Uma Volta ao Mundo

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Rolando Pires Teixeira

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Rolando Pires Teixeira

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O autor, com uma longa carreira profissional de Advogado de sucesso, teve sempre a paixão das viagens, que realizou das mais diversas formas, nomeadamente, à boleia, a acampar, por conta própria, em circuitos turísticos, com a família ou sozinho. Presentemente, com mais tempo livre, fomenta essa paixão de uma forma ainda mais intensa, muito embora e naturalmente, os seus níveis de exigência tenham aumentado. Nas páginas deste livro, dá-nos conta das suas vivências durante uma viagem de volta pelo mundo, ao mesmo tempo que procura relatar de forma rigorosa e objectiva episódios marcantes relacionados com os locais que visitou. Através das suas palavras, viajamos também por notáveis lugares de eleição, um pouco por todo o mundo, desde a Península de Valdés a Bora Bora, desde a Ilha de Páscoa a Petra ou desde Cochim a Sydney e trazemos à lembrança personagens tão diferentes como, Afonso de Albuquerque, Eva Perón, Catarina de Bragança , Pablo Neruda, S. Francisco Xavier e muitos outros. Entre maravilhas naturais e artísticas, percorre e apresenta perante os nossos olhos e sentimentos, mais de duas dúzias de locais, obras e eventos declarados pela UNESCO como Património da Humanidade, ao mesmo tempo que nos permite conhecer alguns episódios marcantes da história universal, em particular da história portuguesa. Não se trata apenas do livro de uma viagem, já que a viagem foi sobretudo o meio que permitiu ao autor embrenhar-se na história, arte, cultura e geografia de muitos povos, que nos procura apresentar enquadrados em princípios e valores humanistas e universalistas. Como diz o autor, viajar é viver muitas vidas.


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FICHA TÉCNICA edição: edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: Volta ao Mundo – Apontamentos autor: Rolando Pires Teixeira capa: Ângela Espinha revisão: Alexandre Costa; Mafalda Falcão paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, Dezembro 2017 isbn: 978-989-8867-16-2 depósito legal: 434176/17 © Rolando Pires Teixeira

publicação e comercialização:

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Por opção do autor a obra está redigida sem a aplicação do Acordo Ortográfico.

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DIA 1, 8 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA, BARCELONA Nascer do Sol: 08h19 – Pôr-do-Sol: 17h38 Tempo: Sol Temperatura mínima: 11º C – Temperatura máxima: 19º C Mar: Agitado Todos a Bordo: 17h30 – Partida: 18h00 Próximo destino: Arrecife, Ilha de Lanzarote, Canárias (1107 milhas marítimas)

Madruguei para apanhar o meu vôo. O dia estava cinzento, com chuva e frio, e esta é uma daquelas ocasiões em que vemos as vantagens de ter um aeroporto dentro da cidade de Lisboa. Para além da riqueza que proporciona à cidade, é muito aquilo que se ganha em tempo, comodidade e poupança nas despesas. É uma hora e meia a duração do vôo entre Lisboa e Barcelona, pelo que cheguei num ápice. Na aproximação do avião a terra, para a aterragem, dos ares consegui identificar perfeitamente o navio em que ia embarcar, acostado no porto, com o Mediterrâneo muito azul, espraiado na sua frente. Aproveitei para actualizar a hora a partir de Espanha, mais uma hora do que a do meridiano de Greenwich. O mau tempo deu a vez a um sol que se diria primaveril, com uma temperatura de 19 graus. Tudo normal, e apanhei um táxi para o porto. Em relação à última vez que estive em Barcelona, mudou a forma de calcular a tarifa para quem parte do Aeroporto. Em vez do valor progressivo do taxímetro, agora é praticada uma tarifa fixa aliás, nada barata, e lembrei-me que não há muito tempo isso foi reivindicado pelos taxistas do Aeroporto de Lisboa, sem êxito, diga-se. Este cruzeiro em que vou participar teve o seu início em Savona, Itália, onde embarcou a maioria dos passageiros, no dia seguinte fez escala em Marselha, onde chegou a vez de outros, em especial os 5

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franceses, aqui em Barcelona, embarcam os Espanhóis e, pelos vistos também os portugueses, se os houver. Por isso, e também porque o check-in decorreu ao longo de todo o dia, quando cheguei, a afluência de passageiros era escassa, e procedi às formalidades exigidas com relativa rapidez. O processo de embarque é muito simples. Previamente a companhia entrega aos passageiros etiquetas de bagagem, de diversas cores, consoante cada tipo de camarote, onde consta já o seu número e o nome do passageiro. Entregues as malas, logo à entrada do terminal, basta apresentar o bilhete da viagem e mostrar o passaporte, após o que se pode entrar a bordo, depois de passar pela segurança e pelo detector de metais. Mas antes que isso aconteça, é tirada uma foto do passageiro, que passará a constituir parte da sua identificação, para poder entrar ou sair do navio. Conhecendo já o número do seu camarote, o passageiro pode a ele aceder, e no seu interior encontra um cartão de identificação personalizado com os seus dados de identificação (boarding pass ou passe), o qual, para além de ser a chave do camarote, passará a ser utilizado para pagar todas as despesas realizadas a bordo, que depois serão debitadas na sua conta-corrente. Para além disso, cada vez que entrar ou sair do navio, é obrigado a identificar-se com o boarding pass, que um segurança passa por um scanner, que mostrará a fotografia do passageiro tirada à entrada, e ainda a sua identificação. A partir do momento em que tem o cartão, o titular encontra-se inteirado de todos os seus direitos. Quanto às malas, são posteriormente colocadas à porta do camarote. Simples, como se vê. Passei, pois, por esses procedimentos, e dirigi-me ao meu camarote, onde encontrei o cartão de identificação, e também o Diário de Bordo, composto por quatro páginas, e que, como o seu nome indica, é um sucinto e completo jornal onde constam todas as actividades e eventos do dia. O Diário de Bordo é publicado nas línguas mais faladas a bordo. O meu exemplar estava escrito em espanhol, o que só por si me disse que a presença portuguesa a bordo seria muito escassa, se é que existia. Quando isso acontece, somos associados aos espanhóis, o que não me agrada particularmente, sem que isso signifique que tenha alguma reserva quanto a eles. Porém, não conheço povo com ouvido mais duro para línguas do que os espanhóis, com 6

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a agravante de que não compreendem mesmo o português, e geralmente nem sequer fazem um esforço para que tal aconteça. As refeições a bordo são servidas nos vários restaurantes existentes, mas as principais, onde se inclui principalmente o jantar, têm lugar no restaurante principal, que dispõe de uma decoração luxuosa, gigantesco, ocupando dois pisos, ligados entre si e onde, em dois turnos sucessivos, cabem todos os passageiros. No meu cartão de identificação já vinha que eu estava incluído no segundo turno, o que significa que o meu jantar seria sempre às 20h30. O primeiro turno começa às 18h00, o que para os meus hábitos alimentares é muito cedo. Há sempre a possibilidade de qualquer passageiro pedir a alteração do turno, mas no meu caso o segundo estava bem. Neste restaurante exige-se um vestuário com um mínimo de compostura, não sendo permitidos calções, camisetas ou chinelos. Li atentamente o Diário de Bordo, e por ele soube que o traje aconselhado para o dia era o informal, e que haveria uma reunião explicativa com os falantes de língua espanhola (e consequentemente para os de língua portuguesa…), conduzida pelo guia espanhol do que nos estará destinado, a bordo, durante toda a viagem. Parti à descoberta do navio, e constatei que a animação era muita, com convívio, música e bebida à mistura. Depois, confirmei, como já imaginara, que a quase totalidade dos passageiros eram pessoas idosas, naturalmente já reformadas, dada a duração da viagem e o período temporal em que ocorre (a partir dos primeiros dias de Janeiro). Entretanto, chegou a hora da tal reunião com o guia espanhol. Para além de ter fornecido explicações várias sobre o navio e a vida a bordo, falou das excursões existentes nos próximos destinos. Estas excursões são facultativas e pagas à parte, sendo que nesta viagem, no preço da viagem, estão incluídas algumas. Em regra não são baratas, e constituem uma importante fonte de receita da companhia, pelo que promove o mais possível a sua realização. Depende das pessoas e das circunstâncias, o interesse em participar em tais excursões, pois sempre é possível organizar programas alternativos por conta própria. No que me diz respeito, são mesmo as circunstâncias (e o preço, naturalmente), que decidem a minha não participação. Mais tarde voltarei a este tema. Entre as informa7

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ções gerais sobre o navio, saliento que tem capacidade para 2826 passageiros e o número de tripulantes é de cerca de novecentos! Uma pequena cidade, digo eu! No total, dispõe de quatro restaurantes, onze bares, três piscinas, um spa, cinema 4D, simulador de Grandes Prémios, e uma área infantil com piscina. A nível da decoração, o navio contém 288 obras de arte originais, todas de conceituados artistas, alguns mundialmente consagrados, como Botero. A última questão da reunião foi a informação sobre os procedimentos a seguir em caso de emergência, a que se seguiu um exercício de simulação, com uma ida aos pontos de encontro destinados para tal situação e a explicação para a colocação e o uso dos coletes de salvação. Às 18h00, tal como estava programado, o navio zarpou de Barcelona. O início de um cruzeiro costuma ser um momento de muita festa, com bebida, música, dança e diversão, mas aqui tudo foi bem mais modesto, pois já não era o princípio da viagem para a maioria dos passageiros. A coberta superior do navio estava quase despida de pessoas, a noite começava a cair e, lentamente, assisti ao afastar da cidade, com as luzes de Barcelona já acesas, cada vez mais longe, até desaparecerem no horizonte.Para além de outros menores, todos os dias há um espectáculo de variedades de qualidade, no sumptuoso e grande teatro do navio, em dois turnos diferentes, que se harmonizam com os do jantar, de forma a que todos possam assistir. No meu caso, estando incluído no segundo turno do jantar, o espectáculo precede a refeição, para o segundo turno, realiza-se depois. Fui assistir ao espectáculo de hoje, que esteve a cargo de um malabarista italiano, que se revelou um pouco inseguro, mas isso não impediu que o público o tivesse aplaudido com frequência e de forma muito entusiástica, a que não será estranho o facto de estarmos no início da viagem. O teatro é um belo exemplar, grandioso, confortável e bem decorado, dotado dos mais modernos meios técnicos, com um palco amovível e com inúmeras variações, e com possibilidades de diferentes formas de iluminação. Na hora que me estava destinada, fui jantar e, depois de exibir o meu passe, onde constava já o número da mesa que me fora destinada, um empregado até lá me conduziu, onde, com pouca surpresa descobri que os meus companheiros de refeições eram todos espanhóis… 8

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DIA 2, 9 DE JANEIRO, SÁBADO, NAVEGAÇÃO Nascer do Sol: 08h18 – Pôr-do-Sol: 18h06 Tempo: Variável Temperatura mínima: 11º C – Temperatura máxima: 13º C Mar: Muito agitado

A bordo, o movimento do mar é quase imperceptível, ao contrário do que possa pensar. Nos dias mais agitados sente-se algum balanço, mas tirando isso a diferença para a presença em terra firme é pequena. Serve isto para dizer que dormi tranquilamente, e acordei bemdisposto e animado, mas encontrando um dia de muitas nuvens, vento forte e alguma chuva. Para quem o desejava, sobrava o tempo para acabar de conhecer o navio que, com os seus quase trezentos metros de comprimento (equivalentes a três campos de futebol), e onze decks visíveis, tinha muito para ver. Além disso, as actividades a bordo são muitas e variadas, pelo que só se pode aborrecer quem quiser. Penso que não será coincidência o facto de todas as companhias de navegação fazerem partir os seus navios para os Cruzeiros de Volta ao Mundo nos inícios de Janeiro. Penso que será a parte do ano mais adequada para encontrar, em geral bom tempo e o mar mais tranquilo, nas rotas habitualmente praticadas. No entanto, ultimamente, algumas viagens deste tipo, também têm começado em Setembro. Quanto à nossa navegação, ainda de noite, às 06h00 passámos o meridiano de Greenwich, na latitude de 38º 15’ N, diante da costa da cidade espanhola de Alicante. Pelas 09h00 passámos a sete milhas do Cabo de Palos e, durante todo o dia, cruzámos o chamado Mar de Alboran. Às 23h00 chegámos a Gibraltar, passando a cinco milhas do farol da Ponta da Europa, que os marinheiros consideram ser a demarcação entre as águas do Mar Mediterrâneo e do Oceano Atlântico. A bombordo (à esquerda), vimos a oito milhas marítimas as luzes da cidade de Ceuta, que marca a parte mais norte do continente Africano, embora como saibamos, pertença a Espanha e, logo de seguida, vimos a estibordo (direita), o farol de Tarifa, na Europa.

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Foi só à uma da manhã que ultrapassámos o Estreito de Gibraltar, continuando em pleno Oceano Atlântico em direcção ao nosso próximo destino, Arrecife, na Ilha de Lanzarote, nas Canárias. Os passageiros começaram a criar as suas rotinas, com gostos diversificados, espalhando-se pelas diversas actividades. Existe uma pequena mas razoável biblioteca a bordo, nas mais frequentes línguas, de onde é possível requisitar livros. Verifiquei com agrado que também existia uma secção em português, com uma vintena de títulos, a maioria dos quais editados no Brasil. Requisitei um surpreendente livro de José Luis Peixoto, que já comecei a ler. Devido ao tempo agreste, hoje não se realizaram actividades desportivas no exterior, em que pretendo participar, mas compensei isso com uma presença mais prolongada no excelente ginásio do navio. É bonito ver o ginásio cheio de passageiros, onde, cada um ao seu ritmo, vão exercitando o corpo. Em todos os cruzeiros existem alguns dias especiais, onde se procura que tudo seja mais requintado, desde o antes do jantar e ao longo da noite, tanto no atinente ao vestuário, como às ementas especiais, recheadas das melhores iguarias, com os empregados do restaurante a usarem a sua farda número um, reservada para as melhores ocasiões, rodeaando os hóspedes de mais mordomias, se isso for possível. Os homens vestem smoking ou, pelo menos, fato, e as senhoras exibem as suas toilettes mais sofisticadas, depois de muitas delas terem passado pelo salão de beleza, que naturalmente também existe a bordo. A esses dias especiais chamam-se dias de gala. Pois bem, hoje foi o primeiro dia de gala desta viagem e, como parte dele, o Comandante ou Capitão do navio, que é a máxima autoridade a bordo, com poderes soberanos sobre tudo, ofereceu um cocktail aos passageiros, que se realizou no teatro, também em dois turnos, para que todos pudessem participar. Antes do início do cocktail, o Comandante aguardou os passageiros à entrada do teatro, e todos os que o desejaram, puderam cumprimentá-lo, e tirar uma fotografia na sua companhia. Depois de cumprida essa formalidade, teve lugar o cocktail, onde foi servido champagne e outras bebidas, num ambiente de grande sofisticação. No palco de teatro, foram chamados e apresentados à plateia, um a um, os oficiais da tripulação e por último o Capitão, que de seguida proferiu 10

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um pequeno discurso de boas vindas, nas cinco línguas mais usadas a bordo – Italiano, Espanhol, Francês, Inglês e Alemão. Por fim, todos em conjunto, brindámos com champanhe ao sucesso da viagem. Com muita frequência, os espectáculos diários de teatro estão propositadamente relacionados com os países ou localidades por onde passamos ou que visitamos. Foi o que hoje aconteceu, pois aproveitando a nossa passagem por Espanha, fomos presenteados com um espectáculo muito interessante de Flamenco, que suscitou natural entusiasmo entre os espanhóis. À meia-noite mais uma vez mudou o fuso horário, sendo os relógios atrasados uma hora, regressando ao horário de Greenwich e de Portugal.

DIA 3, 10 DE JANEIRO, DOMINGO, NAVEGAÇÃO Nascer do Sol: 07h35 – Pôr-do-Sol: 17h45 Tempo: Variável Temperatura mínima: 16º C – Temperatura máxima: 18º C Mar: Muito agitado

Faz parte do corpo de oficiais da tripulação um Padre, que nos acompanhará toda a viagem. Pois bem, hoje foi domingo, dia habitual de missa para os católicos e, aqui a bordo, os que quiseram puderam nela participar, pois sempre se realiza, numa pequena capela existente para o efeito. Aceitável essa prática, atendendo a que a companhia é italiana onde, como se sabe, fica o Vaticano, e a cabeça dominante da igreja católica. No entanto, não deixa de ser curioso que em todas as companhias de cruzeiros que conheço, todas as sextas-feiras seja marcado o serviço religioso do Sabat, muito embora os praticantes da religião judaica em todo o mundo sejam uns escassos milhões… Já mais de uma vez perguntei a razão de ser desta discriminação positiva, mas nunca ninguém me conseguiu esclarecer. Penso que resulta talvez da forte influência judaica no mundo, mas isso é apenas o que eu penso. O tempo melhorou ligeiramente, já com o sol a espreitar de vez em quando e, a partir da tarde, o vento diminuiu bastante de intensidade. 11

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No Diário de Bordo vinha a indicação para todos os passageiros entregarem os seus passaportes, em horas designadas, ao longo do dia, e assim foi feito. É prática habitual, pois assim não há risco de extravio e, mais tarde julgo que serão substituídos por uma simples fotocópia autenticada pela companhia. Nos dias de navegação costumam haver dois períodos, um de manhã, outro de tarde, onde se pode participar em jogos de futebol, basquetebol ou voleibol, num campo de jogos ao ar livre, totalmente cercado por rede, e que se situa no último convés do navio. Os jogos são sempre feitos sob a supervisão de um funcionário da companhia, com uma qualquer especialidade ligada ao desporto ou à ginástica. Hoje, de tarde, na hora marcada no Diário de Bordo, com a melhoria do tempo, já compareceram alguns entusiastas, eu incluído, e deu para exercitar um pouco o físico e socializar. O espectáculo do dia no teatro foi de um trio de acrobatas muito criativo, que fez acompanhar parte da sua actuação com a música belíssima do filme O Gladiador. O Diário de Bordo de hoje, trouxe uma curiosa nota sobre o giroscópio, um instrumento importante na ciência da navegação. Em 1885, foi pela primeira vez patenteada pelo alemão, Martinus Gerardus Van Den Bos, muito embora não funcionasse muito bem. Em 1903, outro alemão, de nome Hermann Anschutz-Kaempfe, construiu um outro modelo que já funcionava bem, e que também patenteou. Mais tarde, em 1908, o inventor norte-americano, Elmer Ambrose Sperry, patenteou um outro giroscópio e, mais tarde, em 1914, quis vendê-lo à marinha alemã. Nessa ocasião, Anschutz-Kaempfe opôs-se, reivindicando a prioridade do seu invento. Sperry não desistiu, defendendo que o giroscópio de seu oponente não tinha valor legal, pois nada de novo trouxera, tendo-se limitado a aperfeiçoar o modelo anterior de Van Den Bos. O litígio seguiu para tribunal e foi apresentado ao Serviço de Patentes de Berna, onde então trabalhava Albert Einstein que, em 1915 proferiu decisão a dar a razão à patente de Anschutz-Kaempfe. Einstein veio a colaborar com Anschutz-Kaempfe na melhoria da precisão do aparelho, que mais tarde viria a ter um importante papel no sistema do Fieseler Fi 103, que ficou conhecido na história pelo famoso nome de Bomba V1, que os nazis inventaram e lançaram abundantemente sobre a Grã-Bretanha nos finais da II Guerra 12

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1. Arrecife, Lanzarote, Canรกrias

2. Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde

3. Recife, Brasil

4. Salvador, Brasil

5. Rio de Janeiro, Brasil

6. Rio de Janeiro, Brasil

7. Punta del Este, Uruguai

8. Montevideu, Uruguai

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Mundial. Mas, perguntará o leitor, afinal para que serve o giroscópio? Pois bem, fundamentalmente veio substituir, como orientador, a bússola magnética e, em relação a ela, representou um grande progresso, pois em vez de indicar o norte magnético, procura o norte verdadeiro, que como se sabe difere em relação àquele, já que é o ponto da superfície terrestre posicionado diretamente acima do eixo de rotação do planeta. Ao contrário da bússola, o giroscópio não é afectado por campos magnéticos, permitindo portanto uma orientação exacta.

DIA 4, 11 DE JANEIRO, SEGUNDA-FEIRA, ARRECIFE, LANZAROTE, ILHAS CANÁRIAS Nascer do Sol: 07h50 – Pôr-do-Sol: 18h15 Tempo: Limpo Temperatura mínima: 15º C – Temperatura máxima: 21º C Mar: Agitado Chegada: 08h00 – Todos a Bordo : 17h30 – Partida: 18h00 Próximo Destino: Mindelo, Cabo Verde (Distância não indicada) Informações do Diário de Bordo: Nome do Porto: Porto de Lanzarote, que conta com dois lugares de atracagem diferentes: Berço dos Mármoles (aproximadamente a cinco quilómetros do centro da cidade) e Berço de Cruzeiros (aproximadamente a 1,5Km do centro da cidade). Distância do centro: 1,5 – 4,5 Km Moeda: Geralmente só o EURO Táxis: Disponíveis no porto Transportes públicos: Sim, fora do porto, mas não próximo. Recordações: Lava, Olivino (rocha rica em magnésio), Vinho Compras: Avenida principal, Centro comercial da marina Comer e beber: Castillo San José, Lilium, Plaza 24 Praias: Porto del Carmen, Costa Teguise Roupa nos locais de culto: Sem requisitos especiais Clima: Temperatura média 21° C

Estando nós nas Ilhas Canárias, surgiu-me a dúvida de saber como se chamam os seus naturais. Pois bem, aos naturais das Canárias dá-se o nome de Canários/as. Mas o nome nada tem que ver 15

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com o célebre e lindo pássaro do mesmo nome, pois foi-lhe posto por Juba II, Rei da Numíbia, que reinou durante parte dos séculos I a.C e I d.C, que as tinha mandado explorar e onde, alegadamente, foram encontrados muitos cães. E seria a partir da palavra “cães” que surgiu o nome Canárias: a terra dos cães. Ao contrário de outras Ilhas do atlântico, as Canárias eram conhecidas de outros povos, desde pelo menos o tempo dos cartagineses, de cuja presença no arquipélago foram encontrados conclusivos vestígios arqueológicos, para além de existirem também relatos escritos da sua presença. Também ao contrário das outras Ilhas do Atlântico, as Canárias eram povoadas por um povo orgulhoso e combativo, com origem berberes, e que tinham o nome de Guanches. Depois da escuridão que representou a Idade Média na Europa, os portugueses foram os primeiros a procurarem novas terras, e sabendo da existência das ilhas, delas cedo quiseram tomar posse, por lhes verem interesse para os seus projectos de navegação e expansão territorial. Em 1336, ainda longe da epopeia dos descobrimentos, a mando do Rei D. Afonso IV, uma expedição portuguesa chegou às Canárias, e outras se lhe seguiram em 1340 e 1341. Os portugueses chamaram-lhe as Ilhas Afortunadas, mas mais tarde acabou por prevalcer o nome de Canárias. A Coroa Portuguesa reivindicou a posse das ilhas, mas chocou com idênticas pretensões de Castela, que também ia enviando expedições. Em ambos os casos, encontrou-se sempre forte oposição dos Guanches que, com coragem e determinação, iam defendendo a sua terra. O Infante Dom Henrique via nas Canárias uma ponto importante para as navegações que iam sulcando o mar em busca de novos territórios, tanto para sul do Cabo Bojador, como para Ocidente e, a partir de 1415, enviou várias expedições militares com o intuito de conquistar as ilhas. Pretendia o Infante criar uma base naval e militar na Ilha de Gomeira, o que acabou por conseguir. E não desistiu dos seus intentos de conquista, pois em 1424 envia uma forte expedição naval e militar, de que faziam parte mais de 2500 homens, mas que não conseguiu atingir o objectivo proposto, 16

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que era a conquista da Grã-Canária, mantendo-se apenas a presença portuguesa em Gomeira. Os castelhanos, que não desistiam também dos seus intentos de apropriação das ilhas, alarmados com as actividades portuguesas, enviam o Bispo de Burgos a Lisboa, como embaixador, mandatado para negociar o estatuto das ilhas, mas sem resultados práticos. E assim se vão passando os anos, com ambos os lados a reivindicar a soberania sobre o arquipélago. Em 1435, através de uma Bula Papal, as ilhas são atribuídas à Coroa Portuguesa, mas face à pressão castelhana, o Papa volta atrás e pede a ambos os Reinos que resolvam o conflito por via diplomática. Tudo em vão, e tudo na mesma, com diferentes actos de força e destruição por parte de cada um dos beligerantes. Entretanto, os portugueses descobriram e instalaram-se nas ilhas dos Açores e Madeira, e iam conquistando cidades do norte de África, explorando e cartografando a costa Africana, em direcção ao Atlântico Sul. Os castelhanos queriam seguir-lhe as pisadas, e a sua presença nas Canárias era uma ameaça permanente ao monopólio que Portugal ia criando naquelas regiões. A questão veio a ser solucionada em 1479, com a celebração do Tratado de Alcáçovas, que o Papa sancionou, nos termos do qual as Canárias foram atribuídas a Castela, mantendo Portugal a soberania sobre as outras ilhas que já detinha, bem como sobre o norte de África. Todas as terras que viessem a ser descobertas a norte das Canárias seriam pertença de Castela, todas as terras a sul seriam para Portugal. Pelo que se conhecia na altura, e atendendo a que Portugal já descobrira e ultrapassara, sucessivamente, o Cabo Não, o Cabo Bojador, o Rio de Ouro, o Cabo Branco, o Golfo de Arguim, o Arquipélago de Cabo Verde e o Golfo da Guiné, e prosseguia as suas navegações pelo Atlântico Sul, na altura pareceu não ter sido um mau acordo para os interesses portugueses. Assim, as Ilhas Afortunadas saíram de vez do domínio português. Hoje, as Canárias são uma região autónoma espanhola, mas também aqui existe um pequeno movimento independentista, que pretende fazer como suas as tradições e a antiga história dos Guanches.

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Foi dia de visitar Lanzarote, uma das mais espectaculares das Ilhas Canárias, com as suas paisagens lunares, marcadas pela actividade vulcânica. No programa de navegação informava-se que às 06h30 horas se veria a costa, ao longo da qual se seguiria, até que às 07h00 subiria a bordo um piloto local, para auxiliar na manobra de atracagem. E assim aconteceu pelo que, pontualmente, às 08h00 previstas, o navio imobilizou-se no Terminal de Cruzeiros da cidade de Arrecife. É a capital da ilha, com cerca de 55000 habitantes, uma cidade acolhedora, rodeada de montanhas negras, formadas através da frequente actividade vulcânica da ilha. O nome da ilha tem uma sonoridade italiana, que se revela verdadeira, pois provém do nome do genovês que a conquistou aos Guanches em 1402, ao serviço de Castela, que se chamava Lanzarotti Mallocello. A ilha de Lanzarote, e as Canárias em geral são a terra da primavera eterna, com um clima semi-tropical, permanentemente ameno, com uma temperatura anual média de 21ºC. Lanzarote associa praias de areia dourada, de abundante turismo, com outras, virgens e selvagens. Igual variedade de ambientes se encontra no interior, mas o que predomina é a paisagem, austera e agreste, mas bela e de origem vulcânica. O clima permanentemente ameno é um chamariz irresistível para uma diversidade de estrangeiros, que aqui escapam ao frio das suas terras, seja no cosmopolitismo de hotéis de luxo, seja em contacto com a natureza e o ambiente. As excursões facultativas nos portos de escala constituem uma parte importante nas viagens de cruzeiro, pois representam a forma mais prática, fácil e segura para conhecer os locais, embora também a mais prosaica. Aqui, em Lanzarote, haviam excursões para todos os gostos, nada mais, nada menos, do que oito diferentes. Foi muito curioso verificar que uma delas, que tinha o sugestivo título de “A alma de Lanzarote”, girava à volta da presença de José Saramago na ilha. Na verdade, visitou-se a casa onde o escritor viveu durante dezassete anos, e onde ainda vive a sua viúva Pilar. Durante todos esses anos Saramago reuniu uma apreciável biblioteca pessoal, que além de ser um prolongamento dos seus gostos e 18

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capacidades intelectuais, lhe serviu com certeza para a investigação e subsequente escrita de muitas das suas obras, e que hoje está aberta ao público. Saramago teve a sorte de ter encontrado Pilar, o sólido pilar da sua divulgação pública e universal, que veio a culminar com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1998, para além de ter constituído também uma forte fonte de inspiração. É sabido que Saramago era uma pessoa austera, sem vocação ou apetência para as luzes do mundo, tendo sido a mulher quem fez todo esse trabalho de, digamos, relações públicas, que culminou na sua consagração literária. Lanzarote foi declarada pela UNESCO como Reserva da Biosfera, contendo um rico património natural perfeitamente conservado. Paisagisticamente, a ilha está dividida em duas grandes e diferentes partes. O sul, ocupado pelo Parque Nacional de Timanfaya, uma enorme área totalmente coberta pela lava das erupções vulcânicas que ocorreram entre os anos de 1700 e 1800, e que deixaram esta parte da ilha com um aspecto fantasmagórico e lunar, cheia de rios de lava petrificada e múltiplas crateras. Predomina a cor preta, mas encontram-se todos os matizes. Os geiseres existentes e a lama fervente testemunham que as forças tectónicas continuam presentes. É costume visitar o Parque no dorso de dromedários, o que é uma experiência única e inesquecível, ao alcance de todas as idades. A parte norte da ilha é completamente diferente, com vegetação variada, sendo também célebre por formações rochosas, criadas por uma anterior erupção do vulcão La Corona. A lava solidificou no exterior, enquanto no interior continuou a correr, até desaparecer. Daí resultaram gigantescos túneis, o mais famoso dos quais é a Cueva de Los Verdes, com dois quilómetros de comprimento e trinta a quarenta metros de altura. A parte inferior é chamada de “Jameos del Água”, e aí foi construído um enorme auditório onde se realizam diferentes espectáculos e que incorpora um pequeno lago subterrâneo, onde existem pequenas espécies animais únicas do mundo, como resultado da sua adaptação ambiental. São famosos os seus caranguejos albinos e cegos, pois devido à escuridão não necessitam de ver, pelo que não têm olhos.

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Cesar Manrique (1919-1992) foi a personagem artística e cultural mais importante da ilha. Grande pintor, arquitecto, escultor e ecologista, marcou toda a vida cultural de Lanzarote. A casa onde viveu está hoje transformada em casa-museu, aberta à visita do público. Para além da casa em si, do aproveitamento dos seus espaços, da sua decoração e da sua preciosa colecção de obras de arte, Manrique criou um original jardim de cactos no terreno circundante. São mais de mil espécies de cactos diferentes, dispostos de forma esteticamente perfeita, aproveitando os desníveis e curvas do terreno. Como estava programado, às 18h00 o navio pôs-se em movimento, para retomar a viagem. Muitos passageiros, incluindo eu próprio, desfrutaram do momento de largada da terra, apreciando a cidade de Arrecife e as suas circundantes montanhas negras. Ainda havia sol, e deu para assistir ao seu ocaso, por detrás do cone negro de um vulcão. Gostei muito de Lanzarote e fiquei com vontade de um dia voltar. Não se realizou o habitual grande espectáculo no teatro, mas os passageiros que se interessaram não ficaram a perder. No sumptuoso átrio principal do deck 2 onde fica a recepção, diante de uma monumental e excelente escultura de Botero, realizou-se um pequeno concerto, a cargo de um trio, composto por uma pianista, uma violinista e uma cantora lírica, que interpretaram magnificamente alguns dos principais temas de Ennio Morricone. Foi um espectáculo soberbo, diria que perfeito. Lembrei-me muito da nossa Dulce Pontes, com a sua fabulosa interpretação da música desse compositor, que adaptada para a língua portuguesa teve o título de “O Amor em Portugal”. À meia-noite, um momento que hei-de ver muitas vezes repetido: a mudança da hora, sendo os relógios atrasados, ficando com menos uma, em relação a Portugal.

DIA 5, 12 DE JANEIRO, NAVEGAÇÃO Nascer do Sol: 06h53 – Pôr-do-Sol: 17h41 Tempo: Encoberto, Temperatura mínima: 19º C – Temperatura máxima: 21º C, Mar: Muito agitado 20

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Os dados climatéricos enunciados em cima eram os que constavam do Diário de Bordo, mas a previsão revelou-se incorrecta. Na verdade, esteve um lindo dia de sol, uma temperatura bem acima da esperada e um mar todo azul muito tranquilo. Continuámos a nossa navegação no Oceano Atlântico, com uma rota sudoeste. Já à noite, pelas 21h00, cruzámos o Trópico de Câncer, na latitude 23º 27’N. Hoje em dia, a passagem dos trópicos é algo corriqueiro e que nenhuma preocupação causa ao viajante. Longe vão os tempos em que uma incursão nos territórios dos Trópicos era motivo de grande preocupação, pelos perigos que se podiam passar, designadamente em termos de saúde. Nesta viagem vamos ter algumas escalas em cidades onde se fala português, pelo que a companhia achou por bem proporcionar aos passageiros interessados alguns elementares conhecimentos da língua Portuguesa. Tudo muito elementar, não ultrapassando pequenas palavras ou frases de cariz turístico. Da minha parte, fiquei curioso para saber se a iniciativa tinha ou não alguma receptividade por parte dos passageiros. Para dar as aulas, foram encarregadas duas simpáticas brasileiras que fazem parte da equipa de animação. À hora marcada, compareci na “aula” e, para minha surpresa, a sala estava a abarrotar com centena e meia de pessoas, de todas as nacionalidades… No fim, uma das brasileiras/professoras disse-me que tinham preparado sessenta folhas escritas com os tópicos da lição, mas que depois tiveram de as aumentar para cem e depois para cento e quarenta… Foi com um misto de orgulho e tristeza que assisti à aula. Orgulho por verificar que a língua portuguesa é um dos nossos grandes legados à humanidade, e o grande interesse que suscita nas pessoas; tristeza por verificar que o português de Portugal está inexoravelmente condenado a deixar de ser o padrão da língua. Para mim o problema nem é tanto a opinião que se tenha sobre o acordo ortográfico, mas sim o seu inevitável desrespeito. Amanhã há nova aula, e faço questão de comparecer de novo! Hoje tive um pequeno acidente, felizmente sem consequências de maior, mas que podia ter sido uma coisa séria. Ao participar num jogo de voleibol, caí, tendo batido com o rosto no chão, tendo os 21

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óculos de sol colocados, que, ao partirem, me provocaram dois cortes no rosto, um deles a menos de um centímetro do olho esquerdo. Estupidamente, ainda pensei tratar da ferida por mim, mas ao olhar-me ao espelho, não gostei do que vi e tomei a decisão que se impunha, ir à enfermaria, tendo sido acompanhado pelo instrutor que dirigia ao jogo. Fui excelentemente tratado, e soube que as feridas eram apenas superficiais, não necessitando de sutura. Obrigaram-me a permanecer na enfermaria até comparecer a segurança do navio, que estava obrigada a fazer um relatório da ocorrência, o que demorou largos minutos. Enquanto esperava, fiquei admirado com o enorme movimento da enfermaria, com vários passageiros a necessitarem de tratamentos diversos. Depois reflecti na situação, e achei normal, pois que os quase três mil viajantes são idosos, muitos deles até demasiado, causando-me admiração como se atrevem a fazer uma viagem destas. Rapidamente criei empatia com um funcionário com quem falei animadamente durante alguns minutos. Uma dúvida me assaltava já há muito tempo e eu tentei esclarecê-la. Morrem pessoas na viagem? A resposta foi um tímido sim, e depois de muita insistência minha uma inconfidência: nesta viagem, no ano passado, morreram quinze passageiros! Dito isto a sussurrar, o funcionário ficou subitamente preocupado e pediu-me reserva. Percebi que a morte a bordo, embora seja uma realidade muito próxima, tenta ser oficialmente escondida, quanto mais não seja por se tratar de má publicidade. A conversa ficou por aí, mas fiquei curioso para saber como é que essas situações se processam. Não gostei do espectáculo do dia. Era um trio musical de espanhóis, com o nome estupendamente “original” de Trio Bellagio, que a publicidade para o evento anunciava como tendo um estilo “Pop Lírico”... Cantaram êxitos comerciais dos mais batidos, da música ligeira italiana, francesa e espanhola, sem trazerem nada de novo, desde o Sole mio, à Granada, e similares. Entrou por um ouvido e saiu logo pelo outro!

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DIA 6, 13 DE JANEIRO, QUARTA-FEIRA, NAVEGAÇÃO Nascer do Sol: 07h02 – Por do Sol: 18h09 Tempo: Variável Temperatura mínima: 16º C – Temperatura máxima: 25º C Mar: Muito agitado

A nossa navegação continuou, sempre na direcção sudoeste, a caminho de Cabo Verde. À medida que vamos descendo para sul, a temperatura tem progressivamente aumentado, mas hoje o dia esteve quase sempre encoberto, com muitas nuvens, e com o sol a fazer escassas aparições. Realizou-se a segunda aula de língua portuguesa, a cargo de duas brasileiras da equipa de animação, e repetiu-se o sucesso de ontem, com uma presença abundante de interessados. Claro que assisti, e diverti-me imenso a ver os cerca de 150 alunos, de caneta na mão, a tomarem apontamentos e a pronunciarem em conjunto pequenas frases de língua portuguesa, naturalmente com o sotaque brasileiro. Neste cruzeiro existe um chamado conferencista, que como o seu nome indica irá fazer conferências ao longo da viagem. É italiano, mas como de acontece com a generalidade dos tripulantes fala também, e bem, francês, inglês, espanhol e alemão. A conferência tinha como título “Os Portugueses no Oceano Atlântico”, durou cerca de uma hora, e eu ouvi-a com interesse duas vezes, uma em espanhol e outra em inglês. Compareceram cerca de trinta passageiros, em cada uma das línguas, o que não revelou grande interesse pelo evento. A conferência, feita também com o recurso a algumas imagens, foi muitíssimo interessante, apresentada de uma forma agradável de seguir e de forma histórica objectiva e verdadeira, tanto quanto consegui perceber. Como seria de esperar, houve coisas novas que aprendi, destacando a existência e a importância de mapas árabes, anteriores aos nossos descobrimentos, sendo talvez o mais relevante um da autoria do cartógrafo Al-Idrisi (1099-1165), do séc. XII, que já mostrava várias partes do mundo, até então desconhecidas dos europeus. Hoje entregaram-me no camarote um certificado comprovativo de que tinha passado o Trópico de Câncer, escrito em seis línguas, incluindo a portuguesa, e assinado pelo Comandante. Enfim, uma recordação! 23

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O espectáculo do dia esteve a cargo de um cantor italiano, com o nome artístico de Ross, com um reportório de êxitos internacionais. Não se encontra nele nada de original, mas é um excelente profissional, falando correctamente várias línguas, com uma voz fantástica e uma presença em palco de tal ordem forte que faz da audiência o que quer. Antes do espectáculo de hoje já o tinha escutado, numa outra e pequena sala do navio, e causou-me admiração a forma como monta as suas actuações. Basta-lhe um pequeno computador portátil ligado, de onde sai o seu acompanhamento musical já perfeitamente alinhado, e sem tempos mortos. No primeiro dia desta minha viagem tive oportunidade de falar sobre a forma como se efectuam os pagamentos a bordo, através do passe que é atribuído a cada passageiro, mas não referi que o seu uso está caucionado, ou através do nosso cartão de crédito, dando para o efeito os necessários poderes à companhia para no momento oportuno apresentar o débito ao banco, ou então através de um depósito em numerário, que terá de ser reforçado sempre que estiver em vias de se esgotar.Teoricamente existem 48 horas para se escolher o modo de pagamento, tendo eu optado pela solução mais simples e mais utilizada: o cartão de crédito. Só que, e vá-se lá saber porquê, a máquina não aceita o meu cartão. De cada vez referem-me uma coisa diferente, chegando-me a dizer que podiam telefonar para o banco. Com isto tudo, já fui cinco vezes à recepção, e fiquei na fila, sem que se encontre uma solução. Farto da situação, optei por fazer um depósito em dinheiro. Mais tarde se verá… DIA 7, 14 DE JANEIRO, QUINTA-FEIRA, MINDELO, CABO VERDE Nascer do Sol: 07h14 – Por do Sol: 18h25 Tempo: Variado Temperatura mínima: 21º C – máxima: 26º C, Mar: Fortemente agitado Chegada: 09h00 Todos a Bordo: 17h00 Partida: 18h00 Próximo destino: Recife Nome do Porto: Porto Grande Distância do centro: 2 Km, mais ou menos15 minutos a pé Informação sobre o Porto: Porto Comercial 24

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Moeda: Escudos de Cabo Verde (CVE) Outras moedas: O Dólar e o Euro são geralmente aceites Táxis: Disponíveis fora do porto Transportes Públicos: A 2 Km Recordações: Rum tradicional “grogue” e “ponche”; artesanato Compras: No centro da cidade (centro cultural; projectocapverd, mercado africano) Comer e beber: Atum, cachupa, ensopado Praia: Laginha a 250 metros; Baía das Gatas a 11 Km; Calhau a 18 Km; Roupa nos locais de culto: Sem particularidades Clima: Temperaturas de 17°a 29°C

Às 07h00 começámos a ver à nossa direita a costa da Ilha de Santo Antão e continuámos a navegação para o Mindelo, na Ilha de São Vicente, onde atracámos às 08h00, no Porto Grande, que fica numa linda baía, entre a Ponta João Ribeiro e a Ponta do Morro Branco. Para além de se verem atracados ao largo da baía vários navios de carga, eram também visíveis muitas dezenas de pequenos barcos pesqueiros, no porto dos pescadores, mesmo em cima de uma praia. A ilha de São Vicente foi descoberta no dia 14 de Janeiro de 1462, dia desse Santo, razão do seu nome, mas manteve-se praticamente inabitada até ao séc. XIX. Só em 1838 se formou o primeiro núcleo colonizador, naquilo que hoje é Mindelo, assim chamada em honra das tropas liberais que anos antes tinham desembarcado na praia do mesmo nome situada no norte de Portugal, e que marcou o início do fim da monarquia absoluta. Hoje em dia, São Vicente, goza de um próspero ambiente cultural, onde se destaca o Carnaval do Mindelo, com características próprias, misturado entre os costumes de África, Portugal e Brasil. Existe também, todos os anos, um festival, chamado da Baía das Gatas, que ocorre num fim-de-semana de lua-cheia no mês de Agosto, na praia do mesmo nome, de carácter fundamentalmente musical e que já alcançou nível internacional. Outro interessante evento é um festival internacional de grupos de teatro amadores, que tem o nome de Mindelact, e que acontece no mês de Setembro. A partir do deck superior do navio contemplei Mindelo, cidade modesta, que se espraiava nos seus edifícios coloniais ao longo da 25

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elegante e suave marginal e, nas montanhas acima, com casas cada vez mais simples, muitas delas com o tijolo à vista, sem pintura. Como as demais, a ilha é de origem vulcânica, e a paisagem é de desolação, com os montes descarnados e sem vegetação, num misto de pedras e pó. A sobrevivência de Cabo Verde é um milagre dos homens, pois tirando o mar com o seu pescado, só conta com a vontade e o querer dos seus habitantes. Água não há, chuva também não, o mesmo de terrenos férteis. Um vento seco e quente, proveniente de África, do Sahara, sopra quase permanentemente. O tempo estava encoberto, mas o sol irrompia de tempos a tempos, bastante quente, a fazer desejar uma boa sombra. Se pela média da temperatura ambiente, as Ilhas Canárias são a terra da Primavera eterna, Cabo Verde será a terra do verão eterno. Hoje havia três diferentes excursões, todas muito prosaicas. A companhia advertiu-nos que os guias locais de línguas podiam não ser suficientes, pelo que haveria o apoio de um membro da tripulação junto de cada grupo. Também nos advertiu de que os meios de transporte, por serem insuficientes para tantos visitantes, poderiam incluir veículos de diferente tipo e sem ar condicionado. Efectivamente, as autoridades da ilha mobilizaram toda a frota de transportes públicos e privados da ilha para ser possível satisfazer os pedidos. Pela primeira vez nesta viagem, as excursões que se fizeram foram personalizadas, com um toque de amadorismo, que só aumentou a sua autenticidade. Quando saí do barco para visitar a cidade, dei de caras com um cabo-verdiano com uma camisola do Benfica. E nos dois quilómetros que fiz a pé até ao centro, encontrei também camisolas do Sporting, do Porto, e ainda da Selecção Portuguesa de Futebol. No primeiro café onde entrei pedi uma água com gás, ao que o empregado me pergunta se quero Água das Pedras ou Castelo… E claro, o expresso que tomei era dos Cafés Delta! Não há dúvida, entre cabo-verdianos e portugueses, há laços afectivos fortíssimos, e em Cabo Verde sentimo-nos em casa. Este povo cabo-verdiano é trabalhador, amigo e pacífico, e todos eles acham que de alguma forma também são portugueses. É admirável que seja a única ex-colónia portuguesa onde nunca houve guerra. Hoje, mais uma vez, 26

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tive oportunidade de ver que os monumentos portugueses, os nomes, as placas comemorativas, tudo permanece exactamente na mesma. Só Gago Coutinho tem dois monumentos, um mais convencional na praça principal da cidade e outro, recente, uma escultura de João Cutileiro. A moeda continua a ser o escudo, aliás no dia de hoje cotado, em relação ao euro, a 110058 escudos cabo-verdianos. A estátua de Diogo Afonso, o descobridor da ilha, continua onde foi colocada, e tem ao seu lado uma réplica da Torre de Belém. Mas a pobreza vê-se até nos locais mais turísticos. Vi meninos a pedir, descalços, mas percebendo-se que há esperança de que tudo fique melhor, e quando há esperança tem de se acreditar num futuro melhor. Às 18h00 horas, quando o navio arrancou, o céu estava ainda mais carregado de nuvens, sendo quase noite. Subiu a bordo o piloto local da barra para dirigir a manobra, e só meia hora depois desembarcou para o barco dos pilotos. Da minha parte, fiquei a ver esta simples e simpática cidade a distanciar-se cada vez mais, com as luzes já acesas, até que desapareceu no horizonte. Espero um dia poder voltar, numa viagem organizada por mim, para tentar conhecer melhor a terra e a alma cabo-verdiana, pois sou um admirador confesso. Hoje à meia-noite, atrasámos, uma vez mais, os relógios, passando a diferença para Portugal a ser de menos duas horas.

DIA 8, 15 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA, NAVEGAÇÃO Nascer do Sol: 06h14 – Pôr-do-Sol: 17h43 Tempo: Variável Temperatura mínima 23º C – Temperatura máxima 25º C Mar: Agitado

No Diário de Bordo, nos dias de navegação, tem vindo uma informação interessante, que diz que, segundo as tradições dos antigos navegantes, o meio-dia é sempre assinalado pela sirene de bordo, com um silvo longo. Não explica a origem do costume, mas eu por mim não tenho dificuldade em associá-lo ao almoço, nomeadamente à semelhança com o que sucedia nas fábricas do passado e com os 27

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relógios dos campanários das igrejas, no mundo rural. O meio-dia sempre foi uma hora do dia particularmente importante, e até mais no passado do que hoje e, pelos vistos, a marinha comercial respeita essa importância, e a tradição que se formou. As indicações meteorológicas que vou colocando cada dia são retiradas do Diário de Bordo. Até agora, tempo variável tem sido sinónimo de calor moderado, com algumas nuvens por onde espreita o sol. Por outro lado, estou intrigado com o estado do mar que tem sido indicado, e que é agitado ou muito agitado, pois nada disso se tem sentido, nem a bordo, onde não se nota turbulência, nem no mar, que aparentemente pelo menos tem estado sempre calmo. Imagino que sejam convenções marítimas, e que não deverão ter o entendimento da tradução literal. Aliás, convém esclarecer que o Diário de Bordo que recebo vem redigido em língua espanhola, o que por vezes não me ajuda a ser rigoroso na tradução. Mais uma aula de português à maneira do Brasil, e não esmorece a vontade de aprender dos participantes, que continuam a comparecer e a participar activamente. Nova conferência, desta vez com o título de “Os primeiros americanos”, onde pelo que percebi nos foram apresentadas as mais recentes e conceituadas teorias sobre os primeiros habitantes das américas, que terão chegado há milhares de anos pela passagem então coberta de gelo do estreito de Behring, e também, talvez por meio das correntes marítimas, a partir do oriente, designadamente da China. Aos poucos, vão aparecendo mais interessados em participar nos jogos colectivos desportivos, como o basquetebol, o voleibol, e mesmo uma adaptação do ténis. A mim é algo que me agrada fazer e, por isso, sempre que possível, vou aparecendo, jogando e socializando. Nos cruzeiros é costume haver um grupo de bailado, que acompanha todo o percurso. Nesta viagem ainda não tinha visto os bailarinos, e pensei mesmo que não haveria, mas afinal há e hoje fizeram a sua aparição, participando no espectáculo do dia com quatro cantores residentes, que nos irão acompanhando. Durante todo o dia, e a partir das 08h00, há sempre actividades em curso, muitas vezes com a intervenção dos animadores. Existem 28

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jogos vários, ensinamentos de danças, jogos ditos culturais, como o quiz, lavores femininos, campeonatos de bridge, ginástica, e muito mais… Tenho falado das coisas que vão acontecendo e que, de uma ou outra forma, me despertam interesse. Mas isso não significa que não aconteçam muitas outras. A partir das 18h00, e até depois das 23h00, há vários espectáculos espalhados pelas salas e bares do navio, para além de haver sempre música adequada para dançar. A dança também tem os seus amantes fiéis, que em regra não abdicam dos seus passos de dança. Como não podia deixar de ser, também há uma discoteca a bordo, onde se pode acabar a noite. Nesta viagem, tendo em atenção a faixa etária dos passageiros, não é atracção que desperte muito interesse, e costuma estar sempre vazia. Hoje foi mais uma noite de gala. Tivemos as senhoras a irem ao salão de cabeleireiro e a mostrar mais uma das suas toilettes preferidas e os homens, apinocados, muito formalmente com um smoking, menos com um fato, ou menos ainda, e raramente, apenas com uma camisa. E claro, direito a uma ementa especial.

DIA 9, 16 DE JANEIRO, SÁBADO, NAVEGAÇÃO Nascer do Sol: 06h14 – Pôr-do-Sol: 18h00 Tempo: Limpo, Temperatura mínima: 22º C – Temperatura máxima: 26º C Mar: Agitado

Continuámos a nossa navegação para o Recife com uma rota de sudoeste. À medida que vamos descendo para Sul em direcção ao Equador o tempo vai paulatinamente aquecendo, e diminuindo a amplitude térmica. Os amantes do sol aproveitaram o seu brilho e o céu azul, para se espreguiçarem nos decks superiores. Continuação das aulas de Português, sempre com muito sucesso. Mais uma conferência cheia de interesse, com o título de “Quem descobriu a América”. Desde o primeiro dia das conferências que só suscitam interesse a uma pequena parte dos passageiros, o que é pena, mas creio que isso se deve ao seu perfil dos passageiros, que tenho procurado analisar pelos meus meios, não tendo ainda che29

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gado a grandes conclusões, apenas a indícios, que espero vir a conseguir solidificar. Na nossa navegação continuamos a afastar-nos mais para oriente e isso tem implicações no fuso horário. Hoje à meia-noite, atrasámos os relógios mais uma hora e a diferença para Portugal passou a ser de menos três horas.

DIA 10, 17 DE JANEIRO, DOMINGO, NAVEGAÇÃO, EQUADOR Nascer do Sol: 05h14 – Pôr-do-Sol: 17h17 Tempo: Chuva Temperatura mínima: 25º C -Temperatura máxima: 27º C Mar: Agitado

Às zonas terrestres do Equador, com vegetação luxuriante, dão os ingleses o sugestivo nome de “Rain Forest’s” (Floresta da Chuva). Aqui no mar não temos naturalmente florestas, mas estando na região do equador, é natural que a qualquer momento a chuva faça a sua aparição. Era isso o que indicava a previsão meteorológica, mas apesar de o céu ter estado coberto de nuvens sufocantes durante todo o dia, não chegou a chover. Tenho falado dos animadores, parecendo-me conveniente dizer algo mais acerca deles. Formam um corpo de cerca de vinte elementos, todos jovens, e são os autores e normalmente também participantes de qualquer evento que tenha lugar a bordo, seja ele de carácter recreativo, desportivo ou cultural. Cabe-lhes a tarefa geral de entretimento dos passageiros, fomentando a sua participação nas várias actividades, como a dança, o desporto, o canto, os jogos, as inúmeras festas temáticas, etc… Aqui, ser animador, é sinónimo de ser jovem, simpático, alegre, bem-disposto. Para os passageiros menos experientes, a forma cativante como são tratados pelos animadores, fá-los imaginarem-se pessoas particularmente interessantes, capazes de suscitarem o interesse de jovens bonitos e sorridentes. Isto faz com que por vezes, aconteçam casos de passageiros que se comportam de forma abusadora para com os animadores, ou querendo monopolizá-los em actividades em curso, ou confundindo simpatia com profissionalismo, que é aquilo que apenas se pode pedir a um ani30

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mador. São parte importante e sempre presente na vida a bordo, e o seu trabalho é muito e exigente. Todos os dias há actividades novas, e tanto nestas como nas habituais, não seria possível levá-las a cabo sem o trabalho e o empenho dos animadores. No dia de hoje, procurou-se que fosse um dia especial, pois às 14h30 cruzámos o Equador, evento sempre assinalado em navegação. A partir das 13h30 procurou-se que a festa fosse rija, com a participação do grupo de animadores, com muita música e animação, no deck da piscina interior, que dispõe de um tecto amovível, que naturalmente estava aberto e que culminou com o Baptismo do Mar por parte do Deus Neptuno, o manda-chuva dos mares, interpretado por um animador. Foram bastantes aqueles que se associaram aos folguedos, e se entusiasmaram com as festividades do momento, mas mais numeroso foi o grupo daqueles que apenas assistiram. Essa festa levou a uma modificação nos planos de actividades do dia, mas aqueles que dela se cansaram puderam retomar as suas rotinas mais básicas, como o encontro com os amigos e conhecidos e os sempre animados jogos de salão. O espectáculo do dia no teatro, com o título “Magic of Light” foi excelente, com um grupo cuja origem ignoro e que dá pelo nome de “Evolution Dancers”. Os efeitos luminosos e especiais constituiram uma parte importante, mas misturados com dança, acrobacia e lirismo. Muitas vezes o que nos é apresentado é um déjà vu com diferentes roupagens, mas, pelo menos no que a mim disse respeito, o espectáculo foi a estreia absoluta de um novo género, verdadeiramente original, e que desconhecia. Como era de esperar, à noite, recebi no meu camarote, assinado pelo comandante e impresso em seis línguas diferentes, incluindo a portuguesa, um certificado comprovativo de que tinha passado a linha do Equador!

DIA 11, 18 DE JANEIRO, SEGUNDA-FEIRA, NAVEGAÇÃO Nascer do Sol: 05h21 – Pôr-do-Sol: 17h20 Tempo: Variável Temperatura mínima: 25º C – Temperatura máxima: 27º C Mar: Agitado 31

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Continuamos na nossa rota de Sudoeste, a caminho do Recife, no Brasil. Apesar das constantes previsões de mar agitado ou mesmo muito agitado, a verdade é que o navio desliza suavemente sobre as ondas do Oceano Atlântico, sem quaisquer sobressaltos ou cuidados especiais. Acredito que não estejamos perante um erro na previsão, mas apenas num tipo genérico de classificação destinado aos leigos, como são os passageiros em geral. Pelas 08h15, passámos ao lado de uma das maravilhas naturais mais deslumbrantes do Brasil. Falo do Arquipélago de Fernão de Noronha, de origem vulcânica, que faz parte do Estado Brasileiro de Pernambuco. Fica situado em pleno Oceano Atlântico, a 545Km do Recife (Capital de Pernambuco), 360km de Natal (capital do Rio Grande do Norte) e 710km de Fortaleza (capital do Ceará). O arquipélago tem 26km2 e é formado por vinte e uma ilhas, das quais só a maior delas (tem 17km2) é habitada. As demais foram declaradas Parque Nacional pelo Governo do Brasil, e é proibida a presença humana nelas, excepto para fins de investigação científica e mediante autorização prévia. Por sua vez a UNESCO declarou o arquipélago Património da Humanidade em 2001, e o acesso por pessoas, mesmo na parte visitável, está grandemente limitado, sendo normalmente necessário fazer reservas com antecedência muito grande, por vezes de meses. As infraestruturas turísticas são muito básicas, consistindo fundamentalmente em pequenas pousadas familiares,normalmente sem água quente, sendo a oferta da restauração também muito escassa. Naturalmente, para o tipo de turistas que querem conhecer Fernando de Noronha, isso não é inibidor, pois os interessados na visita não procuram grandes comodidades, privilegiando antes o contacto com a natureza em estado virgem. Passámos a uma distância de dezasseis milhas marítimas (cerca de 25km), e eu levantei-me de propósito para as tentar ver. Não chovia, embora a meteorologia previsse chuva, mas o céu estava coberto de nuvens altas, que permitiam uma ampla visão. Porém, para minha tristeza, por mais que olhasse não vi sinais de Fernando de Noronha... Fiquei com pena, claro! A localização do Arquipélago é 3º 50’ S, 32º 24º W.

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As duas jovens brasileiras que têm dado as aulas de língua portuguesa, completaram com brilhantismo a sua função, mas verdade seja dita que contaram com o empenho dos seus voluntários alunos. Neste dia, apresentaram um esboço de teste escrito, que os alunos encararam com a máxima seriedade, respondendo de forma muito compenetrada às pequenas perguntas feitas. À medida que completavam os testes, os alunos entregavam as respostas às professoras, que as corrigiram uma a uma, tendo entregue depois aos participantes um diploma comprovativo de que tinham frequentado a bordo do navio um curso de língua portuguesas. Também ganhei o meu certificado por ter frequentado o curso de português, autenticado com as assinaturas das duas professoras, que simultaneamente são, como se lê no diploma, uma, “Dancing Maestro” e outra, “Sport Instructor”. Mais uma vez me custou ver os alunos a usarem a pronúncia do Brasil, mas infelizmente já vou estando convencido de que esse será o futuro da língua portuguesa… Mais uma conferência interessante, com o título “Os povos índigenas do Brasil”. Nunca tinha pensado nisso, mas hoje percebi que, tal como a Europa, teve as suas civilizações antigas, desde a pré-história, o mesmo aconteceu com o Brasil e a América do Sul. Os índios que encontrámos depois da nossa chegada ao Brasil, eram mais do que selvagens antropófagos, pois tinham já uma cultura ancestral, que abrangia várias áreas do conhecimento. Anteriormente escrevi que todos tínhamos sido avisados para entregar os passaportes à companhia, o que fizémos. Hoje foi deixada no meu camarote uma fotocópia da folha principal do meu passaporte, autenticada pela companhia, e que nos servirá de identificação legal sempre que desçamos a terra. Depois de várias ameaças, com nuvens carregadas, finalmente à noite choveu.

DIA 12, 19 DE JANEIRO, TERÇA-FEIRA, RECIFE, BRASIL Nascer do Sol: 05h16 – Pôr-do-Sol: 17h45 Tempo: Variável Temperatura mínima: 26º C – Temperatura máxima: 31º C Mar: Pouco Agitado

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Chegada: 08h00 – Todos a Bordo: 18h30 – Partida: 19h00 Próximo Porto: Salvador da Baía (400 milhas marítimas) Informações do Diário de Bordo: Nome do Porto: Porto de Recife Distância do centro: Cerca de três quilómetros Serviços do Terminal: Loja de recordações, snack-bar Moeda: Real brasileiro (BRL) Outras moedas: Dólares são normalmente aceites, os Euros às vezes. Recomenda-se o uso da moeda local. Táxis: Sim Transportes Públicos: Sim Recordações: Casa da Cultura (a 2km lojas de artesanato e de souvenirs que vendem figuras de barro, esculturas em madeira, tapetes, madeira e vime) Compras: Centro Comercial Tacaruna (4Km), no Centro Comercial Recife (8Km), Centro Comercial Riomar (6km) Comer e beber: Mariscos – Restaurante Bargaço (Boa Viagem) Grelhados – Spettus (Boa Viagem) Comida local – Parraxaxa (Boa Viagem) Praias: Boa Viagem (7km) Porto de Galinhas (70km) Roupa nos locais de culto: Roupa ligeira permitida, proibida roupa de praia e chapéus Clima: Entre 24° e 30° C

Depois destes dias de navegação, sem terra à vista, cerca da 01h40, segundo o Diário de Bordo, começámos a nossa aproximação ao Brasil, vislumbrando em primeiro lugar a pequena cidade do Cabedelo, prosseguindo em direcção ao Cabo Branco, após o que se foi tornando mais perceptível a terra firma, seguindo uma rota de sul-sudoeste. Às 07h00 entrou a bordo o piloto do porto, e, com a sua ajuda, amarrámos no porto do Recife à hora prevista, ou seja, às 08h00. O Recife é, nos nossos dias, um dos locais mais visitados no nordeste brasileiro. Encontra-se implantada à beira mar, com um oceano atlântico de águas quentes, excelentes praias e clima tropical, quente e húmido. Para os amantes do sol, mar e praias, é um dos destinos mais escolhidos no Brasil para passar férias, em qualquer época do ano. O estado do Pernambuco, de que o Recife serve 34

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como capital, é tradicionalmente muito forte na plantação e cultivo da cana-de-açúcar, mas a cidade vive sobretudo do comércio e dos serviços. O seu porto é um dos mais movimentados do Brasil para a importação e exportação de mercadorias. Esta cidade transformou-se numa grande metrópole, contando já com cerca de 1,6 milhões de habitantes, atraíndo muita gente das zonas do interior, como de costume a fugir da pobreza, à procura de uma vida melhor. O seu crescimento tem sido demasiado grande para que as infra-estruturas o possam acompanhar, não diferindo os seus problemas dos de outras grandes cidades brasileiras. As desigualdades sociais são muito grandes e a violência uma constante do dia-a-dia. Arquitectonicamente, a cidade é um caos, crescendo mais ou menos ao sabor dos interesses económicos e políticos. Há de tudo um pouco, infelizmente muitas vezes sem critério estético ou urbanístico, predominando as torres de apartamentos, se possível muito altas. Desde o governo de Fernando Henriques Cardoso, e depois nos do Partido dos Trabalhadores (PT), sobretudo nos de Lula, que coincidiram com um período de grande crescimento mundial, que o Brasil deu um enorme salto na gestão urbana, e há muita gente bem intencionada, que procura que as coisas mudem, mas os problemas são muitos, e os interesses instalados também, pelo que é tudo muito difícil alterar a situação. Como em qualquer outra grande cidade brasileira, o trânsito é quase permanentemente compacto, pois as estradas, além de más, são insuficientes para o número de veículos existentes. No território da cidade dá-se o encontro dos rios Capibaribe e Beberide, que vão encontrar o Oceano Atlântico sob a forma de um delta com vários braços de água. Por isso, Recife é frequentemente comparada mal – digo eu – a Veneza, devido aos seus muitos canais e pontes, sendo possível captar uma imagem muito interessante da cidade num passeio de barco, havendo muita oferta para isso. Até ao séc. XVII, Recife era um pequeno povoado, que vivia na sombra da opulenta e nobre Olinda, esta sim, uma cidade colonial importante. Aproveitando a anexação de Portugal pela Espanha, em 1630, os holandeses, então em guerra com Espanha, invadiram e conquistaram Recife e Olinda, tendo-se instalado no Pernambuco. 35

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É verdade que os holandeses aparentaram revelar-se, sob o ponto de vista religioso, mais tolerantes do que os portugueses, e que o digam os judeus portugueses que aqui chegaram, vindos sobretudo de Amesterdão, onde viviam depois de terem sido forçados a fugir de Portugal, para escapar às perseguições e fogueiras da inquisição. Porém, a tolerância holandesa não deixou de ser selectiva, pois promoveram a abertura de dezenas de igrejas protestantes, prosseguindo com a anterior política de conversão dos índios, a bem, ou a mal, claro, ao mesmo tempo que saqueavam e queimavam sem contemplações as igrejas católicas. Nesse período da história, os holandeses ocuparam grande parte do Nordeste, e com a jactância própria dos conquistadores, baptizaram todos esses territórios com o nome de Nova Holanda, com que pretendiam substituir o nome de Brasil. Verdade seja dita que, apesar da forte presença militar holandesa, e dos parcos meios e condições dos colonos portugueses, que até 1640 até o próprio País tinham perdido, por virtude da anexação pela Espanha, nunca deixou de haver resistência ao invasor, e poucos foram aqueles que se deixaram corromper com a promessa de benesses. Os holandeses entregaram a administração e a exploração dos novos territórios a uma companhia que tinham formado, com o nome de Companhia das Índias Ocidentais. Em 1637, chega ao Recife, como comandante dos holandeses, um militar e conde alemão que se encontrava ao serviço dos holandeses, de seu nome Maurício de Nassau, que pôe em prática um enorme plano para transformar a aldeola de Recife, numa grande cidade moderna, e que teria o nome de Mauritsstad, ou cidade de Maurício. Para Nassau, a cidade de Olinda, saqueada e incendiada pelos holandeses era algo do passado, e encantou-se com as belezas do Recife, que quis aproveitar para construir a capital da Nova Holanda. Na altura, Recife e Pernambuco, eram altamente rentáveis, por virtude do valor da enorme produção de cana-e-açúcar, que de seguida era enviada para a Holanda e, por isso, não faltaram os meios financeiros a Nassau para tentar concretizar os seus planos. Durante o seu consulado, Recife transformou-se para muito melhor, com a construção de muitas pontes, diques, fortes, palácios e casas. 36

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Hoje, a presença e obra de Nassau na cidade é reconhecida pelos recifenses, existindo inclusive uma universidade com o seu nome. Com a Restauração em Portugal, no ano de 1640, fortaleceu-se cada vez mais a resistência dos brasileiros aos holandeses, que acabaram por ser definitivamente expulsos do Pernambuco, depois da Segunda Batalha dos Guararapes, em 1649. Porém, só renunciaram de vez, de facto e de direito, à sua Nova Holanda, no Tratado de Haia, assinado em 1661. Infelizmente, a invasãoa holandesa do Brasil saiu cara a Portugal pois, como contrapartida da renúncia definitiva da Holanda sobre o Brasil, e nos termos do dito Tratado de Haia, o nosso país teve de pagar oito milhões de florins, que equivaliam na altura a cerca de quatro toneladas e meia de ouro, e ainda lhe cedeu todos os direitos que então possuía sobre o Ceilão e as Ilhas Molucas! O Recife, transformado em cidade moderna por Nassau, não mais deixou de crescer e de se destacar como uma das principais cidades do Brasil. Enquanto isso, assistiu-se ao declínio da outrora toda poderosa Olinda, situada a apenas 7km do Recife, mas que conserva toda a sua beleza paisagística e artística. Olinda foi fundada em 1535, pelo primeiro donatário da capitania de Pernambuco, Duarte Coelho. Conta-se que estando no local, e encantado com a sua beleza, terá proferido a frase “Oh que linda situação para construir uma vila”. Não é um facto histórico, mas o certo é que se atribui a essa expressão a origem do nome de Olinda. Recife é terra plana, enquanto Olinda se ergue sobre um monte e várias colinas, ambas diante do mar. Foi a riqueza proporcionada pelo cultivo da cana do açúcar que permitiu que Olinda, então a capital do Pernambuco, se transformasse numa da mais importantes cidades brasileiras, com belíssimos palácios, igrejas e mosteiros. Com a expulsão dos holandeses, Olinda foi reconstruída e datam daí os principais monumentos que hoje podemos visitar, e que estão entre os melhores e mais bem conservados do Brasil. Foi promovida a cidade e voltou a capital de Pernambuco, estatuto que viria mais tarde a perder definitivamente com o declínio da indústria açucareira, a favor do Recife. De entre os mais notáveis edifícios de Olinda, podem citar-se, a Catedral, a Igreja do Carmo e a Igreja e Mosteiro de São Bento, que merece a pena visitar. 37

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Desde 1982 que o centro histórico de Olinda está protegido pela UNESCO, que o declarou como Património da Humanidade. Presentemente, Olinda tem uma população de mais de 350000 pessoas, mantendo já uma vida própria muito intensa e rica, ao mesmo tempo que desempenha o papel de centro sub-urbano do Recife, onde muitos dos seus habitantes trabalham. Quase todas as grandes cidades do Brasil se arrogam o papel de ter o melhor ou maior carnaval do mundo, festa por excelência dos brasileiros. O de Olinda é famoso, por ser um carnaval de rua, com o desfile dos seus famosos gigantones, bonecos coloridos com cerca de dois metros de altura, que desfilam na cidade alta, nas ruas estreitas e íngremes, no meio de uma multidão que chega a atingir mais de um milhão de pessoas, o que acaba por não ser muito à dimensão do Brasil. Com efeito, neste país, as principais festas populares, contam muitas vezes com a participação de milhões de pessoas, o que é impressionante. Os passageiros tiveram hoje à sua disposição cinco excursões à escolha. A mais básica chamava-se “Recife, a Veneza Brasileira e Compras da Casa da Cultura”. Tratou-se de um pequeno passeio pela cidade velha. Além disso, percorreu também a zona mais conhecida da metrópole, que se espraia ao longo dos vários quilómetros da praia mais famosa da cidade, a Praia da Boa Viagem, onde ficam situados os principais hotéis. Quanto a mim, a praia goza de uma fama imerecida, pois, além de ser perigosa, devido à presença frequente de tubarões, tem um areal muito estreito, que em muitas partes desaparece quase totalmente na maré cheia. E mesmo por cima, passa a marginal, sempre cheia de trânsito. A excursão termina na chamada Casa da Cultura, uma antiga prisão transformada em pequeno e primitivo centro comercial, muito badalada nos roteiros turísticos, mas onde só se encontram souvenirs banais e com pouco interesse. Outra excursão chamava-se “ Tour do Recife em barco”, e como o próprio nome indica tratou-se de um passeio pelos vários canais do rio Capibaribe que percorrem a cidade e que lhe dão o tal nome de Veneza Brasileira. A terceira consistia em passar o dia numa das mais lindas e afamadas praias do Brasil, situada a setenta quilómetros a sul, a Praia das Galinhas. É realmente bonita, mas as infra-estruturas deixam muito a dese38

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jar, e praias pelo menos tão lindas, há felizmente muitas no Brasil, mesmo não longe daqui, e que não gozam de tal fama. Outra excursão tem como destino principal Olinda. A última é a visita a dois lugares de cultura, de dois primos completamente diferentes e que gozam da fama de se detestarem reciprocamente. Um, milionário, dá pelo nome de Ricardo Brennand e é um colecionador compulsivo. Num castelo de estilo inglês que mandou construir, totalmente deslocado, instalou uma enorme colecção, que vai do pechisbeque, às imitações de obras de arte universais (por exemplo, o David de Miguel Ângelo, entre outras), até peças de grande valor artístico. O outro primo, Francisco Brennand, é um ceramista, escultor e pintor, que tem uma obra incrível, e que, na minha opinião, mesmo no Brasil, não é devidamente reconhecida. Da minha parte associei-me a um passageiro meu conhecido, alugámos um táxi à hora, por preço muito razoável, e fomos visitar a obra de Francisco Brennand e depois a parte velha do Recife. Francisco Brennand adquiriu há muitos anos uma desactivada fábrica de tijolo da família, e aí construiu um acervo impressionante e monumental de painéis de azulejos e esculturas de cerâmica, que para quem se interessa por arte é visita obrigatória. Não cabe no âmbito deste trabalho o desenvolvimento da descrição ou análise da obra do artista, mas quem se mostrar interessado encontra facilmente matéria abundante de pesquisa. A parte antiga de Recife é pequena, mas encontra-se bem restaurada e com vários pontos de interesse. O Marco Zero, é um sinal convencional a partir do qual se contam todas as distâncias no Estado de Pernambuco, de que Recife é a capital, e fica numa linda e arranjada praça, ao lado do mar. Diante da praça do Marco Zero e separada por um estreito braço de mar, fica um Parque de Esculturas, do dito Francisco Brennnand, sobressaindo uma monumental coluna chamada de Cristal. A pouco mais de cinquenta metros, numa rua paralela, fica a curiosíssima Sinagoga Judaica, a mais antiga da América do Sul, cuja história envergonha a Inquisição, pelo seu conhecido papel persecutório, enobrecendo -- neste caso específico – o pragmatismo e a tolerância dos holandeses, que em pouco mais de vinte anos souberam aceitar e aproveitar os muitos talentos de uma comunidade 39

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