O Rancho da Carqueja

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ANTÓNIO FRANCISCO BARATA

O RANCHO DA CARQUEJA

Romance histórico baseado nos acontecimentos académicos do séc. XVIII

Recolha de textos, introdução e notas por Mário Araújo Torres

ANTÓNIO FRANCISCO BARATA O RANCHO DA CARQUEJA

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título: O Rancho da Carqueja: Tentativa de romance histórico baseado nos acontecimentos académicos do século XVIII

autor: António Francisco Barata (1836-1910)

edição: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro)

recolha dos textos, edição, introdução e notas: Mário Araújo Torres

imagem de capa: Estudante de Coimbra preso por verdeal

grafismo de capa: Ângela Espinha

paginação: Paulo Resende

1.ª edição

Lisboa, abril 2024

isbn: 978‑989 9198 02 9

depósito legal: 528044/24

© Mário ArAújo Torres

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ANTÓNIO FRANCISCO BARATA

O RANCHO DA CARQUEJA

Recolha de textos, introdução e notas por Mário Araújo Torres Preview

tentativa de romance histórico baseado nos acontecimentos académicos do século xviii

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INTRODUÇÃO

1. A Universidade portuguesa, desde a sua fundação em Lisboa, em 1290, e ao longo das suas sucessivas mudanças de sede, até ao estabelecimento definitivo em Coimbra, em 1537, sempre se confrontou com conflitos entre a população universitária e a população local, gerados pelos privilégios régios concedidos aos universitários, designadamente o foro exclusivo 1, que os isentava da sujeição aos tribunais comuns, e a abundante legislação que os protegia nos domínios da habitação, abastecimento de géneros e fiscalidade.

Esta situação de conflitualidade agravava-se pela natural tendência de os estudantes, a generalidade pela primeira vez nas suas vidas fora do seio familiar, se agregarem em associações, sociedades, bandos, trupes ou ranchos, e pela frequência com que, apesar das reiteradas proibições legais, andavam armados 2 .

A transferência da Universidade de Lisboa para Coimbra, em 1307, foi pedida por D. Dinis ao Papa Clemente V, com alusão aos scandalla et dissentiones que se davam entre os escolares e os cidadãos, por causa dos privilégios de que gozavam, tais como o dos arrendamentos das casas com rendas taxadas para os estudantes e o foro criminal privilegiado.

No que respeita à Universidade de Coimbra, o longo reinado de D. João V, que durou de 1706 até à sua morte em 1750 − abarcando os Reitorados de D. Nuno Álvares Pereira de Melo (1703-1709), D. Gaspar de Moscoso e Silva (1710-1715), D. Nuno da Silva Teles (1715-1718), D. Pedro Sanches Farinha de Baena (1719-1722),

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1 Cf. António de Vasconcelos, Origem e evolução do foro académico privativo da antiga Universidade Portuguesa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917.

2 “Os estudantes seculares das Universidades usavam espada, para se distinguirem da clericatura; vivendo portanto fora da clausura e da comunidade dos Colégios, entregaram-se à vida airada, à tuna, nome talvez derivado dos nocturni grassatores, que andavam provocando rixas com os burgueses, fiados na impunidade de um foro privilegiado” (Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra nas suas relações com a instrução pública portuguesa, Tomo I, 1289 a 1555, Lisboa, Tipografia da Academia Real das Ciências, 1892. p. 83).

Francisco Carneiro de Figueiroa (1722-1744) e D. Francisco da Anunciação (1745-1757) −, caracterizou-se, algo contraditoriamente, por assinaláveis melhorias do património edificado, a par de abaixamento do nível literário e científico do ensino e crescente indisciplina. Foi no Reitorado de D. Nuno da Silva Teles que, por provisão régia de 31 de outubro de 1716, foi autorizada a construção do novo edifício da Biblioteca da Universidade e, dada a escassez da coleção bibliográfica existente, a aquisição da livraria do Dr. Francisco Barreto. A sumptuosa obra prolongou-se pelos dois Reitorados seguintes, ficando a obra de pedraria concluída em 1722 e os interiores em 1728, abrangendo assim o período de atividade do Rancho da Carqueja (1720-1721).

Segundo o Visconde de Vila Maior (Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, Reitor da Universidade de 1869 a 1884) 3:

«Se o governo de D. João V não trouxe ainda à Universidade a restauração dos estudos, que era tão imperiosamente exigida pela vergonhosa decadência em que eles se achavam, e que os progressos científicos do século XVIII estavam reclamando, deixou todavia assinalada a sua época pela edificação de um monumento tão majestoso e de tanta utilidade como é o da Biblioteca, que ficou sendo um dos mais belos estabelecimentos deste género que atualmente existem.

«Apesar de terem já decorrido mais de quatro séculos desde a fundação da Universidade, não havia nesta uma livraria correspondente à sua prolongada existência. Era escassa a coleção bibliográfica que a Universidade possuía e muito mesquinha a quantia anual que os Estatutos destinavam para aquisição dos livros, pois que não excedia a 40$000 réis, e esses mesmos nem sempre tinham a devida aplicação.

«O Reitor Nuno da Silva Teles, reconhecendo o desdouro que acarretava sobre a Universidade uma tão lastimosa falta, e talvez

3 Visconde de Vila Maior (Júlio Máximo de Oliveira Pimentel), Exposição Sucinta da Organização Atual da Universidade de Coimbra, precedida de uma breve notícia histórica deste estabelecimento, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1877, pp. 99-101. Preview

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esperançado na propensão que El-Rei havia manifestado para as grandiosas construções, dele solicitou a permissão de edificar uma biblioteca, que fosse digna do primeiro estabelecimento de instrução do País.

«Obtida a licença pela provisão de 31 de outubro de 1716, começou a construção do edifício, colocando-se nos fundamentos a primeira pedra em 17 de julho do ano seguinte.

«Por outro lado, o mesmo Reitor alcançou autorização para comprar uma livraria por 14 000 cruzados, e fez elevar a verba anual para a compra de livros a 100$000 réis; quantia que nos parece hoje menos que modesta, mas que, num país em que dominava a Inquisição, poderia reputar-se mais que suficiente para o fim a que era destinada.

«Não foi dado a Nuno da Silva Teles ver concluída a obra que encetara, pois que a Biblioteca só ficou pronta alguns anos depois, sendo Reitor Francisco Carneiro de Figueiroa.

«Afora esta notável e utilíssima obra, nenhuma providência importante se descobre no reinado do faustoso e pródigo monarca, que pudesse interessar diretamente à Universidade. Continuava o mesmo adormecimento nos estudos e trabalhos de ciência, e o mesmo interesse beato pelas festas religiosas. Foi em 1719 que, a instâncias da Comunidade das freiras de Santa Clara, se instituiu o préstito, com pagamento de propinas, que a Corporação Universitária faz todos os anos, em dia de Rainha Santa Isabel, àquele convento, com toda a pompa académica. Foi também esta a época em que a Universidade foi mais vezes solicitada para interceder com a Santa Sé para a canonização ou beatificação de alguns fiéis que se haviam distinguido pelas suas virtudes católicas, ao que sempre o Claustro se prestou com a maior solicitude.

«Ao mesmo tempo reinava entre os estudantes um desregramento de costumes e uma indisciplina tal, que deu origem por vezes a tão graves desordens, que para as reprimir foi necessário empregar a força armada e castigá-las com severas penas. Dão testemunho do que acabamos de dizer muitos documentos. D. João IV escrevia já em 16 de maio de 1656 uma carta ao Reitor Manuel de Saldanha estranhando severamente a extraordinária e repreensível licença

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em que viviam os estudantes. No tempo do Reitor Pedro Sanches Farinha de Baena, organizou-se em Coimbra uma sociedade de estudantes malfeitores, que tais desordens cometeram, e traziam a população da cidade tão aterrada, que de noite ninguém se atrevia a sair de casa. Foi necessário que o governo de D. João V mandasse cercar a cidade e fizesse nela entrar uma força militar que, na manhã de 20 de fevereiro de 1721, prendeu 31 estudantes, entre os quais havia, segundo consta, alguns eclesiásticos.

«Denominava-se este célebre bando o Rancho da Carqueja, que deixou tão sinistras recordações dos seus distúrbios e malefícios, sendo estes de tal ordem, que exigiram severa punição. Um estudante dos mais notáveis do bando foi condenado à pena última, executado em Lisboa, e a sua cabeça exposta depois por muitos dias em Coimbra.

«Era bem deplorável nesta época o estado da Universidade, e tanto mais lastimoso nos parecerá hoje, se o quisermos confrontar com a grande animação literária e científica, que então agitava toda a Europa ao norte dos Pirinéus.»

2. O generalizado regime de indisciplina, associado a um sistema de matrículas que facilitava o absentismo, foi denunciado por Teófilo Braga 4, transcrevendo de um apontamento manuscrito dos fins do século XVIII a descrição do Rancho da Carqueja:

«Dava-se esta denominação a uma sociedade de estudantes de Coimbra, existente no meio do século XVIII. Eram seus membros os mancebos de costumes os mais depravados e dissolutos. Tinham por fim ajudarem-se mutuamente para satisfazerem as suas inclinações viciosas. Desgraçado daquele pai de família a quem a sorte havia dado alguma filha galante e formosa! Imediatamente se empreendia uma sedução por algum dos da sociedade; quando não utilizava a sedução, empregava-se a força; a inocente donzela era roubada; ficava exposta a toda a casta de indignidades; até que dela

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4 Obra citada, Tomo III – 1700 a 1800, Lisboa, Tipografia da Academia das Ciências de Lisboa, 1898, pp. 159-163.

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enfastiados a abandonavam à sua triste sorte. A sua impudência e desmoralização chegou a tal ponto que ousaram infrutuosamente lançar uma escada a uma janela para roubarem a sobrinha do próprio Reitor, que era naquele tempo o Geral dos Crúzios, cognominado o Botas. Este facto aumentou a má vontade que para com eles tinha o sobredito Reitor, que espiava com ânsia uma ocasião de se vingar desta afronta.

«Não havia ainda naquele tempo o costume de se apontarem faltas diariamente aos estudantes: frequentava quem queria; a consequência necessária disto era que os estudantes, depois de se matricularem, voltavam para suas casas; aí estudavam como e com quem lhes parecia; e só voltavam no fim do ano para os atos; é verdade que, para remediar este inconveniente, haviam duas chamadas anuais e arbitrárias, que o Reitor podia fazer quando lhe parecesse, e todos os estudantes que faltassem a estas chamadas, porque duravam só três dias, perdiam o ano; mas isto não era bastante, porque sempre transpirava com antecipação o dia em que tinha de fazer-se a chamada; havia caminheiros, pagos pelos estudantes, que partiam imediatamente a avisá-los; e assim a maior parte dos estudantes comparecia no dia prescrito. O Reitor, querendo remediar este abuso, assentou fazer a chamada com tal segredo que se não soubesse senão no mesmo dia. Deste modo, mandava chamar na véspera à meia-noite o Secretário (que morava numa casa contígua), ali mesmo mandava fazer tudo quanto era necessário, e no dia seguinte apareciam os editais nos lugares do costume, e todos quantos faltavam perdiam o ano. Assim não dava tempo a que os estudantes pudessem saber o dia com antecipação, e só podiam evitar isto aqueles que, morando mais perto, tinham a tempo a notícia. Numa destas chamadas, a que assistia o Reitor e o Secretário, sendo já no último dia, e aproximando-se a noite, chegou de fora uma grande chusma de estudantes, dos quais grande parte pertencia ao Rancho da Carqueja, que, com grande pressa, vinham apresentar-se. O Reitor, não querendo admiti-los, em razão do ódio que lhes tinha, deu-se pressa em pôr ponto à chamada, fazendo-lhes por este meio perder o ano; o que, visto por eles, que já iam entrando na sala, foi motivo de um grande tumulto, porque, rompendo em grandes gritos e morras ao Reitor, Preview

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começaram a enxovalhá-lo, primeiro com imundícies, e depois com pedras, fazendo-lhe correr à sua vida tanto risco que ele se viu obrigado a escapar-se, assim como o seu Secretário, por uma porta lateral, com grave prejuízo da sua dignidade e respeito. Esta segunda afronta ofereceu ao Reitor os meios de vingar, coberto com a capa de justiça, a primeira. Era naquele tempo Governador das Armas da cidade do Porto um irmão seu; a este mandou pedir secretamente duas companhias de um dos regimentos daquela cidade; e assim que recebeu aviso que estas se achavam perto da cidade, numa Quarta-feira de Trevas, mandou repentinamente prender pelos verdeais trinta e tantos estudantes, que foram achados culpados, e, fazendo depois entrar as companhias, os mandou imediatamente conduzir para Lisboa, algemados, por meio das ruas da cidade. Tal foi a sua vingança! Porém, D. João V, que neste tempo reinava, não satisfeito com isto, os mandou degredar a todos para os Estados da Índia. Com a perda da maior parte de seus sócios acabou o Rancho da Carqueja. A recordação deste nome ainda hoje mete medo aos velhos habitantes de Coimbra; e daqui teve talvez princípio a desconfiança e mau conceito que o povo desta cidade tem de tudo quanto é estudante, cujo procedimento tem até agora conservado essa desconfiança e esse mau conceito.»

Prossegue Teófilo Braga: «Em 20 de junho de 1722 foi degolado na Praça do Pelourinho o estudante canonista da Universidade de Coimbra Francisco Jorge Aires, natural da Vila da Feira, freguesia de Faiões, e filho do capitão Francisco Jorge Aires. Pesava sobre ele o crime do assassinato de Manuel Godinho Pereira, em 7 de dezembro de 1718, e o de ser chefe da quadrilha de estudantes denominada Rancho da Carqueja. (…) Na sentença que condena Francisco Jorge Aires alude-se à circunstância de se ter eximido do julgamento do assassinato de Manuel Godinho Pereira pelo privilégio do foro da Universidade.

(...)

«A monomania da valentia preocupava quase todos os estudantes, aproveitando todos os ensejos para expandirem o humor irrequieto.

«Por provisão de 24 de julho de 1721: “que, sendo-me presente que na ocasião dos touros que houve no Mosteiro de Santa Clara, Preview

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extramuros da cidade de Coimbra, se mascararam alguns estudantes, que juntos foram num dia insultar o juiz-de-fora, e noutro ao Corregedor da Comarca, que, vendo o excesso dos ditos mascarados, e intentando prendê-los, estes lhe resistiram com armas de fogo, e lhe feriram um alcaide; e que, não obstante a resistência, o dito Corregedor prendera nove dos mascarados; fui servido resolver que o Corregedor tirasse logo uma exata devassa e que, sem embargo de os mascarados serem estudantes, não remetesse os presos nem as culpas ao Conservador [da Universidade], seu juiz privativo, derrogando por esta vez os privilégios dos ditos estudantes, como Protetor que sou da mesma Universidade, sem embargo das razões que em carta de 27 de abril passado me representastes nesta matéria ... (...)

3. O caso do Rancho da Carqueja é geralmente considerado o mais grave dos historicamente registados, merecendo, por isso, que a ele dedicasse António Francisco Barata, no início da sua carreira literária, o romance que agora se reedita.

Também A. C. Borges de Figueiredo perfilha essa tese: «Quase fronteira ao portal da antiga Sé, fica a entrada do Beco da Carqueja, beco insignificante que na extremidade oposta se bifurca, desembocando nas Ruas de J. A. de Aguiar e da Ilha. Este beco é memorável porque, segundo parece, deu nome a uma célebre associação Preview

Resulta deste romance que António Francisco Barata faz derivar o nome do grupo do facto de costumar reunir-se em casa do seu chefe, Francisco Jorge Aires, situada no Beco da Carqueja: “Próximo do antigo e venerando templo de Nossa Senhora da Assunção − Sé Velha −, cujas paredes denegridas pelo hálito destruidor do tempo assistiram, segundo uns, à fundação da Monarquia, sem terem maior antiguidade, e, segundo outros, ergueu-as ali a raça islamita, depois de 714 da nossa era, isto é, da invasão árabe, ainda hoje existe, e já existia em 1720, o Beco da Carqueja, que fica quase fronteiro ao templo, e que, bifurcando numa extremidade, vai dar à Rua do Correio, ou de S. Cristóvão [atual Rua Joaquim António de Aguiar], e manda outro ramo para cima, para a Rua da Ilha, Grilos, etc. Neste beco é que iremos encontrar agora os nossos estudantes...”.

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académica do século passado, conhecida pelo nome de Rancho da Carqueja» 5 .

Camilo Castelo Branco começou por sustentar que o bando se chamava “do e não da Carqueja, como escrevem todos os que relembram a funesta existência daqueles rapazes perdidos”, explicando que “Carqueja e Estopa haviam sido, por aqueles tempos, dois facinorosos de Viseu, chefes dos salteadores”, e que “em honra do primeiro, escolheram os estudantes o sinistro batismo do seu bando” 6 , tendo mais tarde 7 reconhecido o seu erro, face a reparo de Joaquim Martins de Carvalho, indicando que se baseara num manuscrito do poema de João António Frederico Ferro (Saque dos Conos ou Relação do que aconteceu às Moças do Porto pela entrada do Exército Francês, em março de 1809, posteriormente editado no Rio de Janeiro e em Argel), com a seguinte dedicatória: “Este libelo é dedicado à memória do Estopa e Carqueja, dois heróis que tudo levaram a pau e espada em Viseu, aí pelos anos de mil setecentos e tantos, e de um desses valentões tomaram o cognome os estudantes de Coimbra chamados o Rancho da Carqueja”.

8 O Conimbricense, n.º 2771, de 14 de fevereiro de 1874. Preview

A versão correta foi dada por Joaquim Martins de Carvalho 8: “O título dado àquele bando de indignos estudantes não procede do tal salteador Carqueja, mencionado pelo Sr. Camilo Castelo Branco, mas tem muito diferente origem. E para provar o que dizemos, temos um documento oficial e irrefutável. Na sentença da Relação de Lisboa, de 18 de junho de 1722, que condenou à morte o estudante Francisco Jorge Aires, e a outras penas os seus dignos companheiros, lê-se com referência ao dito Aires, entre outras coisas, o seguinte: «Mostra-se mais que, cometendo-se nos anos de 1720 a 1721 vários insultos, e escandalosos excessos na Universidade de Coimbra, por vários estudantes, de que se compunha um ‒ Rancho, que denominaram da Carqueja ‒ originando este nome de haverem

5 Coimbra Antiga e Moderna, Lisboa, Livraria Ferreira, 1886, pp. 148-149.

6 Noites de Insónia oferecidas a quem não pode dormir, Lisboa, n.º 1, janeiro 1874, pp. 94-95.

7 Noites de Insónia, n.º 2, fevereiro 1874, pp. 97-98.

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queimado com ela uma porta das casas em que vivia um João de Sequeira, em que entraram com estas e outras violências para o maltratarem, obrigando-o a saltar por uma janela para se livrar daquele insulto.» (...) Vê-se, portanto, evidentemente, que com todo o fundamento temos chamado Rancho da Carqueja, ao tal bando de perversos estudantes, e não Rancho do Carqueja, como pretende o Sr. Camilo Castelo Branco, no seu recente livro ‒ Noites de Insónia.”

Camilo, no citado n.º 2 das suas Noites de Insónia, reconheceu como “justas as reflexões do estudioso antiquário Joaquim Martins de Carvalho”.

O nome do grupo resulta, pois, não da localização no Beco da Carqueja da casa onde se reuniam, nem de homenagem a um salteador de Viseu, mas de terem usado carqueja para queimarem as portas de uma casa que assaltaram. Tese esta confirmada pelo manuscrito, coevo dos factos, intitulado Relação do feliz sucesso que contra o Rancho da Carqueja teve a justiça humana movida pela divina justiça, reproduzido no presente volume.

4. O Rancho da Carqueja seria composto por cerca de 60 elementos 9

A lista dos membros presos em 20 de fevereiro de 1721, em Coimbra, apresenta variações de autor para autor.

Num manuscrito possuído por Camilo Castelo Branco, consultado por Cardoso Marta, consta uma lista dos 24 membros do Rancho que foram presos, a maioria na cadeia pública de Coimbra, donde foram remetidos para a Cadeia do Limoeiro, em Lisboa. Em Lisboa, foi executado Francisco Jorge Aires e morreram no Limoeiro António da Costa e Silva, o Pescada, e José da Horta.

Recopilando as várias listagens, fizeram parte do Rancho: António Carneiro dos Santos, natural de Lisboa, filho de António Carneiro dos Santos. Com matrículas em Instituta (15/10/1715

9 Cardoso Marta, “«O Rancho da Carqueja» (documento novo)”, em Feira da Ladra, revista mensal ilustrada, Lisboa, Tomo III, pp. 89-98, transcrito nos Anexos.

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e 21/1/1722) e em Cânones (1/10/1716, 1/10/1723, 1/10/1724, 1/10/1725, 1/10/1726 e 1/10/1727); bacharel em Leis em 27/7/1723; formatura em Cânones em 26/5/1724.

António da Costa e Silva, o Pescada, natural de Lisboa. Com matrículas em Instituta em 1/10/1719 e em Cânones em 1/10/1720. Morreu no Limoeiro.

António Maceiro, natural de Coimbra.

Francisco Jorge Aires, natural de Faiões, Terra da Feira, filho de Francisco Jorge Aires. Com matrículas em Instituta (1/10/1713) e em Cânones (1/10/1714, 1/10/1716, 1/10/1717, 1/10/1718, 1/10/1719 e 1/10/1720); bacharel em Cânones (6/2/1719). Executado em Lisboa em 20/6/1722.

Padre Francisco Pereira de Góis [ou Francisco Ferreira de Góis], natural de Pereira.

Francisco de Sá, natural de Évora. Evadiu-se de Coimbra para Évora, donde se passou para Espanha.

Jacinto de Figueiredo [Freire] [ou Jerónimo de Figueiredo], natural de Almeida, filho de Cristóvão de Figueiredo Freire. Com matrículas em Instituta (1/10/1716) e em Cânones (1/10/1717, 1/10/1718, 1/10/1719, 1/10/1720, 1/10/1721 e 1/10/1722); bacharel (25/4/1722) e formado (27/3/1723) em Cânones. Constam do Arquivo Nacional da Torre do Tombo documentos relativos à sua ordenação na Diocese da Guarda (2/4 a 7/6/1724) e à sua habilitação para a Ordem de Cristo (2/8/1736).

João Pedro Ludovice, nascido (1/1/1701) e falecido (5/6/1760) em Lisboa, filho de João Frederico Ludovice 10. Com matrículas em Instituta (11/10/1717) e em Cânones (1/10/1718, 1/10/1719, 1/10/1720, 21/10/1721 e 1/10/1722); bacharel (27/6/1722) e formado (17/7/1723) em Cânones. Escrivão da Mesa do Desembargo do Paço. Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo (9/9/1734). Familiar do Santo Ofício (20/4/1736). Fidalgo Cavaleiro da Casa Real

10 Cf. João A. Piloto, Vida e obra do Arquiteto João Frederico Ludovice, Lisboa, 1952; e Hermann Kellenbenz, João Frederico Ludovice: O Construtor do Convento de Mafra, Lisboa, 1959.

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(20/6/1748). Filho do alemão Johann Friedrich Ludwig (João Frederico Ludovice) e da italiana Agnese Morelli. Formou-se em arquitetura nas obras de Mafra, substituindo o seu pai na direção das mesmas em 1730.

João Pereira [ou José Pereira], criado de servir.

João dos Santos, natural de Coimbra, porteiro da cidade de Coimbra.

José António de Azevedo, natural de Lisboa. Com matrículas em Instituta (1/10/1718) e em Leis (1/10/1719 e 1/10/1720).

José da Cunha Borges, natural de Montemor-o-Novo, filho de Afonso da Maia Borges. Com matrículas em Cânones (1/10/1718 e 1/10/1719) e em Leis (1/10/1720, 1/10/1722 e 1/10/1723); bacharel (5/9/1723) e formado (22/5/1724) em Leis.

José de Horta, natural de Lisboa, filho de Manuel de Horta. Com matrículas em Instituta (1/10/1714) e em Cânones (1/10/1715, 1/10/1716, 1/10/1717, 1/10/1718, 1/10/1719 e 1/10/1720); bacharel em Cânones (18/6/1720). Morreu no Limoeiro.

11 D. Rodrigo da Costa (10/11/1657 - 16/11/1722), quinto filho de D. João da Costa, 1.º Conde de Soure. Governador da Ilha da Madeira (1690-1697), Governador e Capitão-General do Estado da Baía (1702-1705), Governador (1686-1690) e Vice-Rei (1707-1712) da Índia. Preview

José Pereira Manojo [ou Manoio], natural da Baía (Brasil), filho de João Pereira Manojo. Com matrículas em Instituta (12/11/1716), e em Leis (1/10/1717, 1/10/1718, 1/10/1719, 1/10/1720 e 1/10/1721); bacharel (15/7/1722) e formado (18/7/1722) em Leis.

José Rodrigues Esteves, natural de Lisboa, filho de João Rodrigues Esteves. Com matrículas em Instituta (1/10/1715), em Cânones (1/10/1716 e 1/10/1717) e em Leis (1/10/1718, 1/10/1720 e 1/10/1725); bacharel (10/6/1720) e formado (5/6/1726) em Leis.

Padre José da Silva Coutinho, natural de Lisboa. Com matrículas em Instituta (1/10/1720) e em Cânones (15/1/1724).

Lourenço Pimenta, natural de Coimbra.

D. Manuel Alexandre da Costa, natural de Lisboa, filho de D. Rodrigo da Costa, Vice-Rei da Índia 11 e neto de D. João da Costa,

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1.º Conde de Soure 12. Com matrículas em Cânones (1/10/1717, 1/10/1718, 1/10/1719 e 1/10/1720); bacharel (28/7/1723), formado (26/11/1723), com suficiência (19/12/1723), licenciado com exame privado (8/7/1724) e doutor (30/7/1725) em Cânones; bacharel (30/3/1717), licenciado (31/5/1717) e mestre (26/6/1718) em Artes. Abade da Igreja de Santa Cruz na Província do Minho, e Principal da Santa Igreja de Lisboa, em que entrou a 13 de janeiro de 1739.

Manuel António Ramos, natural de Lisboa, filho de José Ramos. Com matrícula em Instituta (24/10/1712) e em Cânones (1/10/1713, 1/10/1714, 1/10/1715, 1/10/1716, 1/10/1717, 1/10/1718 e 24/10/1720); bacharel (9/7/1718) e formado (10/6/1720) em Cânones.

Miguel Pereira Coelho Manco 13, natural de Elvas, filho de João Coelho e de Angélica Pereira. Com matrículas em Instituta (1/10/1717) e em Leis (1/10/1718, 1/10/1719, 1/10/1720, 14/11/1726, 4/11/1727, 1/10/1728 e 1/10/1729); bacharel (19/7/1730) e formado (27/7/1730) em Leis. Beneficiado na paroquial Igreja de Santa Maria Madalena da Vila de Olivença. Era em 1741 advogado nos auditórios de Elvas.

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12 D. João da Costa (Lisboa, 1610 - Lisboa, 22/1/1664). Participou na aclamação do Duque de Bragança como Rei de Portugal e depois na defesa do Alentejo, com destaque para a batalha de Montijo (10/5/1644). Comandante de Armas no Alentejo (1650-1653). 1.º Conde de Soure (15/8/1652). Embaixador a Paris (1659-1660).

13 Este membro do Rancho da Carqueja chamava-se Miguel Pereira Coelho, mas aparece referido na generalidade das obras como Miguel Pereira Coelho Manso, o que causou problemas à localização de elementos a ele respeitantes no Arquivo da Universidade de Coimbra (cf. Fernando Taveira da Fonseca, A Universidade de Coimbra (1700-1771): Estudo social e económico, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1995, pp. 412-413, nota 172). Só no romance de Barata aparece como Miguel Pereira Coelho Manco, o que se afigura estar certo, sendo Manco (e não Manso) uma alcunha derivada do facto de, como consta do documento publicado no final do romance, “tinha os pés torcidos, com as pontas voltadas para dentro”.

18 MÁRIO ARAÚJO TORRES

Pedro Gomes Barbosa, natural de Salvaterra. Com matrículas em Instituta (23/10/1716) e em Cânones (1/10/1717, 1/10/1718, 1/10/1719 e 1/10/1720).

Roque Monteiro Paim, natural de Lisboa. Com matrículas em Instituta (16/1/1719 e 1/10/1719) e em Leis (1/10/1720, 1/10/1721, 1/10/1722, 1/10/1723, 1/10/1724, 26/10/1725, 1/10/1726 e 1/10/1727).

Tomás da Silva, natural de Coimbra. Com matrículas em Instituta (1/10/1717) e em Cânones (1/10/1717, 1/10/1718, 1/10/1719, 1/10/1720, 1/10/1721, 1/10/1723 e 1/10/1724); bacharel em Cânones (5/7/1721).

Padre Vicente Gomes Álvares Lobo [ou Vicente Gonçalves Lobo], natural do Algarve.

Existem ainda referências a dois outros membros do Rancho: um filho do Confeiteiro de Loures, que foi preso em Lisboa; e um estudante de Aveiro, cujo nome se ignora, que também foi preso.

Para além da intriga romanesca, a obra tem interesse pela descrição de Coimbra, com suas ruelas, becos e escadas, e hábitos académicos (como o julgamento ou defesa de teses, cerimónia iniciática do novo membro do grupo, José António de Azevedo). Pormenorizadas são as descrições das casas habitadas pelos carquejeiros: Francisco Jorge Aires no Beco da Carqueja (com outra entrada pela atual Rua Joaquim António de Aguiar) e depois na casa cedida por Miguel Pereira Coelho Manco, no Beco de S. Marcos (que liga a Rua do Colégio Novo à Rua da Esperança, atual Rua do Dr: João Jacinto), e o padre Vicente Gonçalves Lobo, no cimo da Couraça Preview

5. A obra de António Francisco Barata, agora reeditado, teve grande sucesso na época: começou a ser publicada como folhetim num jornal, mas, dado o interesse suscitado, viria a ser impressa em livro (1864), posteriormente reeditado (1904).

Inspirada num manuscrito encontrado por Barata, é uma versão romanceada dos factos, entrelaçados com um caso amoroso entre o chefe do Rancho e Maria da Pureza, vendedora na Praça de S. Bartolomeu, onde, no final, haveria de ser consumida pelo tempo a cabeça de Francisco Jorge Alves, espetada num poste de pinheiro.

IINTRODUÇÃO 19

dos Apóstolos, também com dupla entrada (pela Rua do Museu, junto à Cerca dos Jesuítas).

Na presente edição, além da reprodução do romance, de acordo com a sua segunda edição, insere-se em fac-simile um manuscrito coevo (de 1721) com a relação dos factos, para cuja transcrição agradeço o contributo de Ilídio Barbosa Pereira e de Paula França. Também se reproduz a sentença da Relação de Lisboa condenatória de Francisco Jorge Aires, publicada por Joaquim Martins de Carvalho no Conimbricense, e artigos de Camilo Castelo Branco, Joaquim Martins de Carvalho e Cardoso Marta.

Encerram o volume desenvolvidas notas sobre a vida e obra de António Francisco Barata.

mário araújo torres.

20 MÁRIO ARAÚJO TORRES
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ANTÓNIO FRANCISCO BARATA

O RANCHO DA CARQUEJA

TENTATIVA DE ROMANCE HISTÓRICO

BASEADO NOS ACONTECIMENTOS ACADÉMICOS

DO SÉCULO XVIII

Reproduziu-se, com atualização de ortografia, o texto da 2.ª edição. Preview

1.ª edição: Coimbra, Imprensa Literária, 1864, 196 páginas.

2.ª edição: Lisboa, Empresa da História de Portugal, 1904, 178 páginas.

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«Espera o bem que do trabalho mana.»

Fernão álvares do oriente.

AO ILUSTRÍSSIMO E EXCELENTÍSSIMO

SENHOR CONDE DA GRACIOSA, EM SINAL DE MUITA AMIZADE E GRATIDÃO

O Autor

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Guardo uma lembrança de haver lido algures que os antigos costumavam colocar suas estátuas sobre colunas elevadas, para dessa forma desviarem das vistas públicas os defeitos delas: e que, ao modo dos antigos, o nosso Heitor Pinto pusera sob a proteção do Duque de Bragança, D. Teodósio, alguns dos seus famosos Diálogos, como em altíssima coluna, onde as imperfeições deles mal se pudessem enxergar.

Na dificuldade de lembrar ideias novas, eu farei como fez o excelente prosador, e irei pôr ao abrigo dos maus críticos o meu livrinho, colocando-o nas mãos de V. Ex.ª. E como as santas e profundamente filosóficas máximas de Jesus têm sempre um valor realíssimo, e um espírito vigente e ativo, quando um homem como V. Ex.ª bondoso aperta a mão do artista, risonho e satisfeito o recebe em sua casa e o faz assentar à sua mesa, por contente me darei se o meu curto e mal tecido romance lograr as atenções de V. Ex.ª.

De V. Ex.ª o mais obrigado amigo e obediente servo,

Coimbra, Setembro de 1864.

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antónio Francisco barata.

O RANCHO DA CARQUEJA 25

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Por vezes ouvíramos falar em Coimbra no Rancho da Carqueja.

Fora o Rancho da Carqueja uma sociedade académica cujo principal fim era o mútuo divertimento.

Mas não era só o divertimento, na singeleza da frase, que o Rancho tinha por norte. A ideia mais extravagante e louca era recebida com frenético aplauso e executada com admirável pontualidade.

Nos ecos da tradição ouvimos ainda muitos lamentos, queixumes e aflições.

Mas nunca havíamos lido uma só palavra a tal respeito, a não ser na Macarronea, onde se diz a pág. 146: «Atreveu-se a tanto esta cruel feição, que pôs editais, congregou exército, a que chamaram o Rancho da Carqueja. Não me detenho em vos contar o fim que teve esta diabólica feição, porque assaz é sabido no nosso Reino. Injúria será sempre da nobreza escolástica (enquanto permanecer sua memória) semelhante feição, que mais parece de marabutos renegados que de estudantes enobrecidos.»

Cremos que alguns livros ou periódicos desses tempos consagrassem algumas linhas aos famosos distúrbios do Rancho, que chegou mesmo a inquietar o faustoso Monarca D. João V; mas, procurando-as, não topamos nenhuma a não serem as que citadas ficam.

Em 1863 foi que nos veio à mão um manuscrito coevo, onde mão curiosa traçou esclarecimentos bastantes para podermos pôr o público ao facto dos segredos e movimentos do Rancho.

Mal concatenados se liam nele os factos. Má sintaxe, detestável gramática e nenhuma ortografia. Mas, isto não obstante, por homem curioso, amigo de sua pátria e da verdade, haviam sido escritas aquelas regras, em medonha caligrafia.

Não era conhecido no mundo literário o nome do autor daquelas linhas: isto fez com que as reputássemos apócrifas, enquanto as não autenticámos na secretaria da Universidade.

Esta razão por um lado, por outro o testemunho de pessoas que ainda conheceram o laboriosíssimo compilador de notícias concernentes a Coimbra, foram, a nossos olhos, provas de sobejo para darmos inteira fé e todo o crédito ao dito manuscrito.

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PROLUSÃO
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Em folhetim no Comércio de Coimbra começara, pois, a sair a lume uma notícia a respeito do Rancho da Carqueja.

Com formas românticas se lia ela. Isto, e a fertilidade do assunto fez com que concebessemos e nutríssemos a ideia que hoje realizamos, de fazer dos esclarecimentos dados em artigos gratuitos, obra de maior fôlego, e, quiçá, proveitosa.

Ninguém conhece no mercado das letras o nosso nome; daqui nasceu a necessidade de publicarmos o romance por nossa conta, procedendo à prévia assinatura pelos amigos.

Cabe dar aqui um testemunho de gratidão às gerações académicas de 1860 a esta parte, que bondosas têm assinado as nossas curiosidades literárias.

Com defeitos e achaques vai o romance. Mas, o leitor que souber o fim que mirámos e o tempo que pudemos dispensar para o tocarmos, certo nos desculpará. − Não pensamos em nos fazer conhecidos na literária república, porque poucas forças levam os nossos escritos para tranar os mares do esquecimento, mas em auferir alguns proventos da publicação do livro.

O tempo que empregámos em escrever o pequeno romance, foi o que nos sobejou das diurnas ocupações, acontecendo, as mais das vezes, mandarmos para a imprensa o original, sem havermos tempo para o ler senão mais tarde nas provas.

Isto diz-se para que a crítica sensata e cortês nos faça justiça.

Cabe também declarar aqui, solenemente, que não tivemos em vista fim político de qualquer natureza, e que ninguém infira deste romance que desejamos corrigir o presente com exemplos do passado. De suficiente civilização vai passando a presente época para necessitar de medicamentos enérgicos.

Terminaremos este escrito, a modo de prólogo, confessando que deixámos correr livremente a pena, sem nem tempo havermos para observar as regras, se regras há para este género de literatura que não sejam o respeito à moral e à decência, tendo em muita conta as palavras de A. das Neves Pereira. nas Memórias de Literatura, tomo V: «Quê! tudo na Língua Portuguesa há de ser periódico por molde? Miseráveis críticas!».

28 ANTÓNIO FRANCISCO BARATA
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DUAS PALAVRAS SOBRE ESTA EDIÇÃO

Novo era eu quando escrevi este livrinho com formas românticas. Primeira tentativa no género, revela já alguma leitura clássica, da muita a que me dei, durante mais de trinta anos, como patenteia inexperiência em tudo, audácia impensada, ostentação de breves conhecimentos, verduras, enfim.

Não é escrito para se reproduzir, nem o fora se não versasse sobre um assunto ruidoso e ensanguentado, que iniciou em Coimbra um período de distúrbios, que tem vindo até nossos dias, embora menos lamentáveis, e se não fora muito do agrado de todos quantos foram estudantes em Coimbra a leitura dele. Tudo em tão breve escrito recorda a mocidade descuidosa de quem ali passou alguns anos de vida. Referências a edifícios, nomes de ruas, nomes de homens, convidam a ler tão imperfeito escrito. Eu mesmo, ao reler agora as descrições daquelas cenas académicas, sinto-me rejuvenescido e quase alegre, da alegria que pode ter um nascido em 1836...

Saudades para a velhice. Preview

Pedir ao leitor desculpa de tantas imperfeições, escusada coisa é: o que foi do meu tempo de Coimbra e lembrar o meio em que escrevi, por certo não sorri zombeteiro de minhas incorreções e de minha insciência: verá neste livrinho apenas o modo por que dei os primeiros passos no caminho literário, caminho que cá vou seguindo ainda em Évora, quiçá com mais seguros passos.

As cenas traçadas no Rancho da Carqueja são, como disse o prodigioso cego que se chamou, e chamará, António Feliciano de Castilho:

O RANCHO DA CARQUEJA 29
30 ANTÓNIO FRANCISCO BARATA
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O RANCHO DA CARQUEJA

I

Waterloo em miniatura

A passos lentos andava o ano do Senhor de 1720.

Havia oitenta anos que Portugal sacudira com braços de ferro, e arremessara à juba do Leão de Castela a gargalheira da escravidão, fundida nos fementidos juramentos das Cortes de Tomar, em que Filipe II havia comprometido sua honra para a manutenção da autonomia portuguesa. Havia oitenta anos que o sol da liberdade alumiava o ocidente da Península, desvendado das leis ominosas e tributos vexatórios, com que a Espanha nos humilhava o colo de homens livres.

Era por dezembro.

Coimbra, a fundada pelo invasor Ataces, a madrasta de quantos bárbaros por esses tempos a senhorearam, recostada em seu trono de verdura, como odalisca em otomana de fina seda, de ouro e azul, preparava-se neste dia para festejar o 1.º de dezembro de 1640.

Estávamos, portanto, no 1.º de dezembro de 1720. O dia da independência portuguesa amanhecera formoso, como formosos costumam ser os dias do inverno neste abençoado Portugal.

Era de manhã. Os sinos do Mosteiro de Santa Cruz repicavam alegres no campanário acastelado e altíssimo, convidando todo o corpo docente da Universidade para vir, no templo de Deus, comemorar o dia solene, o dia do resgate da Pátria.

Já no Largo de Sansão 1 começavam de engrossar os grupos de cidadãos, que pelas suas sete ruas ali convergiam, e na torre elevada da Universidade anunciavam os sinos a saída do préstito.

1 Este apelido provém de um chafariz que houve no mesmo largo e que tinha uma estátua desse valente filho da tribo de Dan, que deu a morte a mil Filisteus com uma queixada de burro, que ao acaso encontrou. A estátua já não existia em 1836, ano em que o chafariz foi demolido. Preview

O RANCHO DA CARQUEJA 31

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