Escreva, por favor, “Espinosa”

Page 1


ev

Pr w

ie


w

João Rangel de Lima

Pr

ev

ie

Escreva, por favor, “Espinosa”

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 3

Romance

14/07/20 12:13


FICHA TÉCNICA TÍTULO:

Escreva, por favor, “Espinosa” João Rangel de Lima EDIÇÃO: Edições Vírgula® (Chancela do Sítio do Livro) CAPA:

Ângela Espinha Alda Teixeira

PAGINAÇÃO:

ISBN:

ie

Lisboa, agosto 2020

w

AUTOR:

978-989-8986-26-9 DEPÓSITO LEGAL: 471413/20 © JOÃO RANGEL DE LIMA

ev

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

Pr

Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao(s) seu(s) autor(es), a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. Assim mesmo, quaisquer afirmações, declarações, conjeturas, relatos, eventuais inexatidões, conotações, interpretações, associações ou implicações constantes ou inerentes àquele conteúdo ou dele decorrentes são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es). Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 4

14/07/20 12:13


– Escreva, por favor, “Espinosa”.

w

– Mas isso é impossível, Senhor Manuel Silva. Bento, nome próprio, está certo, agora, Espinosa, não pode ser. Escolha outro nome para o seu filho.

– Mas, Senhor Conservador, qual a razão da recusa?

ie

O conservador suspirou. Em fundo ouvia-se o tiquetaque repousante do relógio da Conservatória do Registo Civil de Vilarigues – aldeia encerrada na Serra da Estrela que, envolvida no calor de Julho, com o Sol cru quase a

ev

pino, a todos ensonava.

– Senhor Manuel, Espinosa não é nome português. – Peço desculpa, Senhor Conservador, mas é. Já ouviu

falar de Benedito de Espinosa? – O filósofo?

– Sim. O pai de Espinosa – Miguel de Espinosa – era

Pr

português. Os ascendentes de Espinosa eram judeus sefarditas que pertenciam à comunidade judia residente em Portugal.

– Pois, não sei... Estou a pensar... – Aguardo, Senhor Conservador. – disse Manuel Silva,

deixando o conservador na situação incómoda de responder sob pressão.

– Bom, está bem. Fica então “Bento Espinosa Clemente Silva”?

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 5

14/07/20 12:13


JOÃO RANGEL DE LIMA

– Correcto, Senhor Conservador. Assim se “crismou” o nosso herói nos idos anos cinquenta, naquela aldeia pequena, mas dinâmica, que se ia destacando em termos económicos, não sendo tal alheio ao veio de ouro que ali se descobriu, antes da Segunda Grande

w

Guerra Mundial. Claro está que, com aquele alinhamento

de nomes próprios, na aldeia de Vilarigues o rapaz dava

pelo terno diminutivo de “Bentinho”. Ninguém se lempronunciar.

ie

braria de o chamar de Espinosa. Era esquisito e difícil de A infância de Bentinho, o Espinosa, decorria rotineira na aldeia, enquanto o pai, Arquitecto, como todos os arquitec-

tos escultores de sonhos, ambicionava futuros grandiosos

ev

para Espinosa e, como todos os arquitectos, esbarrava na dura realidade do betão armado e das leis da física. O seu sonho de ver um filho interessado pela música, pelas artes plásticas e pelos desafios da filosofia, esbarrava na vertente

prática de Espinosa, como veremos mais adiante, herdada da mãe – Lucinda Clemente – mulher de pés bem assentes

Pr

na terra e uma estratega de mão cheia, capaz de prever com razoável antecedência as manigâncias da pequena história – característica maioritariamente usada pelos arquitectos como critério de opção na escolha das suas esposas, o que constitui uma sábia simbiose.

Espinosa – o Bentinho – gostava de correr pelas ruas da aldeia e brincar com os seus amigos – poucos – e imagi6

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 6

14/07/20 12:13


E S C R E VA , P O R F AV O R ,

“ESPINOSA”

nar, com eles, batalhas com os soldadinhos de chumbo que todos tinham e que faziam deslocar nos “Dinky Toys” de grande sucesso na época. No fundo, era a forma de conciliar as duas vertentes parentais; o sonho e a vitória. – Não, o meu jipe vai em primeiro lugar porque eu sou

w

o general. – decretava Bentinho com voz forte e aguda.

– O general, porquê? Quem disse que eras o general? – Pois, quem disse? ocasiões.

ie

– Digo eu! – Bentinho ficava transtornado nestas – Então, vai para tua casa! Não brincas mais connosco! – Nem preciso! Ouviram! Nem preciso! – Bentinho deu

um pontapé nos carrinhos dos companheiros de brinca-

ev

deira e virou-lhes as costas.

– Vai! Menino do papá! – gritavam os outros miúdos. Bentinho mudou de cor. Tinham-no atingido de forma

certeira no seu ponto fraco. Os seus pais tinham-se separado e Bentinho ficara com o pai. – Bentinho, anda cá.

Pr

– Sim, pai?

Bentinho, com os seus seis anos, olhava apreensivo para

o pai e para a mãe.

– Anda cá que eu e a tua mãe precisamos de falar

contigo.

– Sim, senta-te aqui. – Lucinda indicou-lhe o tamborete

vermelho.

– O pai e a mãe pensaram que seria melhor cada um viver na sua casa. 7

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 7

14/07/20 12:13


JOÃO RANGEL DE LIMA

Bentinho arqueou as sobrancelhas. – Porquê? – Espera, Bento. – Lucinda conseguia ser terna e autoritária ao mesmo tempo. Bentinho calou-se. A voz da mãe tinha o tom certo para

w

o calar.

– Já deves ter ouvido o papá e a mamã a falar alto, zangados.

Lucinda suspirou. Nunca aceitou bem o marido falar

ie

ao filho, já com seis anos, como se ele tivesse três. “Papá?”, “Mamã?”, “Pai!”, “Mãe!”. Também ficava arrepiada com o “Bentinho”. “Bento! Meu Deus! Bento”.

Lucinda estava convicta que com este procedimento do

ev

pai de Bento o rapaz iria tornar-se num maricas e, como o deixava fazer tudo com a mania das liberdades, iria tornar-se num ditador. “Um ditador maricas, bela combinação!”. – Sssim. – arriscava Bentinho.

Lucinda não se conteve e disparou:

– Bento, é simples. Os teus pais estão sempre a discutir

Pr

e a tua mãe está farta e acho que o teu pai também. Cada um vai para sua casa e fica tudo calmo. Não vais ouvir mais discussões.

Manuel Silva continha a sua fúria, Bento olhava, per-

dido, para os dois, alternadamente. – Como a tua irmã é ainda pequenina, fica com a tua

mãe e tu ficas com o papá. – retomou, brando, Manuel Silva.

8

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 8

14/07/20 12:13


E S C R E VA , P O R F AV O R ,

“ESPINOSA”

Bentinho, no meio do turbilhão, esboçou um meio-sorriso. Daquela confusão retinha, como bóia de salvação, a frase “ficas com o papá”. Bentinho gostava da liberdade que o pai lhe dava e temia a mãe, apesar dela o fazer sentir seguro. Com o pai era a vertigem.

w

Bentinho tentava recordar, nos dias seguintes à comu-

nicação oficial da separação, as tais discussões que o pai referira.

Cruzavam-se no seu cérebro flashes de sons e imagens

ie

pouco coordenados. Como “não pode continuar?”, “ Sim, Lucinda, não posso concordar com o que fizeste à tua irmã!”. “Aquele serviço de prata era meu por direito!”. “Prata?, Serviço? O que é um serviço?” – pensava Bentinho

ev

– “A nossa mãe sempre disse que era para mim!”. “Direito? O que é direito?” – Bentinho torturava o seu pensamento – “Usaste como prova o testemunho da criada da tua mãe! E sabe Deus quanto lhe deste!”, “Já não aguento mais, Manuel!”. “Prova? O que é prova?” – Bentinho sentia-se perdido e tentava pôr a comunicação oficial dos pais e as

Pr

suas memórias numa estrutura com sentido. Esta discussão entre os pais persegui-lo-ia toda a sua vida. Tinha memorizado estas frases para sempre. Outras imagens se puseram em movimento como num filme. “O que é esta cena de pancada?”, “Vocês estão doidos?”. “Oh Mãe! O Ricardo diz que o carrinho azul é dele e é meu!” – Bentinho apelava àquela instância com um olhar suplicante. Os Dinky Toys eram a sua perdição – «Não é nada! Dona Lucinda! O Manel deu-mo!» – Ricardo apresentava as suas alega9

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 9

14/07/20 12:13


JOÃO RANGEL DE LIMA

ções. Lucinda ficou pensativa. “Bom, se te deu está resolvido”. “Então, Bento?”. “Oh Mãe! O Manel disse que me dava o carrinho, mas, depois o Ricardo é que o tem!” – O Manel aproximou-se atraído pela algazarra – “Oh Manel! Não disseste que o Morris azul era para mim?”. “Disse,

w

mas, depois, tu chamaste-me parvalhão!” – Bentinho ficou

calado – “Bom, está esclarecido. Vamos para casa!” – Bentinho seguia a mãe furioso, dando pontapés nas pedras

soltas do caminho – “Bentinho!”, “Sim?”, “O Manel não

ie

queria ir contigo e com o teu avô à feira de Manteigas?”,

“Sim...”. “E o que lhe disseste?”. “Que o avô não ia deixar”. “E porque é que não deixa?”. “O avô não gosta do pai do Manel”. “Bom, eu convenço o avô”.

ev

Passados dois dias, o Morris azul cruzava as estradas

improvisadas pela miudagem, pela mão de Bentinho.

Bentinho visitava a mãe, que se mudou para Lisboa,

uma ou duas vezes por ano. Nesse tempo, ir de Seia a Lis-

Pr

boa era uma tirada de umas boas seis a sete horas. Não havia auto-estradas em Portugal, a não ser a que ligava Lisboa a Vila Franca de Xira. Gostava Bentinho deste arranjo, pois matava as sauda-

des da mãe e, assim, via-a em doses homeopáticas o que lhe permitia equilibrar os seus sentimentos entre a dureza da mãe e a vertigem do pai. Segurança e Aventura em porções equilibradas.

10

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 10

14/07/20 12:13


E S C R E VA , P O R F AV O R ,

“ESPINOSA”

Dada a baixa frequência das visitas a Lisboa, Bentinho valorizava muito essas ocasiões, aproveitando, com algum prazer e conforto, a postura prática e determinada da mãe que sempre seguia com muita atenção, e tudo o que se arrastava com a deslocação à capital. As vistas largas que

w

o Tejo permitia, contrastando com alguma claustrofobia de Vilarigues, própria de uma aldeia incrustada na Serra

da Estrela, as avenidas largas e um vislumbre de algum possuía.

ie

cosmopolitismo que Lisboa dos anos 60, apesar de tudo, Não ficava mais de uma semana, mas era suficiente. Não chegava, por isso, a ter ciúmes da irmã e, até, com o andar do tempo, começou a desenvolver alguma ternura

ev

pela “miúda”.

Captava, Bentinho, situações que envolviam a mãe, de

forma osmótica. Absorvia sem ter muita consciência e sem poder, ou, talvez, querer, analisar.

“Aqui está uma lembrança, Dona Lucinda.”, “Sim, obri-

gado.” – um envelope era entregue – “Estão todos bem?”,

Pr

“Graças a Deus!”, “Como está o Luís?”, “Muito satisfeito, graças a si.”, “Ora, temos que ser uns para os outros”. Bentinho cogitava naquele nome e lembrou-se de que

Luís era um aluno da mãe, muito falado por Dona Lucinda, por ser um dos melhores da aula. Bentinho nunca ligou as peças soltas desta sequência e

doutras semelhantes. A imagem da mãe, até pela distância, mantinha-se intacta e, com ela, arrastavam-se estas imagens sem que disso Bentinho se apercebesse. 11

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 11

14/07/20 12:13


JOÃO RANGEL DE LIMA

Manuel Silva e Bentinho mudaram-se para a Vila de Seia. Manuel ficava perto da Câmara Municipal onde ia amiúde por causa dos seus projectos e Bentinho poderia frequentar, no Externato da Vila, o primeiro ano do liceu.

w

Se o retorno de Lisboa – espaço aberto – para Seia sig-

nificava uma contracção no espaço físico, era, também, para Bentinho, uma dilatação do espaço cultural que o pai lhe proporcionava com as suas conversas sobre a histransmitir.

ie

tória e outras curiosidades da Vila que sempre procurava “Aqui também esteve Viriato”, “O que lutou contra os

Romanos?”, “Sim e estava Seia muito bem defendida por

ev

três castros”, “Castros?”, “Sim, castros são fortificações,

neste caso dos Túrdulos, povo que aqui habitou”. E a narração do pai continuava e Bentinho ouvia-a cada

vez mais longe, fixando-se na mítica luta de Viriato com os Romanos, como muitas vezes ouvira na escola primária. “Mas Viriato foi traído, Pai, não foi?” – cortou Benti-

Pr

nho – “Sim, meu filho, o que os Romanos não conseguiram conquistar pela força, conseguiram-no pela traição”, “Porque é que os Romanos não o conseguiam vencer?”, “Porque Viriato era um grande estratega”, “Estratega, o que é isso?”, “Bom, é alguém que pensa muito bem como e quando atacar e Viriato era um génio neste aspecto”. De repente, Manuel Silva agarra em dois paus que esta-

vam no chão e dá um ao filho. Mima, então, uma luta de

12

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 12

14/07/20 12:13


E S C R E VA , P O R F AV O R ,

“ESPINOSA”

espadas com Bentinho o que lhe fez arrancar umas boas gargalhadas. Bentinho gostava destas loucuras do pai, até pelo seu quase inesperado. “Sabes que Viriato, armava ciladas aos Romanos?”,

w

“Ciladas?”, “Sim, armadilhas. Esperava que eles passassem por vales estreitos, ou por florestas com muitas árvores e os

seus homens atacavam de surpresa! Zás” – Manuel fazia o gesto de cortar a garganta com o pau da esgrima fingida.

ie

Bentinho estava fascinado e imaginava a cena. Todo ele se transformava na história narrada pelo pai, soando na

sua cabeça as palavras e as imagens de “Cilada”, “Estra-

ev

tégia”, “Estratega”, “Como e quando atacar” e “Traição”.

A entrada no 1º ano do Liceu foi motivo de normal exci-

tação para o Bentinho; vários professores e novos, novas caras de colegas e espaços maiores de recreio. E tanta disciplina nova! Francês, Ciências Geográfico-Naturais...

Pr

A curiosidade tornava-o ansioso e só acalmou quando ouviu pela primeira vez “une table”, “une chaise”, “un chat”, “un chien”, “a Via-Láctea”, “as Nebulosas”... Se tinha saudades da sua escola primária em Vilari-

gues, estas depressa se desvaneceram. De forma automática olhou para a sua colecção de Dinky Toys, reluzente e arrumada na sua garagem de madeira, pacientemente feita pelo pai. Sentia-se poderoso por ter vinte carrinhos de várias marcas e imaginou-se um grande vendedor de 13

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 13

14/07/20 12:13


JOÃO RANGEL DE LIMA

carros a sério, em Lisboa e na Avenida da Liberdade. Sempre se tinha interrogado. Como é que eles punham aqueles carros na montra? Sorriu ao pensar nos truques que tinha usado para obter parte da sua colecção “Se queres ir a Seia com o

w

meu pai, dás-me o teu carrinho vermelho”. “Como é que arranjaste este jipe verde!”, “Foi o Pedro que me deu, Pai.”,

“E porque é que te deu o jipe?”, “Sei lá, porque somos ami-

gos.”, “Hum... vou falar com o Pedro.”, “Pedro, tu dizes ao

ie

meu pai que me deste o jipe porque és meu amigo.”, “Teu

amigo? Se não te desse, ias dizer à minha mãe que eu tinha roubado aqueles chupas na loja do Sr. André!”, “Pois, e não queres que eu diga, pois não?”.

ev

O seu, cada vez maior, amigo Manel que tinha um jeito

especial para comprar carrinhos de rally, pintá-los, com a ajuda do pai, com os números de competição, e vendê-los com lucro, tinha acumulado dinheiro e viaturas de forma considerável. Bentinho tinha, também, organizado um campeonato de corridas em Vilarigues, envolvendo todos

Pr

os colegas da escola. Dando um carrinho dos mais velhos ao Zé, como pagamento, conseguiu que ele fizesse as estradas num pedaço de terra, junto ao miradouro, local onde os grandes eventos da miudagem tinham lugar. Convenceu o pai a fazer as faixas de partida e da meta. Com a promessa de que teriam um lugar privilegiado para assistir, pôs os putos da 2ª classe a colar cartazes anunciando o grande acontecimento por toda a aldeia. Foi dando a entender que os carros artilhados pelo seu amigo Manel 14

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 14

14/07/20 12:13


E S C R E VA , P O R F AV O R ,

“ESPINOSA”

tinham mais possibilidades de ganhar e ele, Bentinho, era o juiz da prova. Manel vendeu muitos carrinhos com um bom lucro, tendo adquirido mais, dando um terço ao seu amigo Bento e emprestando-lhe os carros da sua colecção sem condições.

w

A amizade de Manel e Bento foi-se, assim, cimentando de forma robusta. Custava-lhe que, vivendo agora em Seia,

não o pudesse ver todos os dias. Já só se encontravam nas raras vezes que ia a Vilarigues com o pai e só nas férias

ie

escolares, pois Manel, Pai e Mãe tinham-se mudado de armas e bagagens para a Covilhã, para que pudesse o seu amigo frequentar o liceu local.

Depois deste saboroso revisitar na sua memória dos

ev

seus negócios da Aldeia, surgiu-lhe a imagem da mãe. Bentinho sentia que a mãe se orgulhava com os seus “negócios” e, ao contrário do pai, não fazia perguntas.

A vida em Seia corria rotineira e o primeiro ano do liceu

Pr

correu sem sobressaltos. Bentinho ia-se familiarizando com o funcionamento do Externato e com os colegas, guardando sempre as distâncias. Bentinho não era propriamente sociável e irritava-se com facilidade. No segundo ano do liceu, reparou Bentinho na porta da

secretaria que estava aberta e estava vazia! Provavelmente, o Senhor Ferreira saíra para falar com o Director, ou coisa parecida. Com muitas cautelas, esgueirou-se para o interior e aproximou-se do duplicador a stencil. Espreitou uma 15

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 15

14/07/20 12:13


JOÃO RANGEL DE LIMA

das cópias e viu o teste de Português que iriam ter dali a uma semana! A excitação era máxima, o coração parecia um cavalo a galope, pensou em tirar uma cópia, ainda tocou na folha, mas um flash de aviso encheu-lhe o cérebro. “E se o Senhor Ferreira conta as cópias?”. Reparou que o duplicador

w

tinha um contador. De certeza que o Senhor Ferreira tinha

marcado o número que queria. Se não as contasse agora, o

professor teria uma cópia a menos... e um aluno sem teste. Puxou da sua caneta que trazia sempre no bolso da camisa

ie

e duma agenda de bolso que o pai lhe oferecera, registou

o nome do autor do texto que iria sair e o nome do livro, deu uma olhadela às perguntas de interpretação e escreveu o tema da redacção, voltou à porta e verificou, com alívio,

ev

que ninguém vinha, regressou ao seu posto de espionagem e conseguiu escrever as duas perguntas de gramática. Aproximou-se da porta e ficou sem pinga de sangue quando ouviu os passos de Senhor Ferreira – inconfundíveis pelo som que faziam, dadas as suas solas de borracha. Sem saber o que fazer, olhou em volta à procura dum esconderijo, até

Pr

que, milagre, o Senhor Ferreira parou. Uma contínua chamava-o para lhe fazer uma pergunta qualquer sobre uma burocracia qualquer. Bentinho conseguiu esgueirar-se sem ser visto, apressou progressivamente o passo e suspirou de alívio quando chegou ao pátio. Bentinho não conseguia estar atento à aula de Francês.

Tinha a possibilidade de ter uma excelente nota a Português, mas ele tinha notas medianas. Uma subida muito elevada poderia levantar suspeitas. O que fazer? 16

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 16

14/07/20 12:13


E S C R E VA , P O R F AV O R ,

“ESPINOSA”

– Alors, Silva! Faites attention! Bentinho acordou e focou os olhos no professor, mas só os olhos. Quando chegou a casa, foi logo ver se havia o livro de onde o professor de Português tinha tirado o texto o que

w

não foi difícil, dada a extensão e riqueza da biblioteca do

pai. Foi mais penoso encontrar o excerto escolhido, mas compensou. Pegou na gramática e escreveu as respostas

certas. Começou a imaginar e a escrever a redacção pedida.

ie

Após a conclusão deste trabalho algo febril, Bentinho entrelaçou os dedos das mãos, flectiu ligeiramente as cos-

tas e fixou um objecto qualquer da secretária – era assim que Bentinho conseguia concentrar-se bem – e pensou no

ev

que devia fazer. À semelhança de Viriato, havia que pensar muito bem antes de atacar.

Bentinho, após um bom tempo de meditação, abriu os

olhos e o seu rosto iluminou-se – era esta a reacção de Bentinho, sempre que conseguia descobrir um plano que solucionasse o seu problema. Faria alguns erros convincentes

Pr

no teste e não seria difícil conseguir andar aí pelos quinze valores em vez dos doze e treze do costume. Sim, quinze valores, ou parecido, parecia-lhe bem. Não levantaria suspeitas, antes satisfação. Bento Silva estava a melhorar. Apesar de ter gizado a sua estratégia com muito cui-

dado, Bentinho não deixou de se espantar quando, dias depois, recebeu o teste – Bom – “Na mouche!”. Elogio do professor e do pai. Haveria que continuar! 17

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 17

14/07/20 12:13


JOÃO RANGEL DE LIMA

Bentinho, deitado na sua cama, prestes a iniciar o seu sono, olhava para o tecto do quarto, congeminando o seu próximo assalto à secretaria. Lembrou-se dos livros de aventuras, que lia avidamente, em que o herói registava com minúcia as horas de

w

passagem das sentinelas e, portanto, o tempo de que dispunha para mais um assalto. Mas isso era com as sentinelas. Será que o Senhor Ferreira tinha hábitos regulares?

Bentinho conseguiu perceber que o Senhor Ferreira ia

ie

sempre tomar um café por volta do intervalo das 10h. Cro-

nometrou o tempo de ausência em 6 minutos. Constatou, ainda, que nunca fechava a porta da secretaria – hábitos de aldeia, embora Seia fosse vila – “Excelente!”.

ev

Depois de todo este trabalho meticuloso, Bentinho aven-

turava-se na secretaria de quando em vez – todos os dias seria suspeito, pois estaria sempre ausente do recreio – e em algumas das suas incursões de espião lá conseguia apanhar um teste da sua turma. Usando sempre o estratagema de nunca ter uma nota surpreendentemente alta, Bentinho

Pr

facilitou-se a sua vida escolar de forma considerável. Tinha mais tempo para ler os livros policiais e de espionagem que ia devorando.

Num belo dia de Sol que convidava a um passeio sem

rumo, Bentinho, agora já no terceiro ano do liceu, viu na oficina do Senhor Antunes uma bela bicicleta “Raleigh”. Preta com os cromados do guiador reluzentes. Toda equi18

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 18

14/07/20 12:13


E S C R E VA , P O R F AV O R ,

“ESPINOSA”

pada, trazia farol para circulação nocturna, luz traseira e uma bela campainha, também cromada. Bentinho ficou siderado. Tinha que ter aquela bicicleta! Além do mais era uma bicicleta em segunda mão e, por isso, o preço era – Pai? – Sim, Bentinho?

w

apetecível.

– Viu aquela bicicleta que está na oficina do Senhor Antunes?

ie

– Não, porquê?

– Gostava tanto que ma oferecesse de presente!

– Presente? Mas fizeste alguma coisa que justifique dar-te uma prenda? E logo uma bicicleta?

ev

– Bom, tenho tido boas notas.

– Sim, boas, mas não fazes mais do que a tua obrigação

e agradece poderes estar no Externato, a maior parte dos rapazes e raparigas daqui fica pela quarta classe. – Oh Pai!

– Não, Bentinho, não. E, além do mais, uma bicicleta é

Pr

caro e o Pai não anda a roubar.

– E é em segunda mão! E está com um preço muito

bom!

– Mesmo em segunda mão, não é de graça. Não, Benti-

nho, não.

– Um arquitecto não tem dinheiro para uma bicicleta? –

Bentinho estava em crescendo de provocação. Manuel Silva ficou desconcertado com a provocação do filho. Tinha assim umas fúrias, mas não chegava a isto. 19

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 19

14/07/20 12:13


JOÃO RANGEL DE LIMA

– Não, ou melhor, tenho, mas há opções! Primeiro a renda da casa, a tua roupa, comidinha na mesa e a tua Escola! – Fizesse mais projectos, ou melhores! – Bento! – quando o diminutivo desaparecia, anuncia-

w

va-se tempestade. – Eu não te admito...

Bentinho virou costas e saiu da sala batendo com a porta. Mantinha-se em vantagem e afastava-se duma possível bofetada. Era raro, mas acontecia.

ie

Manuel Silva ficou sem reacção. Já não havia oportuni-

dade para uma bofetada, ou para um forte ralhar. Ir atrás dele? Não. Manuel Silva tinha horror de cenas de baixa

ev

novela.

Bentinho saiu pela Vila fora sem destino, acalmando

a sua fúria. A bicicleta estava ali e ele queria-a. “E se eu quero, eu tenho!”

À noite, no seu quarto, Bentinho pensava. Poderia ven-

Pr

der a alguns colegas da turma a informação do que vinha para os testes. Perigoso. Todos na turma dele a subir as notas e rapidamente se descobriria a marosca e, também rapidamente, se chegaria a ele. Vender a outra turma seria melhor, mas continuaria a ser suspeito. Lentamente começou a definir a estratégia; seleccionar os colegas a quem venderia a informação e deveriam ser de turmas de anos diferentes. Um por turma. E se se descobrisse, mesmo assim, o esquema? Não, não pode ser. É então que lhe surge 20

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 20

14/07/20 12:13


E S C R E VA , P O R F AV O R ,

“ESPINOSA”

a ideia: “Porque não vender ao Senhor Evaristo – o contínuo – o homem tinha fama de gastar quase tudo o que ganhava no vício do jogo de cartas”. Comentava-se naquele meio pequeno que os filhos só não passavam fome porque a mulher costurava para fora. “E se eu?”.

w

Bentinho começou a familiarizar-se com Evaristo. Ao princípio um “bom dia!”, ou uma “boa tarde”, depois,

“como está tudo lá em casa?” e “vi no outro dia o seu filho futebol.

ie

mais pequeno, é giro” e depois ainda comentários sobre

Bem depressa se confidenciavam anseios e Evaristo acabou por contar que, se a sorte sorrisse, haveria de ganhar uma quantia muito razoável.

ev

– A jogar às cartas?

Evaristo mudou de cor.

– Quem te disse isso, rapaz? – Toda a vila fala disso.

Evaristo ficou sem saber o que dizer e coçava a cabeça

embaraçado.

Pr

– Toda a vila?

Evaristo, como todos os jogadores de cartas viciados,

acham sempre que ninguém sabe e que “não foi desta vez, mas será na próxima que vou ter sorte”. – Sim, toda.

– Vício caro, meu rapaz... – E se eu lhe arranjasse dinheiro para continuar a tentar

a sua sorte mais vezes?

21

Escreva, por favor, "Espinosa".indd 21

14/07/20 12:13


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.