J O R G E C O I M B R A
Mas, por pensar em vestir os animais, até podia ser, porque umas velhas amigas da minha mãe achavam que era indecente o cão andar a mostrar a pila a toda a gente. Por isso, o desgraçado andava sempre com uma camisa e uns calções com cinto, aos quais uma delas desapertava a carcela quando o levavam a passear à rua, para ele poder levantar a pata e aliviar a bexiga contra as árvores [...] Sim, que elas eram muito pudicas. Não se riam. Eram, claro que eram. Não sei se seriam também muito atinadas da cabeça. Lá isso, não sei. Não ponho as mãos no lume. Na realidade até acho que não. Não eram mesmo. Elas até achavam que era uma vergonha as vacas não usarem soutien! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Não posso... Soutien nas vacas. Sou-ti-en-nas-va-cas!
E SE PRECISAREM DE ALGUMA COISA… JORGE COIMBRA
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E SE PRECISAREM DE ALGUMA COISA...
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JORGE COIMBRA
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E SE PRECISAREM DE ALGUMA COISA...
Jorge Coimbra, nascido em Moçambique em 1945, fez o curso de arquitetura na Escola Superior de BelasArtes do Porto. Foi professor dos ensinos secundário e superior. É coautor de vários artigos e estudos relacionados com a área da sua formação (teoria da arquitetura) e ainda autor, em parceria, do livro Sine Qua Non – A Ideologia do Habitar (A Regra do Jogo, 1986). Publicou a obra de ficção É Assim Não É (Chiado Editora, 2014). Tendo-se também dedicado à pintura e à fotografia, tem realizado regularmente exposições coletivas e individuais, quer em Portugal quer no estrangeiro.
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Como diria Almada Negreiros — já sei, vou citar: A ti, para que não penses que o dedico a outra...
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FICHA TÉCNICA edição: Edições Parténon ® título: E se precisarem de alguma coisa… autor: Jorge Coimbra capa: Hélder Santos revisão do texto: Margarida Maria paginação: Jorge Miguel Araújo 1.ª Edição Lisboa, maio 2017 isbn: 978-989-8845-14-6 depósito legal: 423182/17 © Jorge Coimbra
publicação e comercialização:
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A amizade é semelhante a um bom café: Uma vez frio, não se aquece sem perder bastante do primitivo sabor. Emanuel Kant As pessoas realmente ligadas não precisam de ligação física. Quando se reencontram, mesmo depois de muitos anos afastados, a sua amizade é tão forte quanto sempre fora. Deng Ming-Dao O amigo certo reconhece-se numa situação incerta. Cícero
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Nota do autor
E se Precisarem de Alguma Coisa... foi escrito como uma continuação de É Assim não É. Ou melhor, forma com este um díptico sobre a luta íntima e diária do autor para tentar perceber o que ele mesmo é e o mundo em que se encontra e com o qual não se identifica. É ainda, e uma vez mais, a discussão permanente entre os diferentes eus ou os diferentes pontos de vista que na mente se digladiam, na tentativa de encontrar algo que já sabe ser inalcançável: um sentido. A continuidade e ampliação dos temas e o reforço da forma são voluntariamente procurados enquanto expressão pessoal da permanente viagem que faz através da sua vida e imaginação, com o desejo de conhecer as causas ocasionais das coisas* *JORGE, João Miguel Fernandes, o regresso dos remadores, Lisboa Editorial Presença,1982. P.120.
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Por fim deixo que o meu ser e o meu corpo, lassos e soltos, se abandonem na preguiçosa cadeira de braços. Estou em frente aos grandes vidros do quarto onde trabalho. Parece-me poder tocar o fogo do céu, o mar e o rio ofuscantes. Que ilusão! Mas o que seria de nós se não fosse a ilusão? Morreríamos de realidade. Ora aí está! Bem, seja como for, sentir a existência deste refúgio como o meu lugar perfeito de fuga e evasão é uma sorte. É um sítio único! Só ele e esta ilusão acalmam os meus nervos desgastados e permitem que divague, me abstraia por momentos das múltiplas e complexas questões de todos os dias. Só eles permitem que me evada daquelas infinitas e mesquinhas coisas, sem qualquer interesse ou importância, que, por permanentes, envenenam a normal corrida ininterrupta das horas. Das nossas preciosas horas. As limitadas horas que as parcas nos concedem. Para!
Para já! Não pen ses agora nisso, ou voltam em catadupa os problema s não resolvidos e a necessidade de lhes dar uma resposta adequada. Com isso perdes, de imediato, este momento único de escape. Aproveita-o. Pois... Volta, de facto, essa necessidade, essa pressão de a tudo dar uma
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resposta adequada e pessoal. As decisões são da nossa exclusiva responsabilidade. Sempre. A regra é não haver ninguém com quem partilhar as dúvidas que nos assaltam. Infelizmente. Ou felizmente, já nem sei. Se tenho algum amigo em quem confiar, de instante a instante? – pergunto-me. Terei? Sim? Não? Eis uma incógnita. Sinto-me só. Tão só como aquela gaivota que agora passa, mesmo em frente dos meus vidros, levada pelo vento. Que cor tem o voo das gaivotas? Pronto! Outra vez! Já estou de novo agitado e só, como barco sem rumo, na maré revolta dos meus pensamentos. Não há leme que oriente a dor.
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Hoje estou deprimido. Deprimido ou talvez oprimido pelo peso das infindáveis dúvidas que, a meu ver, se acumulam sobre tantos factos que, por regra, se consideram banais. Sem interesse. Sem interesse? Só hoje? Cala-te. Bolas! As minhas dúvidas são muitas. Mesmo muitas. Uma angustia-me desde há muito tempo: duvido ou questiono-me sobre a amizade e sinto falta dela. Ela existe mesmo? Não sei. Desde que, um dia, um amigo de longa data me disse que só era bom estar comigo quando tinha problemas... E isso porque eu era um ótimo ouvinte, sempre disposto a darlhe apoio e a elevar o seu nível de autoestima! Mais: Que, fora essas situações, não lhe apetecia a minha companhia... Fiquei varado. E eu? Era um mero utilitário, «muro das lamentações»? Caramba! Isto é de um amigo? E éramos muito amigos. Eu era, sim. E achava que ele também! Achava s? Cala-te, já disse! Sem qualquer dúvida. Porque havia de duvidar se ele sempre o afirmara? Ah! Pois! Que burro sou! Por isso, ele disse-me a verdade! Aqueles que, na realidade, são mesmo amigos não têm de esconder uns dos outros o que sentem ou pensam. Nem devem. Claro! Só assim consigo entender alguma coisa. Consigo mesmo? Porque não pensei logo nisso? Decerto que sim, era mesmo muito meu amigo. Que ironia! Mas... mas, apesar de tudo, das desatenções, dos esquecimentos, da indiferença quando presente, não posso acreditar que o não era. A desilusão é muito grande. Demasiado grande. Ele era meu amigo. Era. Quando um amigo mais velho me disse que estava admirado, porque afinal eu era um tudo ou nada mais interessante do que
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ele pensava ser possível... e que sempre tinha considerado que eu era uma pessoa insignificante... Insignificante? Eu? Mas... Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Porquê
este riso histérico agora na minha cabeça? E o que se responde diante desta afirmação? Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Sim! O que se responde a isto? Nada. A realidade é a realidade. Pois! Foi outra oportunidade para ficar elucidado sobre o que a amizade é para as diferentes pessoas que nos cercam e a quem consideramos amigos. Este também era meu amigo. Era. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Era! Acreditem, seus macacos do meu sótão. Como se viu, tinha uma brilhante opinião sobre mim e a amizade... bem, a amizade era uma batata. O que dói, ou não dói, ou já não dói, de verdade, é que demorou 18 anos para me dizer o que realmente pensava. E eu, estúpido, sempre o considerara o meu amigo mais antigo. Amigo sem dúvidas nem reserva! Era.
Para de te queixar! Está s no teatro a representar a cena do desgraçadinho? Faz es uma figura patét ica! Sempre te disseram isso desde miúdo. Sempre. És um palerma que se acha muito importante e fica todo lixado quando percebe que o não é, nem os outros o con sideram como tal. Quando percebes que a t ua imagem, para os outros, não corresponde à que ten s de t i próprio. A t ua imagem é baça? Ou és tran sparente? Encara a realidade... Deixa-te de lamúria s. L uta. Como sabes, a realidade não existe. Há sempre muita s. Ponto.
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Ora, de facto, para que hei de estar a lamuriar-me? E estava? Estaria? Nem sei. A vida é a vida. A treta da Amizade (com letra maiúscula, claro) é mesmo difícil de entender por mim, ou se vocês preferirem, se calhar, pela maioria das pessoas, nesta sociedade em que, sabe-se lá porquê, nascemos. Difícil? Porquê difícil? Porquê
uma afirmação tão definit iva? Essa mania de ser a ssert ivo e cont undente! Não exageres!
Bem, está bem, meus «eus» ocultos, se acham que é excessivo
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eu rotular de difícil, pelo menos é... esquisita. Pronto, estão satisfeitos? Convenhamos que é mais delicado, dito assim. Mais educado, o que deve ser sempre tomado em consideração, claro. Ou mais apropriado. Será? Mesmo? Acho que não, mas vocês é que quiseram esta nova fórmula. Convém sempre ser pisado e agradecer, não é? Parece que sim, mas eu diria, como o Sartre, Odeio as vítimas que respeitam os seus carrascos! Adiante. Estas coisas esquisitas, como a Amizade, só nos dão motivos para ficarmos deprimidos. O pior é que são o pão nosso de cada dia.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje, Senhor. Perdoai-nos a s nossa s ofen sa s, a ssim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair em tentação, ma s livrai-nos do mal. Amém... Credo, até parece que estou nas aulas de
moral. Olha! Uau!! O Pai Nosso! Ainda sei as orações! Ou parte delas, talvez. É o que em todos nós resta, de forma mais ou menos atabalhoada, depois de tantas vezes as ouvirmos desde a escola primária. Enfim. Que remédio. 14
Como de costume, já estou a fugir ao meu pensamento inicial. Voltando à Amizade. Ela é confundida com tantas coisas, caramba! E pode assumir diversas formas, acho eu. Conhecimento, companheirismo, afeto, relação... no limite, amor? Isto traz-me à memória aquele chorrilho de habituais lugares comuns, sempre com muitas palavras que nada dizem sobre nada. Por exemplo: é um relacionamento humano que envolve o conhecimento mútuo e a afeição, além de lealdade ao ponto do altruísmo; amizade é ajudar os outros sem pensar nos benefícios que isso nos possa trazer... BEM! Se ajudar for notado, vale mais a pena, não é? É, é. É o que se diz. Claro que é! Sempre se pode vir a ser falado num jornal qualquer ou naquelas revistas da sociedade, que há nos cabeleireiros e nos consultórios médicos, cheias de fotografias de gente que se junta para um «casamento de sonho», uma festa privada muito «uau!», uns jantares de beneficência cuja única expressão capaz de os caraterizar é «sei lá!», como costumam dizer as pessoas muito finas que os frequentam! Estes últimos eventos, como toda a gente sabe, são ocasiões de encontro em lugares aonde se vai para comer umas iguarias requintadas e, com o dinheiro pago para se estar lá,
(B rrr. . . )
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se comprarem umas porcarias para os pobres comerem, como diria o Quino pela boca da Mafalda. Aquelas coisas, parece que muito necessárias — arroz, leite, açúcar, pão, massas. Massas para cozinhar, é evidente!! Enfim! Pensando bem, também, para o que quereriam os «desfavorecidos» comer coisas diferentes, não é? Nem as saberiam apreciar! Não têm gosto, não nasceram para estas coisas. Coitados, gente sem «berço»!...
Hei! Hei! HEI!... Atenção à forma como está s a pen sar! Patat í... Patatá... papéis p’ra cesta. Reacionarices. Só lugares comun s e citações! Não sabes ter ideia s própria s, nova s visões sobre a s coisa s? Que seca! Vês por que o teu amigo te achou uma «seca»?
r. . . )
O quê? Vocês sabem o que é ironia? Acham que estou a pensar só banalidades e lugares comuns conservadores, não é? Isso foi logo a primeira coisa que eu pensei que iria fazer! E disse-vos a vocês, que são eu! Toda a gente sabe disto. Eu sei! Pronto! E sei que «toda a gente» não existe, porra! Caramba, uma pessoa, mesmo na sua intimidade, no mais íntimo de si mesmo, não tem o direito — não tem a liberdade —de repetir as parvoíces de umas tretas que sabe serem abomináveis lugares comuns? Todos os tolos deste mundo o fazem. Porque não eu? E os jornalistas. Na verdade, foram vocês que se encarregaram de reter na minha memória estas coisas. Ouvi-as em tanto lugar e ditas por tantas pessoas! Eu sei! Vocês sabem! Como diz um tal de Dr. Oitke, que por acaso nem sei quem é nem conheço de lado nenhum, mas li há pouco num jornal, a nossa sociedade está mais atafulhada de preconceitos do que de proteínas, mais intoxicada de lugarescomuns do que de hidratos de carbono. As pessoas viciaramse em estereótipos, juízos apressados, pensamentos tacanhos, condenações precipitadas. Todos têm opinião sobre tudo, mas não conhecem nada. Os cozinheiros desta magna fast food intelectual são principalmente os jornalistas. Ora... L éria s
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t ua s, trinta e dua s. Sim? E depois? Não deixam de ser lugares comun s. Olha! «Lérias tuas trinta e
duas», como a minha mãe dizia! Pronto, concordo que são ideias banais e que estes meus pensamentos não levam a nada. Como de costume. Mas, pensando bem! Olha-me para isto! Estes parvos, agora acham que só posso ter pensamentos altamente eruditos e cheios de inovações ideológico–linguísticas. Porra! Ou arroz,
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como diria o meu avô, que era do antigamente e a minha tia (ela era muito religiosa).
Mal criado. Mal criado! Quando não sabes o que diz er, és mal criado. Além de idiota e banal estou a ser mal educado. Ok. Ótimo! Para que é que tenho de ser bem educado? São capazes de me dizer? E mais! Bem educado na conceção de educação ora vigente. Não tenho nada a ver com ela. Ora! Vão dar uma volta ao bilhar grande. Andiamo! Bem, continuando o pensamento de há pouco, estes são os melhores locais. São os melhores, sem dúvida! Aí se encontra gente finérrima, badaladíssima e, por norma, feia, apesar dos retoques dados pelos técnicos da aparência: os cirurgiões plásticos, os esteticistas e maquilhadores e, por fim, os fotógrafos. Hei! Hei,
hei! Alto aí! Isso não é geral! Nem toda a gente faz plá st ica s. Os cavalheiros, por exemplo, nem usam maquilhagem. Ai não? Quem são vocês 16
para o afirmar? Ora oiçam: Eu d’homem, tu de mulher/ Era galinha/ Inda havemos de exp’rimentar/ oh cartolinha... Sabem que música é esta? Eu também já não sei bem... Sem garantir nada, penso que era uma música muito antiga, que se chamava O Cartolinha, talvez de uma rábula de teatro de revista. Não garanto. E isto era o que cantava a minha mãe quando se falava de homens pouco masculinos. Na altura não havia gays. Mas! Mas eu, desculpem lá, eu até não estava a pensar em nada disso! Estava a imaginar todos aqueles atuais cuidados com o corpo, o usar cremes e a tentação de fazer plásticas. Dos dois sexos. Por isso, haverá homens que fazem também plásticas. Cada um faz o que lhe apetece com o seu corpo. Ninguém tem nada com isso. Eu d ’homem, t u de mulher/ Era galinha/
Inda havemos de exp’rimentar/ oh cartolinha... Eu d ’homem, t u de mulher/ Era galinha/ Inda havemos de exp’rimentar/ oh cartolinha... Ai já se
lembraram? E depois? O que é que vocês têm a ver com o que os outros fazem? Vão chatear o Camões! Só sabem criticar e não me ajudam em nada. Só me faltava estarem hoje com uma mentalidade de trogloditas! Bonito! E assim, perco-me. Ora estava a pensar em... Ah! É verdade!
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É verdade! As roupas são caríssimas, embora emprestadas pelas marcas para fazer publicidade. E as jóias idem. E depois? Nestas festas, o que é importante não é ser, é parecer e aparecer. Aparecer onde? Essa agora! Mas que pergunta! Aparecer ao lado de amigos ou inimigos, endinheirados ou mais–oumenos, ou mesmo completamente e absolutamente falidos, mas com estatuto social, coisa que ainda não percebi muito bem o que é mas, enfim, importa sempre, não é? Sim, sim. Sempre ouvi dizer que sim. Não me devem ter andado a mentir este tempo todo! O intuito é ser conhecido, ser considerado «na» e «da» sociedade. E o que é isto de ser da sociedade? Não fazemos todos parte da sociedade? Ah! Não! Da sociedade, mas em maiúsculas. SOCIEDADE, socialaite... Isto de ser considerado amigo dos «colunáveis» do momento, não sei bem mas cheira-me a que é importante, caramba. Tem de ser! Direi mais: é fundamental!
In génuo... ou melhor, pseudo in génuo, a faz erse de parvo e de sant inho! Olha-me este imbecil! A faz er de conta que não sabe nada de nada, que não percebe nada da sociedade, que não tem respon sabilidade de nada, que veio agora de algum planeta distante. Marciano ou lunát ico? Alienígena. Cyborg. Vai en ganar outros, meu...
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Deixem-me em paz. Já vos disse que... ora, não vou repetir outra vez tudo desde o princípio! Diz-se que nestes meios é difícil ser ou ter amigos. Se calhar aqui, mais do que noutros milieux — como fica «queque», ou chic dito em francês! — há mini estratos sociais, dentro das grandes divisões da sociedade, e nuances para marcar a diferença, a distinção. Sim, que isso é importante! Dis-tin-ção. Olalá!! Que c’est beau, la distinction! É outra vez em francês, claro. Qual é o problema? É preciso ser chique. E dito em francês é SEMPRE muito mais chique. Há superiorizações e querelas para ver quem é mais «bem». Existe isso de ser mais «bem»? Não. Não sei! Talvez... Ora, sei lá! Para que é que isto me interessa? Parece-me estúpido, mas eu é que devo ser estúpido, porque ando a perder tempo a pensar nestas coisas!... NÃO! NÃO! NÃO!!! Hei! Esperem aí! Não é «melhor», nem pensem nisso! Que coisa tão pirosa. Ora! Existe? Acho que não, mas se calhar existe. Pelo menos, as pessoas preocupam-se com isso. E se um deles tem uma árvore genealógica, daquelas que entroncam no D. Afonso Henriques? Ou no Carlos Magno, Maomé ou Cleópatra? Dessa
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é difícil, que bateu a bota mais o único filho, que era ainda criança. UAU! Então, sim. Então, está
certificado que é mesmo «bem». Sem dúvida. É mesmo «elite»? Acho que as pessoas já se esqueceram de que, pelos vistos, somos todos oriundos de um «janota» africano — negro! Que horror! — e que em Portugal descendemos todos desse tal senhor Afonso Henriques, que andou a fazer filhos por todos os cantos. Ele e os descendentes, claro. Nem vale a pena afirmar que uns são de «boa cepa» e outros uns pindéricos sem eira nem beira. Pobre humanidade. Os homens são como os porcos. Quando algum está doente, os outros mordem-lhe, para ele não poder chegar à comida. Bom, adiante que isto é banal. Estava a dizer que...
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Ah! E vale sempre a pena fazer donativos que, pelos vistos, se consideram ser amizade... O quê? Os donativos não são? São caridade? Caridade? Os donativos não são amizade? Mas... a caridade é tão importante, meu Deus! Porquê questionar? Como é que se iam manter a desigualdade social e a sensação de que se é tão bondoso, tão filantropo, amigo, se ela não existisse? Claro que é a caridade que mantém a desigualdade! Qual é a dúvida? O objetivo é perpetuar esta situação! E tem de ser, não somos todos iguais, ora essa! Continuando. Para se considerar que somos grandes amigos dessa tão carenciada humanidade até basta sugerir que se fizeram grandes donativos e deram muitos beijinhos com a boca de lado, num esgar, e as bochechas encostadas. É só para a fotografia!! Ganha-se alguma coisa com isto? Então não ganha? Isto é tudo uma questão, ou uma visão economicista dos factos da vida. Posto que eu disto tenho a certeza, queridos e loquazes vozes do meu íntimo, o melhor é ficar por aqui a vossa constante interrupção. Entendido? Mesmo? Estou farto! Farto, sim. De quem? Ora essa! De vocês. Aqui, concretamente, é uma visão economicista da amizade. Não há meio de lhe fugir. Tudo tem um valor, tudo tem um preço. E muito bem! Então não é assim? Desde a escola primária que nos ensinaram ser dessa forma que isto funciona. Não tens lápis de cor? Compra. Estes são MEUS. Era o que faltava, gastarem os melhores lápis de cor que havia na loja e que o papá comprou para o menino. Cravas. Estes pobretanas não têm vergonha
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nenhuma, sempre na pedinchice. Arroz! Porra, que também tem dois “rrs” e enche mais a boca. Sim, que, na casa destes meninos, as únicas pessoas que andam de transporte público «pertencem à criadagem». Por felicidade, eu e o meu irmão, como grande parte dos colegas das nossas turmas na escola primária, pelo menos, todos os anos tínhamos cadernos, lápis de grafite e uma caixinha de lápis de cor dados pela Caixa Escolar. Tudo com aquele cheirinho a novo! Ainda tenho no nariz o delicioso cheiro do papel dos cadernos acabados de chegar da tipografia! Tinham capas ou rosa ou azuis. Igual para todos. Por isso, não havia muitas hipóteses de invejas ou bocas. Era uma linda manhã/ Estava a brincar
no jardim/ Quando a minha mamã/ chamoume e disse-me a ssim:// Não andes sempre a correr/ Tropeça s, vais ver/ E cais, fica s mal// Respondi, pronto, está bem/ Depressa, porém/ Esqueci-me de tal...// De repente, não sei como foi/ Escorreguei, caí no chão./ No joelho ficou um dói-dói,/ No nariz um arranhão.// Desde então/ Aprendi a lição,/acreditem, sou feliz ,// E agora faço sempre/ Tudo quanto/ A mamã me diz . Por favor! Essa estúpida canção, não! Há séculos
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que não pensava nela. Nem sequer sei se vocês a estão a cantar bem na minha cabeça! É assim que a lembram? Pois seja, então. A Zezinha Pereira e a hora da Robbialac, na rádio, foram há cinquenta anos! Cinquenta? P’raí sessenta!!! Naquela linda
manhã/ Estava a brincar no jardim/ E a minha qu’rida mamã/ chamou-me e disse-me a ssim:// Não andes sempre a correr/ Tropeça s, vais ver/ E cais, fica s mal// Respondi, pronto, está bem/ Depressa, porém/ Esqueci-me de tal...// De repente, não sei como foi/ Escorreguei, caí no chão./ No joelho ficou um dói-dói,/ No nariz um arranhão.// Nesse dia aprendi a lição,/ acreditem, sou feliz / E agora faço sempre/ t udo o qu’a mamã me diz . Parece-me melhor. Mas não sei... Foi há tantos anos! Bem, mas não me distraiam. Estava a pensar que na escola não havia muita concorrência entre uns alunos e os outros. Havia até quem desse o leite e o pão com doce, dos lanches da Cantina Escolar, aos colegas. Eu era um deles. Não era bem por amizade que o fazia, pronto. Não era por ter especial simpatia para com algum deles. Eu só me dava mesmo bem era
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com os colegas que mais próximo estavam da minha carteira na sala de aula, pois eram aqueles com quem se trocavam papelinhos e se copiava. Acabou-se o segredo. Era porque ao leite eu era alérgico e detestava o pão com doce. Hugh! Só de pensar nele, ainda hoje me dá vómitos. Bolas, nunca consigo ficar com uma imagem de bonzinho! Caramba! E contudo...
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Contudo, pergunto-me ainda hoje, muitas vezes, se alguns dos meus colegas de então não teriam inveja de mim. Ou raiva. Talvez até mais isso. Não, não era porque eu tivesse mais ou melhores materiais do que eles. Nem melhores notas. Isso é que era bom! Havia quem tivesse muito mais. Sim, tanto no que toca a materiais como a classificações. Era por uma questão bem mais delicada. De facto, a mestra, a D. Olímpia, senhora da velha guarda, gorda e fofinha, cabelo encaracolado mais branco do que preto e óculos de fundo de garrafa, nunca me bateu. A eles, aos outros, aos meus colegas, era palmatoada de meia-noite. Ficavam com as mãos inchadas e, por entre as lágrimas, a ver estrelas durante horas. Principalmente nos ditados, isto era chocante, pois eu era especialista em cometer erros de ortografia! Era mesmo. Mesmo! Mesmo, mesmo. Que raiva! As palavras nunca acertavam com a forma como eu as escrevia. Ou vice-versa? Não, as palavras é que não acertavam com a forma como eu as escrevia. Estão a rir, já sei.
Naquela linda manhã/ Estava a brincar no jardim/ A minha qu’rida mamã/ chamou-me e disse-me a ssim:// Não andes sempre a correr/ Tropeça s, vais ver/ E cais, fica s mal// Respondi, pronto, está bem/ Depressa, porém/ Esquecime de tal...// De repente, não sei como foi/ Escorreguei, caí no chão./ No joelho ficou um dói-dói,/ No nariz um arranhão.// Nesse dia aprendi a lição,/acreditem, sou feliz / E agora faço sempre/ t udo o qu’a mamã me diz . Parem! Era injusto, pois era. Tenho consciência disso. Eu sei que a vida é injusta, mas o que é que querem? Eu também não fazia de propósito! Não dava erros por querer e não pedia que me não batessem, embora gostasse que assim fosse, claro. A professora é
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que tinha muita pena de mim por causa da deficiência, dos ferros dos aparelhos a saírem das bainhas dos calções, mais compridos do que os dos outros meninos, ao longo das pernas, os soquetes a espreitar das eternas botas nos pés cheios de pó e calor, da dificuldade de locomoção e do ar de passarinho acabado de cair do ninho. Por isso, fechava os olhos a essa minha dificuldade em escrever as palavras corretamente. Ela, sem o saber, até tinha razão. Hum! Hum! Hum! Arre! Outra vez? Também, já vos disse milhares de vezes que era um problema de dificuldade de memória visual. Provocado pela doença, sim. Não estou a brincar nem a mentir e vocês sabem muito bem disso, pois são eu! São eu? São eu... Ou são mim? Não se diz vocês são mim, pois não? Não, claro... Estas dúvidas que, de vez em quando, me assaltam, são mesmo malucas, livra! Para que chateiam? Claro que sim, que foi da doença. Quando fiquei pregado à cama, esqueci-me de tudo o que já sabia. Foi ao mesmo tempo muito traumatizante e assustador. Bem, é melhor não dramatizar... Para quê? Sempre tive de encarar isto de uma forma irónica, para não entrar em pânico, não é? A verdade é a verdade, se é que existe isso de «a verdade», está-se mesmo a ver. Mas a minha verdade, era e é ainda a seguinte: quando a paralisia estacionou, as pernas estavam mortas e eu só podia deslocar-me de rastos pelo chão, como uma lesma. Também estava completamente analfabeto. Fiquei sem saber ler, escrever, contar e fazer contas, que era coisa que anteriormente já resolvia na perfeição. Só ficou a capacidade para desenhar. Isso e a memória de um cheiro. Do cheiro acre de uma planta do campo. Nunca o esqueci. Nunca o esquecerei.
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Mais nada. E foi uma sorte. Também tenho uma vaga recordação do dia em que ia sendo comido por uma cobra.
Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! O que foi agora? Bolas! Ok! Ok! Rectificação do pensamento, a pedido de várias vozes da minha cabeça. Não podia ter sido comido pois a cobra, embora fosse grandinha, não poderia fazer outra coisa senão morder-me. Não tinha dimensão para me comer. Acho eu agora. Mas fica tão mais emocionante, esta memória, se eu pensar que a cobra me ia comer!... Ah! Oh! Não pode ser! Por favor! Deixem-me pensar que sim... Isso sim,
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é que seria uma aventura! Já sei que são influências da BD e do Tarzan, claro. Também, ele era um dos meus heróis da altura, ainda desenhado por Burne Hogarth. Todos nós queríamos ser Tarzans, era inevitável. Até, mais tarde, o meu vizinho da frente, que se chamava Manuel António, numa manhã de domingo, saiu para a rua a gritar: «Manecas Tonecas, Tarzan em cuecas». E lá vinha ele, a correr pelo passeio fora, em cuecas e de braços dobrados a tentar fazer músculo. Passou a ser conhecido pelo «Tarzan em cuecas». Mas acho que ficámos todos com inveja. Riamo-nos dele, mas era de despeito. Nunca nenhum de nós tinha tido aquela ideia magnífica e a sua coragem de enfrentar o mundo que, para todos nós, era aquela rua. Bolas! Já estou fora da minha questão central, não estou? Pois. Pois o Tarzan é que tinha dessas aventuras. Mas eu ia pelo campo... L á, lará, lará, lará, lá, lá, lará, lá, lá,
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lá lá/ Avoz inho diz -me t u, quais são os son s que oiço eu?/Avoz inho diz -me t u, porque eu na nuvem vou?/ Diz -me porque chora o ar a ssim?/ Diz -me porque eu sou tão feliz ?/ Avoz inhoooo nunca eu de t i me afa starei/Avoz inho diz -me t u, o que diz o vento na canção?/ Avoz inho diz me t u, porque choveu, porque nevou?/… Bem,
Ah! Ah! Ah!
não disperses! Ainda não havia a Heidi e o Pedro! Eu ia pelo campo, a corta-mato, a caminho do colégio onde a minha mãe trabalhava, quando dei de caras com uma cobra grandinha. Pronto. Grandinha, só. Entenderam? Gran-di-nha apenas. Fiquei parado, sem saber o que fazer. As cobras hipnotizam as pessoas, como se sabe. Não é verdade? Não? Experimentem encontrar-se com uma! Pois eu podia afirmar a pés juntos que sim. Pelo menos, acho que foi o que me aconteceu. Fiquei completamente estático. Olha o medo! Sim. Talvez. Talvez haja quem lhe chame medo... Não sei... Pronto! De qualquer modo, fiquei parado. E ela a olhar para mim. Carago! Hum! Hum! Não disse asneira! Asneira era caralho! Que olhinhos pequeninos e brilhantes! Eu a olhar para ela e ela a olhar para mim! E eu a olhar para ela e ela a olhar para mim. Não nos movíamos. Salvou-me a intervenção do cozinheiro negro do colégio que, por acaso, passou por nós naquele momento. Com uma calma inimaginável, pegou na cobra pela ponta da cauda, rodou-a velozmente por cima da cabeça e atirou-a contra uma árvore. Tudo em segundos. A cobra espatifouse. Ou pelo menos não se mexeu mais, se bem me lembro. Como
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disse, isto são vagas recordações. E ele seguiu, com a maior das naturalidades, o seu caminho para o espaço de orações sagradas islâmicas, pois era essa a sua religião. Mas antes não ralhou, não comentou nada, apenas me disse para ir depressa para casa, pois ali não era seguro para o «menino». Com ternura. Eu não tinha ainda cinco anos e ele era um senhor já de idade, pois tinha o cabelo cheio de fios brancos, o que não é habitual num negro. É sinal de muita idade. Era uma pessoa de respeito. Disso lembrome bem. E não era seguro andar por ali, não. Não sei o que pensei então mas, à distância, vejo que era mesmo arriscado. Calculo que, se calhar, nem dei por isso. No dia seguinte devo ter continuado a fazer as minhas explorações, como de costume. Abrindo caminho pelo meio das ervas que, nessa época, eram mais altas do que eu. Treta s! L embra s-te lá disso! Acho que não é mentira, não senhor. Nem o tamanho das ervas (voltei lá passados uns anos), nem o facto de ter continuado as explorações. Chamem-lhe inconsciência, se quiserem. Mas, com quatro ou cinco anos, quem é que é consciente? Eu não era! E sempre achei incompreensível que aquela senhora dissesse ao filho de três anos: «Tens de ser razoável». BOLAS!
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Mas não, eu era mesmo inconsciente. Ou será melhor dizer que
Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! eu ainda não era nada consciente? Ainda não sou, dizem. Serei?
O susto sei que foi grande, pois não fui ao quarto de banho durante uns dias. Fiquei bloqueado. Isso de encontrar cobras e lutar com elas, só mesmo para o Tarzan. Por mim, passo! UHHHHH!!!! Ele não exist ia! Olha! Olha! Essa agora!? Ele não existia? Qual o quê! Existia, existia. Senão, como é que durante tantos e tantos anos vinham todas as semanas, religiosamente (tinha de ter a ver com religião, maldita formação), episódios da história dele no jornal de domingo? Tinha de existir. Ele e o Opalong Cassidy, o Cisco Kid e o Flash Gordon, pelo menos. Não. Não. Não é a mesma coisa! Estão a tentar enrolar-me. Fogo! Eles não eram nada como o Tom & Jerry ou como o Tio Patinhas, que, via-
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se logo, eram imaginação de um marado qualquer. Agora bichos a falar e a vestirem-se como pessoas! Aqueles desenhos do Tarzan que vinham no jornal de domingo eram tal e qual ele!... Como é que sei? Ora, vocês têm cada dúvida mais estúpida! Estavam tão bem desenhados que só podia... Dâââ! Os desenhos foram feitos sobre fotografias tiradas no local. De certeza.
Naquela linda manhã/ Estava a brincar no jardim./ A certa alt ura a mamã/ chamoume e disse-me a ssim:// Não andes sempre a correr/ Tropeça s, vais ver/ E cais, fica s mal// Respondi, pronto, está bem/ Depressa, porém/ Esqueci-me de tal...// De repente, não sei como foi/ Escorreguei, caí no chão./ No joelho ficou um dói-dói,/ No nariz um arranhão.// Nesse dia aprendi a lição,/acreditem, sou feliz / E agora faço sempre t udo/ O que a mamã me diz . Está 24
melhor. Mas, vamos com calma, sim? Continua a musiquinha estúpida? É para me atrapalhar os pensamentos, já sei. Ainda se fosse uma cantiguinha menos reacionária, caramba! Nos animais a falar, não podia acreditar mesmo. Mas, por pensar em vestir os animais, até podia ser, porque umas velhas amigas da minha mãe achavam que era indecente o cão andar a mostrar a pila a toda a gente. Por isso, o desgraçado andava sempre com uma camisa e uns calções com cinto, aos quais uma delas desapertava a carcela quando o levavam a passear à rua, para ele poder levantar a pata e aliviar a bexiga contra as árvores. Naquela linda manhã/
Estava a brincar no jardim./ A certa alt ura a mamã/ chamou-me e disse-me a ssim:// Não andes sempre a correr/ Sim, que elas eram muito pudicas. Não se riam. Eram, claro que eram. Não sei se seriam também muito atinadas da cabeça. Lá isso, não sei. Não ponho as mãos no lume. Na realidade até acho que não. Não eram mesmo. Elas até achavam que era uma vergonha as vacas não usarem soutien!
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
Não posso... Soutien nas vacas. Sou-ti-en-nas-va-cas!
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Estou todo torcido? Pois estou! Nunca consigo ver ou mesmo pensar nas vacas, que não me lembre do soutien que as velhotas queriam que elas usassem! Raios de inveja! Mesmo que me esforçasse muito, nunca na vida conseguiria ter uma ideia tão patética e absurda. Descabelada! Delirante! Linda! Sensata, rectificariam elas, muito sérias, manifestando decoro e compostura. Sim. Sim, sim. Sérias, que é a forma como quase todos os velhotes encaram as coisas. Lá chegaremos, dizem. Um dia lá chegaremos e então teremos a visão certa das coisas, claro. Lá chegaremos, um dia... se chegarmos. Pronto. Já estou a léguas do que estava a pensar. Agora o soutien das vacas, das velhas amigas de sua mamãe. Não esperava chegar tão longe, caramba! Perdi-me, foi o que foi. A minha cabeça é isto todo o dia. Um cata-vento. Bolas! Isto é o que a minha mãe me dizia! «A tua cabeça é um cata-vento» ou então «tens uma cabeça de alho chocho». Nunca soube o que era pior. Já não sei o que pensar. Vocês estão todos a morder-me os miolos. Naquela
linda manhã/ Estava a brincar no jardim./ A certa alt ura a mamã/ chamou-me e disse-me a ssim:// Não andes sempre a correr/ Não me distraiam! Ora
bem, vamos por partes: primeiro, as velhas amigas de sua mamãe é uma citação. Claro, toda a gente sabe. Não consigo deixar de ouvir a voz do Villaret — É menina e moça./ Terá quinze anos? Umas velhas amigas de sua mamãe, / Dizem sempre que a encontram, num êxtase longo:/ Como esta menina está gorda, bonita!— Segundo, é verdade que a minha cabeça está sempre em ebulição, a ter ideias, a associá-las, a dissociá-las, a colocar umas sobre as outras. Algumas vezes, existe até guerra aberta entre as várias em presença. A culpa não é minha. Terceiro, sempre me disseram que eu nunca estava com atenção, o que era verdade, e que a minha cabeça era um cata-vento. Embora na minha terra nunca tivesse visto nenhum, sempre achei que seria uma coisa horrível, feia, muito grave, ter cabeça de cata-vento. Não sabia o que queria dizer, mas era mau de certeza, pois o ar com que mo diziam era de reprovação. Enfim! Fosse o que fosse que me dissessem, o ar era sempre de reprovação. Quarto, esta situação de angústia por sentir que as coisas que penso são um déjà vue,
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Ohhhhhhh! Ohhhhhhh! preocupa-me. Será que estou bem da cabeça? Ou, de outra forma mais pertinente e erudita: «fecharei bem a mala?»
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