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ÁFRICA, Médicos e Memórias
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FICHA TÉCNICA edição: Edições Parténon ® título: África, Médicos e Memórias co-autores: Álvaro Gomes Pacheco; António Manuel Brito de Carvalho; Eva Maria da Silva Santos; Fernando Eduardo Fernandes Reis Lima; Henrique Pereira de Moraes; João Augusto David de Morais; João Pinto Pereira; José Fernando Fontes Tavares Fortuna; Lúcio Coelho; Manuel Gonçalves Valente Fernandes; Manuel Joaquim Antunes Moreira; Maria Teresa de Almeida Matos Leal Gonçalves; Maria Teresa Osório de Mesquita Montes; Pedro Braga Abecasis; Raul de Figueiredo Fernandes; Rui Vaz Osório. revisão: Alexandre Costa; Cecília Sousa; Patrícia Espinha paginação: Alda Teixeira arranjo de capa: Ângela Espinha fotografia da capa: Hospital do Lobito, Angola, gentilmente cedida pela Dr.ª Isabel Ribeiro fotografia da contracapa: Rio Kuanza, gentilmente cedida pelo Dr. Álvaro Gomes Pacheco isbn: 978-989-8845-19-1 depósito legal: 432184/17 Outubro, 2017
© Isabel Ribeiro
publicação e comercialização:
www.sitiodolivro.pt
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NOTA PRÉVIA Quando integrei a comissão organizadora da exposição “O Médico em África: a outra face da medicina portuguesa no século XX” da Secção da História da Medicina da Sociedade de Geografia de Lisboa, não poderia imaginar o mundo de experiências e memórias que iria descobrir. Ao conversar com os vários médicos que viveram e trabalharam em África, nos mais diversos contextos, a maioria bem difíceis, fui conhecendo as suas memórias, guardadas há longos anos e, na maioria dos casos, apenas contadas no restrito círculo familiar e de amigos. No decorrer do tempo, e como se tivessem vida própria, essas histórias foram-se impondo como uma necessidade cada vez mais premente de serem escritas, partilhadas e não mais esquecidas… Assim nasceu este livro, com histórias reais de vários médicos, contadas na primeira pessoa, cada um com o seu estilo próprio, que tentei respeitar e transmitir. As experiências aqui relatadas são diversas, algumas vividas em Angola, outras em Moçambique, Guiné ou S. Tomé e Príncipe. Diversos são igualmente as épocas e ambientes em que decorreram: “no mato”, nas campanhas contra as doenças tropicais, nas cidades, implementando serviços médicos diferenciados e faculdades de Medicina, ou durante a guerra colonial. Em todos estes cenários, os médicos portugueses deram o seu melhor, com sacrifícios e dificuldades que hoje seriam dificilmente aceites, cuidando de todos com a mesma dedicação e profissionalismo, sem barreiras políticas ou da cor da pele. No entanto, os médicos têm sido muitas vezes esquecidos e são raramente reconhecidos na nossa História. Esta é uma simples homenagem à sua vida e trabalho em terras d’além-mar que desejamos sejam lembrados e transmitidos às novas gerações. A coordenadora
ISABEL SILVA RIBEIRO
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AGRADECIMENTOS A todos os autores que me entregaram as suas histórias, algumas já publicadas para o círculo familiar, outras ainda manuscritas e outras mais, contadas de viva voz, agradeço a sua confiança e entusiasmo neste projecto. A muitos outros o meu sincero reconhecimento e agradecimento: Ao meu Marido, Eurico, pela infinita paciência e apoio incondicional. Aos vários amigos, sem cujo apoio este livro não teria sido possível: Helena Homem de Melo, que me apresentou tantos destes colegas. Margarida e José Castanheira pela importante rede de referências a muitos colegas de África e pela cedência da estampa “Enviados do Régulo Gungunhana”. Alda e Leopoldo Matos pelos experientes conselhos e amizade. Pedro Campos pelo precioso apoio “literário” e sugestão do título. Francisca Dionísio e Teresa Moraes, minhas primas, pela preciosa colaboração na transcrição dos vários manuscritos. Ao “Sítio do Livro” pela paciência e profissionalismo com que orientaram esta obra e por terem acreditado nesta edição de “autores”, cujos direitos reverterão para a Associação “Acreditar”.
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Álvaro Gomes Pacheco Nascido a 25 de Setembro de 1945, em Luanda (Angola). Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Medicina de Luanda, em 1971 – primeiro curso totalmente realizado nesta Universidade. Monitor e Assistente Voluntário de Propedêutica Médica e estágio de Prática Clínica no Hospital Universitário de Luanda. Responsável e corresponsável pelos dois hospitais das fazendas da família, numa fase inicial da carreira. Serviço militar no Hospital Distrital do Lobito onde iniciou o primeiro ano de especialidade de cirurgia. Regressou a Portugal em 1975. Especialista em Cirurgia Geral em 1978 (Hospital S. Bernardo – Setúbal). Chefe de Serviço de Cirurgia Geral (1989) e Director do Departamento Cirúrgico do Hospital Santa Luzia de Elvas – 1999. Director Clínico do Hospital de Santa Luzia em diversos períodos Director Clínico do Hospital Ayres de Menezes em S. Tomé e Príncipe (Setembro de 2000 a Setembro de 2001). Pós-Graduações: Cuidados Paliativos pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (2002/2004) e em Gestão dos Serviços de Saúde pela Ordem dos Médicos em 2003. Coordenador de vários projectos de saúde no Alentejo. Presidente de diversas organizações: Liga dos Amigos do Hospital de Elvas, Sociedade Médica dos Hospitais da Zona Sul, Sociedade Portuguesa de Hidatidologia, Mesa da Assembleia Distrital do Distrito Médico de Portalegre da Ordem dos Médicos (1993/1995 e 1996/1998). Desde a sua aposentação da função pública em 2007, é Coordenador Médico do Delta Saúde no Grupo – Nabeiro – Cafés Delta.
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A prestação de cuidados de saúde nas Fazendas em Angola Um testemunho de dois casos vivenciados em meados do séc. XX Localização geográfica As duas fazendas, Roça Salazar e Plantações da Baixa do Cuanza, ficam localizadas no Libolo. Antes da independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, segundo o mapa administrativo vigente na altura, pertenciam ao distrito do Cuanza Sul, cuja capital era a cidade de Salazar (actual Dalatando), sendo Libolo um concelho cuja sede era Calulo (ver mapa em anexo). Actualmente Libolo é um município da província do Cuanza-Sul, em Angola. A sua sede é na vila de Calulo, ocupando a área de 9 000 km2. É limitado a Norte pelos municípios de Cambambe e Cacuso, a Este pelo município de Mussende, a Sul pelo município da Quibala, e a Oeste pelo município da Quiçama. É constituído pelas comunas de Calulo, Cabuta, Munenga e Quissongo.
Mapa de Angola (antes da independência). 9
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Introdução de âmbito administrativo e estratégia politica O aumento da produtividade evoluiu a par do conhecimento das culturas do café e de outras culturas, como o palmar. A adaptação a novas técnicas produtivas implicou a adopção de diferentes metodologias e a construção de novos elementos no espaço das fazendas. Por outro lado, o facto de estas estruturas, compostas por comunidades de milhares de habitantes, estarem distantes dos meios urbanos, obrigou a que procurassem a máxima autonomia e auto-suficiência. Para isso, foram introduzidos equipamentos de manutenção (estábulos, serralharias, carpintarias ou oficinas), de transformação (fábricas de sabão e de óleo de palma) e até de apoio alimentar (padarias, pocilgas, galinheiros, currais ou cantinas). As companhias agrícolas provisionavam deste modo a maioria das necessidades dos seus trabalhadores, não só de habitação, saúde e educação, como de alimentação e vestuário. No que dizia respeito à saúde, até aos finais do século XIX, os serviços de saúde coloniais, isto é, estatais, eram constituídos por um quadro exíguo de profissionais cujo principal trabalho era cuidar do governador e de outro pessoal administrativo de alta patente. Esse padrão de “sistema de saúde” teria algumas melhorias no século XX, resultado das três reorganizações do sistema estatal. Nestas inscrevia-se a imposição legal de companhias privadas, com determinada dimensão, prestarem cuidados de saúde primários e de proximidade. Contudo, manteve-se o conceito de centralização geográfica dos cuidados de saúde na capital ou em cidades costeiras importantes, onde estavam colocados a população-alvo e os funcionários administrativos ou militares. Os trabalhadores e populações locais presentes no “resto” do território eram relegados para o esquecimento ou para a prestação de cuidados básicos por várias missões religiosas (Varanda 2007).
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No decorrer do século XX A Conferência de Berlim representou o início de uma nova era nos projectos coloniais. Com essa conferência, a argumentação, empregue sistematicamente por Portugal relativamente aos direitos históricos, tornava-se secundária. A manutenção de colónias passou a estar relacionada com a ocupação efectiva e gestão adequada dos territórios e populações autóctones. Nesse novo “paradigma” ganharam relevância aspectos ligados à saúde. No final da segunda década do século XX deu-se maior atenção à mão de obra local. Apesar da dificuldade da ciência médica ocidental em lidar com enfermidades locais, a biomedicina tinha entrado no rol de justificações das acções das potências imperiais – Reino Unido, França, Bélgica, Portugal. No caso português a saúde esteve no centro do discurso colonial até ao fim do império, logo importa compreender melhor como foram os investimentos na saúde pública por parte dos diversos actores coloniais ao longo das quase seis décadas sob análise. A legislação relacionada com a temática da saúde publicada pelo alto-comissário Norton de Matos (1921-1924) é indicativa do desenvolvimento frugal verificado desde sua primeira passagem como governador-geral da colónia, na década anterior. A carência de orçamento e de pessoal que os serviços de saúde estatais sentiam na década de 1920 indiciava um cenário que permaneceria até aos anos 50 (Varanda 2012). No primeiro Congresso de Medicina Tropical da África Ocidental, em 1923, em Luanda, as apresentações sobre os serviços de saúde de Angola recorriam a uma retórica elaborada para minorar uma realidade verificável pela colónia. Num raro alerta o chefe dos SSHA (Serviços de Saúde Hospitalares de Angola), doutor Damas Mora, notava que cada uma das cem circunscrições devia apresentar um médico; no entanto, os referidos serviços só conseguiram providenciar uma totalidade de vinte e cinco. Essa situação era replicada com os enfermeiros portugueses, cujo número em falta atingia as quatro centenas de indivíduos, nem escapando a essa problemática os auxiliares de saúde africanos. 11
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O quadro de pessoal europeu e de auxiliares africanos dos SSHA era claramente insuficiente para “ocupar” e lidar com um território tão vasto e com uma população autóctone estimada em 3.500.000 indivíduos (Mora 1924).
Roça Salazar
Titulo de Concessão/Processo nº 156/929 de 22 de Abril de 1935 (original em poder da família)1
Em Angola não era frequente dar o nome de roças a fazendas. Contudo, em São Tomé e Príncipe, era costumeira essa designação de “Roça”. Em termos de linguagem nativa e na região, usava-se o termo “xitaca” para designar pequenas extensões de terreno, o equivalente ao “quintal” usado na metrópole (em anexo, um exemplo neste postal, presumivelmente datado dos finais do século XIX).
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Remissão de Foro datado de 26 de Agosto de 1965 – “Domínio direto dos terrenos descritos
no Titulo de Concessão” – Boletim Oficial nº 37 III Série de 11 de Setembro de 1965. 12
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A génese da palavra «roça» carrega para São Tomé e Príncipe o peso da sua memória e identidade. Do português “desbravar mato”, “abrir clareiras” ou “terreno onde se roçou o mato”, a palavra “roça” deu nome às estruturas agrárias que estiveram na base do desenvolvimento deste pequeno arquipélago, durante o seu ciclo de cacau e café nos finais do séc. XVIII e inícios do séc. XX. Antes de mais é necessário fazer a distinção entre roça de São Tomé e Príncipe e roça do nordeste do Brasil. “Roça”, no contexto brasileiro, significa “terreno de agricultura familiar” usado, por exemplo, para o cultivo da mandioca; já as plantações de cacau, café e de tabaco são denominadas especificamente “fazendas”. Em São Tomé e Príncipe, ”roça” simboliza não apenas a estrutura de exploração do cacau e do café, mas sobretudo o seu modelo de expansão e penetração no território, como uma célula que se “desbrava” no território de geomorfologia complexa, e ocupada pelo “Obô“. Neste sentido, será incorrecto, ou no mínimo impreciso, usar a denominação fazenda para as estruturas agrárias de São Tomé e Príncipe, ou roça para as estruturas brasileiras de produção de cacau e café. 13
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É também em São Tomé e Príncipe que a roça ganha força e imponência, reclamando para si um carácter quase exclusivo pela forma como se amarrou à sua cultura e à sua própria história. No entanto, a relevância da roça não deve ser entendida apenas pelo tipo de exploração e território onde está implantada. A sua especificidade, no contexto da urbe de origem portuguesa, abarca dimensões e características que a tornam ímpar, em comparação com os modelos de exploração agrícola semelhantes. Nesse sentido, e transportando a experiência de S. Tomé e Príncipe (se bem que com necessidades mais prementes, pois é um arquipélago isolado e distante), foi a partir dos anos 40, quer por imposição legal quer por necessidade de mão-de-obra nas fazendas, que aumentou o número de trabalhadores contratados, deslocados do seu local de origem e pelo período de um ano. Isso levou a que as fazendas fossem obrigadas a criar infraestruturas como, por exemplo, acampamentos, sanitários, cantinas e postos de socorros. Assim, passou a ser obrigatório que cada fazenda tivesse um Posto de Socorro, Enfermaria ou Hospital, dependendo do número de pessoal. Devido à falta de profissionais de saúde, as fazendas tinham de maneira geral um ajudante de enfermagem africano e a colaboração de um médico avençado, normalmente o Delegado de Saúde, que aí se deslocava, por norma, uma vez por mês.
Testemunho de uma experiência vivenciada… na Roça Salazar Nasci a 25 de Setembro de 1945 e lembro-me de, com os meus 9/10 anos ver construir o Hospital (por volta de 1954); existia uma tremenda azáfama à sua volta, não só pela novidade e pelo fim a que se destinava, mas principalmente por ter sido construído pelos próprios pedreiros locais, naturais da sanzala (hoje aldeia) do Lucala. O mestre-de-obras era o senhor Oliveira, natural de Vinhais, que trabalhou sempre com o meu Pai, até se reformar e regressar à sua terra. 14
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Por volta dos meus dezasseis/dezassete anos, estávamos no início dos anos 60, e ao contrario do expectado – tornar-me engenheiro agrónomo – decidi ir para Medicina e concordo não ter dúvidas que os cuidados de saúde primários e rudimentares que eram prestados no Hospital me influenciaram! Assim, lembro-me de ver num quarto anexo ao consultório, um aparelho de radioscopia, com o respetivo avental e as luvas. Já não funcionava, mas segundo me contou o enfermeiro Eduardo António Prazeres (ajudante de enfermeiro dos SSHA), o doutor Luciano, Delegado de Saúde da Delegacia de Calulo, ainda fez muitas radioscopias durante alguns anos. Como o Hospital de Calulo, único do concelho e com trinta camas, não tinha aparelho de radioscopia, o doutor Luciano aproveitava aquando da sua visita mensal, ou esporádica consoante a necessidade, para efectuar as necessárias radioscopias. A curiosidade levou-me a tentar saber o porquê da existência de um aparelho de radioscopia num hospital de uma fazenda com sete camas e que dista cerca de 35km de Calulo… Segundo me contou o meu pai, a região do Libolo foi escolhida para receber refugiados alemães, fugidos da II Guerra Mundial (1945 e anos seguintes). Muitos dos refugiados eram licenciados (engenheiros, advogados e médicos) e instalaram-se em pequenas fazendas no concelho de Calulo. Um casal de médicos estomatologistas tinha conseguido trazer um aparelho de radioscopia, mas por razões legais não o podia instalar, nem sequer dizer que o possuía – as denúncias faziam parte do dia a dia da comunidade branca, sinal de um atraso evolutivo. Assim, por conhecimento pessoal e por proposta do Médico Alemão (Dr. Schmit) o aparelho de radioscopia foi instalado no Hospital da Roça Salazar, para servir uma população de cerca de 400 habitantes que viviam numa Sanzala a 3 kms, denominada Sanzala do Lucala (hoje Aldeia do Lucala), assim como cerca de 300 contratados (Bailundos) que viviam nos acampamentos. Após os dois primeiros anos na Faculdade de Medicina da Universidade de Luanda (iniciei no ano 1964/65), isto é, depois de ter efetuado as anatomias (descritiva e topográfica) que me levaram dois anos de dedicação exclusiva, 15
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comecei novamente a ir aos fins de semana para o hospital e a vê-lo de outra maneira: como poderíamos ser úteis no imediato e num futuro próximo?
Nos Recursos Humanos contávamos com o enfermeiro Eduardo Prazeres a tempo inteiro, com um Médico, em princípio uma vez ao mês, e comigo, jovem estudante de Medicina a viver o seu sonho… ser médico! O doutor Luciano, amigo da família, deu-me todo o apoio e incentivo nos primeiros tratamentos de feridas, nas primeiras suturas e no primeiro contacto com doentes. O hospital estava muito bem localizado, num ponto alto e isolado, rodeado de árvores de alto porte e distando cerca de 300 metros do acampamento e da residência principal. Para descrição da sua estrutura, transcrevo fotocópia do original do documento Inventário e Balanço de 1974 (página 23):
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Do mesmo documento transcrevemos, o inventário geral, incluindo material cirúrgico (pagina 33):
O hospital tinha uma pequena farmácia e nela constavam os seguintes medicamentos (documento página 13 ):
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Fazenda plantações da Baixa do Cuanza
Única foto de identificação do álbum pessoal.2
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Aproveito a oportunidade para homenagear e agradecer à minha Mulher (nasceu a 23/
12/1947 e faleceu a 8/2/1982. Mãe dos meus dois filhos, companheira e estudante de Medicina, que me incentivou e sempre acompanhou nesse projecto de vida pessoal e profissional. Bem-haja! 18
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Fotocópia do Título de Concessão (original em poder da Família)
Esta fazenda, pela sua localização privilegiada, na margem do maior rio de Angola (rio Cuanza) e pela grande área que ocupa (4.970 hectares), começou nos anos 50 pela cultura do sisal, do algodão e do palmar e, nos anos 70, da banana. Esta evolução e desenvolvimento obrigaram a uma necessidade de mão-de-obra que ultrapassava a população existente nas duas Sanzalas (aldeias). Estamos a falar de cerca de 800/1000 habitantes nativos que viviam a cerca de 3 a 5 kms. 19
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Assim, nos anos 70, a necessidade de mão-de-obra atingia cerca de duas mil pessoas, sendo a maior parte vinda do sul, os chamados Bailundos (em regime de contrato). Esta evolução obrigou a criarem-se infraestruturas como, por exemplo, mais acampamentos, armazéns, cantinas, postos de socorro/enfermarias, uma sala de aula e uma capela. Foi criada uma pequena barragem com uma vala de irrigação, assim como melhoramentos nas fábricas já existentes.
Bacia hidrográfica do rio Cuanza.
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Sob o ponto de vista da responsabilidade social, estavam-se a dar respostas nas áreas da educação, com a construção de uma sala de aula (futura escola). De salientar que o professor era colocado e pago pelo governo, ficando a cargo da empresa a sua estadia e alimentação. Na área social, a construção de raiz de uma capela veio permitir a realização de missas semanais, autorizada pela diocese. Ainda nesta área, era projectado mensalmente um filme ao ar livre (avença com um animador ambulante). Contudo, a área da saúde não acompanhava esta evolução rápida de crescimento e, por conseguinte, não podia prestar os cuidados primários e de proximidade que se exigiam. Deste modo, houve uma necessidade premente de criar novas estruturas, para responder aos novos desafios.
Hospital das Plantações da Baixa do Cuanza Como nasceu? Dificuldades: • Convencer um empresário a apostar na Saúde; • Não ter percepção das doenças tropicais e suas consequências; • Ter um médico avençado e amigo desde há longa data (estado adquirido de status quo e por imposição legal); A favor: – Ter um filho em Medicina (futuro médico) e outro em Engenharia (futuro engenheiro civil); – Mostrar e provar que os custos em medicamentos e material cirúrgico não correspondiam a um benefício visível e eficaz na saúde dos trabalhadores (ver anexo: transcrição do documento original – Inventário e Balanço das Plantações da Baixa do Cuanza); 21
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– O posto de socorros/enfermaria com instalações mínimas, para responder às necessidades atuais;
– Mostrar com evidência de casos clínicos, de trabalhadores que vinham em contrato e que, tendo passado por aptos pela Delegacia de Saúde, não tinham na realidade condições para trabalhar. Dou como exemplo dois casos de deficit total de visão e outro de deficit parcial. Ou, ainda, um caso de poliomielite e outros de tuberculose pulmonar; 22
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– Propor que, após a minha licenciatura, continuaríamos com o Dr. Luciano como médico avençado. Perante estes factos houve luz verde para avançar. Estaríamos em meados do ano 1971 – licenciei-me em Novembro de 1971. Sem experiência, fui aconselhado a visitar várias missões católicas e protestantes, principalmente para ter conhecimento da estrutura física, funcionamento e adaptação às nossas necessidades. A primeira a ser visitada foi a Missão Católica Feminina de Chicumbi, fundada em 1961, por Maria Javulie e que funcionava com as Irmãs da Congregação de São José de Cluny. Na Humpata, região da Huila, visitei a Missão Católica de São Tiago que foi fundada e inaugurada pelo Padre Sueco, Otto Balmer, em 1962. Em Nova Cintra (Bié) visitei outra Missão sobre a qual passo a transcrever a seguinte citação: “Região muito procurada quando começou o povoamento europeu na década de 20 do século passado. Em 1880 instalou-se na região uma Missão Evangélica Canadiana, a célebre Chissamba. Nela pontificou o médico Dr.Walter Carl Strangway que o povo denominava de Dr. Strângula. Este médico viveu 40 anos na Missão onde prestou valiosíssimos contributos na área de medicina. Fez milhares de operações algumas muito melindrosas. Uma vez que os nomes portugueses em Angola ainda sofrem uma apertada iconoplastia, que repudia a História e tudo quanto seja antigo, é da mais elementar justiça que o nome de Catabola, que continua a confundir-se com o do Huambo, seja substituído por Strangway, homenageando-se, assim, o insigne cidadão e médico Dr. Walter Carl Stangway que deu toda a sua vida minorando as doenças dos Angolanos. É uma homenagem dos angolanos para quem tanto os ajudou no capítulo da saúde.”
Sou testemunho do que lá se fazia, não só na área da saúde, como também na social e humanitária. Na saúde recordo como se podia fazer tanto… com tão poucos meios! Foi uma aprendizagem que jamais esquecerei, principal23
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mente na cirurgia e ortopedia. Foi um adquirir de conhecimentos na área de organização e gestão, que muito me ajudou para delinear futuramente o hospital da fazenda das plantações da baixa do Cuanza. Ao mesmo tempo tive a oportunidade de colaborar com colegas de várias nacionalidades, principalmente espanhóis que vinham voluntariamente por um ou dois anos efectuar estágios, tendo alguns, inclusive, por lá ficado. Na área social destaco o facto de existirem poucas camas nas enfermarias, isto é, no edifício central. A explicação é que os doentes vinham de longe, quer para serem tratados de doenças do foro da medicina tropical, quer para cirurgias, sendo que vinham também acompanhados pela família. À volta do edifício central havia “palhotas” onde se alojavam a família e o doente (excepto se se tratasse de uma doença contagiosa, como por ex. tuberculose e lepra). A família cozinhava e cuidava do doente. Eram ofertados roupa e medicamentos e havia visita diária pelo médico e enfermeiro. Era tudo tão natural e com tempo… que ainda hoje me lembro de quase todos os pormenores, que me deslumbraram para esta arte, que é a Medicina. Na área da humanização, relembro hoje como tão poucos médicos e enfermeiros, com um pequeno laboratório de análises e um equipamento de radioscopia conseguiam fazer tanto… sempre disponíveis e afáveis. Um bem-haja, por tudo o que fizeram e pelo que me ensinaram. Estas experiências vivenciadas durante cerca de dois anos (estágios de curta duração) e os conselhos de médicos da Universidade de Luanda, destacando principalmente o Prof. Doutor João David de Morais e Prof. Martins Correia, levaram-me a fazer um esboço do futuro hospital, mais adequado às necessidades das populações. Simultaneamente, apresentei uma proposta ao meu irmão, no sentido de elaborar o Projeto do Futuro Hospital das Plantações da baixa do Cuanza. Felizmente, temos o projecto (original) e passamos a mostrar a sua estrutura, memória descritiva, localização e alguns pormenores no âmbito social e da humanização, atendendo à cultura das populações nativas.
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Na parte posterior ao hospital, fez-se uma pequena plantação de soja (importada da Alemanha) e no âmbito de um projecto alimentar (aconselhamento do Prof. David de Morais), projecto esse sobre educação alimentar, ensinando a fazer, a partir da soja, por exemplo, leite, pão, croquetes, etc.. O principal objetivo era enriquecer a sua alimentação em proteínas, pois eram muito frequente as úlceras de perna por disproteinémia. Iniciou-se também um projecto com a Shell (companhia petrolífera que fornecia a gasolina para a empresa) no âmbito de um projeto internacional e experimental (Instituto de Pesquisas Sterling – Winthrop de Rensseler New York), de combate a uma parasitose muito frequente na região – a schistosomiase (bilharziose), principalmente devida ao Schistosoma hematobium (vesical). A Shell colaborava com um produto químico (fungicida específico) que se aplicava nas margens do rio, onde as mulheres lavavam a roupa ou as crianças brincavam (ver foto em anexo). Ao mesmo tempo cediam gratuitamente o tratamento – Etrenol injectável (Hycanthone).3
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Revista Instituto Medicina Tropical de São Paulo 13 (1);57-70, Janeiro/Fevereiro, 1971. 29
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