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JOSÉ ANTÓNIO PEREIRA DA SILVA
A SÚCIA
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ROMANCE
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título: A
Súcia António Pereira da Silva edição: Edições Pártenon ® (Chancela Sítio do Livro) autor: José
capa:
1.ª edição Lisboa, setembro 2020 isbn:
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Ideias Frescas, Ld.ª “A Súcia” de António Inverno arranjo de capa: Ângela Espinha paginação:
978‑989‑8845‑34‑4 469980/20
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depósito legal:
© José António PereirA dA silvA
Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.
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Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência. Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao(s) seu(s) autor(es), a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total.
publicação:
www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500
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AGRADECIMENTOS:
Ao mestre António Inverno, pela generosidade que teve em ilustrar este romance; Ao Eduardo Ambar, que reviu o texto.
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Ao Miguel Corrêa Santos, da Gráfica Comercial de Loulé pelo empenho posto na edição deste romance.
OUTRAS OBRAS DO AUTOR: “A Roda da Esquina” - Romance editado em Março de 2007; “Jerónimo e Camila” - Romance reeditado em Dezembro 2018; “Trilogia do Desencontro” - Peça de Teatro e Contos, editada em Outubro de 2018; “Coronavírus” - Drama em 3 Actos, editada em Setembro 2020.
No Prelo: “Contos e Narrativas” - Colectânea de Contos.
CONTACTO COM O AUTOR: Se pretender contactar com o autor para comentar o romance “A Súcia”, poderá fazê-lo para o e-mail: japs1@sapo.pt. O Autor não deixará de lhe responder, agradecendo-lhe a sua atenção.
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À MEMÓRIA DE MEU PAI, MAGISTRADO DISTINTO.
PARA O MEU IRMÃO, JOAQUIM MANUEL, UM JUIZ EXEMPLAR.
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1 – “Um iate explodiu ao meio da tarde de hoje no Cabo Espichel. Desconhece-se quantas pessoas seguiam a bordo e as causas do sinistro.
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Por destroços da embarcação, recolhidos pelos Bombeiros Voluntários de Sesimbra na Praia do Perceve, foi possível identificá-la, tendo a Delegação da Capitania do Porto dessa vila informado tratar-se de um iate com trinta e seis pés, propriedade de um cidadão português, matriculado na Capitania do Porto de Lisboa. A reduzida visibilidade impediu a realização de buscas visando a recolha de eventuais sobreviventes do naufrágio. Está previsto que as mesmas se iniciem logo às primeiras horas de amanhã. Este foi o “Jornal da Noite” de vinte e oito de Dezembro de 2000. Foi um prazer estar consigo. Espero voltar à sua companhia no próximo “Jornal da Noite”. Fique bem.” Com um sorriso cúmplice e tão prolongado quanto a distração da régie da emissão, a locutora lá acabou por ser apagada da pantalha.
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Pilar acabara de ver a reportagem no “Jornal da Noite” da RTP1. Olhou para o relógio, atirou para o tapete o cão que tinha no regaço e, num frémito, levantou-se do sofá em que descansava desde que chegara a casa, depois de ter tomado um “Xanax”. O telefonema de Vasco Leiria deixara-a num sobressalto. Acendeu um cigarro e mudou para outra estação. – Pode ser que o telejornal da SIC ainda não tenha acabado. - Admitiu. Mas já tinha. Passou para a TVI. A mesma coisa. Olhou novamente para o relógio. – Nove horas... ainda falta uma hora para o “Jornal da Dois”. - Verificou, para concluir em surdina e para si própria: esses tipos não dão notícias destas... só politiquice. Voltando-se para a empregada, mandou que ela lhe trouxesse a lista telefónica de Lisboa. – Mas em que Ministério é que estes tipos meteram a Capitania? Ministério do Mar, já não há; na Defesa não está... o da Marinha é doutro tempo… - resmungava consigo própria, desfolhando a lista. – Oh Sofia, dá-me o telefone. – Está aqui, mãe. - Respondeu a filha, dando-lhe à mão, o telefone móvel. Pilar marcou o 118. – Portugal Telecom. Serviço de Informações Nacionais. A sua chamada encontra-se em lista de espera. - Respondeu-lhe uma gravação do outro lado da linha. – Só me faltava esta! Mas vendo bem, para que quero eu, a estas horas, o telefone da Capitania? - Perguntou, irritada consigo própria, atirando o telefone para o sofá. – Queira Deus que seja isso. – Ainda vaticinou, tentada a rezar uma Ave-Maria que, por decoro, não chegou a iniciar. Fez por se acalmar para melhor recordar as poucas imagens que vira: casco verde, o que não é vulgar… trinta e seis pés… matriculado na Capitania de Lisboa. Pensou ligar à irmã mais velha, que não perdia um telejornal, para confirmar, mas achou mais prudente não o fazer. – Às tantas, ela começava logo a transmitir a notícia da morte do “monstro” a toda a família como se fosse a Boa-Nova, e a iniciar os festejos sem ela estar confirmada... mas era o “Alpertuche”, tenho a certeza. - Concluiu. – A sopa está servida, senhora Doutora. - Anunciou a empregada, interrompendo as suas cogitações.
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Sofia já estava sentada, e, olhando fixamente a mãe, perguntou-lhe: “viste aquele barco? Parecia o nosso...” Pilar não respondeu. – Mãe, não ouviste? Aquele barco era o nosso, não era? - Perguntou, de olhos assustados e fixados na mãe, enquanto enrolava o guardanapo nas mãos, e, de respiração suspensa, aguardava a confirmação. – Não sei Sofia. Mas se era o “Alpertuche”, não devia estar a ser tripulado pelo teu pai. – Porquê? – Porque, se fosse, a esta hora já sabíamos. Sofia não respondeu. E após um curto silêncio, revelou, numa voz titubeante e quase em surdina: “o pai ligou-me à hora de almoço. Queria saber o número e a data de emissão do meu bilhete de identidade por causa de uma coisa que estava a fazer no notário”… Pilar franziu os olhos, e, de supetão, perguntou: “e disse-te o que era”? – Não… – E a que horas te ligou? – Deveria ser meio-dia e meia. Portanto, se o barco era o nosso, o pai não podia estar nele à hora que eles disseram. - Concluiu a filha, apontando para a televisão. – Liga para ele. Liga já para o telemóvel do teu pai. – Para quê? – Faz o que te digo! - Ordenou a mãe, de olhos bem abertos. – Mas para quê? Para saber se ele está vivo? – Para ficares tranquila e deixares de magicar desgraças. – E, se o pai atender, que lhe vou dizer? Não tenho nada para… – Não é preciso falares. Vê só se ele atende. - Insistiu a mãe, interrompendo a argumentação de Sofia. – Achas bem?... O pai vê o meu número no visor, percebe que sou eu e depois não falo? Por amor de Deus, mãe!... Eu não faço isso. – Liga pelo meu telemóvel novo, que ele não conhece o número. – Não, mãe. Desculpa, mas nem assim. Estou triste com o pai, mas não faço isso. Pilar levantou-se da mesa, agarrou na carteira, que vasculhou à procura do seu novo telemóvel, e marcou o número do marido. Passados uns instantes, ouviu a informação gravada de que o telemóvel estava desligado. – Ou no fundo do mar! - Admitiu para si própria, para logo concluir com os seus botões: “é bom de mais para ser verdade. Nem se chega a lavar roupa suja no processo de divórcio. Acaba-se com a regulação do poder paternal, com o arrolamento, com tudo... e depois de toda a guerra, ainda herdo. A minha “legítima” é que ninguém ma tira! Sempre valerá um meio milhão de contos. Não é muito, mas sempre me permite algum desafogo. Com outro tanto para a Sofia... já é um bom pé-de-meia. Não terei de me
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precipitar a arranjar um tipo certo, decente e que ainda funcione”. Ao fim e ao cabo, Pilar achava Paulo Rios um machista petulante, sem princípios e capaz das maiores trapaças. Com ele, bem sabia, só poderia contar para a cama e para ser exibida em jantares com amigos e clientes de reputação duvidosa. – Fico com esta casa e com uns trocados. Queres ver que o Paulo cumpriu a promessa?!... O tipo é mesmo louco. De certeza que foi isso. E cumpriu o prazo! - Exclamou em surdina. Pilar, na esperança de ter enviuvado, ia bebendo a pequenos goles o café que a empregada já lhe servira no sofá em frente à lareira, quando o telefone tocou. – Sandra, veja quem é. Era novamente Vasco Leiria, amigo e colega de Afonso, de longa data. Pilar levantou-se num pulo e atendeu. Confirmava-se. O “Alpertuche” explodira junto ao Cabo Espichel, por volta das dezasseis horas. – Não há sinais de sobreviventes. É prematuro concluir que o Afonso fosse o tripulante do barco, mas o certo é que a P.J. ainda não o conseguiu localizar. - Informou Vasco, que acrescentou: “telefonaram-me por volta das sete da noite, no pressuposto de que o barco era meu. Como lhes disse que era do Afonso, pediram-me os contactos dele, mas não o conseguiram encontrar. Por isso, telefonaram-me depois, e pediram-me que avisasse a família. Querem que vás lá para reconheceres alguns objectos que deram à praia.” Ficaram de se encontrar no piquete da Polícia Judiciária, por volta das onze da noite. Pilar acercou-se da janela. Aí, ficou olhando a cúpula iluminada do Panteão, que foi perdendo o brilho e a nitidez. – É do piquete da Polícia Judiciária para a senhora Doutora. - Informou a criada. Um qualquer inspector, cujo nome não percebeu, pedia-lhe que se deslocasse ainda essa noite ao piquete da Polícia para proceder ao reconhecimento de alguns objectos que foram recolhidos na Praia do Perceve. – Não. Não há sinais de sobreviventes, minha senhora. Pode ser que amanhã… - respondeu o inspector, antes de Pilar o ter interrompido para prometer que lá estaria pelas onze da noite. Desligado o telefone, reparou que tinha Sofia ao seu lado, de mãos caídas e chorando em silêncio. – Foi o pai, não foi? – Ainda não se sabe de nada, Sofia. - Respondeu a mãe, deixando que a filha a enlaçasse com o rosto metido no seu peito.
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– Toma, Sofia. Bebe e vê se dormes. Isto relaxa-te. A mãe não demora. São só umas formalidades. Depois, venho logo para casa. - Prometeu. Num gesto rápido, porque já estava atrasada, deu uma colher de “Atarax” à filha. – Deixa-me dormir contigo. Esta noite, mãe... só esta noite... - insistiu Sofia, perante o ar contrariado da mãe. – Está bem. Mas é só esta noite, sem exemplo. - Anuiu Pilar, enquanto se vestia diante do espelho. Estava bem. Discreta e vestida de cinzento. Não seria de bom tom vestir-se já de preto. Afinal, a morte de Afonso ainda não estava confirmada. Seria conveniente salvar as aparências, não fosse alguém pensar que estava com pressa de o saber morto. Ainda passou a mão pelo cabide em que estava pendurado o astrakan, mas depressa optou pelo vison. Era curto, castanho e mais leve. Mais desportivo, até. Dava-lhe um ar menos carregado e assim não tinha de mudar de carteira. A “Hermés”, em tons de castanho e beije condizia bem com o casaco. Era só agarrar nela, tal como a pousara na cadeira do hall, quando chegou a casa. Num relance, reparou que tinha as unhas pintadas de vermelho. Ainda franziu o sobrolho, contrariada. – Levando luvas, ninguém repara. Mas se tenho de assinar qualquer auto? Num ápice, abriu o armário da casa de banho, agarrou no frasco da acetona e num disco de algodão e tirou o verniz. – É mais prudente... ou talvez não. Como é que eu ia adivinhar isto? Há vinte anos que as pinto desta cor!… Mas, pronto! Já está, já está. Voltou ao quarto para se despedir de Sofia, que já se metera na sua cama. Aconchegou a dobra do lençol ao pescoço da filha, que estava virada sobre o lado esquerdo, olhando a moldura com a fotografia do pai com ela ao colo, quando teria uns quatro anos. Fora junto ao rio Tuela, em Vidigais, aonde o pai a levara oito anos atrás, recordando o tempo da inocência. – Mãe... – Diz, Sofia. – Já viste? O pai queria ser cremado, mas acabou no mar, no mar da Arrábida, tão frio e tão bravo... – Mas o que é isso? Quem te disse que o pai morreu? O barco já nem era dele… – Ora, mãe! Sabes bem que era. E, se não era o pai que ia no barco, que vais fazer à Polícia? – Se calhar, para confirmar que não é do teu pai o corpo que deu JAPS
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à costa… – Então, porque é que não o encontram? Julgas que eu não percebi? – Sofia, não é altura para estarmos com conversas. Sabes bem como o teu pai era... – Ah... vês? “Era” foi o que disseste!... - Exclamou a filha, sentando-se na cama para melhor fixar a mãe nos olhos. – Oh Sofia!… Quantas vezes o teu pai desapareceu por um, por dois dias e até mais, sem deixar rasto? – Está bem, mãe. Eu sei. Mas agora é diferente. E tu sabes. Nunca a polícia andou à procura do papi. Hoje, andou, e ninguém sabe dele. Eu percebo, mãe. Eu sei e todos sabemos onde ele está. – Sofia, acabou. Amanhã se verá. Espero que não te revoltes contra ti própria pelo que estás a sofrer, se o teu paizinho, um dia destes, aparecer fresco que nem uma alface na companhia de uma galdéria qualquer... – Acabou! - Gritou-lhe a filha, enquanto Pilar punha um pouco de base no rosto e passava uma escova pelo cabelo. Era o hábito de anos e anos. Em circunstância alguma saía de casa sem o fazer. Ao fim e ao cabo, nunca se conformara com a sua tez macilenta. – Acabou! E quem to diz sou eu. Deita-te e dorme. Para quem não quer ver e estar com o pai há meses e meses, não percebo essa preocupação… – Mãe! Tu sabes bem a razão por que não vejo o pai! - Exclamou a filha, levantando a voz. Sofia agarrou na moldura com a fotografia do pai, que levara consigo para a cama, e colocou-a debaixo da almofada em que meteu o rosto para que a mãe não a visse chorar. Nem poderia ver, porque, sem se despedir da filha, Pilar saiu do quarto a correr.
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Pilar acabara de estacionar o carro junto ao Liceu Camões, quando o telemóvel tocou. Era a irmã mais velha. – Tu já sabes?!... O gajo morreu. – Como soubeste? – Não viste a SIC? Deram imagens e tudo. O barco dele explodiu junto ao Cabo Espichel. – Mas, ele ia a bordo? – Olha lá: o barco está identificado. É o dele! Se assim é, quem havia de ir lá dentro? – Perguntou a irmã Rafaela com um toque de irritação na voz pelas dúvidas de Pilar. – Eu só ouvi o que noticiaram na RTP. Disseram que não se sabia, ainda, quem estava no barco… e eu estou a chegar à Judiciária para identificar alguns objectos. – Que objectos? – Sei lá! Coisas que deram à costa. – O cabrão matou-se, foi o que foi. – Ora! Mas que disparate, Rafaela! – Tu vais ver. Não aguentou… explodiu, ao ver-se trocado. Já falaste com o Paulo? – Não, não falei. Só depois de saber ao certo o que se passou é que falo. – Liga-lhe já, não sejas estúpida. Ele vai adorar. Chegou a tua hora da sorte. Pilar estava a chegar à porta do edifício da Polícia Judiciária que dá acesso ao Piquete, onde Vasco já a esperava. – Eu depois falo. - E desligou o telefone. Nos dez ou quinze metros que a separavam desse velho amigo e colega de Afonso, tinha que recobrar a serenidade. Sentia-se alvoroçada. – Olá, Pilar, lamento muito. Pela vossa filha, é óbvio… - esclareceu o advogado ao verificar o ar frio e quase hirto da amiga. – Boa noite, Vasco. Alguma novidade? – Que eu saiba, não. Desde que falei contigo, não voltei a ter qualquer outra informação. Passa, por favor. - Pediu Vasco Leiria, afastando-se ligeiramente para ceder a passagem a Pilar. Depois de identificados pelo segurança, entraram no corredor que conduz ao piquete. Os poucos bancos aí existentes estavam ocupados. Uma mulher com um braço ligado e rodeada de três filhos, todos miúdos, entre os quatro e os oito anos, chorava a má sorte e jurava vingar-se do chulo, que, não contente em “esfolá-la”, ainda lhe dava porrada sempre que o Sporting perdia. Andava a “comer” havia uma catrefada de anos. JAPS
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O seu confidente mais próximo estava algemado e aguardava que o levassem para a zona prisional. – Já um tipo não pode charrar-se... - lamentou-se. – E quanto te apanharam? - Perguntou-lhe o vizinho do lado, que havia sido detido havia coisa de uma hora, pelo “tipo” a quem tinha tentado “fazer” a carteira. – Porra de azar! Era bófia, o cabrão! - Lamentou-se. – Dez pratas. - Respondeu o outro, entretanto. – Estás fodido, meu. Isso já é considerado tráfico. Conta com três anos... três anos e meio. Essa quantidade já não é para consumo. É o que eles dizem. - Lembrou o carteirista. – E tu, meu palhaço? Estás armado em quê? Ainda por cima fizeste-te a um chui. Logo vês o que comes... Dois guardas prisionais, no cumprimento musculado da sua função, puseram termo à altercação e, agarrando cada um deles pelo pescoço, encaminharam-nos rapidamente para a porta de saída. O destino de ambos era a zona prisional. – Amanhã, vão armar-se em vítimas perante o Juiz. Admirem-se que sejam postos em liberdade. A senhora quer apostar? - Perguntou um homem que aguardava ali sentado, havia cerca de três horas, para formalizar a sétima queixa por furto da sua viatura. Pilar não lhe respondeu, mas Vasco, que, entretanto, regressara do interior do piquete onde já anunciara a sua presença como a de Pilar, perguntou ao homenzinho que aparentava uns sessenta anos: que carro é o seu? – Uma Bedford... o meu ganha-pão. Equipada com o melhor que há para vender cachorros quentes e bifanas. – Ah, percebo! Estou a ver… – Os sacanas deixam-me carregar a mercadoria, e, já por sete vezes, quando vou abrir o estabelecimento, nada! Tudo limpinho e rebentado. Ainda dizem que os drogados não comem! Não comem, uma merda! O caralho é que não comem!… Comem e a horas certas! Foi sempre por volta das oito da noite, antes de eu sair com a minha senhora para o trabalho. Vasco, cofiando a pêra, ainda perguntou: e o seu trabalho, fica onde? – Na carrinha, senhor, onde há-de ser? - Respondeu o homem, estranhando a pergunta. – Não é isso, criatura. Qual é o seu posto de venda? Onde é que vocemecê poisa? – Oh, meu senhor, na “Meia-Laranja”! Julguei que já tivesse percebido. – Ah, sim, estou a entender. - Concluiu Vasco, a quem Pilar interrompeu a conversa, puxando-o por um braço.
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– Por amor de Deus, Vasco. Tira-me já daqui! E diz a esses tipos que, ou me recebem imediatamente, ou me vou embora. Haja respeito pela dor e pelos sentimentos das pessoas. É o mínimo… – Percebo, Pilar, compreendo... um instante só, que vou ver. E, de imediato, entrou nas instalações do Piquete. Pilar ainda teve de esperar uns dez minutos até que fosse conduzida a outro gabinete que, como particularidade, tinha a de estar fechado por uma porta blindada, com três fechaduras. Um agente, de cabeça redonda e cabelo quase à “escovinha”, ao abri-la com três gestos rápidos e precisos, soltou dos seus sovacos um pivete acre a cebola, de que Pilar se defendeu, virando a cara. – Se este for o guarda do espólio, ninguém se atreve a assaltá-lo. Este homem não precisa de arma. O cheiro é tão nauseabundo, que toda a gente foge!... - Asseverou Pilar, em surdina, ao ouvido do amigo. Vasco franziu ligeiramente o nariz e anuiu com a cabeça, mais por conveniência do que por convicção e para pôr termo ao comentário feito num tom de voz audível pelo agente, que ainda olhou Pilar de esguelha enquanto entrava no gabinete, seguido de ambos. Era uma divisão ampla com três janelas que davam para um grande pátio interior. As paredes encontravam-se completamente revestidas de cacifos em metal, de cor cinzenta, com alturas e larguras diferentes. Parecia uma sala de recolha de bagagem de uma gare ferroviária dos anos cinquenta. No centro, uma mesa rectangular, de idêntico material, sobre a qual pendiam três candeeiros com abat-jours semelhantes a três pratos de alumínio virados de borco, e mais três cadeiras em metal, forradas a napa cinzenta e já esfolada, completavam o décor da sala. Tudo era cinzento. De um cinza diferente do seu fato, era verdade. - Em todo o caso, o prelúdio do preto. - Considerou Pilar, que concluiu: “na morgue, engavetam os corpos e aqui, os espólios”. Em pé e junto à janela, aguardava que lhe fossem mostrados os objectos a identificar, que o inspector alinhava em cima da mesa. No pátio interior, para que davam as janelas da sala, estavam estacionados vários automóveis, alguns deles de grande turismo, que só poderiam ter sido apreendidos. – Já viste esta colecção de “bombas”? - Perguntou Pilar a Vasco, apontando para um Porsche, um Lamborghini, vários Mercedes, BMW’s e um Corvette. – Eu, já. Mas é uma pena os carros terem todos os pneus em baixo e não haver um único que não tenha crostas de sujidade, que até a deficiente iluminação do pátio deixa ver. - Respondeu Vasco. – Este garagista não estima nada os carros que lhe estão confiados. - Escarneceu Pilar, olhando o agente de soslaio. JAPS
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– Foram apreendidos. O nosso alojamento inclui parqueamento para os bólides dos nossos “hóspedes”, mas sem direito a lavagem... - gracejou o agente, sorrindo maliciosamente. – E, no geral, para prova de que tipo de crimes? - Perguntou ainda Vasco Leiria. – De tráfico de droga... de armas... de carne branca, também! – Informou o agente. – Paulo também traficará putas?... - Perguntou-se a si própria Pilar, que, assustada com tal hipótese, até suspendeu a respiração por um momento. - Se calhar, cabritas. - Admitiu, contrariada. – Veja! ordenou-lhe o agente, apontando para os objectos que previamente alinhara em cima da mesa. Sobressaltada pela raiva que tal suposição lhe fizera subir à garganta, Pilar voltou-se para o interior do gabinete. Na mesa, o inspector Prudêncio, assim se apresentara, havia colocado um sapato de vela, umas armações de óculos, já sem lentes, um cantil com o calfe que o revestia, quase todo queimado e uns farrapos, restos de um polo. – Alguns destes objectos pertenciam ao seu marido? - Perguntou, de supetão. Pilar propôs-se agarrar no “cantil” para melhor o observar. – Quieta, não toque em nada! Tudo isto vai para o Laboratório da Polícia. – Gritou o inspector, que, surpreendido pelo propósito de Pilar em agarrar no objecto, formulou um salto para se interpor entre ela e a mesa. – Credo, senhor! Mas que propósitos! - Protestou Pilar, para logo concluir: “não sei”. – Identifica-o como sendo do seu marido? – Que número e marca tem esse sapato? O inspector, que tinha as luvas calçadas, agarrou no sapato e concluiu: quarenta e três. É um Callaghan. – O meu marido calçava o quarenta e dois. - Esclareceu. – Calçava, ou calça? Quem é que lhe disse que ele ia no barco? – Perguntou o polícia, enquanto lhe mostrava o cantil. – Que tem isso lá dentro? É whiskey? Se for Bushmills… ele só bebia whiskey irlandês. Bushmills, e de rótulo verde. Isso posso garantir. - Respondeu Pilar. – Ó minha senhora, por quem é! Como quer que lhe responda, se o cantil nem rolha tem?!... – Minha senhora, não! Senhora Doutora, se faz favor! Ou ainda não sabe quem sou? Ainda não teve tempo de saber com quem está a falar? O tratamento por “minha senhora” sempre a deixava possessa, desde que se licenciara em Direito. – Isso fica para mais tarde. Se calhar... 18
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– Mas, enquanto fica e não fica, é assim. Trate-me com respeito. – Mas eu não lhe faltei ao respeito por ter achado despropositada a sua pergunta… – Despropositada? – Pois… no mínimo, será isso, ao querer que eu lhe diga a marca do whiskey que a garrafa continha. A senhora acha que eu identifico whiskey pelo cheiro? A explosão foi tão grande, que, para além de arrancar a rolha à garrafa ou ao que isto é, até a lavou do cheiro desse irlandês… – É que o meu marido só bebia Bushmills... – E eu bagaço. - Retorquiu Prudêncio com indisfarçável desdém. – Senhor inspector! - Interveio Vasco. – E os óculos? São dele? - Perguntou o polícia. Pilar, após breves instantes que demorou a observar a armação, muito danificada e até derretida nalgumas partes, respondeu: “o meu marido não suportava esse estilista. Nunca usaria uns óculos Versace, a menos que tivesse mudado muito nos últimos tempos. Nunca lhos conheci”. - Rematou. – E o Polo? – Não, também não o reconheço. É tudo? Perguntou Pilar, que, já visivelmente irritada, agarrou na carteira que pousara na mesa, e, voltando as costas ao inspector e a Vasco, dirigiu-se para a porta, que, em vão, tentou abrir, porque estava fechada. – Abra, por favor, pediu Pilar, que logo acrescentou: “estou farta. Se soubesse que era para isto, nem cá tinha posto os pés. Isso não é nada do meu marido”. – Parece desapontada!... - Retorquiu o inspector, reticentemente. – Senhor Prudêncio, por favor!... - Implorou Vasco Leiria. – O que é que quer dizer com isso? Quem vai tratar de si, sou eu, e é já amanhã, que não lhe admito despautérios desses. - Ameaçou, de indicador em riste e com os olhos a faiscar de indignação. – E eu, ainda hoje vou tratar de vocelência, pode crer! Acalme-se e sente-se. Só sai daqui comigo. - Retrucou o agente, com ar determinado. – Como assim?! Que quer dizer com isso? - Perguntou Pilar com a voz embargada por um nó que, de súbito, lhe apertou a garganta. – Tenho de a notificar para comparecer no DIAP, no dia 31 de Dezembro, a fim de ser interrogada pelo senhor Procurador. – Pelo Procurador? Mas que é isto? O que é que vocês estão a cozinhar? – Perguntou a advogada, já exaltada. – Eu não cozinho nada. Sou um simples agente que só cumpro ordens. O que faço há vinte anos é investigar homicídios. – Ó Vasco, tu calas-te? Tu permites isto? - Perguntou, indignada. – Pilar, acalma-te, por favor. São formalidades de rotina. Ninguém te acusou de nada. – De homicídio, parece! Estes tipos estão a passar as marcas! JAPS
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– Exclamou a advogada, já furibunda. – Pode dar-me o contacto mais fácil e rápido do senhor Paulo Rios? – Perguntou o inspector a Pilar, de supetão e sem a olhar. – A que propósito? - Perguntou, sobressaltada, a advogada. Vasco percebeu a perturbação da amiga e, aproveitando-se do facto de o inspector estar de costas, a fechar o cacifo, abeirou-se dela e segredou-lhe: cala-te, não respondas a nada, antes de falarmos. O tipo está a tentar tirar nabos da púcara. Não te impressiones, nem aparentes medo. – Então, não ouviu? - Perguntou o inspector num tom melífluo, voltando-se reverentemente para Pilar. – Mas quem julga o senhor que eu sou? Pensará o senhor que eu sou funcionária dos serviços de informações telefónicas? Ora, tenha juízo… - ripostou. – É normal que lhe pergunte o número do telefone do seu namorado, uma vez que o não tenho e preciso de falar com ele. Se eu tivesse namorada, sabia o telefone dela de cor… - retorquiu o inspector. – Mas isto é infame! Isto não fica assim. Ai não fica, não. - Prometeu a advogada. – Pois não... não fica não, pode estar absolutamente segura e certa. Não trabalhamos tão mal como dizem. Pode demorar tempo mas tudo se descobre; e neste caso, também veremos se é assim ou não. - Prognosticou o inspector, que, depois de indicar a Pilar a porta entretanto já aberta, cedeu-lhe a passagem. Já no corredor, o inspector Prudêncio voltou-se para ambos e pediu-lhes que o acompanhassem ao Piquete. Pilar seguiu o inspector pelo longo corredor, com Vasco a seu lado. E, às tantas, puxou o amigo por um braço e perguntou-lhe: como é que eles sabem do Paulo? – Depois falamos. – Mas o que é que o Paulo tem a ver com isto? – Já te disse. Quando sairmos daqui falamos. Vasco e Pilar tiveram de esperar à porta de um gabinete anexo ao do Piquete. Passado um quarto de hora a porta abriu-se e o inspector Prudêncio, depois de os introduzir no gabinete, em que um homem de meia idade os aguardava em pé e atrás da secretária, apresentou-o como sendo o inspector-superior dos homicídios, senhor Doutor Ferraz. – Façam o favor de se sentar. - Convidou o Doutor Ferraz, para logo informar: é só rotina e vai ser rápido. Já sentado à sua secretária e com Pilar e Vasco à sua frente, o Doutor Ferraz informou: temos razões para suspeitar que alguém fez explodir o barco, mas a certeza só a poderemos ter depois de realizados os necessários exames periciais. – Mas em que fundam as vossas suspeitas? -Perguntou Vasco Leiria. – Isso não lhe posso revelar, porque o processo está em segredo de 20
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justiça. E o senhor Doutor, como advogado, sabe que assim é. - Justificou-se o inspector superior, que, voltando-se para Pilar, lhe ordenou: “dia 31, pelas 9 horas, queira apresentar-se no Tribunal de Instrução Criminal. Sabe onde fica, é claro. Pelo sim, pelo não, será melhor fazer-se acompanhar de um colega”. – De um advogado?! - Perguntou Pilar, enfatizando a sua admiração por tal sugestão. – Sim, sim, de um advogado. Não posso saber em que qualidade é que o senhor Procurador da República a vai ouvir. Sempre será melhor do que ser assistida por um advogado oficioso. - Recomendou, apontando-lhe para a notificação que deveria assinar. – Lá estarei. - Prometeu com ar resoluto a advogada, depois de ter assinado. Simulando não ter visto o inspector estender-lhe a mão, Pilar voltou--lhe as costas em direcção à porta sem se despedir. – Olhe, desculpe, a sua mala... - lembrou-lhe o inspector, apontando-lhe a carteira, que deixara esquecida em cima da secretária. – Parolo! Este diz mala... - desdenhou a advogada para consigo mesma, após o que, e voltando-se para o inspector, exclamou: “Ah, sim, a minha carteira!... A propósito, não quer revistá-la?” – Minha senhora, tenha paciência, que nós só estamos a fazer o nosso trabalho. Porquê esse azedume? – Senhor inspector, queira desculpar, porque, dadas as circunstâncias, é natural. Não leve a mal... - pediu Vasco Leiria. Já Pilar havia transposto a porta do gabinete, quando o Doutor Ferraz, levando a mão à testa, e suspendendo o aperto de mão a Vasco Leiria, lhe disse: Senhor Doutor, já me esquecia. O senhor também deve comparecer na 20ª Secção do DIAP, pelas 9 horas, do próximo dia trinta e um, a fim de ser inquirido. – À mesma hora da senhora Doutora? – Sim, sim, senhor Doutor. – Muito bem. Lá estarei, senhor inspector. - Prometeu o advogado. Já no corredor, Pilar perguntou a Vasco Leiria: “ o que é isto, podesme dizer? O que é que estes tipos querem?” – Pilar, eu sei tanto quanto tu. Pelo menos, julgo saber. – Também tu?... Que queres dizer com isso? – Eu só estou metido nisto porque o barco estava registado no meu nome. Como te disse, telefonaram para o meu escritório, ao fim da tarde, julgando que o barco era meu. Que queres que te diga? Vê é se apanhas o teu advogado. É melhor ires acompanhada dele no dia trinta e um. - Aconselhou Vasco Leiria. – Mas para que é que eu preciso de advogado? Para quê, podes dizer-me? – Ora, tu é que sabes... JAPS
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– Só me faltavas tu... – Acalma-te, vai para casa e vê se consegues falar-lhe - Voltou a recomendar Vasco Leiria. Despediram-se à porta do edifício. Vasco, que tinha estacionado o carro para o lado da Estefânia, não acompanhou Pilar até ao automóvel dela. Queria evitar mais conversas antes de rebobinar a sua memória. Afinal, teria sido ele o último a estar com Afonso antes do acidente.
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Já em casa, sentado à lareira, Vasco Leiria observava, absorto, o lume. – Não foi suicídio. Isso não foi, tenho a certeza. Porque carga de água é que ele se havia de matar? Nem pensar - Concluiu em surdina. – Que dizes, Vasco? - Perguntou-lhe Clotilde, ao surpreender o marido nesse circunlóquio. – Estou a pensar. Olha, dá-me um whiskey - Pediu à mulher. Vasco sentiu um arrepio ao imaginar o seu velho amigo com rigor mortis, encravado em qualquer rocha no fundo do mar ou já estirado à babugem numa praia para onde as vagas o pudessem ter vomitado. – Que frio, raios!... E aconchegou ao pescoço a gola do sobretudo, que nem sequer tirara ao chegar a casa, com a pressa de se sentar ao fogo. Sempre precisara de calma para pensar. De preferência, sentado. E o fogo acalmava-o. – A polícia já sabe quem ia no barco? – Quando telefonaram para o meu escritório, às sete da tarde, não sabiam. Julgavam que era eu... Gaita! Lá lhes expliquei que não era eu… que eu estava vivo. Como que para se certificar disso, Vasco Leiria arrancou dois ou três pelos da pêra, para logo exclamar: dói, porra! A dor, por vezes, é o melhor sinal de que estamos vivos. - Reconheceu. – Olha lá: é tarde para filosofias baratas. O que é que a polícia já apurou? – Perguntou Clotilde, enquanto lhe dava à mão o balão meio de whiskey, justificando a dose generosa: “sempre dá para beberricar do teu copo. Bebo menos, assim…” Vasco não comentou. Começava a preocupá-lo a quantidade de álcool que, sob os mais diversos pretextos, Clotilde ingeria diariamente. – Tu não ouviste? - Perguntou Clotilde, tirando-lhe o balão da mão, que o marido ainda nem levara à boca. – O quê? - Perguntou, atónito, Vasco Leiria, por ter percebido algum delirium tremens na mão da mulher. – O que é que a polícia já descobriu? - Insistiu Clotilde. – E eu sei? A única coisa que percebi foi que julgam ter-se tratado de uma explosão provocada. Que alguém armadilhou o barco. E, mais intrigante ainda: andam à procura do Paulo Rios... – Quem é esse fulano? – Irmão do Pedro Rios, do advogado da Pilar. Ela anda metida com esse tipo. Parece que, entre outras coisas, trafica armas e diamantes. Toda a família Rios está envolvida nisso há cerca de vinte e cinco anos. Desde o início da borrasca em Angola. Primeiro, para a FNLA, depois para a UNITA… – É retornado? JAPS
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– Sim. Como a Pilar. Tu sabes... – Claro... – As famílias eram amigas, já de Angola. Parece que este tipo chegou a namorar a Pilar quando ainda eram miúdos, segundo o Afonso me disse. É irmão do advogado. O Afonso disse-me que o advogado era a iminência parda; o irmão, o operacional; e o pai, que terá uns oitenta e cinco anos, o chefe do clã, que é proprietário de uma empresa de lapidação de diamantes em Roterdão. – Mas macacos me mordam, se a Pilar anda metida com gente dessa! Isso não pode ser para durar… – Mas que anda, anda. Ele confirmou-mo, há horas, e o Afonso não é tipo para inventar nada. – É estranho. Uma coisa é ser-se de direita, mesmo de extrema direita. Outra, é ligar-se a gente dessa… – Deixa-te de ilusões. São todos uns recalcados. Nunca se conformaram... – Quem? – Ora, quem há-de ser? Essa gente, os “retornados”. Os “tínhamos”, os “éramos”... e às vezes nunca tiveram nada nem foram ninguém, a não ser na imaginação deles. – Respondeu o marido. – Bem se têm governado. Pelo menos, a maioria deles tem tirado partido, e que partido, da espoliação a que só alguns foram sujeitos. – Estes, parece que são podres de ricos. Governaram-se à fartasana com a guerra do Irão – Iraque e com a guerra civil em Angola. Começaram por armar a FNLA, depois a UNITA, forneceram armas aos rebeldes da Serra Leoa, ao Saddam Hussein e parece que até à Frente Polisário… – E como é que ela estava? – Não me pareceu afectada, mas preocupada, isso sim. Quase aterrada com a hipótese de a envolverem no possível homicídio do marido. O que é natural, não é? – Comentou Vasco Leiria. – A ruptura acabou com o muito pouco que havia entre eles... – Cá para mim, nunca houve nada. Nem no início do casamento. Ela foi um capricho do Afonso. Dela, o nosso amigo acabou por só querer o corpo. Era nova, bonita, com uma boa presença, apresentável... e ele era vaidoso. Credo, pode ser que ainda seja... - apressou-se Vasco Leiria a corrigir o tempo do verbo. – É verdade. Eram como azeite e vinagre. Estava escrito. Nem a filha os salvou. Das últimas vezes que falei com eles, não fiquei com dúvidas. Nem cheiro de afecto. Ela odiava-o... – Por não suportar o desprezo a que o Afonso a votava. - Acrescentou Vasco.
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– Mas ao ponto de se poder envolver num homicídio? - Perguntou Clotilde, com os olhos já vítreos e incandescidos pelos reflexos do fogo da lareira. – Já não digo nada. Que ela me pareceu preocupada, pareceu. E surpreendida, também, quando lhe perguntaram pelo gajo... por esse tal Paulo Rios. – Mas como é que a Polícia chegou aí em tão pouco tempo? – Sei lá! Se calhar, alguma coisa encontraram nos destroços. Mas uma coisa é certa: já andam à procura desse tipo. – Eu continuo na minha. A Pilar, por mais que odiasse o Afonso, não se envolvia com um tipo desses... – Ela, para além de desesperada, estava aterrada. Foi ela que, ainda há quinze dias, me disse: “o teu amigo vai esmagar-me em Tribunal. Já começou. Só descansa quando me vir na valeta”. – Que disparate! Isso só pode ter sido para te impressionar; até porque, pelos vistos, esse tal Paulo é rico. Ele não lhe há-de faltar com nada. Ou não será?... – Mas a Pilar não se deve querer comprometer a sério com um tipo desses. Só para umas “higiénicas” .– Respondeu Vasco. - Está-se só a servir dele e do irmão. Ela não é mulher para se meter numa aventura com um tipo desse calibre. E tem de salvaguardar a imagem dela junto da filha. -Acrescentou o marido. – E se a Sofia é fina!... É parecida com o pai. - Reconheceu Clotilde. – Mas, não obstante isso, encostou à mãe. Nem o pai quer ver, vai para um ano! A Pilar está a matar a relação da filha com o pai, está a utilizá-la como arma de arremesso contra o Afonso. – Lembrou Vasco. Clotilde, depois de ter virado o balão de whiskey, perguntou: “e os mais velhos, já sabem?” – Não faço a mínima ideia. O André era muito chegado ao pai. A Carolina, nem tanto. Essa nunca terá superado o divórcio dos pais. – De qualquer forma... coitados! – Exclamou Clotilde. – Já estão criados e encaminhados. Mas a mais pequena... – E agora, entregue à mãe... – Vamos ver se será à mãe. Se mataram o Afonso… sim, que ele não se suicidou, como já ouvi sugerido, restará saber a quem vai ficar confiada a Sofia. – Que ele não se suicidou?! Mas porque carga de água haveria ele de fazer isso? - Perguntou Clotilde, completamente atónita por o marido ter colocado essa hipótese. – É um cenário que a PJ não descarta, para já, segundo me pareceu. – Mas porquê?
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– Por ele ter ido ao fim da manhã de hoje revogar o testamento que tinha feito há anos e fazer um outro. – Como soubeste? – Então… Se ele me pediu para ser o seu testamenteiro! - exclamou o marido, olhando alternadamente para o copo vazio e para os olhos da mulher. Alterou o testamento e a seguir... E, erguendo o sobrolho, rematou: Ainda assim, não acredito. Ao almoço estava muito bem disposto. Não cabia em si de contente por ter ganho uma acção importante que durava há dez anos; e assisti a uma chamada dele para a agência de viagens, a pedir a marcação de duas passagens para Londres. - Informou o marido. – Com quem? – Isso não lhe perguntei. Disse-me que ia passar o milénio a Picadilly Circus. – E tu disseste isso à Judiciária? – Não, porque não me tomaram declarações. Só no dia trinta e um é que irei prestar declarações ao Procurador. – Também pode ter sido um simples acidente. Mas que raio fazia ele às quatro horas no Cabo Espichel? Numa tarde de Inverno, ainda por cima! E o mar, como estava? – Não sei, mas não te esqueças de que estamos em férias e que a pesca era o hobby preferido dele. – Mas não me disseste que almoçaste com ele? - E, sem esperar pela resposta, aventou: “ele não ia para a pesca depois de almoço. Isso não tinha qualquer cabimento. Muito menos na altura do ano em que escurece mais cedo”. – Também tens razão, - Reconheceu Vasco, que acrescentou: “eram duas, duas e pouco. Almoçámos nas Docas. Eu fui para o escritório e ele ficou. Disse-me que ia pagar a atracação do barco. Ficámos de nos encontrar depois do Ano Novo”. – Mais nada? – Entregou-me uma procuração com plenos poderes para o representar junto da editora com quem acertou a publicação do seu terceiro romance; e outras duas para o representar nos processos-crime que propôs contra esse tal Paulo Rios. – Para o representares? – Sim. Porque não queria ser ele, pessoalmente, a tratar com a editora das questões práticas que se prendem com a publicação do livro. E conferiu-me as outras porque não queria ser advogado em causa própria nesses processos. – De facto, com tantos planos!... O Afonso nunca seria homem para se matar, tenho a certeza! O nosso amigo tinha uma força!... Nem sei onde a ia buscar. Mas isso é outra coisa. Trabalho, mais trabalho... chatices... desilusões... 26
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projectos e mais projectos! Era um resistente. - Reconheceu Clotilde. – Lá isso é verdade. Um construtor inveterado. - Concordou o marido. – E estava sempre a dizer que adorava a vida. - Lembrou Clotilde. – Mas são esses, são precisamente esses, os que mais depressa se matam quando se desiludem mais do que a conta com a vida. - Balbuciou Vasco Leiria, erguendo os sobrolhos. – Gostava de acreditar em Deus, para rezar uma oração por ele... – Ainda hoje deixou expresso no testamento a vontade de ser cremado. Até por aí se vê que a hipótese de suicídio não tem qualquer cabimento. – E quem te diz que não foi? Se o barco explodiu, pode ter ficado que nem um torresmo. Cremado, mas no meio do mar... – Torresmo? Que expressão, mulher! Que horror! - Arrepiou-se Vasco Leiria, olhando instintivamente o borralho para onde atirara a “beata”. Só restavam cinzas. – Três horas, marido! Vamos para a cama. Ás nove tenho de me levantar... – Requiem por mais um amigo. - Sussurrou Vasco Leiria. Clotilde sentou-se ao lado do marido e, depois de lhe pegar na mão, perguntou-lhe, sem o olhar: “és meu amigo?” – Que te parece? – Então, anda, vamos para a cama. E, abraçados, saíram da sala.
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6 Pilar nem queria acreditar que a Polícia Judiciária pudesse ter qualquer suspeita de que estivesse envolvida no homicídio do marido. A caminho do carro, parou. – Mas qual homicídio? Se não apareceu nenhum corpo! Se nem sequer sabem quem ia no barco... Fez por se sossegar e retomou a procura do automóvel. Mas onde é que eu o deixei? - Perguntou-se a si própria, olhando em volta. Havia já passado pelo local onde estacionara o carro, sem o ver. Voltou para trás. – Nenhum dos objectos era do Afonso... o barco nem era dele! - Ainda exclamou. Nesta altura das suas conjecturas franziu o sobrolho e teve de admitir que este argumento nem para si podia valer, pois até fora ela quem, nem há um mês atrás, demonstrara no processo de arrolamento por que razão o barco estava, simuladamente, no nome de Vasco e que a única pessoa que o utilizava era Afonso e as mulheres com quem andava. No verão desse ano, para fazer prova no processo de que o barco era de Afonso, Pilar pediu a Paulo Rios que mandasse filmar o marido aos comandos da embarcação. Paulo esmerara-se. Um capanga seu conseguira filmar toda a viagem de Afonso, da Doca de Santo Amaro até ao Portinho da Arrábida. Afonso nem se apercebeu de que estava a ser filmado. Encontrado o carro, e ainda antes de ligar a ignição, Pilar reconheceu: foi pena que o malandro se tivesse limitado a comandar o barco e a galdéria se tivesse ficado por uns banhos de sol. Ao fim e ao cabo, não consegui a prova real do adultério. Só a de que o barco era do patife. Foi pena. A fulana devia estar com o período. Rara era a viagem em que o tipo não fornicava comigo, ao largo, no mar alto. O mar excitava-o. – Recordou, para logo se irritar consigo por ainda guardar essa lembrança. Olhou para o relógio e, depois de acender um cigarro, agarrou no telemóvel e ligou para Pedro Rios, a quem informou, sucintamente, da razão da sua ida à Polícia Judiciária. Passados uns instantes, o advogado comentou: “mas isso é óptimo. Resolve tudo. Ficas viúva e herdeira. Não há necessidade de processos. O meu irmão já sabe?” – Como há-de saber? De manhã disse-me que ia a Madrid e que só voltava amanhã. Isto não são coisas para falar com ele ao telefone. – É claro, tens razão. - Reconheceu o advogado. – Mas ouve, tenho de falar ainda hoje contigo. - Pediu Pilar. – Mas diz... – Não. Por telefone, não. – Mas qual é a pressa? - Perguntou, intrigado, Pedro Rios. – Fui notificada para comparecer no dia 31 pelas nove horas no DIAP. 28
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A Judiciária suspeita de homicídio... e do teu irmão. Já me perguntaram pelo Paulo... – Como assim?! – Não sei, é o que te digo. Tiveram a lata de me sugerir isso. E havias de ver os ares do inspector… – Mas, se o acidente foi às quatro horas... não foi o que disseste? Se o meu irmão está em Madrid... - lembrou o advogado. – Mas, ainda assim. Foi há menos de uma hora atrás que o próprio inspector me disse que havia indícios seguros de que não foi acidente. Já recolheram destroços e sugeriu que alguém fez explodir o barco. – Mas isso é impossível, porque eles ainda não tiveram tempo para fazer qualquer exame. – Não sei, mas o que eles disseram foi isso. Pilar e Pedro Rios acharam conveniente acabar com a conversa e combinaram encontrar-se daí a um quarto de hora no “Boémia”. Ficava a meio caminho e perto da casa de ambos. Além do mais, esse bar era como se fosse propriedade da família Rios. Era discreto e de confiança. Uma hora e meia mais tarde, Balbino, um dos donos do “Boémia”, sussurrou aos ouvidos de Pedro Rios: “senhor Doutor, se não se importa”... - e pôs a conta na mesa. – Ó homem! Cheguei há uma hora e já me trazes a conta sem que eu a tenha pedido? – Perguntou Pedro Rios, irritado e levantando a voz. – Senhor Doutor, como sabe, fechamos às duas. E já passa um bocado... - lembrou Balbino. – Ó meu sacana, ouve lá: eu compro-te isto, já amanhã. Mas agora, desampara-me a loja e deixa-nos sossegados. Não percebes que estás a chatear, que estás a mais? Balbino rodou sobre os calcanhares e regressou para trás do balcão, onde fez tempo, lavando uns copos. Assim, quando abrisse a tabanca no dia seguinte, já tinha a loiça lavada. Enquanto ia adiantando serviço, comentou com Alípio, seu sócio: este gajo julga que compra tudo. Grande besta! - Exclamou. – Deixa-te de merdas. É um cliente certo, e não só. Há quantos anos o conhecemos? – Sei lá? Estou farto do aturar. E esta tipa é nova no harém, não? – Nunca a vi, mas duvido. É fina de mais para o gajo. É uma boa égua, mas só se for de língua é que o gajo lá vai... - aventou o sócio Alípio. – Ou então, dá-lhe uma e rebenta… - ainda arriscou o velho Balbino. – O animal já não o põe em pé. Deve estar encortiçado pelo álcool. O gajo é só ares. Agora tem um Mercedes descapotável... - informou Alípio. – É para dar oxigénio às garinas. - Concluiu Balbino, sorrindo. – O cabrão é cá um mafioso!... Mas ninguém lhe põe as mãos em cima, é o que é. – Tem a mania do boxe. JAPS
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– Só se for para encaixar uns bananos. - Retorquiu Alípio. – Tem a prosápia de ser teórico do boxe. – Ainda acaba é amassado. – Admira-te que qualquer dia leve um enxurro dum preto. Há anos que anda a vender-lhes gato por lebre. Toda a gente sabe. - Lembrou o sócio Balbino. – Mas vê lá se alguém lhe toca!... – Ainda não tocou, mas, quando for, é de vez. – Balbino, quero outro gin. - Pediu Pedro Rios com a voz já entaramelada. – Vai lá tu Alípio. Hoje já tenho a minha conta. Pedro Rios pôs em cima da mesa uma nota de um conto, sem olhar para Alípio e depois de dar um primeiro gole. – Não tem mais pequeno, senhor Doutor? – Fica com o resto, a título de sinal e princípio de pagamento do preço por que te vou comprar esta pocilga, onde todas as bebidas são maradas. – Escarneceu Pedro Rios, enquanto despejava o copo no tapete, vociferando: “este gin é imbebível.” – Mas é Gordon’s, senhor Doutor... – E a tua mãe, o que será? Traz-me outro, do que tu bebes, meu sacana. Rápido... Sem retorquir, Alípio levantou o copo da mesa. – Agora é falsificado!... Já viste isto? – Dá-lhe outro da mesma garrafa. O gajo nem dá por ela. Já está mais grosso que um cacho. - Diagnosticou o velho Balbino. Alípio serviu-lhe outro gin. – Este sim! - Aprovou, depois de ter dado um primeiro gole. E voltando-se para Alípio, advertiu-o: “ouve lá, pá, para a próxima, não te enganes na garrafa”. Alípio nem respondeu. – Toda a oportunidade é boa para lembrar a estes gajos quem manda e quem lhes emprestou o dinheirinho para tomarem isto de trespasse. São cães que mordem a mão do dono. – Com juros a 20%, não foi? - Perguntou Pilar. – Estás louca... – Foi o teu irmão que me disse. – Esse gajo é um imbecil. Só diz e só faz merda. Não passa de um cretino e de um aventureiro inconsequente. – Mas achas que ele está metido no caso? – Tu é que deves saber. Não és tu que dormes com ele? Eu não lhe encomendei nada... – Nem eu... 30
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– Isso!... Ainda há pouco me disseste que o encarregaste de “tratar” do teu marido. - Lembrou Pedro Rios, sorrindo. – Escuta: eu quando lhe pedi para “tratar” dele... – Não era para o canonizar, pois não? - Interrompeu Pedro Rios a explicação que Pilar se preparava para lhe dar. – Mas nunca para o matar... – O meu irmão leva tudo à letra e, de preferência, com sangue. Ficou-lhe o vício dos tempos da guerra. Tu deves saber, não é? É um carniceiro autêntico que, gosta mais de sangue que um vampiro. – Como assim? Por que hei-de saber? – Então, não foi com ele que dormiste pela primeira vez? – És um ordinário! – Que te tem dado jeito. Mas sempre sou melhor do que o Paulo. Se calhar está na hora de mudares... – Eras capaz disso? – Eu? Olha bem: se o fulaninho se meteu na treta é esse o meu preço para te safar. – E ele? – Que se quilhe, que é um desmiolado. Nem parece um Rios. – É teu irmão... – Deixa ser. E tu podes ser minha. – Se eu quiser... – Logo se verá. Achas que podes querer seja o que for? perguntou Pedro Rios, levantando com o indicador o queixo de Pilar, para a obrigar a olhá-lo de frente. – Caim... és um porco! - Exclamou Pilar, desviando a face da mão do advogado, que a acariciava. – E tu? Uma santa, queres ver? E, sem esperar pela resposta, recomendou: “deixa-te de merdas. Somos iguais. Não passas de uma perversa”. - Escarneceu o advogado, afagando-lhe a nuca por baixo dos cabelos. – Perversa, eu?! - Perguntou a advogada, sinceramente escandalizada. – Pois!... Eu sei o que sou, a má rolha que sou, mas, ainda assim, estou a milhas de ti. E tu sabes disso. Comigo, escusas de te armares em santinha e em púdica. Tu sabes bem que a mim não me enganas… – Sei? – Olha: se tens dúvidas do que és, lembra-te só do que fizeste à tua filha... o que fizeste à relação dela com o pai. – Mas foste tu que... – Eu pensei, eu maquinei, mas foste tu que executaste o meu plano! - Exclamou o advogado, deixando a mão na confluência das coxas de Pilar. Os olhos de Pilar chispavam de raiva, quando, transtornada, lhe JAPS
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