Enquanto Houver Memória

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ENQUANTO HOUVER MEMÓRIA!


edição: Edições

ex-Libris® (Chancela do Sítio do Livro) título: Enquanto Houver Memória (Colectânea de Contos) autor: António Serra Correia revisão:

Sílvia Lobo

Patrícia Alexandra Patrícia Andrade paginação: Paulo S. Resende desenho de capa/contracapa: arranjo de capa:

1.ª edição Lisboa, janeiro 2017 isbn:

978­‑989-8714-99-2 417098/16

depósito legal:

© António Serra Correia

nota: segundo vontade do autor, esta obra é escrita de acordo com a antiga ortografia

publicação e comercialização

www.sitiodolivro.pt


ANTÓNIO SERRA CORREIA

ENQUANTO HOUVER MEMÓRIA! (COLECTÂNEA DE CONTOS)



PREFÁCIO O tempo é, como todos nós sabemos, um factor importante, ou mesmo determinante, na “corrosão” que provoca na nossa mente e sobre determinados factos quando estes chegam aos nossos dias, passados por via oral e de geração em geração. Quando existem registos gravados, quer utilizando os novos métodos e meios tecnológicos, quer os tradicionais, normalmente esses factos chegam aos nossos dias quase inalteráveis, e narrados tal qual o ocorrido. Neste caso concreto a que me proponho, prevalecem fundamentalmente histórias que tenho conservado na memória, nunca editadas, assim o julgo, para que prevaleçam para as gerações actuais e vindouras. Não é o caso, pois infelizmente as novas tecnologias não vão por certo permitir que as novas gerações percam tempo com livros tradicionais. Já nos nossos dias se constata que os jovens, com excepção de uma minoria, não pegam em livros para ler seja o que for. Concretamente esta obra não passa da narração de algumas pequenas histórias que ao longo do tempo se foram

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acumulando na memória, tendo algumas a ver com pequenos episódios vividos na primeira pessoa e outros com alguns familiares, bem como outros ainda que chegaram até mim, contados por outros que por sua vez os já ouviram de outros, e assim por diante. Não é mais que uma viagem através do tempo onde as recolhi separadas em locais e tempos distintos e que consegui memorizar. Daí esta Colectânea de Contos, cujo título “ENQUANTO HOUVER MEMÓRIA”, irá contribuir, suponho, para que estes e outros contos perdurem. Assim, resolvi por bem passá-los para o papel. Para quem se der ao trabalho de os ler, alguns já serão na realidade velhos conhecidos, mas para outros já não será tanto assim. Não me admira nada portanto que porventura alguma destas histórias já seja conhecida por alguém, porque já lhes tenha chegado aos ouvidos algo semelhante, embora ligeiramente diferente num ou noutro pormenor. Algumas mesmo tidas já como anedotas e como tal contadas. São, na sua maioria, “Lembranças de Menino” que, apesar de tudo, vingaram no tempo. Julgo ser interessante divulgá-las, não porque tenham algo de caricato ou mesmo interessante, mas fundamentalmente porque servem, também, para um “avivar de memória” e de pretexto para delas tirar algum proveito, quando os meus netos me pedem por vezes: «Avô, conta-nos uma história.» Tal como a eles as conto, também aqui as descrevo de maneira aleatória e à medida que me vou lembrando delas. Foi a pensar neles, fundamentalmente, que me decidi a escrevê-las. Penso ser perfeitamente natural e já tenho a experiência de alguns anos como escuteiro que fui, que sou e sempre serei, embora afastado há bastante tempo de uma actividade que sempre me fascinou.

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Dessa actividade, tenho bem presente uma cena que por ocasião da realização dos “Fogos de Conselho”, onde todos nos reuníamos à volta da fogueira para podermos analisar com franqueza e justiça, e alegria também, toda a actividade decorrida ao fim de um dia agitado, ou não, e onde tudo valia para o bem comum e se aceitava com verdadeiro desportivismo e sincera cordialidade tudo o que fosse dito ou feito. Todo o processo escolhido para o efeito, fosse em peça de teatro devida e atempadamente ensaiada, pelo conto de uma anedota dita a propósito, por um jogo já mais ou menos conhecido, tudo servia e dependia da arte e do engenho do “artista” ou “artistas”. A cena que tenho presente constava em transmitir uma pequena mensagem ao ouvido do primeiro elemento de uma mais ou menos longa fila de participantes, que era transmitida por sua vez ao ouvido do segundo, depois do terceiro, e por aí fora, até ao último, que tinha por missão transmiti-la a todos aqueles que assistiam ao acto. A risota era geral depois de dada a conhecer a mensagem que fora transmitida ao primeiro e depois de a ouvir transmitida em voz alta pelo último a quem cabia a missão de a divulgar. Nada, absolutamente nada, tinha a ver uma coisa com a outra. É por isso mesmo que quero alertar o leitor quanto à veracidade das histórias aqui narradas, bem como à forma como são apresentadas. Não são outra coisa senão pequenas histórias que o tempo muito naturalmente alterou um pouco, mas que procuro descrever da mesma forma como até mim chegaram. Se são verdadeiras ou não?

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Algumas o serão, mas não posso garantir que todas o sejam. Penso, também, que é o que menos importa. Achei que ficariam bem em “forma de livro” e por isso me decidi. Espero não me tornar maçador e que seja do agrado geral. O Autor

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UMA QUESTÃO DE FÉ Manteigas, finais de 1944, ainda decorria a II Grande Guerra. O povo não vivia em directo os horrores da guerra mas vivia com dificuldades imensas, principalmente com fome. Todo o cantinho de terra lavrável era devidamente aproveitado. José e Maria José, casados havia ainda pouco tempo, tinham o seu primeiro “rebento” com quatro meses de idade, quase cinco, e Maria José resolvera dedicar-se por inteiro às lides de casa e agora de seu filho, enquanto José se entregava ao seu trabalho como assalariado na câmara durante todo o dia e o que dele sobrava era para tratar de umas territas para delas tirar algum proveito para a casa. Tudo parecia decorrer de um modo simples, normal e feliz, até que um dia... Na manhã desse dia tudo decorria como sempre, mas Maria vira-se obrigada a entregar o seu filho aos cuidados de uma sua tia, viúva, e que na altura estava a morar na mesma casa onde seu pai também viúvo vivia desde então.

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Sua tia é que não mudou ou adiou seus afazeres por causa de seu sobrinho-neto. Era dia de levar o tabuleiro de pão amassado de véspera para o forno da Rua Chã, ali perto. Pega na criança e enrola-a no xaile, prendendo a ponta do mesmo sob o corpo da criança para o manter fixo e seguro para disponibilizar as mãos para o que tinha de fazer, isto é, carregar o tabuleiro para o pôr à cabeça sobre uma rodilha nela colocada para melhor o equilibrar. Até aqui tudo bem. Depois de ter o tabuleiro do pão à cabeça, dirige-se para as escadas de acesso à porta da rua, mas a maldita escada, velha e gasta pelo uso, estava também molhada devido ao tempo chuvoso que se fazia sentir. Ao descer o segundo degrau, tendo ambas as mãos ocupadas, uma sob o corpito da criança e a outra a amparar o tabuleiro, escorregou e aos trambolhões só pararam ao fundo junto à porta. A tia gritou por socorro, pedindo ajuda a quem passava e de imediato foram socorridos. Ela apresentava umas ligeiras mazelas, mas a sua grande preocupação era a criança que chorava bastante, mas não apresentava à vista grandes ferimentos que preocupassem muito. Chorava, isso sim, e isso era sinal de que estava tudo bem, seria apenas do susto, tudo levava a crer, mas não. Alguém se prontificou a chamar a mãe da criança que nada nem ninguém conseguia calar. Mas nem mesmo ela, que não demorou em aparecer, o conseguiu, e isso começou a preocupá-la. Alguém se lembrou de levar ambos os acidentados ao consultório do Dr. Isabel e assim foi feito. Depois de ambos devidamente assistidos, a tia voltou a casa e com algumas dificuldades lá conseguiu aproveitar o que foi aproveitável do pão que era para toda a semana e lá o levou para o forno. Quanto à criança, esta merecia maiores cuidados, porque o choro não havia maneira de parar e depois de

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tratada a um pequeno golpe na testa, o médico aconselhou a Maria a levá-la ao hospital da Guarda para lá ser observada de maneira mais cuidada. De imediato partiram e como Maria José antes de casar tinha trabalhado juntamente com sua irmã Rosária no então Sanatório Sousa Martins, foi ter com ela para ambas se deslocarem ao dito Sanatório. Assim fizeram, mas ao chegar depararam-se com algumas ex-colegas que ao vê-las se prontificaram a ajudar no que fosse preciso, já que iria demorar ainda algum tempo para que o médico as recebesse. Entre as colegas que as receberam estava uma delas que cerca de dois ou três anos antes tinha sofrido um acidente de trabalho. Ao fazer a limpeza de umas vidraças do segundo piso de um dos pavilhões, desiquilibrou-se e caiu, tendo originado uma fractura da coluna. Esteve bastante tempo hospitalizada e já ninguém acreditava numa cura e como ela tinha uma grande fé em Nossa Senhora de Fátima, não descansou enquanto não convenceu médicos e familiares para a levarem à Cova da Iria na peregrinação de 13 de Maio. Acreditemos ou não, segundo Maria José e sua irmã Rosária, a dita colega veio de lá curada e pelo seu pé. Foi esta colega que ao ver a aflição em que estava a mãe da criança, que continuava a chorar sem parar, resolve ser ela a pegar-lhe para aliviar a mãe do cansaço que já demonstrava, e, curioso, assim que o fez a criança calou-se de imediato. Foi então que Maria José, ao lembrar-se do que tinha acontecido com ela, lhe pede encarecidamente que peça a Nossa Senhora que interceda por ela e pelo seu filho. Ela disse que o iria fazer, permanecendo com a criança ao colo, que entretanto adormecera, mas que acordou de imediato assim que a passaram novamente para o colo da mãe, recomeçando com o choro.

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Ao ser chamada pelo médico e depois de esta mãe relatar tudo o que acontecera, este resolve mandar fazer-lhe um raios X para detectar lesões internas e ao receber os ditos exames já no dia seguinte, e ao estudá-los, manda chamar a mãe da criança e pergunta com ar acusador: Quando é que disse que a criança sofreu o acidente? Ontem de manhã, sr. Doutor. Vai desculpar-me, D. Maria José, mas o seu filho, segundo os exames que observei, tem duas costelas fracturadas e com uma delas “soldada” sobre uma das outras de tal maneira que só pode ser possível depois de quatro meses após o acidente. Pode explicar-me o que aconteceu de facto? O que lhe posso dizer sr. Dr. é que o acidente foi ontem de manhã e o sr. Dr. Isabel em Manteigas o pode confirmar. Para além disso, o meu filho ainda não fez os cinco meses de idade. Incrédulo, o médico, ainda não convencido de todo, diz-lhe que vá descansada que o menino está bem e o que tem agora é fome. Essa noite tanto mãe como filho descansaram finalmente, mas a mãe não deixara de pensar no pedido que fizera à ex-colega, assim como não sabia encontrar explicação para as conclusões do médico e foi ao pensar em tudo o que acontecera nestes dois dias de tanta preocupação que começou a pesar mais a hipótese de que o motivo da cura do seu filho se devia mais ao pedido que fizera à ex-colega ao pedir-lhe que intercedesse por ele junto da Virgem Santíssima. Maria José era o nome de minha falecida mãe e o seu filho acidentado fui eu, o seu primogénito. Eu acredito no que minha mãe me contou e o leitor acredita se quiser.

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A “CHINITA” Decorriam já os últimos tempos dos anos quarenta, anos difíceis do pós-guerra e numa vila do interior, em pleno coração da Serra da Estrela, mais difíceis eram esses tempos. José e Maria, casados ainda antes de a guerra chegar ao fim, tinham já à data dois filhos, ambos rapazes de idades aproximadas, tendo o mais velho menos de dois anos de diferença do irmão. Contudo, o mais novo dava trabalho pelos dois, e tornava-se quase impossível deixá-lo sozinho, pois pela certa pregaria alguma da qual não tinha ainda a noção do perigo ou do prejuízo que por certo causaria. Não admira, portanto, e segundo consta, que com sete meses de idade se aventurasse já a descer os poucos degraus da entrada de casa, e fugir para a rua, mas não indo para muito longe, por enquanto. Era desde cedo o “terror” lá de casa e a comprová-lo eis alguns dos acontecimentos em que ele era o artista principal. Era costume, naqueles tempos, como nos de hoje, as famílias possuírem alguns animais domésticos que ajudavam na economia familiar e normalmente a viverem no piso térreo das humildes casas do interior Beirão. José

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e Maria não eram excepção, tendo na “loja” (assim se chamava ao espaço dedicado a esses animais) um porquito que iam alimentando todo o ano até à altura da matança em pleno Inverno, acto que inevitavelmente se tornava numa animada festa. Uns coelhos que procriavam bem, ao ponto de se tornarem importantes no tocante ao fornecimento de carne quando não havia dinheiro para outra, e ainda uma cabra que se “encarregava” de fornecer a família em leite, tão necessário, principalmente quando havia crianças para alimentar, para além de um cabritinho de vez em quando para variar a ementa. Mas havia mais. Entre eles, a família adquirira uma gatinha riscada de um cinzento natural. Era nova quando foi lá para casa e foi crescendo, brincando com todos os seus donos sem excepção, principalmente com as crianças, que eram quem mais atenção lhe dispensavam e que iam surgindo, ao ponto de a família atingir os seis membros que a compunham. Para além dos dois já mencionados, nasceram ainda mais dois com a mesma diferença de idades entre si. Mas o segundo continuava a ser o “terror”. Nada mudara nele, apesar de já ter dois irmãos mais novos que ele. Certa vez, tendo a família acabado de almoçar, eis que alguém, da porta da rua, reclama pela presença de Maria, que de imediato acedeu ao chamamento, deixando a sós os pequenos à sua sorte. Tinham acabado de almoçar e era costume, ao fim de cada refeição e ao levantar da mesa, recolher todas as sobras que ficavam nos pratos para depois serem depositadas num caldeiro de zinco a fim de nele ser preparada a vianda do porco. Cabia a Maria essa tarefa, mas como se ausentara de momento, o petiz, o único dos quatro irmãos que herdara o nome do pai, e a quem todos chamavam de Zezito, entendeu por bem ser capaz de executar tal tarefa.

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Sabia perfeitamente como a mãe fazia tal serviço e vai daí, pega no primeiro prato que leva até ao caldeiro para verter o seu conteúdo no dito cujo. Mas... eis que, ao inclinar o prato para dentro, este lhe escorrega das pequenas mãos, caindo no fundo do dito caldeiro nesse momento ainda vazio. O ruído provocado pela queda do prato no fundo provocou um som completamente estranho e ao qual o pequeno achou imensa piada. Não esteve com meias medidas, volta à mesa, pega no segundo prato e desta vez atira com ele para o fundo com toda a força que tinha, caindo sobre o que já lá estava. O barulho não foi igual quando o segundo prato se escaqueira sobre o outro, que não ficou em melhor estado. Ainda foi a vez de mais um, ou dois, e seriam todos, se entretanto a mãe não chegasse a tempo de o evitar. Não escapou de umas palmadas e de um castigo, mas para ele isso era como se se tratasse de uma nova diversão. De outra vez, estando todos reunidos na sala ornamentada com muito pouco, dadas as dificuldades monetárias da família, onde ao centro estava uma mesa simples de castanho e também de forma muito simples decorada, tendo sobre si uma toalha de linho bordada cujos cantos pendiam a meio de cada um dos lados da mesa. Era Verão e por isso sob ela não se encontrava a tradicional braseira que tinha por missão aquecer o ambiente em dias de um maior rigor de frio em pleno Inverno. Era por isso campo convidativo para uma brincadeira diferente e não tardou que estando ele na brincadeira precisamente debaixo da mesa, achasse graça àqueles bicos da toalha que lhe encobriam a visão para o lado de fora, não deixando que tivesse uma visão completa dos restantes membros da família. Tendo necessidade de resolver esse problema, aproxima-se de uma das pontas e puxa por ela. É claro que ao fazê-lo as restantes sobem em vez de

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descer como aquela. Acha piada e com a maior da desfaçatez puxa a dita de uma só vez e tudo o que de momento se encontrava sobre a mesa estatela-se no chão, provocando ainda mais cacos. Escusado será dizer que a mãe ao ver tamanho prejuízo só lhe restou puxar-lhe por um braço e dar-lhe uma sova. Não tão grande como tinha vontade, porque as palmadas que lhe dava magoavam-na ainda mais e a prova disso eram as lágrimas que de imediato lhe cobriram o rosto. Juntou os cacos de todas as peças quebradas e mais chorou ao ver que algumas delas faziam parte do enxoval acumulado ao longo dos anos. Algumas muito queridas para ela, pelo valor afectivo que lhes tinha. Mas ele tinha um aliado que o não largava em tempo algum, estivesse em casa ou na rua, ao ponto de acompanhar todo aquele que por qualquer motivo pegasse no petiz ao colo para o levar onde fosse preciso. Era a “chinita”. Era uma verdadeira paixão que a gata tinha por ele, pois os maus tratos que ele lhe infligia seriam mais que suficientes para, em determinados momentos, lhe deitar as unhas de fora e magoá-lo de verdade. Puxava-lhe o pêlo ou o rabo, beliscava-lhe as orelhas, pisava-a e ela apenas emitia um ligeiro miar de dor, afastando-se por momentos, mas voltando depressa ao lugar do sacrifício. Se fosse a hora de dormir, lá ia ela acomodar-se junto da camita dele. Se estivesse à mesa, lá ia ela aninhar-se junto do banco que ele ocupava. Não o largava em ocasião alguma. Os irmãos não tinham idade para se aperceberem do tão estranho comportamento da gata de quem gostavam muito, mas aos pais esse comportamento já fora notado, mas não encontravam explicação para o “fenómeno”. De certa forma até lhes dava jeito, pois para saberem o paradeiro do filho,

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que nem sempre respondia ao seu chamamento, bastava chamar pela “chinita” para o ficarem a saber de imediato. Foi o que aconteceu certa tarde de Verão, quando Maria, distraída com seus afazeres domésticos, não deu pela ausência dos dois. Ao princípio não deu grande importância ao facto, mas depois começou a estranhar dada a já longa ausência de ambos e começou a ficar preocupada. «Deve andar por aí, não muito longe», pensou ela, mas pelo sim, pelo não, resolveu sair porta fora e começar a chamar por ele, mas não obtinha resposta. Entrou no forno comunitário mesmo defronte da porta perguntando por ele a todos os que lá se encontravam nas suas lides, mas ninguém sabia dar-lhe uma resposta que a deixasse mais calma. «Penso que era ele que ia rua abaixo, já faz algum tempo», diz-lhe uma sua vizinha e amiga, já conhecedora também das diabruras do Zezito. Maria não demorou então a sair e pôr-se a caminho e deu de caras com uma cena que a enterneceu ao mesmo tempo que a deixou também mais calma. O Zezito já conhecia bem o caminho até casa do avô que ficava ao fundo da rua e deve ter sido por esse motivo que ele se aventurou rua abaixo. Talvez devido à sua pouca idade e curioso como toda a criança que começa a conhecer o pequeno mundo que a rodeia, com tudo se distraía e tudo era motivo para uma brincadeira. Talvez por essa razão, ao ouvir o grunhir de um já avantajado porco que deitava o focinho para fora da meia porta da loja onde se encontrava e através do buraco ao fundo da mesma, quis saber do que se tratava e não o conseguindo de outra forma, começou a espreitar através do mesmo buraco de onde vira surgir o focinho do porco. A “chinita”, vendo tal cena, começou a colocar-se de modo a tapar o buraco para proteger o seu

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pequeno dono de possíveis danos que o porco lhe pudesse causar, mas ele, deitando-lhe as mãos afastava-a sempre sem qualquer gesto de ameaça por parte desta, e foi após algum tempo, cansado de tanto insistir, que se deitou junto da porta e com a cabecita defronte do dito buraco e se deixou adormecer. Foi nessa posição que a mãe os foi encontrar, mas reparando no tal pormenor que muito a sensibilizou. A gata, vendo que ele dormia tendo a sua cabecita junto do buraco, onde de vez em quando o porco aparecia curioso, resolveu deitar-se entre a cabeça dele e o buraco, não permitindo que o porco lhe causasse qualquer dano. Este, ao tentar e sentindo o contacto do pêlo da gata, de imediato se retirava de novo para o interior. Maria ficou estáctica e sem reacção e deu graças a Deus por ele ter naquele momento um amigo e aliado, como mostrava ser aquela gata que era ao mesmo tempo a sua companhia e guarda. Pegou então nele levando-o ao colo para casa onde continuou, embora por pouco tempo mais, o seu sono, mas a gata, essa não o deixava por nada. Maria ao ver tal dedicação de um animal pelo seu dono, que tanto mal lhe fazia, afagou-a com carinho e não a enxotou, deixando-a estar junto dele, pelo tempo que entendesse ou até que o seu pequeno dono deixasse. A partir daquele dia, aquela gatinha passou a ser mimada como membro da família e ela agradecia à sua maneira, afeiçoando-se a todos. Morreu pouco tempo depois da família se ausentar para África à procura de uma vida melhor, apesar de continuar a ser bem tratada pela pessoa de família que a acolhera.

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A PRIMEIRA VEZ Manteigas era, nos finais do século XIX, verdadeiramente uma terra isolada do resto do mundo, não porque na realidade o fosse geograficamente falando, mas porque nesse tempo a maioria dos seus habitantes vivia do que na terra se produzia e dela poucos precisavam de sair. Era uma vila de pequenos proprietários de terra, havendo alguns que mantinham ao seu serviço alguns jornaleiros que a trabalhavam a troco de uma certa parte em géneros nela produzida. Trabalhavam à jorna apenas pelo período de tempo necessário, alternando com o pastorício de gado, tornando-se pastores por conta de outrem e levando o gado para terras longínquas, dando origem às tradicionais transumâncias para terras onde houvesse abundância de pasto enquanto a neve dos rigorosos Invernos de então cobrisse os ricos pastos da serra. Era também uma terra onde a indústria de lanifícios estava bem vincada. Não admira portanto que a maioria dos seus habitantes nela vivesse durante longos anos sem de lá sair, com excepção dos ditos pastores e de todos aqueles que por serem um

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pouco mais abastados, mais instruídos em termos de escolaridade, ou até negociantes que por inerência dos seus negócios tinham de sair inúmeras vezes. Nem mesmo aqueles que eram operários fabris na indústria de lanifícios tinham por hábito sair da terra que não fosse por força de motivos de maior importância. Alguns havia que de lá saiam por motivos profissionais e outros que procuravam noutras paragens o emprego de que precisavam para seu sustento e de todos os seus, e que na sua terra não tinham. Faziam o percurso inverso ao daqueles que lá se mantinham. Frequentemente encontrava-se alguém, principalmente entre os mais velhos, que nunca saíra lá do “fundo do alguidar” e muitos deles sem qualquer tipo de instrução ou escolaridade. O seu mundo era tudo o que os seus olhos viam e portanto bastante limitado por falta de uma linha de horizonte mais longínqua que as serranias circundantes não deixavam ver. Para lá delas, era o “nada”, o vazio. É claro que este modo errado de pensar, que o mundo não passava apenas daquele espaço que seus olhos viam, se foi dissipando à medida que o progresso foi chegando, nem que fosse às “pinguinhas” e cada vez menos pessoas havia a pensar que assim era. O exemplo que vou descrever não é assim tão antigo como o desses tempos, mas no contexto actual, bastante antigo já. Em tempos, houve uma certa viúva, de idade já avançada, que fazia parte do limitado número daqueles que assim pensava. Nunca tivera necessidade de lá sair e recusava a todo o custo qualquer convite formulado por seus filhos ou netos com o intuito de a levarem a dar um passeio para conhecer as terras mais próximas, outros lugares que ela nunca vira,

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classificando-os de “doidos”, que o que queriam era enganá-la, etc. Mas lá vem o ditado que diz que “Deus escreve direito por linhas tortas”. A dita senhora que era “rija que nem um pêro” nunca estivera doente ao ponto de ser necessário um internamento, um exame mais minucioso, uma consulta com qualquer especialista, nada que qualquer dos médicos lá da terra não fosse capaz de resolver, ou mesmo que qualquer “mesinha” por si conhecida não resultasse. Até que um dia aconteceu nada encontrar que resolvesse o seu problema de saúde. Alguma vez teria de ser a primeira e infelizmente para si e para os seus, esse dia tinha chegado. A doença dela obrigava a que fosse levada com alguma urgência até à cidade da Guarda para ser observada no Sanatório por um especialista. Um dos filhos e netos tiveram de inventar pretextos muito fortes e válidos a seus olhos para a convencer da necessidade de a levar e muito trabalho tiveram para a meter na camionete da carreira com destino à Guarda. Partiram então e a senhora instalada num dos lugares à janela da camionete lá ia deitando o olhar para toda a paisagem que ia surgindo, deixando-a visivelmente admirada e perturbada também. Não tardou que passado algum tempo chegassem à freguesia mais próxima, distante apenas a cinco quilómetros sensivelmente, denominada de Sameiro. Depois de uma breve paragem para receber mais alguns passageiros que tinham o mesmo destino e depois de saber que estavam numa terra de que sempre ouvira falar, mas que julgava ser diferente e também localizada bem mais perto da sua terra. Ao reparar que depois de partirem de novo, a paisagem nova para si, não terminava mais, a senhora solta um

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brado de admiração em voz bem alta que era impossível não ser ouvida e notada por todos os passageiros: «Ai meu Deus! Não pode ser verdade!» O filho que a acompanhava, aflito, pensando que algo de mal lhe estava a acontecer, segura-a pelos ombros, faz com que se sente de novo no seu lugar e pergunta: Então minha mãe, que se passa consigo? Sente-se bem? Não te aflijas, filho. Eu estou apenas admirada. Mas com o quê, minha mãe? – Insiste, em saber, o filho que a ia mantendo no seu lugar. É que eu nunca imaginei que o mundo fosse tão grande! Não houve um único passageiro que se risse ou zombasse da senhora e o filho com o olhar que lançou a todos, apenas quis pedir desculpa pela ignorância da velhota, mas não precisou de abrir a boca para proferir qualquer palavra. Talvez não fosse o único naquela camionete a ter na família alguém igual ou parecido e que como ele passava por casos idênticos. Até ao destino apenas se dignou a ser o cicerone e o guia para elucidar a mãe acerca de tudo o que ia vendo e descobrindo. Indirectamente havia mais alguém que se ia enriquecendo de conhecimentos ao ouvi-lo.

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A FORJA DO TI’ JOÃO Teria eu talvez uns dois ou três anitos e lembro-me que meu pai estava entregue aos cuidados de uma pequena porção de terra, concretamente de um quintal vedado de onde tirava algum do proveito que lhe dava a terra. Uma vez por outra, resolvia levar-me com ele, mas na minha inocência só o atrapalhava. Como não havia qualquer trânsito automóvel, coisa bastante rara ainda e muito menos naquele lugar, que era apenas de passagem para peões, meu pai lá me dizia que fosse brincar para o exterior, sabendo antecipadamente que eu indo, não corria qualquer risco. Ali bem perto, tendo apenas de permeio o tal caminho que por vezes se tornava intransitável dada a enorme porcaria que as pessoas por ali deixavam ao aliviar-se das suas mais básicas necessidades, pois naquele tempo ainda não havia saneamento básico de qualquer espécie, e do outro lado funcionava uma oficina de um ferreiro que de tudo fabricava para a lavoura ou até para arreios para os animais de trabalho. De picaretas, pás e enxadas a todo o tipo de arreios, foices, pedoas, ferraduras ou machados, tudo ali era feito de novo ou concertado.

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Era para lá que eu me dirigia e ali ficava horas a ver o ti’ João a bater sobre o ferro em brasa depois de retirar a dita peça escaldante de uma forja onde mantinha bem ateadas as brasas de carvão mineral à custa de um enorme fole em pele que abria e fechava sob o impulso de um pedal também por ele movido. Ia admirando como, pacientemente, batendo agora de um lado, logo do outro, desta ou daquela maneira, ia dando a forma desejada à peça com uma habilidade de profissional. Por vezes lá aparecia alguém para ferrar de novo o seu cavalo ou burrito, e lá ia ele com um enorme avental de couro para satisfazer o seu cliente, arrancando as ferraduras gastas, quando as havia, ou para lhe colocar umas novas. Havia ali bem ao lado uma nascente de água bem fresquinha que corria incansavelmente para um tanque junto do qual eu passava algum tempo olhando para a superfície da água calma o suficiente para nela ver o reflexo do azul celeste ou das nuvens brancas lentamente arrastadas pela brisa, como se fosse num espelho, e eu era como se estivesse voando com elas com a sensação nítida de nada ter sob meus pés. Acordava desse torpor assim que meu pai se abeirava de mim e me dizia: Anda, filho. Dá-me a mão e vamos para casa que a mãe já está à nossa espera. Trocava algumas palavras ainda com o ti’ João ou eventualmente com mais alguém presente no momento e lá seguíamos em direcção a casa, que não ficava longe dali. Apenas ao cimo da rua.

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O FORNO DA ROCHÃ Creio que todo o manteiguense conhece o forno comunitário da Rua Chã (ou Rochã?). Foi numa pequena e humilde casa junto ao dito forno que meus pais viveram e onde eu e todos os meus irmãos nascemos. Foram poucos os anos ali vividos, porque as contingências da vida não permitiram mais, mas não foi por isso que deixei de memorizar algumas passagens ali vividas por mim e todos os meus. A casa, como já disse, era simples e humilde, não tendo mais que duas divisões. A porta de entrada, mesmo defronte a uma janela lateral do forno, tinha assim que se passasse para além dela três ou quatro degraus em granito seguidos de um pequeno patamar em madeira por onde se tinha acesso a uma sala com soalho também em madeira. Tinha duas janelas, uma à direita e pouco utilizada por meus pais e outra mesmo em frente à entrada da mesma. Ainda eram daquelas que tinham um assento de pedra, defronte um para o outro, uma vidraça aos quadradinhos que abria em forma de guilhotina e a sobrepor-se por dentro duas portadas em madeira

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rusticamente trabalhada que se fechavam com a ajuda de uma tranca que se prendia pelas pontas em dois socalcos cavados na pedra, um de cada lado. Na parede do lado esquerdo abria-se outra porta que dava acesso ao único quarto de dormir, o qual tinha à direita outra janela igual às da sala e sobre uma porta que da rua dava serventia a uma loja a todo o tamanho da casa e onde meu pai guardava algumas, poucas, pipas de vinho, alguma lenha e outros pertences e ainda um pequeno espaço com um gradeado e uma cancela onde meu pai guardava uma cabrita que o acompanhava para todo o lado durante o dia caso o serviço a isso permitisse e era a única fonte de leite que possuíamos. Voltando ao piso superior, logo após o patamar de entrada as escadas continuavam até à cozinha a todo o tamanho da casa e toda ela sob telha. A porta que a ela dava acesso ao cimo da escada raramente se fechava e lembro que mesmo defronte havia uma pequena divisão que servia de dispensa e ainda uma torneira que nos fornecia água canalizada. Ao lado desta, uma janela em forma de “águas furtadas” que dava sobre o telhado em telha de meia cana segura aqui e ali por pedras para que o vento as não levantasse quando soprava mais forte. Dela tínhamos então uma agradável vista sobre os telhados das casas contíguas até ao adro da igreja de Santa Maria e mesmo parte do Valazedo, pequeno largo à entrada da vila, logo ali ao lado. Era a divisão da casa mais utilizada, servindo para além de cozinha também de espaço de lazer por ser mais ampla e desafogada. Para além disso o rigor dos Invernos a isso nos obrigava para nos aquecermos ao lume da “lareira” que não passava de uma fogueira constantemente acesa sobre umas lajes em pedra e onde minha mãe confeccionava as refeições utilizando as tradicionais panelas de ferro de três pés. Ao

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centro pendiam de grossa travessa de sustentação do telhado umas correntes em ferro onde por vezes se suspendia um caldeirão de preparação da vianda para o porco que uma vez ou outra meus pais criavam na loja para nossa alimentação após o abate do mesmo no pino do Inverno. Mas é do forno que quero falar porque dele tenho algumas recordações de criança e que nunca mais esqueci. Lembro, por exemplo, a ansiedade que sentia depois de me sentar sobre o parapeito da janela à qual trepava por dentro, já que por fora era para mim muito alta, durante o tempo que demorava uma fornada de pão e tudo porque estava sempre à espera que alguém me desse um pouco de pão de trigo que eu adorava e porque em nossa casa era um luxo raro. Recebia essa oferta na maioria das vezes por parte de minha prima Olívia ou da senhora Estrela, sua vizinha no Rossio. Adorava o momento em que o sr. Ricardo chegava com o seu carro de bois carregado de lenha para o forno, fosse de carqueja, esteva, giesta ou qualquer outra. Ia esperá-lo quase sempre ao cimo da rua no cruzamento da rua da igreja com a rua das Obras por onde se ia ter a casa de minha avó paterna que vivia na Rua da Carreira no Eirô. Rara era a vez em que o sr. Ricardo, que era também nosso vizinho, não pegasse em mim e me colocasse no cimo da carga de lenha para gozar aquele pouco espaço que restava à boleia e que me deixava tão contente. Havia um senão, mas isso vos contarei mais adiante. Agora só vos quero dizer que não passava de um esgoto a céu aberto. Naquele pequeno largo juntava-se por vezes a miudagem das redondezas e enquanto as raparigas se entretinham a jogar “à péla” com uma pequena bola de trapos ou couro, os rapazes entretinham-se com outro “campeonato”, que consistia em apurar quem deles seria capaz de fazer sair pela chaminé

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do forno um maior número de folhas secas apanhadas no chão e provenientes da lenha que ardia no forno para se dar início a mais uma fornada. O fumo escapava sobre a porta do forno por uma grande fenda e em grande velocidade e por aí atirávamos o punhado de folhas secas que apanhávamos do chão. Depois era o correr desenfreado para a rua para as vermos sair em grande velocidade pelo topo da alta chaminé. Aqui quem ganhava eram normalmente os mais altos, que podiam chegar melhor à fenda por onde escapulia o fumo, mas à parte disso o contentamento e a algazarra que fazíamos era quase sempre igual e era uma sã alegria quando víamos que o vento ajudava à festa, quando soprando mais forte levava as folhas para longe ou fazia que demorassem mais tempo a cair indo parar por vezes bastante longe. Para mim e meus irmãos o forno era quase uma segunda casa. Entrávamos e saíamos sem constrangimentos mesmo que naquele dia não se encontrasse lá qualquer pessoa de família, aliás, entre vizinhos éramos sempre como se de família fôssemos. Aos sábados o forno desempenhava para grande parte de nós uma função bem diferente e não menos agradável ou mesmo apetitosa. O fim da tarde representava um momento muito especial quando as senhoras se dispunham a aproveitar a temperatura branda do forno para nele meter o seu tacho ou panela contendo feijão ou carne a cozer lentamente e durante toda a noite. Já sabíamos que no domingo, a seguir à missa tínhamos um almoço diferente e em família. E que agradável era o cheirinho que daquele forno nos vinha até às narinas sensíveis durante toda a noite e até ao retirar dos tachos e panelas na manhã seguinte! Pois é! Foram momentos mágicos aqueles que foram vividos em tão pouco tempo e que me marcaram. Houve

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outros, muitos mais os vividos por mim e por todos aqueles que moravam nas redondezas. Não era só o forno da Rua Chã o marco e o ponto de encontro para nós. Aquele pequeno largo era para nós o nosso minúsculo mundo onde nos sentíamos seguros e “em casa” e nele muitas transformações se deram. Lembro-me vagamente de nele ser construída a nova casa do sr. Aguinaldo com a sua torre característica e fora do vulgar onde outrora havia uma velha taberna. Ao canto e pegado a uma das paredes da dita casa, uma larga porta que mais parecia um portão por onde se entrava para casa de nossos vizinhos e amigos sr. Manuel Bidom e família, que tinham dois filhos, o Zé Rui e a Teresa. Não há na minha mente muito mais de que me recorde da minha terra natal que não tenha sido ali vivido no largo da Rua Chã e do forno com o mesmo nome. Dali saí com destino a Angola, tinha seis anos de idade, e só lá voltei anos mais tarde já com 19 e não precisei de guia para me levar até lá. Nos tempos que correm quando posso ir a Manteigas rara é a ocasião e o pretexto de qualquer coisa que por ali não passe e sinta a nostalgia de outros tempos ao olhar para o forno sempre de porta fechada e para a casa onde nasci sem saber quem é o seu dono e quem lá mora. O rego, esse desaparecera definitivamente e ainda bem.

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O PERIGO DOS FOGUETES Ainda nos tempos que correm em qualquer terra deste nosso País, de norte a sul, se fazem algumas festas onde o sagrado se confunde com o pagão, mas cumprindo escrupulosamente as já longínquas tradições. Não conheço terra, aldeia, vila, cidade ou simplesmente lugar que durante o ano não tenha pelo menos uma e Manteigas não era diferente das demais. Não era portanto excepção. Sendo o mesmo agregado habitacional composto por duas freguesias, é natural e salutar que ambas procurem para si a organização e realização da festa mais bonita e alegre. Mas nem sempre essas festas tiveram o desejado ambiente salutar de uma compreensível rivalidade. Cada uma querer e procurar que a “sua” festa seja a mais bonita é natural, desde que essa rivalidade não degenere em algo mais violento e reprovável e tempos houve em que isso, realmente, não era bem assim. Terá sido essa uma das razões para existirem duas bandas de música e para além delas outras coisas “a dobrar”? Não sei, nem isso vem ao caso agora. O que vos quero contar foi um caso que decorreu de forma um pouco anómala,

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acidental, que por força das circunstâncias podia ter decorrido bem pior do que decorreu, felizmente. Ora acontece ainda nos dias que correm que festa sem fogo-de-artifício não é festa completa, mas nos nossos dias há restrições a ter em conta dado às cautelas a que os responsáveis estão obrigados para garantir segurança máxima. No tempo em que decorreu não havia esses cuidados. Decorria, no caso, a festa do Senhor do Calvário na Freguesia de Santa Maria, em pleno mês de Agosto. A procissão tivera já o seu termo e procedia-se à oferenda dos melhores cabazes e tabuleiros, alguns deles trabalhados com alguma nota artística e que eram entregues à melhor oferta depois de algumas voltas à volta do coreto situado a meio do terreiro entre a Capela do Senhor do Calvário e a igreja e onde o povo se aglomerava não apenas para fazer os seus lançamentos ao tabuleiro ou cabaz preferido, mas também para ouvir a sua banda de música a tocar belos temas, fossem marchas militares ou outras, depois de devidamente instalados no seu coreto, para que toda a gente os visse a actuar. Os foguetes, esses eram lançados por alguém escolhido pela sua experiência ou habilidade e estrategicamente colocado em cima de um alto muro do outro lado da rua mesmo sobre uma fonte de água fresquinha que ainda hoje lá se encontra. A fonte do Picão. Nesse ano calhou a meu pai tal tarefa. Nunca tivera qualquer dificuldade de maior, mas naquele ano aconteceu. Os foguetes eram lançados uns a seguir aos outros depois de ateado o rastilho com a beata de um cigarro sempre aceso para o efeito e muitos dos presentes lá os seguia com a vista durante o seu trajecto ascendente, incluindo eu próprio. Até que acontece o inesperado.

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Um dos foguetes, depois de ateado, “resolveu” deixar de subir e de repente volta para trás, vindo a estatelar-se no chão e na base do muro onde meu pai estava para efectuar os lançamentos. Ao aperceber-se do perigo, meu pai dá o alerta para que todas as pessoas colocadas mais próximas do local fugissem, pois corriam perigo se o dito foguete rebentasse próximo de qualquer um deles, e ao fazer isso, ele próprio recua de modo a que ficasse a coberto pelo muro logo acima do local onde ele caíra. Mas... há sempre um “mas”, não tinha reparado ainda que quase agarrado às suas calças estava o meu irmão Zé que fugira de ao pé de nós e à atenção de minha mãe para ir ter com ele para ver de perto o dito lançamento de foguetes. Na inocência dos seus dois, quando muito três anitos, não recuou para fugir, ficando à beira do muro completamente exposto ao efeito da explosão e mesmo sujeito a cair para o tanque da bica de água, logo abaixo de seus pés. Só depois da explosão meu pai dá conta dele porque o sente chorar e a tapar a cara com as mãos. Num impulso puxa por ele e depois de verificar que tinha algumas queimaduras, felizmente ligeiras, nas mãos, cara e braços, coisa de pequena monta para além dos seu calções novos com alguns buracos provocados por algo que os tenha queimado, acalmou. Para meu pai foi o fim do lançamento de foguetes e nessa festa em particular ninguém mais se encarregou da tarefa. Regressámos de imediato a casa para que, fora de todo o bulício causado, pudéssemos fazer o balanço dos acontecimentos. O que se concluiu foi de pouca importância, felizmente, pois ninguém ficara ferido, apenas chamuscado. Meu irmão depois de tratado, lavado e vestido com outra roupa, cedo

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voltou às suas brincadeiras do costume e próprias da sua idade, mas meus pais, esses é que não ganharam para o susto. Que eu saiba, nunca mais voltei a ver meu pai entregue a tal tarefa e se o voltou a fazer não deixou de tomar as devidas precauções para se assegurar que mais ninguém era exposto ao perigo.

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O CHAPÉU DE PAPEL

Meados do ano de 1949, Agosto, talvez. O mundo, embora eu não fizesse ideia disso, passava dificuldades originadas com a II Grande Guerra, e agora que já terminara era tempo de reconstrução. Toda a ajuda às populações mais afectadas era sempre bem-vinda, e o nosso País, embora não tivesse participado de forma directa nessa guerra, era um dos mais necessitados no aspecto humanitário. Toda a população, de uma forma geral, passara muita fome e necessidades de todo o género. Tudo era racionado, segundo relatos dos mais velhos. Lembro-me então de ter aparecido em Manteigas uma “espécie de ajuda” na forma de produtos lácteos, suponho que por intermédio da Cruz Vermelha Internacional, não sei precisar, de produtos da agora conhecida a nível mundial marca NESTLÉ. Esses produtos eram na sua maioria leite em pó e farinhas lácteas, distribuídas às famílias mais carenciadas e com determinado número de filhos, através das farmácias locais.

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Nesse tempo, o meu agregado familiar já era composto por cinco pessoas, meus pais, eu e mais dois irmãos, tendo a minha irmã mais nova cerca de dois meses de idade. Não me recordo já se meus pais foram de alguma forma ajudados, mas lembro-me de ter recebido um chapéu de papel em forma de três bicos, colorido com várias cores, tendo de ambos os lados a palavra NESTLÉ. Fora-me oferecido por um primo meu, então empregado na conhecida farmácia “Braulio”, mesmo ali à esquina do largo da Rochã onde morávamos. Quanto a mim, estava felicíssimo, como era natural, e não era apenas eu como outros mais que tinham recebido também o “seu chapéu”. Demonstrávamos a nossa alegria correndo uns atrás dos outros e comparando os nossos presentes uns com os outros. O meu tinha já o meu nome nele escrito por minha mãe, a qual me advertira que assim eu ficaria a saber qual era o meu para que por qualquer motivo não fosse trocado. Certo dia aparece por ali uma prima minha chamada Adelaide, alguns anos mais velha que eu e que já não tinha “direito” a receber um, devido à sua idade, e como é natural, também ela quis participar nas nossas brincadeiras e, sem dar por isso, “rouba-me” o chapéu, coloca-o na cabeça e começa a desafiar-me para ver se eu era capaz de lho tirar. Correndo atrás dela, logicamente eu não seria capaz de a agarrar para lho tirar, mas tentei a tal ponto que a dado momento quase o consegui, porque ela tirara-o da cabeça, segurando-o apenas por uma das pontas e desafiando-me para que corresse atrás dele. Na verdade eu consegui, mas apenas tinha conseguido segurar por uma ponta e na corrida o chapéu rasga-se quase em dois. O meu mundo ruíra naquele instante. Desatei num choro sentido e magoado, pois o meu lindo chapéu estava quase

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em dois e só não fora rasgado por completo porque naquele momento o largara. Minha prima entretanto fugira e eu desgostoso fui para casa para o mostrar a minha mãe na esperança que ela arranjasse solução para o consertar. As mães nestas idades são sempre a nossa salvação, o nosso socorro, a nossa esperança, aquela em que confiamos cegamente e minha mãe naquele momento demonstrou isso mesmo. Depois de me acalmar com a esperança de que voltaria a brincar com o meu chapéu, pegou nele, deu-lhe uns pontos com agulha e linha, preparou uma cola à base de amido de batata que usou para nele colar por dentro umas tiras de papel pardo. Tive de esperar pelo dia seguinte, dando tempo a que secasse, para voltar a brincar com ele e sempre que saía para a rua espreitava à porta para ver se minha prima andava por perto, ela ou qualquer outro mais velho que eu, não fosse o caso de voltar a acontecer algo idêntico. Sei que o dito chapéu ainda durou bastante nas minhas mãos, mas meu irmão cedo se encarregou de o destruir à mais pequena distracção da minha parte.

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