, o sucessor Frei Vasco I ou o bispo da época de 1280, Frei João Martins I. 59 Vertente aguas – Refere-se, possivelmente, à ribeira de Caria (Sant’Ana). 60 Ver Memórias Paroquiais de Caria (1758). 57 58

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cia de algum conflito entre partes e compreendemos melhor o porquê de uma “carta de composição”.61 Aliás, naquela época, a delimitação de territórios era quase sempre fonte de conflitos e de difícil acordo. É também aceitável inferir que a razão deste litígio teria a ver com as terras onde fora fundada Caria, as quais nunca o bispo Rodrigo tivera por doação do rei ou da Covilhã. Como podemos ler nas Inquirições de 1314, apoderou-se delas e manteve-as, como bem entendeu. Havia, pois, irregularidades que não conhecemos bem, que se arrastaram pelo tempo e que nem o referido bispo nem o seu sucessor, D. Frei Vasco I, teriam resolvido. Convenhamos também que, conhecendo a arrogância da Igreja naquela época, é evidente que o bispo Frei João Martins nunca teria vindo à Covilhã “em demanda” ou negociar, nem ficaria refém de pagamentos e juramentos se as terras em causa fossem pertença legal da diocese da Guarda por via do dito bispo Rodrigo.

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2 – Se o bispo Frei João saía, de certo modo, legitimado como Senhor daquelas terras (“…Que o bispo e seu cabido fossem livremente e em paz; fizessem o que entendessem nos herdamentos; que dali em diante, não pediriam mais nada sobre tal assunto, a não ser dos conteúdos do compromisso…”), a verdade é que a Covilhã não libertava Caria. Como já referimos, as autoridades concediam apenas uma certa autonomia, permitindo a Jurisdição Cível; isto é, Caria governar-se por si, nos delitos menores, mas conservando-se subordinada à Coroa e à Covilhã nos domínios do crime, do fisco e outros costumes. E, para terem essa pequena autonomia (liberdade), o bispo e os moradores teriam de respeitar e cumprir a parte que a cada um cabia, conforme o estabelecido no compromisso. As libras seriam uma forma de o bispo

Carta de composição ou de contenda – Documento com raízes jurídicas muito antigas (há quem remonte a sua origem ao direito germânico). Podia acontecer entre particulares, o rei e um concelho, entre um concelho e um senhorio e uma simples aldeia. O acordo pressupunha, por vezes, uma indemnização. Repare-se nas trintas libras que o bispo Frei João Martins I se comprometia a pagar ao concelho da Covilhã.

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comprar os direitos às terras; os Jantares eram o meio de os moradores de Caria ganharem o Cível. E se os juízes e concelho da Covilhã prometiam defender os carienses como seus vizinhos era porque Caria continuaria a pertencer ao Termo da Covilhã. Voltando agora ao fio da narrativa, é de referir que não encontrámos elementos que permitam saber durante quanto tempo o prelado e as gentes de Caria honraram o Acordo. Provavelmente, enquanto Frei João se manteve na diocese da Guarda, tudo correu na normalidade. Depois, pelo que deduzimos das Inquirições do rei D. Dinis na Beira em 1314, os bispos que se seguiram, voltando ao papel abusivo de Senhores daquele lugar, agiram, à revelia da legalidade62; como se do compromisso de 1280 não houvesse obrigações para com o concelho da Covilhã e a Coroa. Poder-se-á ainda inferir do texto destas Inquirições que, os bispos da Guarda não só não honravam o Acordo como se davam ao luxo de colocar os seus oficiais ( juízes, chagador, mordomo), patrocinando, assim, a rebeldia dos moradores de Caria; levando a que estes não pagassem os tributos devidos ao rei e ao concelho da Covilhã, nem respeitassem as suas justiças. “… Que todos fazem foro ao bispo da Guarda e mete hy ho bispo sseus

juízes e sseu chagador e sseu moordomo E nom querem hir a juízo dos juízes de Covilhaam nem obedeçem ao concelho em nenhuma rem (coisa, questão, circunstância) nem querem receber moordomo delrrey…”

E a prova de que haveria alguma ilegalidade em Caria, está na sentença63 proferida pelo rei D. Dinis, a qual, vem inclusa nas ditas Inqui-

O sucessor de Frei João Martins I – D. Vasco Martins de Alvelos – foi mesmo “chamado à pedra” pelo rei D. Dinis, em sentença de 6 de julho de 1311. É que o bispo D. Vasco pretendia que os foreiros que moravam nas suas aldeias e herdades respondessem perante ele e não perante os juízes da terra. Cf. João Pedro Ribeiro, Dissertações Cronológicas, 1836, Tomo V, p. 393 63 Curiosamente, nas Inquirições do rei D. Dinis na Beira (1314) feitas no “Julguado 62

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rições. Dizia o monarca que não invocassem honras e privilégios que ele ou alguém por ele não concedera. Ou seja, que este lugar (Caria) não era Couto nem Honra; que não estava isento e não podia negar a entrada ao mordomo do rei. Por isso, ordenava que se pagasse o que era devido à Coroa e ao concelho da Covilhã e se respeitassem suas justiças. Sentença [Nom sse defenda esta aldeya (Caria) per razom donrra e

entre hy o moordomo ou andador ssegundo foro e custume de Covilhaam e no juiz meta hu se segundo o fforo de Covilhaam.]

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Aparentemente, as sentenças não devem ter chegado à Guarda como não chegariam, muitas vezes, a outros bispados ou a terras de nobres. Aliás, também o hábito (quase vício) de rapinar em terras da Coroa por parte do Clero e Nobreza estava de tal modo enraizado que arranjavam sempre um novo estratagema para o conseguir. Os reis bem se esforçavam para por cobro a tais abusos e usurpações, porém, as sentenças ou se perdiam pelo caminho ou ficavam a repousar dentro de alguma gaveta mais recôndita, nos aposentos de nobres e bispos! Depois, com o passar do tempo, a força das sentenças virava letra morta; isto é, continuava tudo na mesma. E, descontraidamente, como se fossem fiéis cumpridores, em variados momentos ou circunstâncias, até iam em protesto e queixa junto do rei como foi o caso do bispo que referiremos a seguir.

da Covilhaam”, para além da sentença de Caria, as outras terras que mencionámos com alguma ligação ao tão falado bispo Rodrigo Fernandes tiveram todas a mesma sentença por parte do rei: “Sejam devassas”. (Isto é, anulação de direitos e privilégios que usavam indevidamente.)

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