MISTÉRIO DA ÁGUA DO BENGO
ROMANCE
FICHA TÉCNICA
título: O mistério da água do Bengo
autor: António Serra Correia
edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro)
arranjo de capa: Ângela Espinha
paginação: Alda Teixeira
1.ª Edição
Lisboa, maio 2023
isbn: 978-989-8986-70-2
depósito legal: 514197/23
© António Serra Correia
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DEDICATÓRIA
Dedico este livro de modo especial ao grupo de “Amigos da Cidade Alta”, em primeiro lugar, e depois a outros, criados com a mesma finalidade de juntar amigos dos tempos passados em Angola e que dela nunca se esqueceram ou esquecem.
Aos filhos e netos sempre interessados na forma de vida do avô, vida essa que desconhecem quase por completo.
PREFÁCIO
Esta obra, mais uma de pura ficção, embora inspirada em factos reais, já aqui relatada, o Autor procura descrever e dar a conhecer a todos aqueles que, nunca tendo passado por África e nomeadamente por Angola, um modo de vida distinto daquele a que, na sua maior parte, aqui nesta nossa terra dita de “Portugal Continental” puderam alguma vez criar dadas as circunstâncias do seu tempo, e estar sob o olhar atento de um regime totalitário.
Esse mesmo regime se fazia sentir em terras de “África de expressão portuguesa”, mas sem se saber bem porque razão, havia diferenças, algumas delas bem distintas.
Não é sobre essas diferenças que interessa falar nesta obra. Então porquê? — Perguntarão.
Respostas a essa pergunta, há muitas e cada uma com explicação credível na medida em que em todas as experiências vividas de modo diverso elas se baseiam numa razão inexplicável:
UMA AMIZADE FEITA PARA TODA A VIDA.
É por isso que ao fim de tantos anos de separação essa amizade ainda vive em encontros programados como almoços comemorativos entre elementos que por lá se conheceram e que vão resistindo à lei da vida a que ninguém escapa. Os próprios descendentes se espantam quando pais e avós se abraçam e se dão de modo tão expressivo que, com alguns familiares não têm, mas creiam, de forma alguma serão seguidores do método de seus pais e avós. Com eles as ideias e motivações são outras e muito diferentes. O tempo não perdoa. É implacável.
São do conhecimento quase geral que por causa dessas expressões as pessoas se “identificam” como tendo nascido nesses países de África, por lá terem vivido muitos dos seus anos de vida ou mesmo por lá terem passado menos tempo. Há quem diga ainda que foram os ventos de África que as transformaram, ou então algum “cazumbi” (feitiço) neles entranhado, mas quanto a mim foi a distância e o afastamento voluntário, mas necessário, dos seus familiares, da sua terra, dos seus hábitos e das saudades que por lá procuraram substituir, ao conhecerem outras gentes tão diferentes e que assim aos poucos foram aliviando o sofrimento provocado pelas recordações, e um prolongado afastamento.
No entanto se tornou indesmentível que as amizades contraídas são realmente verdadeiras, e muito se tem dito e escrito sobre o assunto.
Encontrei já graças às novas redes sociais de comunicação, dicas como esta:
O mistério da água do Bengo
A verdadeira amizade
É aquela que a lembrança
Não apaga, a distância não separa
E a maldade não destrói.
Particularmente dirigidos aos naturais de Luanda, seus habitantes, independentemente do muito ou pouco tempo por lá passado, há quem tenha vaticinado que existe outra razão muito forte, esta atribuída à água do rio Bengo que abastece a cidade desde meados do século passado. São ditos populares que ganham força pelo número de vezes que são mencionados e que levam os crentes mais sensíveis a torná-los credíveis. Colhi uma quadra, esta com autor conhecido, mas à data em que a escreve ou divulga, já muita gente a afirmava como factual. É ela: Água do Bengo
Diz a lenda encantada
Quem sua água beber
Esta Luanda abençoada
Não mais poderá esquecer!
(Assinada por: Bina Soares — 1969)
Mais tarde, de outra tive conhecimento, esta, porém, de autor desconhecido:
Quem bebe água do Bengo Nunca mais sai de Angola, Mas se o tiver de fazer Deixa lá o coração para sempre.
É esta amizade verdadeira que espanta alguns, e estou certo, é igual à daqueles que não sendo de Luanda, mas de outras cidades angolanas, conseguem de igual modo transmitir. À sua maneira, é certo, mas diferente e por vezes mesmo inesperada e incompreensível para aqueles que nem por sonhos reveladores chegam perto da realidade.
Triste é sabermos que tudo na vida tem um final e mais triste se torna ao saber que tudo isto, mesmo não indo além de falácias, se prolonguem no tempo e se transformem em história pela teimosia de tanto se falarem nelas e se divulgarem o mais possível. Diz-se que “de tantas as vezes ditas e escritas, certas frases se tornam com o tempo, em factos feitos realidade”.
A intenção não é essa, senão aquela de dar a entender que se não forem estes ditos a causa de tais amizades, outras razões haverá por certo.
É por isto e muito mais que fica por dizer, que escrevo.
Pretendo que as novas gerações entendam que a juventude dos pais e/ou avós, nada têm de condenável desde que sempre tenham sido cumpridores da lei vigente. Que a vida por eles vivida e certamente com muito sacrifício, foi a pensar neles e no futuro que gostariam de lhes proporcionar. Futuro esse destruído por valores que se lhe sobrepuseram, válidos e
O mistério da água do Bengo
necessários, alguns sem dúvida, mas que fizeram deles vítimas de péssimos comportamentos por parte de certos mentores e executores, que os não respeitaram nem quiseram saber do seu futuro, como em tudo, bons para uns, maus para outros, sempre assim foi.
Como autor, pretendo apenas que, para além de gostarem ou não, fiquem a conhecer melhor a razão de tantas diferenças num mesmo povo, as causas e os efeitos.
O AutOrCapítulo I
A manhã daquele dia de Julho do ano de 1950 estava fresca. Era a época seca e mais fria, conhecida como “cacimbo”, assim chamada por toda gente.
António José de Almeida, era um rapazinho de seis anos de idade e tinha chegado a Luanda com a mãe e os irmãos, ainda não haviam passado quinze dias e naquele momento, sozinho à janela do seu quarto, apreciava a paisagem que se abria à sua frente.
Sem saber explicar a razão, estava a gostar do que via e mentalmente fazia comparações com aquela que deixara para trás, lá bem longe, nos confins da sua terra implantada no vale glaciar da Serra da Estrela, também ela muito bela, mas tão diferente.
Estava a apreciar tudo o que via, e mesmo bem em frente e a uma certa distância, numa colina suave, e ao cimo da mesma, depara então com um grande edifício que desconhece ainda. Na base dessa colina e num grande espaço logo abaixo desse mesmo edifício, dera já conta de ali haver cerca de meia dúzia
de casotas, pequenas, cobertas de palha, supunha ele, e que mais tarde veio a saber que as denominavam de “cubatas” e que nelas moravam alguns naturais da terra os quais, já se apercebera também, a que toda a gente chamava de indígenas. Quase na base dessa mesma colina, viu aparecer vindo da esquerda um comboio a vapor como aquele em que viajara no dia em que saíra da sua terra com destino a Lisboa. A sua marcha era lenta e logo desaparecia por trás de umas casas.
Para onde se dirigia ele? De onde partia? Ainda não sabia, mas, curioso como era, iria perguntar a quem o soubesse esclarecer.
Ainda do seu lado esquerdo deu conta de mais um grande edifício, precisamente por trás do qual tinha aparecido o comboio. Mais perto, bem mais perto, não podia deixar de reparar numa grande árvore ali mesmo quase à frente da sua janela. Era enorme e na sua base a sombra por ela originada era convidativa.
Que árvore seria aquela? — Na sua terra não havia igual nem tão grande, pelo menos que se tentasse lembrar disso.
Sentiu sede e a sua necessidade de beber um pouco de água, veio adiar a apreciação e estudo de tudo o que era visível a partir do seu ponto de observação, como era a janela do seu quarto. Dirigiu-se então à cozinha onde sua mãe se encontrava a preparar o almoço e onde seus irmãos estavam sentados no chão à porta da mesma, entretidos a brincar com algumas revistas velhas que rasgavam e que lhes foram facultadas para que delas se ocupassem de modo a que libertassem a mãe para os seus afazeres. Preview
Ao pedir água para beber, reparou uma vez mais que sua mãe se servia da água contida numa cafeteira de alumínio e que a vertera para um pequeno copo também de alumínio, e o qual lhe entregava para dele beber.
Tozé, assim era tratado por todos, fez uma careta ao notar que a mesma estava choca e lhe soube mal assim que a provou. Já de outras vezes tinha reparado que ninguém em casa bebia água directamente da torneira, tal como faziam na sua terra e que era gostosa e fresquinha e não deixou de perguntar então qual a razão. Talvez sua mãe não soubesse ainda qual a verdadeira razão, ao responder apenas:
Filho, a água que aqui temos é diferente. Vem de um rio e não é tratada, e por isso temos de a ferver para que por causa dela não venhamos a ficar doentes. Isso é mais importante do que o desagradável gosto que ela tem. Com o tempo nos habituaremos, até lá, temos de ter paciência.
Ele encolheu os ombros, sabendo que mais nada podia ser feito para alterar tal situação.
Ficou agora à janela da cozinha que se sobrepunha à porta de entrada, onde se manteve por mais algum tempo e reparou que dali se viam os navios acostados ao cais de embarque e desembarque no porto. Já tinha partido há muito o navio onde tinham chegado ao fim de quase vinte dias de viagem, e agora eram outros que lá estavam. Era constante a chegada e partida de navios vindos de Lisboa e outros lugares que ali acostavam de passagem.
Foi então para a sala onde havia outra janela igual à do seu quarto, mas o que dali se via era diferente. Apenas um pequeno largo encimado por um belo jardim de muros altos e cobertos de trepadeiras com flores em forma de campainha. Já tivera a oportunidade de lá estar na tarde de um domingo, acompanhado dos pais e irmãos, não apenas para passear e observar o quanto era lindo, mas também para tirar umas fotografias para poder mandar algumas à família que tinha ficado na terra e da qual já sentiam algumas saudades, isto no dizer dos pais, porque ele não sentia nada disso, por enquanto. Sentia-se bem e contente por estar ali.
À sua frente, um grande edifício público, onde segundo uma sua tia, funcionavam os serviços de economia. Entre este e um outro, um pouco mais acima, que mais tarde soube ser a residência do presidente da companhia dos diamantes. Era também vedado por um muro, este igualmente coberto de lindas trepadeiras, dando origem a um espaço vazio por onde, ao longe, se via um troço de mar. Foi por esse pequeno espaço que separava ambos os edifícios, e por onde as vistas se perdiam até à linha do horizonte, que certa ocasião viu aparecer um dos grandes navios que tinha largado do porto e se dirigia ao sul. Ao ver o navio a deslocar-se lentamente, nunca mais o perdeu de vista até que este desapareceu por detrás do edifício à sua esquerda. Gostava de os ver ao longe e em movimento e faziam-lhe lembrar os dias em que viajara, também ele, noutro que o trouxera até ali.
Havia, entretanto, outras coisas a prender-lhe a atenção. Outras coisas, tais como a presença de vizinhos que ainda não conhecia, crianças como ele, umas mais novas e outras mais velhas, com suas famílias e seus trabalhos ou modos de vida diferenciados dos seus e de seus pais.
As crianças fazem amizades com facilidade nomeadamente com outras que sejam mais ou menos da mesma idade. Com Tozé e seus irmãos, não foi diferente. Bastou apenas um pequeno pretexto.
Tozé era o mais velho e dele se servia a mãe para a ajudar em tudo o que fosse preciso. Mesmo antes de chegarem a Luanda já assim era por vezes e ele obedecia. Não tinha outro remédio embora a sua vontade fosse ir para a rua onde via brincar alguns dos que em breve fariam também parte dos seus melhores amigos. Certo dia, essa oportunidade surgiu.
Seu pai, como era costume, saía bastante cedo para o trabalho, e sua mãe, uma vez por outra, o acordava pouco depois alegando que precisava da sua ajuda. Seus irmãos ficavam na cama até mais tarde e era preciso aproveitar esse tempo porque depois de todos estarem a pé, a vida dela complicava-se um pouco. Era então que começavam as suas “obrigações”, dizia sua mãe, pois esta não tinha quem a auxiliasse.
Se não era a confecção do “matabicho”, termo vulgarizado de pequeno-almoço, era o ter de pôr a mesa para todos, limpar o pó de toda a casa, varrer antes disso e se o tempo sobrasse, passar todo chão a pano. Este era todo de cimento afagado com um pó vermelho que desconhecia. Nem que ela se dividisse em
três o conseguia e então era o Tozé, a ser “requisitado” para ajudar naquilo que podia, mesmo com o risco de o fazer mal. Ia assim aprendendo a fazer um pouco de tudo.
Certo dia, estando os dois mais novos cochilando após o almoço, sua mãe o chama e lhe diz:
Se quiseres ir até ali ao quintal da frente, leva o teu irmão, o Armando, enquanto os outros dormem. Não brinquem ao sol que está a ficar muito quente e procurem ficar à sombra da mulemba. Quando precisar de vós, eu chamarei.
“Mulemba”!? — Afinal era esse o nome daquela árvore!?
— Como foi que a mãe soube? Mas isso agora era o menos importante. Importante sim, era aproveitar brincar um pouco na rua e juntarem-se a dois vizinhos que já lá estavam também.
Puxou pela mão do irmão para atravessarem a rua entre sua casa e o quintal, e a eles se juntaram. Pergunta puxa pergunta e assim se foram dando a conhecer e Tozé ficou assim a saber que eram os primeiros amigos de muitos que a eles se foram juntando com o decorrer do tempo.
As conversas entre crianças das mesmas idades, mesmo antes de se conhecerem, eram directas, simples e concretas de modo a que todos se entendessem. E foi isso que aconteceu. Como te chamas? — Perguntou o Tozé, ao mais velho dos dois irmãos que já ali estavam quando chegaram.
Eu sou o Joaquim e este é o meu irmão Manuel. — Vivemos naquela casa ali mais acima.
E este, estendendo a mão em direcção da casa para a qual apontava, acrescentou depois:
Nós viemos de Portugal já há três meses com a minha mãe, e o meu pai chegou primeiro que nós, também num navio grande como aquele em que viemos.
Olha! — Era agora a vez do Tozé. — Nós moramos aqui mesmo nesta em frente e eu sou o Tozé e este o meu irmão
Armando. Nós estamos cá ainda há pouco tempo e também viemos depois do meu pai. O barco onde viemos chamava-se “Índia” e o “teu”?
O “nosso” — Apressou-se a responder o Manuel, — era o “Niassa”, e demoramos quase quinze dias.
Ah, o “nosso” demorou mais, — interpondo-se o Armando na conversa. — O “nosso” barco demorou vinte dias porque tivemos muitas paragens.
Foi o bastante para desde logo se tornarem amigos. Nenhum se interessou em perguntar de que terra eram e se de lá tinham vindo directamente, aliás, para eles isso não era importante. Agora a terra deles era aquela para onde os pais os trouxeram, e o que lhes interessava de momento era a brincadeira e cedo se juntaram num passatempo em comum, e a enorme mulemba, talvez centenária, proporcionava-lhes essa possibilidade, oferecendo-lhes uma agradável sombra e para além disso uma característica única.
Pendiam dos seus ramos mais grossos e baixos, longas “cordas” como lhes chamavam, mas que não eram outra coisa senão longas extensões de raízes aéreas que quase roçavam no chão. A elas se agarraram fazendo delas baloiço enquanto os
outros empurravam até se cansarem. Depois chegava a vez de trocarem de posição. No dia seguinte e no mesmo lugar lá se encontraram todos de novo, mas desta vez na companhia de novas caras e futuros novos amigos. Com o Joaquim e o Manuel vinha também uma irmã de ambos, um pouco mais velha que eles, de seu nome Rosa Maria. Isso foi o suficiente para que, tendo a presença de uma rapariga, outras se juntassem ao grupinho que pouco a pouco ia aumentando. Foi o caso de Florinda, moradora num primeiro andar de uma casa situada mesmo defronte à mulemba e que se soube depois ser filha de um sapateiro, este já há mais tempo a viver em Luanda e que se chamava Lino Gonçalves.
Para quem é novo numa terra que pouco ou nada conhece ainda, as crianças são por vezes a “porta de entrada” para que as famílias, a pretexto de saberem com quem seus filhos brincam ou se dão, através delas virem também a conhecer seus pais ou outros familiares, e que em forma de “apresentação” mútua construírem também eles, novas amizades. O sentimento que logo de início cada um sentia pelo seu vizinho, não só pelo facto de o serem na realidade, mas porque ali estavam todos ou quase todos, pelos mesmos ou idênticos motivos, isto é, pela procura de uma vida melhor que aquela que jamais poderiam ter, se continuassem nas suas terras.
Essas novas amizades, não se criavam de um dia para o outro, mas depois de concretizadas, vinham a tornar-se fortes
e verdadeiras e muito principalmente entre crianças relativamente com as mesmas idades.
Sem o saberem e sem ter de fazer absolutamente nada nesse sentido, nascia então entre eles um espírito de união ou bairrismo ao ponto de se cimentar pelas suas vidas fora.
Aquele grupinho de crianças, alegres e amigas entre si, veio com o tempo comprovar isso mesmo.
“Amigo do meu amigo, meu amigo é.” Foi assim que começou a amizade e união daquele pequeno grupo de crianças, filhas de vizinhos uns dos outros e que por isso se tornaram igualmente amigos. Em relativamente pouco tempo, já toda a gente sabia quem era quem, de onde eram oriundos, o que faziam na vida e muito mais.
À medida que estas crianças cresciam, também a cidade crescia, e à medida deste conjunto crescimento, toda a gente se ia adaptando conforme as circunstâncias e necessidades.
Tozé, na altura um rapazinho com sete anos, feitos há pouco tempo, estava prestes a entrar na escola, mas o ano lectivo já tinha começado antes disso. Seus pais, embora sabendo que ele já possuía conhecimentos suficientes para não se sentir diminuído comparativamente com os seus futuros colegas, e com o receio de que ele se atrasasse, sentiram necessidade de o entregar aos cuidados de uma professora já aposentada que recebia em sua casa crianças com problemas e dificuldades escolares. Não era o caso do Tozé, mas assim, não havia motivo para que se atrasasse. Tinha o seu tempo, ou parte dele, ocupado como se na realidade andasse na escola, adiantou matéria do pro-
grama da primeira classe, e quando se matriculou e começou no ano seguinte, já nele o seu professor notou que era em tudo aluno tão capaz como os restantes, ou mesmo mais.
Os cuidados que seus pais tinham, não apenas só com ele, mas com todos os seus irmãos, iam para além do ensino escolar.
Tal como eles, lá longe no tempo e no espaço, sempre foram educados e criados segundo os preceitos da fé católica, e queriam que seus filhos seguissem os mesmos métodos e ensinamentos que eles. Assim, para além do ensino escolar e obrigatório, também o Tozé se viu envolvido, mais por decisão de sua mãe, no ensino da catequese, para que chegada a altura estivesse preparado para a sua primeira comunhão, tal como outros meninos e meninas da sua idade. Seus irmãos mais
novos, esses teriam de esperar pela sua vez. Nesse sentido, sua mãe ao saber que nas proximidades de casa, precisamente na rua de Diogo Cão, havia um abrigo para crianças, que funcionava em regime aberto, e onde os pais iam deixar seus filhos enquanto estivessem a trabalhar, e que no fundo, não era mais que uma creche ou lugar de tempos livres como é vulgar dizer-se nos dias de hoje, mas ao cuidado de umas freiras. Para lá foi certo dia pela mão de sua mãe e depois de esta saber que as freiras ensinavam a catequese a todos os que se manifestassem interessados, pediu as informações de que necessitava.
Logo no primeiro dia lá ficou, depois da madre superiora ter conversado com a mãe e lhe ter feito a ele algumas perguntas a que não deu resposta.
Sentia-se acabrunhado, deslocado, estranho perante tudo e todos os que o rodeavam. Era um ambiente realmente diferente para si, tendo em conta de que, a começar pelas crianças, todas elas para além de desconhecidas, eram também de idades muito abaixo da sua e com as quais não tinha nenhum prazer em brincar. Na verdade, nem mesmo elas denotaram qualquer interesse numa aproximação, talvez porque não viam nele qualquer interesse para brincar.
Para ele foi um alívio quando uma das freiras, a determinada altura, dele se aproxima e esta lhe pergunta se sabe o caminho de casa e perante uma resposta afirmativa, lhe diz que assim sendo, já pode ir embora.
«Oh pernas, para que vos quero!?» — Assim que se viu do grande portão de ferro para fora, desata numa correria que só terminou assim que em casa entrou.
Quem estranhou a maneira apressada de chegar a casa, foi a mãe que lhe pergunta:
Qual a razão dessa correria desenfreada? Andas a fugir de alguém?
Teve vontade de dizer que sim. Mas se o dissesse teria de dizer a verdade e isso ele não queria. Teria de confessar que fugia das freiras e da garotada, e então, certo e sabido, as perguntas iriam “chover” umas atrás das outras. Preferiu por isso manter-se calado.
Mas a mãe conhecia-o muito bem. Desconfiada e com “a pulga atrás da orelha”, decidiu, sem nada dizer, que isso era coisa que não tardaria muito a saber. A ocasião surgia assim
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