diálogos improváveis

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FICHA TÉCNICA

título: diálogos improváveis. histórias de lugares sem tempo. contos

autor: Victor Marques dos Santos

edição: Edições Vírgula® (Chancela do Sítio do Livro)

paginação: Paulo Resende

arranjo de capa: Carolina Quirino

Lisboa, maio 2024

isbn: 978-989-8986-83-2

depósito legal: 528037/24

© Victor Marques dos Santos

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publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

À saudosa memória de meus pais, Laura e Geminiano.
À eterna saudade da Mariana.

Ao Alexandre e ao Frederico.

Ao Daniel e ao Francisco.

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PREFÁCIO

Todos os livros têm uma história, porém, nem todos têm prefácio. Existem, no entanto, inúmeras justificações pertinentes para a elaboração de um prefácio. Por exemplo, a oportunidade de esclarecer o leitor em relação a características específicas da obra, de o informar quanto às causas e circunstâncias peculiares que estiveram na sua origem, descrevendo a história da relação entre o autor e a obra, ou entre o prefaciador e o autor, a revelação de pormenores desconhecidos mas interessantes e, eventualmente, importantes sobre o processo de elaboração do texto, ou a ideia de que, se o prefácio for escrito por outra pessoa que não o autor, poderá representar um valor acrescentado, que enriquecerá a obra. Mas talvez a razão principal para a existência de um prefácio seja o simples facto de fazer parte integrante da sua história.

Este livro não é excepção, tem uma história, e esta inclui um prefácio. O que é, de facto, excepcional é a história do seu processo genético. Numa abordagem descritiva simples, reconhecemos facilmente a pertinência da justificação plausível para esta determinante excepcionalidade. Com efeito, Diálogos Improváveis surgiu de um conjunto de circunstâncias particulares. Teve a sua origem na convergência de vários textos de proveniências diversas, naturezas diferentes e abordagens muito diversificadas. A par destas características, verifica-se a pluralidade temática

dos textos reunidos, que encontraram a sua identidade própria numa posição comum relativamente a uma perspectiva, que torna possível reconhecer a tendência vagamente surrealista, mas cujo processo interactivo resultou na criação de formas autónomas, de conteúdos ficcionados e de uma personalidade específica.

A diversidade textual determinou a complexidade do processo de selecção e ordenamento dos conteúdos, Pretendeu-se construir uma lógica coerente, consistente e que permitisse superar a diversificação de temas, criando a possibilidade de articulação entre vários textos.

Todos estes factores estiveram entre as causas que afectaram as várias fases da elaboração determinando, entre outras consequências, as sucessivas alterações, bem como o consequente atraso na respectiva publicação.

O autor solicita e atrai a colaboração do leitor, de várias formas. Talvez a mais aliciante seja interpelando-o em situações de dissonância cognitiva expressas em atitudes de intolerância da ambiguidade que constituem como que um convite tácito, ou uma sugestão latente ao leitor, para que invente soluções e participe na resolução da problemática que envolve o protagonista.

O autor desenvolve, assim, uma tentativa experimental inovadora, que coloca o leitor perante uma construção sui generis que integra textos de géneros diversificados no seu conteúdo e significado, nomeadamente, textos de reflexão crítica, fragmentos de textos de ficção e de não-ficção, não-sequenciados, mas integrados e articulados formando um conjunto de passagens tematicamente relacionadas que são, pelo menos, parcialmente autobiográficas.

Será, eventualmente, possível, se não mesmo provável, que o leitor se questione em certos momentos, sobre se está a ler ficção pura, e se terá de procurar noutros contos, as passagens ou fragmentos que lhe permitam atribuir sentido ao que está a ler. Preview

Poderá identificar a narrativa com a descrição biográfica de uma realidade vivida pelo protagonista, ou vivenciada pelo próprio autor, que pode adaptar o protagonista a uma autobiografia, utilizar apenas o nome como pseudónimo, ou ainda, encontrar um perfil heteronómico para moldar o seu personagem.

O livro coloca os leitores perante dinâmicas muito variadas. Transporta-os às experiências que os marcaram no plano cognitivo, revisita processos de aprendizagem que, algures no tempo e no espaço do seu passado vivencial consciente, determinaram as suas perspectivas e enquadramentos ideológicos, religiosos e doutrinários que influenciaram as decisões sobre as suas escolhas, limitaram as suas alternativas, condicionaram as suas interpretações e que monitorizam, controlam e manipulam as suas capacidades de selecção, as suas atitudes, comportamentos e posicionamentos.

Neste sentido, poderemos considerar que o leitor se apropria do texto. A ordem, aparentemente aleatória, dos textos liberta o leitor da sensação latente de estar perante uma sequência imperativa, inevitável, imposta pelo autor no sentido de o orientar para um entendimento pré-determinado do texto, condicionando assim as suas eventuais interpretações, determinando a frequência e a intensidade do recurso à técnica da “suspensão temporária da convicção” que decida aplicar. A capacidade de escolha permite-lhe estabelecer múltiplas e variadas sequências Preview

Na prática, o leitor é confrontado com as consequências concretas das suas escolhas e decisões. A sua identificação dependerá dessa articulação que o torna participante activo, e cuja lógica narrativa, coerência e consistência estarão sempre dependentes das variáveis das suas decisões quanto à forma, à perspectiva, aos alinhamentos, às sequências, às alternâncias, às continuidades e descontinuidades, ao ruído e aos silêncios.

de leitura, imaginar histórias, idealizar contextos, atribuir significados, formular interpretações diferentes para cada texto ou sequência renovada, e de criar conteúdos personalizados para os espaços em branco de uma construção literária inacabada, ou inventando as peças e fragmentos em falta para os espaços vazios de um puzzle incompleto, que aguardam a atenção, a curiosidade, a imaginação criativa e a capacidade de projecção inspirada com que o leitor descobrirá e preencherá esses espaços, terminando a construção a partir da sua própria imaginação e fantasia.

O subtítulo Histórias de Lugares sem Tempo refere as hipotéticas consequências da desconstrução da realidade concreta, da desestruturação do tecido social e da desagregação do fenómeno humano decorrentes da supressão da constante tempo enquanto elemento da matriz de referência. Acentuando a relatividade potencial, dimensional e física da natureza humana, os vários textos assinalam os inerentes limites das capacidades de acção individual e colectiva, autonomizando-os dos acontecimentos associados à pandemia em relação às dimensões de enquadramento do espaço / tempo / movimento / existência vivencial.

Neste sentido, os vários textos constituem incursões ensaísticas sobre temas variados, em espaços intemporais diversificados situando-se, por vezes, num registo de transição ou coexistência mitigada entre a ficção, a prosa poética e o ensaio crítico reflexivo. O conjunto inclui textos que alternam reflexões sobre questões do quotidiano actual, com descrições vivenciais recentes, muito diversificadas, ou sobre temas menos tratados. Alguns textos remetem para tempos e vivências anteriores, muito recuadas, outros, para episódicos efeitos colaterais à pandemia, mas inequivocamente relacionados com a mesma e decorrentes do processo de mudança apelando, por vezes, a uma certa criatividade ficcional.

No entanto, o sentido e a finalidade das Histórias dos Lugares sem Tempo transcendem os objectivos referidos. De facto, as Histórias pretendem estabelecer uma envolvência contrastante com os Diálogos Improváveis, colocando-os em destaque em temos de realidade efectiva. O silêncio, as pausas e as descontinuidades presentes nas situações concretas abordadas nos textos das Histórias, não deverão ser interpretados como espaços de separação entre os elementos dos Diálogos Improváveis, considerados fantasiosos e afastados da realidade pelos processos da mudança transformacional em curso. Esses intervalos espácio-temporais devem ser perspectivados e entendidos como expressões do contraste entre as duas formas alternativas de estar no mundo e na vida, em espaços e tempos inequivocamente condicionados pelos efeitos incontornáveis da realidade social moldada pela pandemia. evidenciando a diferenciação entre os tempos antigos, anteriores ao acontecimento, e o futuro anunciado pelo dealbar de um “hoje, aqui e agora”. Enquanto factor determinante das características assinaladas, a fluência temporal denuncia a proximidade inevitável de um complexo trânsito paradigmático. Neste contexto, parece tornar-se admissível considerar Diálogos Improváveis. Histórias de Lugares sem Tempo em termos de consequência, efeito colateral e expressão concreta do fenómeno pandémico.

victor marques dos santos . Bom Sucesso, 13 de Novembro de 2023.

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“Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.”

pedro tamen

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Um Lugar sem Tempo

Poraqui vamos existindo fascinados pela mudança súbita, inesperada, acelerada. Perplexos perante o novo paradigma, surpreendidos pelos efeitos do fenómeno, deslumbrados pela transformação cujo significado, dimensão e alcance não percebemos, alheados das suas verdadeiras causas, atónitos perante a extensão das suas consequências, entrando numa nova era, assistindo ao fim do ciclo, registando a desagregação de um mundo antigo mas ainda tão próximo, que era o nosso, e testemunhando a fragmentação de tempos passados e de memórias que se esboroam à medida que procuramos retê-las por entre recordações datadas. De um dia para o outro, sem percebermos de todo, o que está a acontecer, damos por nós integrados como sujeitos passivos, numa nova realidade, estranha, diferente daquela a que chamávamos nossa, e passamos a viver numa nova circunstância que não construímos e em cuja criação não participámos, mas que altera a nossa forma de estar e de existir. Não percebemos bem a natureza nem a origem do fenómeno não identificado, no qual participamos agora, sem apelo nem

agravo, sem referências de apoio e enquanto sujeitos passivos, sem conseguirmos vislumbrar a nova lógica de um processo evolutivo a que, até então, chamávamos vida e que o tempo tornou transformacional através da aceleração globalizada de uma complexidade crescente que nos afasta progressivamente de um ontem irrecuperável.

De repente, vemo-nos a navegar uma deriva cujo rumo não traçámos, definida segundo critérios inventados e estabelecidos por alguém que não conhecemos. Sem mais nem menos, damos por nós alterando atitudes herdadas de gerações remotas, modificando comportamentos intrínsecos, quebrando tradições perdidas no tempo, esquecendo formas de relacionamento humano originárias de épocas ancestrais, respeitando novos procedimentos, obedecendo a outras normas e cumprindo protocolos procurando responder ao desafio imperativo, determinado pela situação criada por entidades anónimas. Todas essas diferenças alteram de forma aleatória as nossas referências de campo, as dinâmicas do movimento, a matriz da dimensão física, espacial. Procuramos recuperar essas referências entre os saberes dos antigos, mas apenas conseguimos relembrar o que aprendemos ontem. Ainda reconhecemos o nosso lugar de origem, mas perdemos o sentido da distância e do tempo, que parece ter parado.

Prosseguimos por caminhos desconhecidos, trilhamos veredas estranhas. No entanto, e apesar de tudo, não perdemos o rumo. Continuamos a manter uma percepção correcta da nossa posição relativa, em termos dos espaços geoculturais e geopolíticos que integramos. E então, pouco a pouco, a intuição diz-nos o que está a acontecer. Permite-nos começar a enchergar o que está a mudar e a perceber que a alteração não é de sistema nem de processo, não é apenas substantiva, envolve agora também, Preview

natureza, forma e conteúdo. Desta vez é uma mudança de paradigma, sem regresso ao passado.

A partir de agora, a alteração do contexto exige a obediência estrita às novas regras de gestão do new normal. Por uma característica intrínseca programada no código genético dos organismos vivos, procuramos preservar a espécie, garantir a sobrevivência que, na prática e em última análise, depende da vontade aleatória que ainda nos resta e nos mantém empenhados no acto de viver.

Desta vez, porém, participamos nos processos de experimentação, enquanto matéria viva moldada segundo parâmetros que fazem oscilar a Humanidade entre a robotização total e tendencialmente definitiva das relações humanas, e uma inteligência artificial generativa que define estratégias, aponta objectivos, impõe comportamentos e toma decisões superando a capacidade humana de intervenção consequente, substituindo-se à vontade dos seus criadores.

Empenhados em conhecer os objectivos e finalidades definidos pelos promotores do processo, procuramos agora a sobrevivência, sacrificando a capacidade humana à consciência da realidade inescapável de uma coexistência atribulada, que admite a morte dos participantes como consequência potencial entre os resultados experimentais aceitáveis. Participamos na qualidade elementar de matéria humana, num registo diferente dos anteriores, numa condição de categoria experimental que se caracteriza pela ausência de alternativas, pela total incapacidade de escolha ou, em última análise, por um limitado poder de decisão, condicionando definitivamente o alcance das atitudes, a extensão e os limites comportamentais dos indivíduos.

Torna-se difícil admitirmos a presença inequívoca dessa referência invisível, mas incontornável a que chamamos tempo,

e que exerce o domínio sobre a existência humana moldando e controlando em absoluto as vivências privadas. Os acontecimentos sugerem, porém, que poderemos continuar a acreditar nesse factor imaterial, intangível, misterioso, mas cuja constância assegura a protecção das nossas vidas. É esse factor temporal que agora nos deixa maravilhados com o inesperado convite ao acolhimento de uma perspectiva de mudança, mas que também nos permite resistir-lhe quando, apesar de a conhecermos melhor, não a entendemos e não a aceitamos como alternativa.

Reconhecemos, então, o limite inequívoco da nossa capacidade de decidir. Honrando valores e princípios que transcendem gerações na potenciação de meios de uma sobrevivência tangencial possível, rejeitamos a perspectiva em nome da Humanidade, recusando-a como alternativa da vida, como sendo um lugar sem tempo, porque no nosso agora, tal como “naquele tempo”, “viver” continua a ser “a melhor coisa do mundo”.

A Tempestade

Naquele fim de tarde, a escassa luminosidade que entrava pelas vidraças mergulhava a sala numa penumbra suave. A luz provinha da claridade mortiça de mais um dia cinzento, em que os raios de um sol invisível denunciavam a sua presença com fraca convicção. O mar encapelado reflectia o céu plúmbeo. As ondas enormes, salpicadas de carneirinhos brancos, rugiam fustigando com violência as escarpas e a muralha, num movimento sem fim. O vento uivante daquela invernia rigorosa e longa, contorcia as ramagens das árvores, desenhava redemoinhos harmoniosos com as folhas caídas e entrava pelas frestas das portas e das janelas, fazendo esvoaçar as cortinas. Era assim, sempre que a nortada soprava forte, arrastando nuvens pardacentas, e a humidade tornava o ar espesso e pegajoso. De pé, junto a uma das portadas que davam para o terraço, António olhava a tempestade. O seu pensamento andava muito longe dali, mas o sentido estético prevalecia sempre, fazendo-o desviar a atenção quando, como agora, observava, fascinado, os desígnios caprichosos e insondáveis da natureza.

Naqueles dias, nada parecia correr de feição, e o mau tempo também não ajudava. Projectava-se com violência sobre a velha casa, tornando insuportável aquele ambiente tempestuoso que parecia não ter fim. António passou em revista tudo o que lhe tinha acontecido recentemente, e chegou à conclusão que a única coisa boa que os últimos tempos lhe tinham trazido, fora o êxito do lançamento do livro e as críticas favoráveis que recebera. Mas desde então – e já tinham passado vários meses –, nada mudara relativamente ao vazio de inspiração que atravessava, e que sentia agravar-se com o passar do tempo. Esse vazio e a ausência de perspectivas inspiradoras eram, sem dúvida, os grandes responsáveis pelo seu estado depressivo. Os amigos andavam preocupados. Conheciam-lhe bem essas fases em que a inspiração parecia ter-se esgotado ou desaparecido definitivamente, fazendo-o entrar num estado de desespero angustiante. Não era a primeira vez que lhe acontecia passar longos períodos em que não escrevia uma única linha. Desta vez, porém, o caso parecia ser realmente grave. Havia longos meses que António não contactava com ninguém. Resolvera sair de circulação, na esperança de que os amigos o esquecessem. Porém, o resultado da tentativa foi provocar, exactamente, o efeito contrário. Os amigos gostavam da sua companhia e ressentiam-se da sua ausência. A justificação que ele lhes dava, ao fim de todo aquele tempo, era a mesma de sempre: queria poupá-los à sua depressão. Preferia estar só, a fazê-los terem de ouvir os seus lamentos e de aturar o seu mau humor.

– Há quanto tempo não escreves? O que aconteceu à tua proverbial inspiração? – perguntavam-lhe eles, de vez em quando, apesar de saberem que aquelas perguntas o fariam sentir-se mal consigo próprio. Mas a intenção era boa, pretendiam apenas demonstrar-lhe um genuíno interesse pelo seu estado de

saúde e, ao mesmo tempo, tentavam incentivá-lo a recomeçar. Ele não gostava de abordar o assunto, mas tinha que conviver com os amigos, sujeitando-se inevitavelmente à sua natural curiosidade.

– A minha inspiração desapareceu, – respondia ele. E rematava com uma graçola, na esperança de que os colegas se rissem e mudassem de assunto: – Devo tê-la arrumado no congelador, – concluía ele apressadamente, para não ter que prolongar a conversa.

Sozinho na sala silenciosa e fria, contemplando o temporal que, a julgar pela fúria das ondas, não dava sinais de passar tão depressa, António percorreu, de novo, todos os meandros da sua vida. Terminado o inventário dos recursos, analisadas as hipóteses plausíveis, identificadas as alternativas viáveis e ponderadas as mais rebuscadas soluções, António avaliou o ponto da situação, procedendo a um penoso balanço sobre a sua existência. Frustrado pelos resultados do exercício, constatou mais uma vez, que não encontrava nada de novo, para além da habitual angústia e do crescente desespero.

Poucos minutos depois de ter concluído aquela desoladora jornada introspectiva, António afastou-se da janela, saiu da sala e dirigiu-se à cozinha. Apetecia-lhe um chá forte e bem quente. Ao aproximar-se da porta, ouviu um som familiar e reconheceu a chiadeira da porta do frigorífico. Entrou na cozinha e notou a iluminação que saía do interior do frigorífico projectando um triângulo de luz no chão de pedra rugosa, irregular, múltiplas vezes centenária. António parou e fechou os olhos por uns momentos, tentando afastar aquela estranha visão. Mas quando os abriu, verificou que a área iluminada aumentava gradualmente, o que significava que a porta se estava a mover. Alguns segundos mais tarde, a dimensão do triângulo de luz parou de crescer, a chiaPreview

deira deixou de se ouvir, e a porta ficou totalmente aberta, sem que ninguém lhe tivesse tocado.

António aproximou-se do frigorífico, perscrutou atentamente o interior do compartimento dos congelados e vislumbrou, disfarçada por entre caixas de pronto-a-comer diversificado, o que parecia ser uma embalagem de pizza, já encetada. O tempo tinha-se encarregado de acelerar o estado de degradação da tampa, e não deixava perceber a natureza do conteúdo. Como teria aquela caixa, ido ali parar? Talvez a empregada a tivesse guardado, inadvertidamente. Ele tinha a certeza de nunca ter reparado nela, por estar meio escondida e, noutra circunstância, teria continuado a passar-lhe despercebida.

Ignorando o frio, António meteu a mão no congelador e retirou a caixa sobre a qual, se tinha formado uma fina película de gotículas geladas. Limpou parcialmente a tampa, abriu-a e confirmou o que pensara. A embalagem estava quase vazia, e o que restava do conteúdo tinha, desde há muito, ultrapassado o prazo de validade.

Inesperadamente, aquela caixa e o seu conteúdo meio utilizado traziam-lhe à memória vestígios de uma antiga situação inspiradora, que ele vivera muitos anos antes, e que entretanto se perdera no tempo. Eram recordações que ele preferiria ter esquecido mas que, agora, vinham ao seu encontro sem lhe pedirem licença, independentemente da sua vontade. António pensou que, afinal, estava bem mais próximo da verdade, quando dizia aos amigos que a inspiração devia estar arrumada no congelador.

Mas agora não percebia o que estava a acontecer. Que forças teriam provocado aquele curioso e estranho fenómeno? António sabia que nunca as conseguiria identificar nem, muito menos, explicar. Ninguém acreditaria nisto, pensou ele, e perguntou-se se Preview

não estaria a sofrer dos efeitos colaterais da quarentena alucinante que, entretanto, evoluíra para um confinamento sem fim à vista.

António decidiu proceder à elaboração de uma estratégia que lhe permitisse gerir a sua relação com a realidade controversa daquele ambiente. Decidiu que não contaria a ninguém aquele inusitado episódio. Se o fizesse, arriscar-se-ia a provocar alguma perplexidade sobre a sua lucidez e a suscitar dúvidas quanto à sua capacidade cognitiva, implicando ter de ouvir os habituais comentários dos amigos, sugerindo-lhe que ajustasse a medicação.

António questionou-se sobre as causas prováveis da estranha ocorrência. Decidiu que o fenómeno aparentemente inexplicável, não podia ter acontecido por acaso. O estranho episódio teria de ter um significado, uma explicação. Na sua perspectiva, poderia ser interpretado como um sinal a sugerir-lhe uma solução concreta, a indicar-lhe um caminho. E nesse instante, a sua intuição segredou-lhe que, percorrendo esse caminho, talvez encontrasse a verdadeira inspiração.

O pensamento não lhe dava tréguas. Seria possível identificar um nexo de causalidade entre a abertura da porta do frigorífico e o efeito psicológico que a tempestade lhe provocava, deixando-o deprimido e despertando-lhe a necessidade de encontrar no chá quente, um elemento de conforto sucedâneo e uma forma de compensação afectiva, obrigando-o a ir à cozinha naquele momento? Seria isto apenas um efeito secundário da falta de exercício intelectual, servindo de escape à sua imaginação exagerada? António afastava, assim também, a hipótese de se encontrar perante uma situação de perda transitória da capacidade de percepção cognitiva.

Havia, porém, outras questões que na perspectiva de António, e por maioria de razão, se tornavam mais pertinentes. Quais

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