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M ANIAS M EDOS M ISTÉRIOS M OMENTOS M UNDOS
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FICHA TÉCNICA edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: Manias, Medos, Mistérios, Momentos, Mundos autor: João António Tavares ilustrações: João António Tavares revisão: Patrícia Espinha capa: Patrícia Andrade paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, junho 2017 isbn: 978-989-8821-50-8 depósito legal: 427084/17 © João António Tavares
publicação e comercialização:
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PREFÁCIO «Manias, Medos, Mistérios, Momentos, Mundos» é uma coletânea de textos curtos, a maior parte escritos entre 2013 e 2014. Alguns terão uma estrutura classificável como conto, outros serão do tipo quadro ou cena, vários escaparão aos hermetismos das categorias literárias. São textos de ficção, mesmo quando narrados na primeira pessoa e, por vezes, em estilo intimista. Todos, porém, resultam de um qualquer estímulo real: um comentário que ouvi, uma cena fugaz que presenciei, um pormenor de uma qualquer vivência. Coisas que me chamaram a atenção, anotei e utilizei mais tarde como ponto de partida para uma pequena história. Ver um indivíduo a fotografar um café num aeroporto («Fotografias estranhas»); sentar-se ao meu lado, num teatro, um sujeito que batia palmas de forma mecânica («Aplausos»); visitar um jardim clássico com esculturas modernas («Curvas»); alguém me comentar a sua adoração por trovoadas («Excessos») são exemplos de estímulos reais para histórias ficcionadas. 5
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Estes pequenos factos chamaram-me a atenção porque, em geral, têm o seu quê de curioso, de excêntrico, porventura de misterioso. Esta coletânea reflete essa origem, resumida num título longo mas autoexplicativo: são, efetivamente, textos sobre manias, medos, mistérios, momentos e mundos, nalguns casos só um destes vetores, noutros dois ou mais. Muitos estímulos anotados não frutificaram, outros geraram resultados que acabei por rejeitar numa sempre difícil seleção. Afinal, o gosto por escrever tem também muito de manias, medos, mistérios, momentos e mundos. Espero que gostem. João António Tavares
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ÍNDICE Entre os elementos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Na mina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Excessos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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A árvore . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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O miúdo e o cão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
31
O elevador da esquerda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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A reboque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Cris e Bel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
49
Zero vírgula quatro por cento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
53
O Mercedes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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A senhora e a acompanhante . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Conclusões corretas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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O grito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
75
O estabelecimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Um, Dois, Três, Quatro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Voos de lá e cá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
91
A chávena que não caiu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Até amanhã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 O intruso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 O ás de espadas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 7
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Os perigos da infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 Pânico no aeroporto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Nevoeiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 Então, já vês melhor? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 Santo de casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Pardais perigosos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 Psico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 Curvas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 Metamorfose?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 Cozido esmigalhado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 O filme. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 Os melhores morangos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181 A Velhota . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 Tocam os sinos na torre da igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . 189 O meu utrículo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193 Fotografias estranhas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 Vozes indispensáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 Aplausos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 No lugar errado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 Riscos inconvenientes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223 Leituras especiais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
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Entre os elementos – Deite-se, por favor, e dê-me a sua mão esquerda. Ele cumpriu as instruções da médica, relativamente calmo para quem ia estrear-se naquele exame. Já ouvira dizer que podia ser bastante doloroso, mas como ia realizá-lo com anestesia, esperava que a coisa se passasse sem dores dignas de registo. Era também a sua primeira anestesia, pelo menos tomada daquela forma, pois já as experimentara muitas vezes no dentista, mas tendo como consequência apenas aquele conveniente adormecimento da gengiva, remetido à história pouco tempo depois. Sentiu uma picada bastante intensa na mão e calculou que seria a anestesia. Enfiaram-lhe numa veia um tubinho ligado a um depósito com um líquido incolor que pingava, devia ser soro, e puseram-lhe num dedo uma pinça grande com uma luz vermelha que piscava, por certo um oxímetro. Estava a concentrar-se nos aspetos potencialmente engraçados da situação, por exemplo na luzinha na 9
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ponta do dedo, que lhe dava um ar um pouco «E.T.», quando começou a sentir um ardor na superfície superior da mão. O ardor começou a aumentar até se tornar quase insuportável, como se a mão estivesse a pegar fogo. Ia queixar-se daquela emergência, mas já não teve tempo. Na sala ao lado, uns minutos depois, ela deitou-se na marquesa e recebeu a sua anestesia. Em poucos instantes ficou a perambular na quinta dimensão, enquanto decorria o seu exame. ✳
Ele estava na praia, a correr. O tempo estava fresco, demasiado frio para se estar de fato de banho, mas o vento dava-lhe uma agradável sensação de liberdade e as manchas cinzentas do céu ajudavam a diluir os seus pensamentos, como se fluísse entre os três elementos, a areia, o mar e o ar. Corria para lado nenhum, sentindo o vento agitar-lhe o cabelo, apreciando a água fria que por vezes lhe chegava aos pés, usufruindo daquela espécie de limbo entre a realidade e o éter. Passou por um grupo de rochas e viu, a alguma distância, uma mulher de cabelos compridos, escuros, a entrar na água. Estranhou, porque a praia estava deserta e as ondas agressivas. Acelerou a corrida para ver mais de perto o que se passava, quem era a estranha figura 10
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que se aventurava sozinha naquele mar traiçoeiro. Ao aproximar-se, viu-a caminhar lentamente, alheada do mundo, não se apercebendo de que ele se aproximava. As primeiras ondas começaram a bater-lhe, ameaçando derrubá-la a qualquer momento. Ele chamou. E chamou mais alto. E chamou com toda a sua força. Ela não deu sinais de o ouvir, talvez porque o vento soprava em sentido contrário. Ele entrou dentro de água, convicto de que ela não estava bem. Ia de certeza fazer uma asneira e só ele o podia impedir. Tentou mantê-la sempre sob o seu olhar, mas a dada altura, na sequência de uma onda mais alta, deixou de a ver. Aflito, atirou-se para a água e nadou na direção do ponto onde lhe parecia que ela devia estar. Olhou em volta, mas nada. Nadou mais um pouco, evitando ser surpreendido pelas ondas, mas acabando por engolir alguma água salgada. Já estava a desesperar, quando se apercebeu do que parecia ser o vestido cor-de-rosa dela a boiar, não muito longe. Após algumas braçadas, conseguiu chegar perto dela. Agarrou-a e tentou manter a sua cabeça à superfície. Parecia inconsciente, estava muito branca. Com muito esforço, e depois de inúmeros pirolitos, conseguiu trazê-la até à areia, deitando-a de barriga para cima. Exausto, tomou-lhe o pulso e viu, com grande alívio, que estava viva. 11
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Observou-a por uns instantes. Tinha uma beleza misteriosa, talvez pelos lábios grossos e rosados, pelos cabelos longos ligeiramente ondulados, talvez apenas porque acabara de a salvar. Teria desmaiado? Quereria pôr termo à vida? Quem seria? Estava neste remoinho de questões quando ela abriu os seus grandes olhos negros. ✳
– Olá, bem-vindo de volta. Era a médica. Ia dizer-lhe que não tinha adormecido, teria sido apenas impressão dela, quando se apercebeu de que o seu exame tinha terminado. A anestesia mantivera-o inconsciente com uma precisão matemática. Não sentira nada, estava tudo bem, agora era apenas ir para a sala de recobro por cerca de meia hora e depois poderia ir à sua vida. Viera sozinho, pois morava no prédio ao lado da clínica. Na sala ao lado, o exame dela durou mais um pouco e também a sua anestesia foi mais prolongada. Não havia ninguém na sala de recobro quando ela ali chegou para esperar algum tempo, até se sentir bem. Entretanto dispensou a irmã, que a viera acompanhar, e pouco depois estava em condições de se vestir e sair. ✳
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Ele foi almoçar num restaurante à beira-mar. Quando se ia a sentar, viu uma mulher sozinha numa mesa junto da janela. Ela contemplava o mar bravo, que rugia lá fora, absorta nos seus pensamentos. Tinha cabelos compridos e usava um vestido cor-de-rosa. Ele tinha a certeza de que não a conhecia, mas ao mesmo tempo a sua silhueta elegante e o seu olhar distante pareceram-lhe familiares. Talvez a tivesse visto em sonhos, mas ele nunca se lembrava dos seus sonhos. Ela bebia um copo de água, vertido de um grande jarro colocado sobre a toalha branca. Num repente improvável, ele aproximou-se dela e disse-lhe: – O mar está bravo e perigoso. Tenha cuidado, pode afogar-se. Ela virou a cabeça e fitou-o com os seus grandes olhos negros: – Se isso estiver para acontecer, por certo algum cavalheiro me salvará.
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Na mina Era a entrada de uma mina. Estava cheia de ervas e pedras, indicando que teria sido desativada há muito tempo. Nunca tinha reparado nela, nem tão pouco ouvido falar da sua existência, apesar de calcorrear a serra desde criança. De que seria a mina? Não havia ruínas de qualquer construção na zona, nem vestígios de qualquer infraestrutura. Não havia carris, frequentemente usados para o transporte dos minérios, nem qualquer evidência de labores passados. Seria mesmo uma mina? Tornei a olhar para a entrada. Embora com ar abandonado, em parte invadida pela vegetação, tinha uma estrutura retangular, bem desenhada, escorada por grossas traves de madeira escura. De construção humana, portanto. Senti uma curiosidade estranha, um ímpeto inexplicável que me levou a entrar. O que haveria lá dentro? Eu tinha de saber, de descobrir. Entrei, sem hesitação, mas nem tinha andado dez metros e já a luz vinda do exterior começava a escassear. Não tinha lanterna nem 15
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archote, levava apenas um isqueiro para os raros cigarros que ainda fumo, antes de me recriminar inutilmente por ceder à tentação de os usufruir. Entretanto, os meus olhos começaram a habituar-se à escuridão, pelo que consegui continuar a caminhar mais alguns metros, num percurso em linha reta. Pouco depois, como seria de esperar, comecei a deixar de ver onde pisava, o que me obrigava a abrir os braços e apalpar o ar à minha frente, subindo-os de vez em quando, não fosse o teto da mina ter algum obstáculo perigoso para a minha cabeça. Andei mais uns metros assim, não sei bem quantos, quando resolvi parar e acender o isqueiro. E bem o fiz, pois estava com uma parede mesmo em frente, junto a uma bifurcação. Desliguei o isqueiro, para não gastar gás. Para que lado ir? Fiquei uns momentos parado, até me parecer sentir uma corrente de ar, quase impercetível, vinda do lado direito. Haveria uma saída? Segui para esse lado, continuando a andar muito devagar, sondando o terreno com os pés e esbracejando para os lados e para cima, para me prevenir quanto a qualquer buraco traiçoeiro ou protuberância rochosa. De vez em quando, acendia o isqueiro por uns segundos, para ver se estava tudo bem. Não sei quanto tempo andei, tenho a mania de andar sem relógio. Pelo 16
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telemóvel, agora sem rede, pareceu-me que deveria ter entrado na mina há cerca de meia hora. Sim, o telemóvel, outra fonte luz, pensei, com satisfação. Mas a bateria estava fraca, convinha não abusar. A dada altura, talvez por instinto, parei. Isqueiro aceso e eis-me junto a uma nova bifurcação. Fiquei estático, no breu, a ver se sentia qualquer coisa, o ar, um ruído, um ténue vislumbre de luz, algo. Mais uma vez, pareceu-me sentir uma aragem fria, muito subtil, vinda do lado direito. Ia justamente seguir para esse lado quando ouvi uma espécie de sussurro, um roçar suave, não sei bem. Ouvi de novo. Sim, um «fsssss» quase inaudível, como tecidos a passar uns pelos outros, ou ar a sair de um pequeno furo. Hesitei. Deveria seguir na direção da aragem, que me poderia levar ao exterior, mas o facto é que não estava interessado em saída alguma, dominado pela curiosidade, atraído pelo desconhecido, com uma bizarra sensação de que tempo e espaço tinham deixado de me fazer sentido. Aquele era agora o meu mundo, o meu presente. Segui para o lado esquerdo, devagar, usando o mesmo método. De vez em quando, parava por uns segundos, para ver se ouvia alguma coisa. A dada altura, comecei a ouvir uns ruídos surdos, suaves, que não consegui identificar. Por certo havia algo naquela direção e não deveria estar muito longe. 17
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Foi então que tudo se precipitou. Comecei a ouvir uns ruídos mais fortes, tipo «flap flap», e uns silvos agudos, não muito altos. Dei por mim a ouvir também uns tambores muito graves, ecoando no interior dos meus ouvidos. Só depois de alguns momentos percebi que eram as batidas do meu coração. Estava a ficar agitado. Resolvi acender o isqueiro e vi que o gás se estava a acabar. Comecei a tentar ligá-lo, freneticamente, mas apenas surgia a miserável e inútil faísca. Senti-me a suar. Os barulhos pareciam mais fortes, como se se aproximassem. De um momento para o outro, comecei a sentir movimento, o ar agitado, sons que pareciam pancadas, cada vez mais altas, muitas, muitas, «flap flap flap», perto, muito perto. Senti que me tocavam na cabeça, nos braços, na cara. Rodeavam-me, atacavam-me, consumiam-me. Gritei. Gritei mais, e quanto mais gritava mais sentia agitação à minha volta. Não me controlei e comecei a correr desenfreadamente, no escuro, na direção de onde tinha vindo. Os passos desencontrados, os ouvidos a rebentar, os pingos de suor a escorrer pela testa, os braços no ar, a agitar os demónios que me rodeavam. Já não apalpava a escuridão, apenas corria, esbracejava, gritava, trôpego, perdido. Bati, com toda a força, e da escuridão veio um relâmpago de luz intensa. 18
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Trriim, trriim! Trriim, triim! ✳
Abri os olhos, atordoado. Só ao fim de algum tempo concluí estar estatelado no chão da mina. A minha cabeça latejava, tudo me doía. Levei uns momentos a compreender que era o meu telemóvel que tocava e consegui identificar a sua luz azulada, muito ténue, a alguns metros de distância. Rastejei até àquele farol salvador e atendi. Já era noite quando cheguei ao hospital e me trataram das feridas na cabeça e no ombro esquerdo. A minha roupa, completamente suja de dejetos de morcego, foi para o lixo.
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Excessos Não lhes resisto. São bastante raras e mesmo quando aparecem tendem a ser fugazes, raramente se aproximando e ainda menos vezes permanecendo tempo suficiente para poderem ser devidamente apreciadas. Falo das trovoadas, aquelas aparições tão belas que quase choro de emoção quando as vejo. São mais frequentes durante os meses de maio e junho, altura em que me desloco com frequência para as serras do interior do país para chegar perto delas, mas ocorrem por vezes no inverno e até em pleno verão, constituindo agradáveis temperos na sensaboria dos estados atmosféricos ditos normais. Habituei-me a ver as trovoadas desde criança. Vinha para a janela e deliciava-me com aqueles estranhos bramidos vindos do centro da terra e aqueles jorros de luz que entravam pelas mais fechadas frestas. O meu pai ensinou-me a medir a distância até à trovoada, contando os segundos entre a luz e o som, e multiplicando por trezentos e quarenta metros. Poucas vezes chega21
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vam a menos de seis segundos ou cerca de dois quilómetros, mas nessas circunstâncias já o bramido era ensurdecedor, acordando os inocentes bebés do prédio, agitando todos os cães da vizinhança e lançando em polvorosa os gansos da quinta em frente. A cada par relâmpago-trovão, a natureza reagia com um conjunto de outros sons, como que respondendo a um misterioso apelo cósmico. Durante algum tempo, enquanto fui estudante e itinerante, não me concentrei muito nas trovoadas, embora sempre as apreciando. Aliás, nalguns anos mal apareciam, pelo menos na minha zona de permanência. Mas depois de adulto, bem instalado e com carro à porta, recuperei e desenvolvi a paixão de infância por relâmpagos e trovões. Só que agora não fico em casa, meto-me no carro e dirijo em direção ao fenómeno, para o sentir bem de perto, vibrar com o estrondo, deixar que a luz percorra o meu corpo, energizando-o, renovando-o, levando-o a uma espécie de insuperável êxtase. Na maior parte das vezes não sou bem-sucedido, pois a esquiva tempestade dirige-se para o mar ou evolui em direções impossíveis de seguir. Limito-me a contemplá-la a afastar-se, apreciando os raios, mais retos ou mais ziguezagueantes, mais finos ou mais grossos, mais verticais ou mais inclinados. Aprecio também os sons, desde os mais graves, que brotam com agressi22
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vidade das entranhas do planeta, aos mais surdos e subtis, mas ainda assim encantadoramente sinistros. E quando o fenómeno se dirige para o mar, escolho um ponto junto à costa onde possa ficar a observá-lo, iluminando água e mar com um branco infinito, ao som de chuva intensa e manchas voláteis de nebulosidade. Nada é mais bonito do que uma trovoada sobre o mar. Em alguns casos, mais raros, consigo aproximar-me a menos de quatro segundos, o que posso qualificar como um «encontro imediato». Já me aconteceu em campo aberto, em bandas alentejanas, ou em zonas rugosas, como as serranias beirãs. Não saio do carro, uma vez que sei que a capota metálica me protegerá caso o raio me resolva dar um beijo branco, mas admito que, em todo o caso, corro sempre algum perigo. Não obstante, a adrenalina da situação funciona tipo íman, atraindo-me para o centro da borrasca, deixando-me rodeado por um espetáculo de luz e de som não igualável por qualquer evento humano. Nestes raros e belos encontros paro o carro, desligo o motor e sinto a fremência do solo, a potestade da natureza, os clarões esplendorosos, a atmosfera envolta em ventos e águas. Os elementos excedem-se, exibem-se, dão-se. Eu admiro-os e rejuvenesço. Quando o espetáculo gradualmente se afasta, fico um pouco a sentir a lenta redução de intensidade do 23
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som e a admirar os efeitos luminosos feitos pelos raios mais distantes nos recortes do horizonte. Volto depois para casa, sempre com uma inexplicável paz, uma sensação de que tudo está bem e de que eu estou bem com tudo. Em geral, quando chego a casa, acabo por vir bastante molhado, quanto mais não seja porque tenho algum espaço aberto entre a garagem e a casa, e normalmente a chuva persiste. Aí, tenho sempre muito cuidado ao colocar os meus dedos molhados nos interruptores das luzes, pois tenho pavor de choques elétricos.
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A árvore Não consigo dormir. Lá fora, a chuva cai profusamente, batendo no parapeito da janela e respingando os estores. Ouço-a com atenção: ora acalma, parecendo um suave repuxo de um fontanário, ora acelera, como se toda a casa estivesse a tomar um abundante duche. O mesmo se passa com o vento, que ora desaparece, deixando o som da chuva escorrer pelo ambiente, ora volta de rompante, abanando os vidros, silvando entre frestas, bramindo entre recantos. Não sei porque estou com uma insónia, em geral adormeço sem dificuldade. Não tive contrariedades, a vida segue a sua rotina, não tenho nenhuma preocupação a justificar a situação. Procuro pensar no que estou a pensar, para, muito racionalmente, identificar o problema e tentar encontrar uma solução. Por vezes, sabemos o que nos está a tolher o sono e, com alguma concentração, sintonizamo-nos noutra coisa, de preferência prazenteira e relaxante, até fluirmos para outras dimensões da nossa existência. 25
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Concluo estar a pensar simplesmente na chuva e no vento. Ouço as gotas, sinto as escorrências de algerozes e sarjetas, antevejo as poças, visualizo os riscos paralelos que turvam a paisagem, quase me sinto molhado. Imagino o vento a desgrenhar-me o cabelo, a levantar-me a roupa, a confundir-me os passos. Estou na cama, deitado, mas é como se estivesse deambulando pelas ruas em direcção a coisa nenhuma, açoitado pela tormenta. Lembro-me de que, nestas situações, a recomendação é sair da cama, ver um filme, ler um livro ou ir ao frigorífico e fazer uma ceia ligeira. Levanto-me, mas em vez de me dirigir à sala, à cozinha, ao escritório ou à vizinha casa de banho, vou direito à janela e abro o estore. Sinto uma necessidade quase obsessiva de ver o que se passa lá fora, de observar a natureza envolta em águas agitadas e ares irrequietos. A rua está iluminada pelos candeeiros públicos, permitindo que amarelos suaves e laivos avermelhados e acastanhados se espalhem sobre um fundo negro. A chuva cai persistentemente, nem muita nem pouca. Apenas cai. O chão está cheio de poças, todas marteladas por gotas de água que lhes desenham pequenas e frenéticas ondas concêntricas. O vento está forte, com rajadas inclinando ervas, arbustos e árvores. Entre
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a saída da casa e a garagem, à esquerda, as árvores curvam-se e endireitam-se, dançando, contrariadas. Apercebo-me de algo estranho. São três árvores, mas uma delas inclina-se na direcção oposta das restantes. Esfrego os olhos e observo outra vez. Confirma-se: ervas, arbustos e duas árvores inclinam-se para a esquerda, resistindo o melhor que podem à força do vento. Vergam-se de forma sincronizada, abatendo-se com cada rajada mais forte, voltando a endireitar-se quando o vento, por instantes, amaina. As gotas da chuva estão também inclinadas para a esquerda, sinalizando um fluxo de ar vindo do lado direito. A terceira árvore, a mais à esquerda, mais próxima da garagem, inclina-se de forma estranha para a direita. Fixo-me nesta árvore contraditória durante alguns momentos. Reparo que a sua inclinação para a direita se acentua quando tudo o resto se inclina mais para o lado oposto. Há uma sintonia na resposta à intensidade da ventania, mas em sentido contrário. Estarei a sonhar? Vejo as horas. Ligo o rádio. Urino. Desço as escadas e bebo um copo de água fria na cozinha. Levo um pouco de água à testa e ao pescoço. Está tudo normal, estou acordado, aliás quase não consegui dormir desde que me deitei. Se não dormi, só posso estar acordado, aliás mais acordado do que o normal.
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Aproximo-me da janela da cozinha e observo de novo a rua. A chuva e o vento estão agora mais fortes. Vejo as mesmas três árvores dançando, frenéticas. A da esquerda mantém-se desfasada, a sua copa quase tocando na da sua vizinha, uma vez que se inclinam uma para a outra. Já ouvi falar de ventos desencontrados, de remoinhos, de situações anormais desafiando velejadores. Mas não, isto é diferente. É regular. Ou aliás regularmente irregular. Ou mesmo irregularmente regular, tanto faz. Só tenho uma opção: ir à rua junto da árvore que parece dizer às outras ser a única na formatura com o passo certo. Aproveito um momento de abrandamento da chuva, abro a porta da rua e chego junto da terceira árvore. Fico espantado. De facto, junto ao seu tronco o vento sopra do outro lado. Dou uns passos à volta da árvore, procurando sentir o fluxo de ar. É assombroso, há mesmo uma pequena faixa de terreno com um palmo de largura, não mais, em que não há vento. Para lá dessa zona o vento vem de oeste, para cá, junto ao tronco, vem de leste. A árvore obedece ao vento, penso, tranquilizando-me com esta evidência de que as leis da natureza estão de boa saúde. A chuva aumenta, pelo que corro para dentro de casa, encharcado. Subo até ao quarto, enxugo-me e deito-me. Enrosco-me na almofada, com a sensação de 28
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que tudo está bem. Sem dar por isso, adormeço. Sonho com árvores dançando desencontradas, como se estivessem numa discoteca louca, as suas copas abanando espavoridas, lançando folhas de tons outonais no ar. Acordo atrasado para ir trabalhar. Abro os estores e vejo uma manhã tranquila, com pequenas abertas de azul vivo num céu dominado pelo cinzento. Arranjo-me à pressa e corro para o carro, passando pelas duas árvores que existem entre o portão de saída e a entrada da garagem.
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O miúdo e o cão – Foi o primeiro carro que autuei nesse dia. Só passavam dez minutos do início do período de estacionamento pago, pelo que coloquei o aviso da praxe no para-brisas. No dia seguinte, a situação era a mesma. Dei por isso porque o carro era azul-bebé e estava muito afastado do passeio. Deixei novo aviso. Ao terceiro dia, lá estava ele de novo. Fiquei irritado: caramba, não sabia ler? Estava a provocar os fiscais? Achava que podia continuar a fazer o que queria? Coloquei novo aviso, dizendo para os meus botões que, no dia seguinte, esperaria pelos quinze minutos de tolerância definidos e aplicar-lhe-ia a multa. Assim, ela aprenderia. Sim, ela, porque um carro com aquela cor e tão mal estacionado só poderia ser de uma mulher, talvez uma velha de óculos grossos. – Fui só tomar um café e, quando voltei ao carro, mal passava das nove horas, já lá estava o malfadado papel. Fiquei furiosa, quer pelo meu azar, quer pelo facto de que, no meio de tanta incompetência nos serviços públi31
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cos, logo me haveria de calhar um fiscal zeloso na zona em que passei a estacionar para beber o meu primeiro café. Mas um azar não acontece todos os dias, pensei, no dia seguinte sairia de certeza antes do gajo passar. Qual quê! Mais uma vez, nove e picos e lá estava o aviso. Bom, não há duas sem três, e no dia seguinte tornei a ir beber o café sem pôr o talão. Já viste, fica-me o café pelo dobro do preço, é ridículo. Pois olha, nada feito: ao terceiro dia, terceiro talão! – No dia seguinte, curioso, adotei uma nova tática: fiquei escondido atrás da coluna de um prédio próximo, para ver se a via chegar. Já sabia que o carro não ficava ali de noite, porque passava por lá um pouco antes das nove, para me ir fardar ao posto. Assim fiz e… funcionou! Às nove horas em ponto, lá vinha o carro azulinho, guiado por uma mulher. Ela fez várias manobras até o deixar parado, bem torto em relação ao lancil, mas, quando saiu, uau, que brasa! Qual velha, era da minha idade, minissaia, decote daqueles de nos deixar zarolhos, morena, olhos esverdeados, andar insinuante de te deixar de queixo caído… Nem sabia o que fazer. Pôr-lhe um novo aviso? Perdoar-lhe, pois seres daqueles são geniais rasgos divinos, que não devem ser sujeitos aos mundanos afazeres dos parquímetros? Resolvi pôr-lhe novo aviso e pensar melhor no que fazer no dia seguinte. 32
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– No dia seguinte, curiosa, em vez de ir logo para o café, fiquei escondida atrás de uns arbustos próximos, para ver se via o fiscal chegar, certamente um barrigudo, careca e zangado com a vida. Mas não podia estar mais enganada! Nem queria acreditar quando o vi chegar, alto, atlético, moreno e elegante, com uma farda impecável, mais ou menos da minha idade. Ah, e com umas mãos lindas, fortes mas bem desenhadas. Até corei, apesar de ninguém me estar a ver. Fui meia confusa beber o café e, depois de sair, recolhendo novo aviso do para-brisas, fiquei a pensar se no dia seguinte tornaria a deixar o carro em infração. – No dia seguinte, decidi que tinha de falar com ela, adverti-la verbalmente, para perceber melhor porque insistia em não pagar, apesar dos avisos. E poderia vê-la de perto, ouvir a sua voz e, quem sabe, saber o seu nome, quem era… Mas não o faria depois da infração, esperaria por ela quando chegasse e, assim, apanhá-la-ia de surpresa. Cheguei ao local antes da hora e pus-me atrás da coluna. – Achei o meu comportamento inadmissível, tinha de deixar o carro noutro sítio, mesmo que ligeiramente mais longe. Que vergonha, se aquele Adónis municipal me apanhasse em franco delito, sem pagar o estaciona33
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mento! E assim fiz: cheguei um pouco mais cedo, para ter tempo de encontrar outro lugar livre, e estacionei. Mas fiquei muito curiosa para saber o que ele iria fazer, pelo que, antes de ir para o café, escondi-me atrás dos arbustos. – Estava eu atrás da coluna, quando passa um miúdo de bicicleta e diz-me, com um ar muito compenetrado: «Senhor guarda, está ali uma mulher atrás dos arbustos, deve ser uma ladra!», e continuou pedalando. O miúdo confundiu-me com um polícia, é certo, mas não pude deixar de ir ver quem estava atrás dos arbustos. – Estava eu atrás dos arbustos, quando aparece um cão com mau aspeto que se pôs a rosnar para mim. Depois, arreganhou os dentes e começou a ladrar, ameaçador… Olha, assustei-me, é o que sei, e corri para fora dos arbustos. Foi aí que tudo aconteceu. – A única coisa que sei é que, quando dei por mim, estava deitado por cima dela, sobre a relva. Chocámos, ela caiu e eu caí por cima dela. Só por sorte não nos magoámos, foi uma queda e tanto! – O que fiz? Olha, ao ver aqueles olhos lindos junto a mim, fiquei sem palavras, com o coração ainda mais 34
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acelerado do que se o cão me continuasse a ladrar… Mas, depois, consegui balbuciar: «Vai multar-me hoje?» – O que respondi? Olha, fiquei aparvalhado, ao ver-me sobre aquela musa deslumbrante. Nem sei como tive presença de espírito, mas acabei por lhe dizer: «Hoje não a multo, mas convido-a a tomar um café». – Sim, bebemos o café, nesse dia e nos seguintes. Eu comecei a chegar mais cedo e ele a iniciar a ronda mais tarde. – Não, não chegámos a namorar. Tivemos algumas conversas agradáveis, mas não pegou, sabes? Não houve química, acho que apenas isso. – Como conheci o meu marido aqui? Sim, falta o mais importante: logo após o choque, apareceu o dono do cão, desfazendo-se em desculpas. Insistiu em que conversássemos, quando me cruzei com ele uns dias depois e, aí sim, a coisa deu-se. E até o cão veio a revelar-se amoroso! Acabámos por casar uns meses depois e foi a melhor decisão da minha vida. – Sim, conheci a minha mulher nesta cena, mas não é a do carro azul, é outra: é a mãe do miúdo da bici35
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cleta, que apareceu logo a seguir ao choque para ver o que se tinha passado. Ela era divorciada, como eu, cruzei-me com ela uns dias depois, ela perguntou-me se eu estava bem e, olha, assim foi. Casados e felizes.
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O elevador da esquerda Quando cheguei ao escritório, à hora do costume, lá estava o sujeito à espera do elevador. Encontrava-o com frequência àquela hora e nunca tinha percebido porque é que ele só subia no elevador da esquerda. O facto é que se chegava primeiro o elevador da direita, ele não entrava, dizendo às pessoas para não esperarem por ele, que não ia subir. Já se o primeiro elevador a chegar fosse o da esquerda, ele entrava com um sorriso sereno, parecendo apreciar aquele espaço tanto como uma confortável sala de estar. Ele trabalhava no quinto andar, o último do prédio, onde só havia um escritório de advogados. Já várias vezes o vira carregar na tecla 5, quando calhava subirmos ao mesmo tempo, sempre no elevador da esquerda. Sabia também que ele só descia no mesmo elevador, pois comecei a reparar que apenas aí o encontrava, quer à hora de almoço, quer ao fim do dia. Os elevadores eram iguais, o piso, o teto, a iluminação, o teclado. As paredes também eram quase iguais, 37
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apenas diferiam pelo facto de que o da direita tinha espelho só do lado esquerdo, porque era o usado para transporte de cargas. O da esquerda, pelo contrário, tinha espelhos dos dois lados. A parede do fundo também era igual em ambos, com um forro às riscas, de estética duvidosa. Durante muito tempo não liguei ao assunto, até que um dia, talvez por ter acordado muito enérgico e bem-disposto, vi o sujeito à espera do elevador e decidi que lhe ia perguntar porque só usava o elevador da esquerda. Não havia mais ninguém, era o momento adequado. Esperei pelo elevador e, logo por azar, veio o elevador da esquerda e entrámos os dois. Dei-lhe um bom dia frugal, coisa que nem é hábito na população sisuda daquele edifício, e o sujeito respondeu-me num tom cortês e absolutamente normal. Quando entrei no meu gabinete, disse a mim próprio que na primeira oportunidade em que estivéssemos ambos à espera de elevador, chegasse primeiro o da direita e ele não entrasse, lhe perguntaria porque o fazia. Três dias depois a ocasião apareceu. – Não entra? Desculpe a minha impertinência, mas posso perguntar-lhe porque só usa o elevador da esquerda? – Terei muito gosto em explicar-lhe se me acompanhar. 38
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Esperámos uns minutos que o cobiçado elevador terminasse a sua subida, descesse ao piso zero e reiniciasse o percurso. Por sorte, ninguém mais apareceu. – Faça favor, entre comigo. É muito simples. Como já reparou, este elevador tem espelhos dos dois lados, pelo que, se nos colocarmos no meio, temos reflexos dos nossos reflexos, em teoria até ao infinito. Certo? – S…sim… – titubeei, um pouco envergonhado pelo facto de já ter reparado nas imagens das imagens, mas de nunca ter dado ao assunto qualquer importância e de nada naqueles reflexos me parecer digno de atenção. – Pois repare: na minha primeira imagem, vejo-me a mim próprio hoje, já com os meus 68 anos; vejo as minhas rugas, os meus olhos cansados atrás dos óculos, os sinais na cara, a cicatriz na mão com que seguro a mala, de um acidente tido há uns anos. Na primeira imagem nas minhas costas vejo o meu passado recente, a careca crescente, a curvatura das costas, os vincos do casaco, que a minha mulher já não consegue passar a ferro tão bem como dantes. «Nas imagens consecutivas das minhas costas, umas ao lado das outras, cada vez mais pequenas até se tornarem impercetíveis, vejo o meu passado: cada vez há menos vincos, menos careca, menos marreca. Essa sequência simboliza o que já vivi, traz-me todos os dias as minhas alegrias, as minhas amarguras, o meu saber; 39
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