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O Baú dos Papelinhos de Dona Inácia, Prazeira de Manica
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FICHA TÉCNICA título: O BAÚ DOS PAPELINHOS de Dona Inácia, Prazeira de Manica autor: José Mora Ramos edição: Edições Partenon® (Chancela Sítio do Livro)
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1.a Edição Lisboa, junho 2022
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revisão: Marcela Neves arranjo de capa: Ângela Espinha capa: Sem Título, José Mora Ramos, a partir de Confissões de Pablo Picasso (acrílico sobre tela) contra-capa: O Sótão, José Mora Ramos (acrílico sobre tela) paginação: Alda Teixeira
isbn: 978-989-8845-36-8 depósito legal: 497965/22 © José Mora Ramos
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Manuel Lobato Jorge Cabral Cristina Bizarro José Janeiro Neves
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CAPÍTULO 1
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A fotografia
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A minha avó Inácia morreu ontem, dia 15 de Abril de 1998, durante o sono, aos 92 anos. Foi hoje à tarde enterrada, eram 16 horas, no cemitério da terra onde nasceu e aonde regressou há vinte e quatro anos, depois de uma vida feita em África. E aqui estou eu, no sótão da casa que nos deixou, espessas paredes de pedra granítica, frias e húmidas, cento e cinquenta anos terão, aqui estou ao fim da tarde, defronte do baú dos papelinhos, sob esta luz difusa que penetra pela clarabóia de telhas de vidro martelado, esverdeadas pelas geadas, e pelas frestas das telhas antigas, negras de tantas invernias, marcadas pelos ventos agrestes vindos da serra. – Minha neta, neste baú, que protege de traças, fungos e bolores tudo o que nele se guarda, já que é feito de chanfuta, uma madeira preciosa, eterna, que a tudo confere um perfume exótico, inebriante, está a minha história africana, na realidade toda a minha história, pois antes de partir não tive histórias que se vissem e depois que regressei apenas acrescentei duas folhas, pois embora fosse minha intenção escrever mais, nada de interessante então vivi que justificasse registo. São centenas de papelinhos, dispersos, desordenados, soltos, ia-os atirando lá para dentro, não são um diário, são apenas folhas soltas onde registei o que me apeteceu, quando me apeteceu, algumas histórias importantes, achava eu, outras sem relevância. Julgo que não encontrarás uma única folha escrita do topo ao fundo, nunca tive fôlego literário para tanto. Dentro do baú estão, também, dispersas, as minhas caixas de brin11
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cos, sempre gostei de brincos, no dia em que deixei Lourenço Marques atirei as caixas à toa lá para dentro. És, de entre filhos, netos e netas, aquela que sempre me fez as perguntas certas sobre o meu mundo, os meus mundos, os muitos anos entre os pretos, perguntas a que nunca respondi, porque não me parecia bem que conhecesses os meus segredos enquanto eu vivesse. Como sabes, sempre fui reservada em relação a esses assuntos e algumas das histórias da minha história não são, penso, e talvez também tu o venhas a pensar, muito edificantes. Aliás, estes anos recentes, passados aqui, na aldeia onde nasci e aonde regressei, fizeram com que algumas dessas histórias tivessem para mim outra leitura, que me as tornou estranhas, como se as não tivesse vivido. O mundo mudou, o país mudou, o meu mundo acabou. Assim, abrirás o baú, se o desejares, e encontrarás as respostas, mas só no dia do meu funeral, depois que a terra cubra este caixão de madeira de pinho, a chanfuta é desnecessária para guardar o pó em que me tornarei, que mandei fazer e coloquei ao lado do baú, e onde faço questão que me depositem os ossos, um simples caixão de pinho, igual ao que bem serviu aos ossos do meu pai, não quero acolchoados, nem tafetás ou cetins roxos, panejamentos ridículos e inúteis, que os ossos, e as peles gretadas e enrugadas que os cobrem, não sentirão a dureza da madeira, nem o frio húmido que no pinho penetrará vindo da terra. Quero apenas que me ponham em cima dos peitos fartos, de que sempre me orgulhei, e que nunca descaíram, mesmo depois de velha, o livro que está dentro do caixão e que, esse sim, poderás ler quando quiseres, desde já, e depois voltar a guardá-lo no seu cofre, até ao dia em que a terra o cobrirá, junto comigo. Gostaria de ter sido capaz de escrever um livro assim, que relatasse a minha vida africana, não que eu me identifique com a visão aristocrática, algo sobranceira, da autora, nunca deixei de ser uma mulher do povo, mas identifico-me com a sua paixão pelo continente mágico, pela infinita serenidade dos fins de tarde, pela violência da natureza quando explode. E, já agora, peço-te a ti, Carolina, e apenas a ti, que me penteies, sabes bem que sempre gostei de me pentear devidamente, e me ponhas os brincos vermelhos, os de rubi talhados em forma de lágrima, que estão na caixinha de madeira ao lado 12
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do livro, o vestido pode ser um qualquer, não faço questão. Uma última nota, dispenso missa e extrema-unção, mas se filhos e netos as desejarem, assim seja, já que esses rituais são conforto de vivos, não de mortos. Li o livro de um só fôlego, África Minha, de Karen Blixen1, tentando perceber o porquê daquela escolha, para além das palavras explicativas que ela deixara. Conhecia o título, mas nunca o tinha lido, coloquei-o de novo dentro do caixão, de onde só ontem voltou a sair, para horas depois nele ser de novo depositado, sobre os peitos fartos da minha avó, única carne expressiva, que o resto eram tão-só peles rosa-acinzentadas, a cobrir ossos esbeltos que a osteoporose adelgaçara. Olhei o baú, demoradamente, e o rectângulo de tábuas mais claras deixado a descoberto pelo caixão, que marcava, assim, a sua presença, como se baú e caixão fizessem parte do mesmo todo, caixa de memórias vividas pelas carnes e ossos que a outra caixa guardaria. Abri o baú. O levantar da tampa libertou um cheiro intenso, semelhante ao da cânfora, que num ápice inundou todo o sótão, e fez soar as dobradiças metálicas, enferrujadas, que soltaram um ruído rouco, como animal ferido, magoado pela obscena revelação das suas entranhas, não havia cadeado, nem fechadura de chave, apenas uma lingueta encaixada numa argola de cobre reluzente, travada por um pequeno lápis vermelho, de grafite, certamente destinado a papelinhos que não chegaram a inscrever histórias. No interior do baú, centenas de folhinhas de papel sobrepostas, dos mais diversos tamanhos, formatos e cores, lembravam retalhos de tecidos destinados à confecção de mantas de trapos, guardiães de memórias das peles que cobriram, suavidades, asperezas, cheiros a suores, a perfumes. Num impulso, fechei os olhos, mergulhei cuidadosamente mãos e braços naquela fortuna prometida, tacteando, apalpando, aper-
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Karen Blixen, África Minha, Clube do Autor, 2011. 13
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cebendo-me de formas, quadrados, rectângulos, círculos, elipses, sentindo espessuras, texturas, delicadíssimas folhas quais papéis bíblia, outras parecendo grossos cartões de caixas de transporte de uns quaisquer produtos, talvez mangas sul-africanas, ou laranjas do Umbeluzi, de que a minha avó tanto falava. Fui retirando folha aqui, folha ali, olhando-as apenas, sem as ler, como pirata diante do baú das jóias e moedas de ouro na caverna do tesouro, devolvendo-as depois ao baú, que fechei, voltado a meter o pequeno lápis de grafite na argola de cobre. Regressei ao sótão e ao baú dez dias depois, feito o luto que senti como necessário e, propositadamente, simbolicamente, no dia 25 de Abril, dia da Revolução dos Cravos, que determinara, isso sabia-o, o fim da vida africana da minha avó. Eu, Carolina, nascida e criada no Portugal da democracia, democrata convicta, antirracista, anticolonialista, queria confrontar-me com a vida da minha avó Inácia, com o seu passado colonial. Abri novamente o baú, que repetiu os seus sons de revolta, e quedei-me por longos minutos, indecisa sobre a maneira de começar a devassa do meu tesouro. O mais lógico, parecia-me, seria tentar uma ordenação cronológica, dos papelinhos mais antigos para os mais recentes, embora esse caminho tão literal pudesse esbater a surpresa dos conteúdos, caso neles houvesse uma qualquer sequência lógica, como se as vidas seguissem padrões irrecusáveis. Outra possibilidade, mais interessante, seria agrupar os papelinhos de acordo com a textura das folhas, as mais delicadas para os segredos mais íntimos e os amores proibidos, se os houvesse, as cartonadas para os momentos de revolta, recusa, asco. Finalmente, decidi-me a voltar a enfiar mãos e braços baú adentro, agora os olhos abertos, e tirar o primeiro papel cuja textura me sensibilizasse. E assim foi que, surpreendentemente, ao escolher um pedaço de papel cartonado, de bordos ondulados, me deparei com a fotografia da bela Inácia aos dezanove anos, fotografia que já conhecia pois estava emoldurada e colocada numa peanha sobre o pequeno aparador da sala de estar da casa da minha avó, com uma dife14
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rença fundamental, a que agora tinha diante dos meus olhos não estava indefinida como a outra, desbotada, esbatida, amarelecida pelos anos, tão gasta que nunca para ela olhara verdadeiramente. Sobre o aparador havia uma outra imagem da minha avó, da mesma época, também queimada pelo tempo, Inácia vestida de escuro, um tecido com florzinhas brancas, claramente camponesa em dia de ver a Deus, vestido rodado, comprido, deixando apenas visíveis rosto e tornozelos, Bíblia na mão esquerda, certamente imposição da minha bisavó, já que Inácia, isso também eu sabia, sempre tivera aversão a padres e rezas. Graças à chanfuta, a fotografia que tinha na mão mantinha o seu brilho original, e que brilho e que mulher, sapatos de cetim branco de saltos gigantescos, vestido até meio das canelas, de seda branca, brilhante, com florzinhas azuis, justo, cintado, tipo cai-cai, ombros nus, costas nuas, preso por tiras cruzadas atrás do pescoço, fazendo salientar o busto exuberante, a cintura fina, as ancas generosas e bem proporcionadas, claramente um vestido urbano, de moda, dos anos 1920. Os olhos verdes escuros, penetrantes, a sobressair num rosto extremamente belo, emoldurado por uma abundante cabeleira ruiva, encaracolada, penteada ao estilo Greta Garbo, lábios grandes, carnudos, a destoarem das feições finas, batom carmim. Onde diabo uma rapariga de uma pequena aldeia afastada das grandes cidades, onde todos se dedicavam à tecelagem de mantas e tecidos rudes, descobrira tal tecido e tal corte? Certamente nalguma revista da época, ou então fora cópia de encomenda feita à minha bisavó, que nunca conheci, mas que sei ter sido costureira, por alguma senhora fina, veraneante, frequentadora das termas distantes apenas uns 20 quilómetros da aldeia. No verso da fotografia, numa letra desenhada, alongada, miudinha, indecisa, de alguém pouco habituado a escrever, a surpresa maior,
Minha cara e estimada Inácia, é com muita pena que lhe devolvo a fotografia que me enviou, mas é-me totalmente impossível, no ermo onde vivo, em que as raras mulheres brancas são preciosidades, despo15
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Seu atento e eterno admirador Jovelino Torres
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sar uma mulher tão bela. Ao vê-la a descer, elegantíssima, a escada de portaló do paquete João Belo, Belo no cais Gorjão, confirmei a impressão que esta fotografia me deixara e não tive sequer coragem de a abordar. Pedi ao meu amigo Ilídio que a recebesse e consigo falasse. Que martírio seria a minha vida, sempre enciumado pelos olhares cobiçosos de todos os meus conterrâneos.
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Era esta então a fotografia que a minha avó enviara para Moçambique, em 1925, aos 19 anos, e com base na qual um desconhecido lhe mandara o bilhete de viagem para essa colónia, destino frequente de presos, degredados e de mulheres brancas esperançadas em aí conseguir uma vida melhor. Passei quinze dias enfiada no sótão a colocar os papelinhos em pequenos montes, consoante o tipo de papel ou o formato, ou porque exibiam um título, poucos, devo dizê-lo, devendo então ser de especial conteúdo, ou de acordo com a cor da tinta, sei lá, alguns, embora escritos a lápis ainda eram claramente legíveis, tudo isto numa ordenação cujo único critério foi o das sensações que cada um me transmitiu e que procurei, de alguma forma, trazer para as páginas sobre a vida da minha avó Inácia que decidi escrever. Passei os dois meses seguintes a ler cuidadosamente as centenas de papelinhos, mantendo sempre, depois de lidos, o lugar que lhes fora destinado na ordenação inicial e que procurei memorizar para as escolhas futuras que determinariam a minha história de Inácia, consciente de que outra seria, se outras escolhas tivesse feito. Decidi começar cada capítulo com a transcrição de um papelinho. Muito do que escrevi, apesar de inspirado nessas leituras, é inventado, não correspondendo certamente a factos reais, mas, 16
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mais do que tudo, ao que senti, ao que imaginei ao tocar nesses curtos relatos, nessas memórias, e ao lê-los. Não tive preocupações de rigor histórico naquilo que fui escrevendo, nem sequer de exactidão nas datas que indico, quando indico, por vezes, confesso, fiz mesmo alguns ajustes muito convenientes à narrativa. Senti necessidade de incluir referências que, como verão, acompanham o relato, se assim lhe posso chamar, da vida de Inácia, ou, por outras palavras, se tive gosto em fazer consultas, para mim esclarecedoras, admiti que tu, leitor, poderás gostar de a elas ter acesso. Introduzi, quando me pareceu exigível, alguns esboços de mapas, ah! e, por impulso, complementei cada capítulo com comentários que a sua posterior leitura me sugeriu. Penso que a maioria dos pretos que ponho a falar português não o fariam correctamente, alguns não o falariam de todo, mas pareceu-me mais simples que todos falassem português, embora, por vezes com erros grosseiros que tenho na memória, de quando a minha avó se punha, na brincadeira, a falar pretuguês. Admiti, também, que alguns sul-africanos ou rodesianos com quem tu, leitor, te cruzarás, falavam ou entendiam o português, embora não tenha sido esta a opção para outras línguas. Inevitavelmente, tinha de encontrar por onde começar e o texto no verso da fotografia, a referência à chegada da minha avó a Lourenço Marques e ao seu elegante descer do navio para a plataforma do Cais Gorjão, envergando o vestido branco da fotografia, estreito nas pernas, o que terá dificultado, e muito, o já difícil descer uma escada de portaló, deram-me a primeira abertura: Cais Gorjão. Imaginei-a, qual Elizabeth Taylor, de sapatos brancos de salto alto, na famosa descida da escadaria de passadeira vermelha em Cat on a Hot Thin Roof, com o seu vestido branco, esse rodado, os ombros nus, os belos olhos azuis a cintilarem, o Newman indiferente, apoiado nas suas muletas e de copo de whiskey na mão, apenas um senão, o filme é de 1958 e a minha avó desceu para o cais Gorjão em 1926, por uma escadaria metálica, passadeira vermelha por mim imaginada. 17
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Seleccionei, então, de entre os papelinhos, todos aqueles que tinham o timbre do paquete João Belo, cuja imagem, no canto superior direito, me chamara particularmente a atenção pela profusão de bandeirinhas de todas as cores, festivamente dependuradas em cabos, ao longo de toda a silhueta alongada do navio. Peço que sejam condescendentes comigo e, mais ainda, com essa mulher corajosa, de uma força invulgar, que partiu do zero, tudo teve, enfim, tudo o que podia ter tido, e ao zero voltou, revoltada, amargurada, triste, uma tristeza que durou até ao dia da sua morte, embora amaciada pelo tempo e pelo contacto com outras verdades e visões do mundo. Findo o escrito, devolvi todos os papelinhos ao seu relicário de chanfuta, e o lápis de grafite à sua argola, talvez um dia uma filha ou neta minha, se vier a tê-las, queira escrever uma outra história de Inácia.
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CAPÍTULO 2
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Manuel, o bagageiro
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Esta noite, 5 para 6 de Junho de 1926, sábado para domingo, não cheguei a deitar-me, não queria perder os alvores da manhã e a entrada do navio em Delagoa Bay, altura em que senti uma imensa serenidade (escrito em papel timbrado do paquete João Belo)
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Nessa noite, 5 de Junho de 1926, Inácia não dormiu, não chegou mesmo a esticar o corpo sobre o colchão de palha do beliche do pequeno camarote partilhado com três outras mulheres que, como ela, iam para Moçambique para casar. Quatro mulheres muito jovens, sadias, de brancura garantida, a menos de algum gene inconveniente, mas sem manifestação visível, que alguma tetravó tivesse deixado no património familiar, felizmente na altura ainda não havia essa coisa perversa dos testes de ADN, quatro mulheres saídas do interior de Portugal para a colónia do Índico, a pérola do Índico, em procura de uma vida melhor, ou, no mínimo, de alguém que as tirasse da fome, da miséria e do sem horizontes em que viviam e em que, aliás, vivia a generalidade da população de um país pobre e em constantes convulsões. Aos passageiros do paquete João Belo não tinha chegado qualquer notícia do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, ocorrido em todo o Portugal uma semana antes, o comandante do navio certamente recebera informações via rádio, reservara-as para si e 19
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para os oficiais superiores da tripulação, não querendo alarmar os restantes tripulantes, nem os passageiros. Aliás, a 5 de Junho, não seriam obviamente muito claras as informações chegadas ao João Belo sobre o pronunciamento militar de cariz nacionalista e antiparlamentar, diferente de todos os golpes das duas últimas décadas, e que pôs termo à Primeira República Portuguesa. O triunfo do movimento só foi comemorado no dia 6 de Junho, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, com o general Gomes da Costa a desfilar à frente de 13 mil homens, vibrantemente aclamado pelo povo da capital. Tinham, as quatro, Inácia, Jacinta, Lúcia e Cremilde, logo no início da viagem, revelado umas às outras ao que iam, mostrado as fotografias dos futuros maridos e, como se de uma brincadeira séria se tratasse, enfiado-as num saco de pano para depois cada uma tirar uma à sorte, alterando assim, aleatoriamente, os seus destinos, que, na realidade, aleatórios já o eram. Quatro homens, entre os 20 e os 30 anos, que receberiam as respectivas futuras consortes, de aspecto bem menos formal que o então habitual nos homens da metrópole, de qualquer forma fazendo-se fotografar de casaco branco ou bege, de linho, camisa de colarinho alto de goma, chapéu mole, branco ou cinzento, de aba redonda, um deles de gravata larga, de seda azul claro, outro, aparentemente o mais velho, de grande bigode de guias enceradas. Tinham sido eles a pagar os bilhetes da viagem, uma espécie de parceria com o governo central que atribuía a cada uma um pequeno subsídio de deslocação e casamento, inserido nas boas políticas de incentivo à emigração de mulheres brancas para as colónias de Angola e Moçambique, com vista à melhoria e purificação dos genes. Na realidade, cada uma delas voltou a ficar com a fotografia e com o homem que inicialmente lhe saíra em sorte, todos, pelo que escreviam no dorso das fotografias, nascidos na colónia e residentes em quatro locais distintos, Lourenço Marques, Beira, Nampula e Vila Pery, esta a vila do homem a quem Inácia estava destinada. – Estás melhor do que nós, Inácia, pelo que me disseram, Vila Pery tem um clima fresco, muito melhor do que o da Beira, para onde eu vou, que é só calor, humidade, mosquitos e malária. 20
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– Mas o teu homem é mais bonito do que o meu. – Lá isso é, mas não sei se isso é bom. – Porquê? – Atrai as outras mulheres. Inácia sorriu. – Um homem bonito ajuda, principalmente quando está a dormir ao nosso lado, nu, e olhamos para ele. – Tens muita experiência disso. – Não, Jacinta, não tenho mesmo nenhuma, apenas imagino e li um livro em que uma rapariga dizia isso e acho que sim, que deve ser bom olhar para o corpo nu de um homem nosso e bonito, a dormir na nossa cama. – Gostas de ler? – Sim. – Pois, eu bem te vejo, por vezes, no convés, sentada numa cadeira, a ler, com o imediato à tua volta. – Gosta de ler? – Sim, senhor imediato. – Não é vulgar numa mulher, também eu gosto de ler, tenho muitos livros no meu camarote. – Tenho comigo os necessários para a viagem. – Se precisar. – Obrigada! – É um belo homem, o nosso imediato, pedaço de mau caminho, diz-se na minha terra! – Jacinta, não estou interessada numas noites apenas. – Eu não me importava, mas é por ti que ele está caidinho. – Talvez. Simpatizara desde o primeiro dia com Jacinta, uma minhota trigueira, robusta, de pele clara e sorriso franco, cara cheia de sardas, desinibida, desbocada, mulher do campo como ela, conhecedora de vacas, cabras, porcos, coelhos, enquanto que com as outras duas companheiras de viagem, mais reservadas, tivera dificuldade em relacionar-se. – Como é que se chama o homem com quem te vais casar e viver para a Beira? 21
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– Leopoldo. – Nome de imperador, de muito má memória para os pretos do Congo Belga, li isso numa revista que encontrei caída no chão numa rua da baixa de Lisboa, alguém a perdera. – As coisas que tu sabes! – O nome do meu é Jovelino, não sei se ligará bem, Jovelino e Inácia, era bem melhor Manuel e Maria. – Leopoldo, Jovelino, não são nomes vulgares, talvez isso seja bom. – Porquê? – Sei lá eu! – Fazias o quê, lá no Minho? – Tratava do gado, é só o que sei fazer, tratar de animais. – Pois olha, em Moçambique deves ter mais serventia do que eu, disseram-me que há muito gado, eu apenas sei de costura. – Tiraste o 2º ano do liceu, não foi? – Foi. – Havia liceu na tua terra? – Não, era em Leiria. – É perto? – Sim, gostava de ter continuado, ainda comecei o 3º ano, mas o meu pai faleceu, uma cornada de uma vaca, ainda hoje me custa a acreditar, a vaca não era nossa, era do dono de umas terras de que o meu pai era rendeiro, tive de passar a ajudar a minha mãe na costura e a tomar conta do meu irmão mais novo. – Tens um irmão? – Sim, seis anos mais novo. – Eu fiquei-me pela 2ª classe. – De pouco me serviram os estudos, cortar vestidos de mulher, calças de homem, coser à mão e à máquina, não os exige. – Nestas áfricas não deve haver quem saiba cortar e coser vestidos como deve ser. – As pretas andam com panos à volta do corpo, não precisam de vestidos. – Mas há as brancas como nós e os brancos devem usar calças, digo eu, não hão-de andar de tanga. 22
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– Devem ser poucas, as brancas, é por isso que precisam de nós, é a nossa sorte. – Também acho. – Também sei de ervas, lá nas serras à volta da terra onde eu vivia há imensas ervas, a minha mãe ensinou-me a apanhá-las e a fazer mezinhas. – Em África são os curandeiros, também usam ervas. – Devem ser diferentes das ervas de Portugal. – Pois é. – Vamos ver no que dá, em Lisboa, no ano horrível em que lá vivi, o que fiz foi ajudar a minha tia, que é costureira como a minha mãe, a minha sorte foi ter descoberto um sítio onde dançar e descontrair-me. – Sabes dançar? – Sei, mais ou menos. – Pode ser que o teu futuro marido goste de dançar, em Moçambique há muito o hábito de dançar em clubes. – Como sabes? – Contou-me um tio meu, irmão da minha mãe, que esteve no Norte de Moçambique, na guerra, fez parte do corpo expedicionário que foi combater os alemães, ficou prisioneiro e no fim da guerra foi solto, teve de safar-se sozinho e ficou por lá alguns anos. – Regressou a Portugal? – Sim, vive em Lisboa, não gostaste de Lisboa? – Não foi isso, a casa da minha tia é muito pequena, sempre a tropeçarmos uns nos outros, como aqui no nosso camarote, o meu tio era um bruto, carregador de sacos de batatas, muitas vezes bêbado, a querer meter-se comigo mesmo à frente da minha tia, até ao dia em que me apalpou o rabo e eu lhe enfiei uma agulha de crochet numa perna, nunca mais me chateou, mas a partir daí tinha de deixar aquela casa, se calhar até foi bom, tomei a decisão de ir para Moçambique, eu queria outra vida, quero outra vida. – Também eu, Inácia, também eu quero outra vida, uma vida nova, por isso venho encantada e cheia de esperanças. Apoiada na amurada de bombordo, Inácia olhara repetidamente o céu estrelado de uma noite escura, sem lua, mas muito 23
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límpida, aguardara pelo alvorecer, uma bola laranja a subir do mar, a ganhar altura num ápice, como se já farta da noite, e atravessara então o convés para, de estibordo, assistir à entrada em Delagoa Bay, assim lhe chamou o imediato, quando no fim do jantar do dia anterior informou os passageiros que entrariam na baía pelo lado Norte, dado que o canal da entrada sul, embora muito mais próximo da cidade, não tinha calado para o João Belo. – Da amurada de estibordo poderão apreciar a lenta caminhada do paquete pelas águas serenas, esverdeadas, da imensa baía, onde entraremos pelas seis da manhã, hora a que nesta altura do ano nasce o sol, se fosse pelo fim do ano teríamos dia a partir das quatro, quatro e meia, mas nesta altura é cerca de uma hora mais tarde. Estamos na época mais fresca, época dos nevoeiros, a chamada cacimba, se não for espessa permitirá a vista das ilhas e da costa, quer a bombordo, quer a estibordo, podendo mesmo chegar a ver-se crocodilos na ilha situada a meio da foz do rio Incomati. As águas, em Delagoa Bay, são esverdeadas e escuras, pois têm muita suspensão sólida, transportada pelos cinco rios que desaguam na baía, mas principalmente a bombordo, no início do canal, são muito límpidas, é habitual verem-se tubarões, gostam de acompanhar o navio. Habituara-se, ao longo desses trinta dias de viagem, no João Belo, a alguns termos náuticos usados pela tripulação, desde logo pelo imediato que lhe fizera marcação serrada desde que a vira, como se ignorasse ou desprezasse a razão da sua presença a bordo, da sua ida para Moçambique. – Inácia, é assim que se chama, não é? – É sim, senhor imediato. – Não precisa de ser tão formal comigo, chamo-me Cristóvão, o camarote onde viaja é apertado para quatro mulheres, poderei tentar encontrar uma solução um pouco mais confortável para si, sabe, este nosso João Belo pode receber a bordo 340 passageiros e nos camarotes de 1ª classe oferecemos condições de conforto até hoje nunca proporcionadas por outros navios nacionais, os quartos até têm privada.
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Inácia sentiu-se tentada, o uso da privada estava a ser uma das questões mais complicadas para ela, na aldeia havia uma privada na horta atrás da casa e no pequeno apartamento da sua tia em Lisboa também, mas aqui no navio a casa de banho era partilhada pelas mulheres de uma dezena de camarotes, às vezes esperava horas por uma mija, banho era uma vez por semana, com marcação antecipada, desagradava-lhe profundamente, embora suasse pouco, a humidade que sentia principalmente durante a noite nos sovacos, por baixo das mamas, nos genitais. – Porquê para mim? – Para que não chegue a Lourenço Marques com esses lindos olhos verdes marcados pelo sono e pelo cansaço, sabe, a Companhia fez grandes melhorias no navio, hoje é considerado o primeiro de todos os paquetes portugueses, foi construído na Alemanha, depois da guerra passou para os ingleses e o ano passado foi comprado pela nossa empresa. – Estou bem onde estou. – Se assim prefere. – Prefiro. – O que vai fazer uma mulher tão jovem para Moçambique? – Em velha é que não iria fazer nada. – E tão bonita. – Acha-me bonita? – Lindíssima, um espanto de mulher. – E isso é um entrave para uma mulher procurar uma vida melhor? – Não, claro que não, mas porquê África? – Por que não África, por que não Moçambique? – Não é fácil. – Na aldeia onde vivia é que certamente não seria fácil, as coisas só têm piorado, ali não havia futuro para mim e o último ano, passado em Lisboa, em casa de uma minha tia, mostrou-me que a capital não é caminho. – Como assim? – Durante esse ano, aquilo a que assisti foi ao grande afluxo de população dos campos à capital, gente que foge da fome, da misé25
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