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Um poeta não tem lugar levanta-se de manhã e alinha os mortos lado a lado com os lápis ou as esferográficas e prepara a espoleta para o próximo lexema (in As Aporias do Silêncio)
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Norberto do Vale Cardoso
as aporias do silêncio
Norberto do Vale Cardoso é professor doutorado, leccionando nos ensinos secundário e superior. É responsável pela fixação da obra de António Lobo Antunes, autor sobre o qual publicou os ensaios A Mão-de-Judas e As Formas Mudadas (ambos na Texto Editores). Publicou vários artigos em revistas, jornais e livros de actas. Tem sido orador em vários colóquios nacionais e internacionais. Está incluído em mais de uma dezena de antologias e revistas de poesia e de conto, em Portugal e no Brasil. É autor de livros de poesia, entre os quais Poemas escritos em folhas de papel brilhante, O Poeta na Fímbria e O Poeta no seu Homizio.
as aporias do silêncio Norberto do Vale Cardoso
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(versura)
Título: as aporias do silêncio Autor: Norberto do Vale Cardoso Edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro)
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ISBN: 978-989-8986-25-2 Depósito Legal: 472553/20
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Paginação: Norberto do Vale Cardoso Capa: Ângela Espinha 1.a edição Lisboa, setembro 2020
© Norberto do Vale Cardoso
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«Se eu ouvia apenas o silêncio, era porque não estava ainda habituado ao silêncio; talvez porque a minha cabeça vinha cheia de ruídos e de vozes.» (Juan Rulfo, Pedro Páramo)
«uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as coisas mudas me falam» (Hugo Von Hofmannsthal, A Carta de Lorde Chandos) 5
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Plantar uma árvore cuidar do jardim (como perscrutar o não iludível silêncio) Levantar uma parede caiar um tecto reparar (como não estudar as possibilidades do silêncio)
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Aparelhar madeira lixar uma porta (o silêncio incompleto uma cesura na palma da mão) O mundo a girar veloz o estrépito o fragor (o silêncio multímodo o artífice emudecido) A voz que parece perder-se calar-se
(e o silêncio calculado o artifício abandonado) A voz que parece perder-se calar-se
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(e o silêncio calculado a aporia que se abre //
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Num hemistíquio do dia uma vaga ideia de mim
ao encontrar um homem que na cacofonia do mundo falou
sem que eu fosse capaz de entender o que dizia Olhei-o bem
de tão pálido não identifiquei o seu rosto Procurei ler-lhe o sentido nos lábios
mas as sílabas esboroavam-se silentes como se o que dizia dissera num tempo tão distante que inane todos agora achassem 9
seduzidos pelos seios da asma que os impede de respirar o tempo do silêncio Reli a hora da modorra para entender a sua identidade
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mas não compreendi quem era porque acho que um pálio cobria a sua face
ou o entretecia de masmorras no olhar que não reconheci
Num esgar que subitamente me pareceu familiar um eco preencheu um pouco o oco da minha memória e pareci capaz de recordar
vi
estuguei os passos
estiquei um braço depois o outro estendi a mão lancetada
Pr e
mas ele só suporta a abstenção das pegadas
a fruição dos braços que acompanham a orquestra que ensaia
a modulação das mãos que estendem o tempo E então escapou-se no interior do jardim de
inverno
Fui no seu encalço
mas perdi este albúmen que por instantes reconheci Compassivo voltei a perder-me de quem um dia devo ter sido 10
// A seis de maio mergulhei nas águas julgando-me capaz de reemergir de debaixo da onda ou de a contornar
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até olhar por sobre ela como em ua dança mas sob o céu tudo o que eu era então secrecia e o andamento das ondas derrubava cada árvore nua por dentro
Nesse seis de maio a onda inopinada era a crisálida
vi
de outras águas dos anos de meu espéculo
Debaixo da onda havia um mundo novo
para o qual
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não tinha preparado fruto nem ainda flor
Saíra de casa no intento de a ela regressar
ao pôr-do-sol
(Harpócrates pede para me quietar) e soube então que quem habita a onda é a ordem tenebrosa é o vazio
mas aquela não era a minha casa aqueles livros dispostos não eram os meus 11
nada me pertence se toda a matéria fenece (não sei porque escrevo) era um largo espectro de águas por sorver Não sei sequer o que sou hoje se algo mais
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que a carne um corpo haurido desde que nada
mesmo quando ao sexto café a minha angústia é ainda
um campo por cultivar
(que cálice trazes agora Paulo
vi
ao harúspice)
Da minha conta-corrente nada sobeja
no entanto os autocarros circulam e param
Pr e
em frente às escolas aos hospitais aos cemitérios (reescrevo corrigindo cada linha cada dia arúspice
pudesse eu)
Na ressonância da onda há uma água que
parece ter validade
ganhando bolor como a dor porque a mesura está por todo o lado
só ela tem uma casa uma casca em grosso 12
e não é preciso senha para entrar nela isto não me referindo apenas às pessoas nem aos poetas mencionando as paredes dos edifícios
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a forma dos passeios a inclinação das árvores
sobretudo a inclinação das árvores
Eis-me aquele que quer esquecer com uma chave na mão para (escrever o quê)
vi
abrir não sei que porta
enquanto o tordo-eremita
ou a onda aquela ou outra igual
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(não importa qual)
temo se descarne para me fazer ver //
As pessoas dormem acomodadas nos seus
leitos
e eu agito-me ainda no silêncio deixado como águas inconformadas entre margens entre insónias que lhes dão outra via pelos limiares da vida e da noite 13
E o dia interroga-me pernicioso sem que eu saiba o que esperar da vida que sentido dar ao seu vazio votivo Uma igreja que conheci perdeu as paredes
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restaram uns arcos semi-nus escondendo-se sob o entulho
de que as ruínas se fazem como os anos das pessoas Alguns gatos perdidos e pombas arrulham por entre os escombros
de que desconheço a origem
vi
Que mãos destronaram as coisas
que cinzas são estas
Basta olhar em volta e desânimo
Pr e
Basta olhar e deserto e cizânia entre as
gentes
recolhidas nos seus templos um casebre além
um pobre estendendo-me a mão (nada me dói mais que o espelho de uma Mão) Que tenho para lhe dar a não ser as ruínas
de quando regressei esperançoso (interrogando-me) 14
Mas o tempo o tempo é outro é um futuro a alimentar-se do passado (como cada frase que desenho no chão)
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Quem consegue olhar-se ao espelho tem um preâmbulo mas eu sem clarão
não passo de um espaço lacunar
entre os outros dos quais apenas pareço fazer parte Havia muito restaram-me amores
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línguas lençóis de água
algumas pessoas e pouco mais
nem mesmo o mar compósito inefável
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Agora restam-me membranas lacunosas
apenas
as penas
de umas pombas que um dia no vão das escadas chamaram por mim e às quais respondi
em luminárias intermitentes //
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Não sabes com que dor percorro as gavetas nos entardeceres em que deixas de ser libação em mim caída num instante defronte
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A tuba silenciada pela turba
perdura como uma origem e tu em mim
não num lugarejo a que não dás importância
como não às coisas sob as pedras do jardim que lembra
vi
consagrámos à infância tardiamente entendida é certo
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como que embainhada num posfácio perdido entre a névoa do que havia de ter sido uma música sem palavras uma música que gema
ao dizer sem dizer nada
em cada gaveta de silêncio e pó e eu num desafogo de te pertencer Circe me encantas na mensura dos versos // 16
Como pode ser aquele que não é o que é Como pode não ser taciturno o render dos felizes quando
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a cerca do mundo é um enorme subterfúgio uma cavalgada cujo último acto é um despenhadeiro
sobre crateras pouco límpidas que fingem cerceadas
O Livro diz que temos de ser o que somos
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a cada hora a cada canto a cada pássaro compaginado em nós
(o metrónomo persegue Job)
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Mas quando o mundo é um domínio
inacessível
uma máquina sem mãos
não nos podemos aquietar tão-só inquirir como podemos ser o que temos em nós para ser como podemos não o perder por entre os nossos próprios dedos
como podemos não deixar de compor os nocturnos que amanhecem 17
como prosseguir nos percursos como caminhar no caminho probo como fazer de cada dia uma proba eternamente em construção
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não uma escrita definitiva Talvez por isso tenhamos ou devamos ter a triste sensação
de que jogamos um jogo contra nós mesmos percutindo o nosso próprio coração como se ele pudesse sobreviver
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macerando-nos gesticulando desenfreadamente desleixando-nos de nós (tantos são os cilícios)
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até nos golpearmos de novo
como se desse combate não pudesse sobrar nada nem um pouco do que é suposto sermos para sermos nós mesmos
que jamais fomos a não ser a silêncios entre as notas escritas nas margens das páginas com os arados das falanges perfuradas pela dor do ofício de mais alto quedar aquém (o meu único afinal) 18
para relatar aos vindouros (quais) daqui ao tempo em que a rebentação dos séculos nos devolva ao que é
(se Er é)
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aquilo que se é
//
Existo quando venço por dentro
(emudecendo-me sem pressa num silêncio parecido ao das formigas)
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Existo enquanto hipótese
(subtil como a chuva lenta sobre os telhados e os pinhais)
Pr e
Existo enquanto inacabada biografia de
quem tem uma vida exclusiva (colijo os crocitares para que não mais se escutem entre as estantes)
propositadamente apagada para encobrir os seus próprios crimes (funesta actividade funesto labor
lugar de menor gravidade 19
mas tão assombrosa na sua superfície que dá mais volume à alma) Como um sem fim laborando como um rasgo na terra
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aboleto tudo e tudo excluo do visível continente a minha subsistência reside em cada bolbo interior
para ressoar a maravilha de qualquer coisa incognoscível
//
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Apagar as minhas pegadas
que interessam às traças que irrompem na lisura dos tecidos e suas linhas enviesadas
Pr e
que interessam aos homens menos que traços numa fotografia queimada
Viver da água que desce a montanha
e sobretudo sustentar-me dos frutos que nascem na gelosia
entre a portada e o vidro da janela que não dá para a manhã
(a quem importa o leito e o leite duradouro o ruído dos lápis deslizando a ladeira das páginas)
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Escutar o silêncio cavo (hipótese de trabalho) o troar da cidade (atesto-me de equívocos)
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o tenaz desejo e poder ser sem restolho
a cada dia em cada instante
alguém por dentro das galerias de alguma coisa sustentando a vida
mesmo que fora da mão
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//
Similares os ventos sopram-nos os cabelos
como apólogos
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quando as mãos nos passam pela fronte não em busca da temperatura
mas numa vigia que deseja ser o prelúdio da vida enquanto nas parcas casas que temperam as montanhas
sopram frágeis vidas ainda que hábeis que ali se fincaram apesar do sopro não compassivo da solidão
E nós os dos cabelos revoltos 21
passamos sem nos darmos porque não somos mais que memórias que alguém um dia
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não mais foi capaz de lembrar //
A respiração que preenche o vazio regenera-me
Da noite aonde os poetas acorrem como pêndulos
vi
risíveis extemporaneamente musicados
não se escuta mais além da finura de uma folha que lentamente se esfolha
Pr e
(como eu
talvez menos eu
cada vez menos eu)
mascarada no silêncio da mesa (comprei uma máscara nova faz parte de um sistema mnemónico regenerativo) É no terceiro
porventura no oitavo andar (já me não recordo 22
foi há tantos anos lembro apenas o teu quarto) que floris na respiração dos barcos que me buscam mas o náufrago passa
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na quebra da rua onde o candeeiro se apaga como se soubera que ainda é tempo de dobrar a respiração
a sua que preenche um vazio sem ruído no silêncio de quem ama
(atira-me da varanda um dia ou dois
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que eu cá em baixo prometo apanhá-los) //
Pr e
Nos fins de outubro
quando se avizinhe o dia dos finados e o crisol da morte se erga para recompor a paisagem que nunca esperei ver mudar mas agora se veste vaza
começarei a reflectir sobre o sóbrio silêncio entre os móveis daquela a que devo chamar minha casa
um vernáculo que perdi entre tantas outras coisas
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Um poeta não tem lugar levanta-se de manhã e alinha os mortos lado a lado com os lápis ou as esferográficas e prepara a espoleta para o próximo lexema
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Assistirei à actuação do artista que se desloca pelas paredes do recipiente
descolando as páginas do tempo que cobrem a papel a parede onde me olho
(desconfio que os poetas se olham nos espelhos dos papéis de parede)
vi
e reagirei tendo de novo não sei quantos anos com o caminho ainda em bolbo Depois
Pr e
nos primeiros dias de novembro o crisol da palavra morte
voltará a abandonar a paisagem interior em busca de outra locação e o lugar vazio
diminuído a um mero buraco no qual apenas a sua assinatura
(umas letras incompreensíveis como certas falas)
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deixar-me-á num tempo e num espaço de distintas propriedades em que não haja paredes por percorrer Por esses dias voltarei a pensar em novas
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oportunidades porque reconheço que aqueles que deslizam para o poço
quando não sabem ainda se os regressos existem
sabem apenas que o medo cessa de existir quando das paredes
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fazemos crisóis que não podemos suportar nos encómios impressos
com que vestimos as coisas que pensamos serem
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nossas
nos lugares por onde deslizamos silenciosos puídos
de uma dor tão nossa que até o silêncio dói e onde a lupa se forja
(vejo melhor vejo-te melhor)
num sentido oposto ao do que havia de ser o meu caminho
// 25