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Júlio Garcia

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FICHA TÉCNICA edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: César, o Sedutor autor: Júlio Garcia arranjo da capa: Patrícia Andrade paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, março 2017 isbn: 978-989-8821-41-6 depósito legal: 420713/17 © Júlio Garcia

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt

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DEDICATÓRIA Dedico este livro ao meu grande amigo César e à sua mulher, Elisa, pelo elevado nível de amizade e total confiança que o primeiro sempre depositou em mim e pela credulidade demonstrada pela segunda na audição das falsidades que fui forçado a inventar e a transmitir-lhe para manter a salvo o casamento de ambos. Não consegui alcançar o meu objetivo apesar de todos os esforços despendidos nesse sentido. Por não ter tido sucesso neste meu empreendimento, um pedido de desculpa à Elisa não será descabido. Foi-me extremamente difícil guardar os muitos segredos que me foram confiados. É do conhecimento geral que um amigo, a quem é revelado um segredo, o transmitirá invariavelmente a um terceiro, pedindo igualmente sigilo, o qual, por sua vez, o confidenciará a um quarto e assim sucessivamente, com as consequentes alterações que o vão desvirtuando, transformando-o em boato, passando a ser do conhecimento da generalidade da população. O segredo é como uma pedra atirada a um charco, cujo contacto com a água origina pequenas ondas que se vão alargando e afastando do ponto de partida, cobrindo-o totalmente em pouco tempo.

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Decorridas mais de quatro décadas sobre os últimos acontecimentos, o Autor, se bem que usando os dons de omnipresença, omnipotência e omnisciência que caraterizam qualquer escritor relativamente às atitudes e comportamentos das personagens das suas obras, escreveu umas quantas histórias contidas neste livro a partir de alguns relatos efetuados pelo próprio César; outras, no entanto, foram fruto da sua fértil imaginação. Ele está convicto, contudo, de que não advirá neste momento qualquer prejuízo ético ao casal (do qual perdeu o contacto há muitos anos) derivado da publicação de algumas aventuras amorosas do amigo. Um grande bem-haja ao César e à Elisa, estejam onde estiverem. Azeitão, 1 de Janeiro de 2015 O Autor

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ADVERTÊNCIAS 1. Esta obra, embora não sendo preponderantemente erótica, contém no entanto algumas descrições amoralizadas, eventualmente chocantes, razão por que poderá ferir a suscetibilidade de pessoas de maior sensibilidade, pelo que a sua leitura não lhes será recomendável. Competirá, portanto, ao Leitor, determinar se deve ou não efetuar a aquisição deste livro e proceder à sua leitura. O Autor não se responsabilizará por quaisquer danos morais ou físicos que eventualmente esta venha a originar. 2. Todos os episódios relatados são fruto da imaginação do Autor, pelo que qualquer semelhança com factos reais é pura coincidência, embora a trama de algumas das cenas narradas tenha tido origem em acontecimentos presenciados por ele ou em relatos circunstanciados confidenciados pelo próprio César. 3. Nesta obra, há factos descritos que parecem inverosímeis mas são verídicos e há os que, não sendo verdadeiros, parecem verosímeis. Caberá ao Leitor discernir a veracidade de cada um deles, já que o Autor se acha impotente para o fazer. 4. Todas as ações descritas neste livro decorreram entre os anos quarenta e sessenta do século XX, período durante o qual a maioridade só era atingida aos vinte e um anos e, à mulher, eram impostas regras morais muito rigorosas, cuja quebra era 7

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altamente penalizada pela Sociedade, pela Igreja e pelo Estado. Só assim se compreenderá a razão por que certos comportamentos e atos eram então condenáveis, tais como a perda da virgindade antes do casamento, o divórcio, o adultério e tantos outros, hoje sem qualquer importância. 5. Este livro está escrito de acordo com o novo acordo ortográfico (com o qual o Autor discorda), devido à sua incapacidade em distinguir qual a ortografia correta das palavras a aplicar segundo o anterior acordo ortográfico, por insuficiência do programa eletrónico existente no seu computador, que é discriminatório e antidemocrático ao contemplar apenas o mais recente. Antigamente, este problema não existia, já que as obras literárias eram escritas à mão em folhas de papel, usando uma pena, uma caneta, um lápis ou uma esferográfica e, mais tarde, máquinas de escrever. 6. É natural que o Leitor encontre alguns erros de digitação, dos quais pede antecipadamente desculpa, devidos exclusivamente à preguiça (um dos Pecados Capitais) do Autor (mais preocupado com o conteúdo do que com a forma), já que efetuou apenas uma revisão do texto, tendo, embora, consciência de que o devia rever mais de uma vez, para assegurar a total eliminação de erros ortográficos não detetados pelo dicionário eletrónico. 7. Não contém este livro um prefácio, pela simples razão de o Autor não conhecer pessoalmente alguém, não só com capacidade intelectual e disponibilidade de tempo para o escrever, como também ser sobejamente conhecido do público, tendo em vista propagandear e, portanto, promover a venda desta obra. O Autor ainda teve em mente solicitar ao doutor Júlio Machado Vaz – 8

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advertências

insigne sexólogo português – a elaboração de um prefácio explicativo da razão das atitudes e comportamentos das personagens desta obra literária, mas faltou-lhe o atrevimento de o contactar, por timidez e pudor. 8. O Autor pede perdão a Deus, não só pelo Pecado da Preguiça (atrás confessado e cujo arrependimento ora exterioriza), como também por algumas cenas altamente chocantes contidas neste livro, o qual será único, jurando que não publicará outro do mesmo género.

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PRÓLOGO O Fausto, depois de cumprido o serviço militar durante um ano e meio, regressou à atividade profissional como escriturário numa grande empresa industrial de Lisboa. Decorria o ano de mil novecentos e cinquenta e cinco, quando o Gama, colega de trabalho, o convenceu a matricular-se num curso de aperfeiçoamento profissional ministrado por uma escola técnica privada, a fim de se valorizar profissionalmente. Entusiasmado com a sugestão e convencido de que a frequência de um curso de contabilidade só lhe poderia trazer vantagens na profissão, decidiu inscrever-se, apesar de o Gama ter desistido no último instante. O Fausto trabalhava no Departamento de Contabilidade duma grande empresa cervejeira sediada em Lisboa, razão por que estava muito interessado em aumentar os conhecimentos contabilísticos, tendo em vista a progressão na carreira profissional. O César estava empregado numa firma produtora de leite sediada em Loures. Com a intenção de alargar a base de conhecimentos profissionais, resolveu frequentar um curso de contabilidade e, findo este, um curso de línguas estrangeiras (inglesa e francesa), já que, não estando satisfeito com a atividade profissional exercida naquela empresa, estes cursos possibilitar-lhe-iam mais facilidades na mudança de emprego. 11

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Foi logo na primeira aula que o Fausto e o César se conheceram. Entre os dois, estabeleceu-se imediatamente uma grande empatia, tendo ambos ficado sentados na mesma carteira. O Fausto era fisicamente a antítese do César. O primeiro era loiro, de cabelo levemente ondulado, de olhos azuis, de boca grande de lábios grossos, de estatura média; o César era moreno, de cabelo encaracolado (quase encarapinhado, pois era filho de mulher de origem africana), de olhos azuis (o pai era branco), de boca pequena de lábios finos, também de estatura média. Talvez tenha sido este contraste que os tenha aproximado. O César era casado e tinha dois filhos. A mulher chamava-se Elisa e os filhos, Luísa e José. Tinha cerca de trinta anos. O Fausto era solteiro e ia completar vinte e três anos. Há pessoas que têm jeito para tudo. O César era um deles. Podia ter sido um grande escritor (romancista ou poeta), um grande pintor, um grande músico ou um grande escultor. Tudo o que se propunha executar, executava na perfeição. Tinha, todavia, um defeito: a dispersão. Saltava de trabalho para trabalho com muita facilidade e desinteressava-se do que tinha entre mãos para se dedicar a outro, deixando aquele em meio. Podia ter tido grande sucesso numa daquelas atividades, se ele se tivesse dedicado apenas a uma delas. O que mais surpreendia o Fausto era o dom do César em adivinhar se determinada mulher, por quem se interessava, estava ou não disponível para lhe dar atenção. E raramente se enganava, pois, para além daquele dom, era um grande especialista em técnicas de sedução. Exercia um fascínio tal nas mulheres que, quando as envolvia com o olhar e enredava com a palavra, algu12

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prólogo

mas delas perdiam a noção da realidade e deixavam-se conquistar facilmente. O Fausto, além de ser um bom contabilista, tinha apenas, julgava ele, inclinação para escrever. Por isso, decorridos pouco mais de cinquenta anos sobre os acontecimentos, tomou a decisão de passar ao papel as conquistas amorosas do César. Evidentemente, somente aquelas de que ele tivera conhecimento e que julgou merecerem ser contadas.

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ARLETE, A IMACULADA Uma noite, visto haver já uma grande confiança recíproca, o César abordou o Fausto no corredor da escola e desabafou: – Fausto, estou apaixonado por uma colega nossa e penso que eu não lhe sou indiferente. Foi logo na primeira aula de Francês, quando ela entrou na sala, que senti o coração bater mais forte e rápido. Não foi uma mera atração física, como sucedera com muitas outras mulheres, mas um sentimento sem desígnio libidinoso. – Eu conheço-a? – Acho que não. Ela chama-se Arlete. – Não estou a ver quem é. Talvez a conheça de vista, mas não estou a ligar o nome à pessoa. – Eu já estive apaixonado por outras mulheres, mas jamais senti um amor assim, tão puro e calmo. – César, ou sentes paixão ou sentes amor, decide-te. – Não é a mesma coisa? – É evidente que não. Paixão é um sentimento muito forte, egoísta e possessivo, que exige reciprocidade, com duração a prazo, começando a extinguir-se à medida que vai sendo satisfeito. O amor é um sentimento casto, sereno e duradouro, que nada pede em troca; nele, há a solidariedade, a dádiva, a tole15

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rância e a compreensão. Digamos que é um sentimento integralmente espiritual. – É isso mesmo que eu sinto por ela, um amor espiritual! Repentinamente, o César ficou estático e sem fala, de olhos fixos em duas colegas que se aproximavam do local onde estavam a conversar. Recobrando o dom da palavra, ele sussurrou: – É ela, a Arlete! – Vêm duas. Qual delas é? – A baixa e loira. – Ah, assustaste-me! Pensei que era a alta e magra. O Fausto lançou um olhar apreciador à jovem. Ela era uma mulher sem grandes atrativos físicos, de estatura baixa, sem formas vincadamente definidas, pelo menos não as mostrava dado o modo simples como tapava o corpo. Não usava roupa muito justa, decotada ou cavada. Estava de cara lavada, isto é, sem qualquer tipo de pintura no rosto. O cabelo aloirado a roçar os ombros, estava penteado de risco ao meio e uma franja tapava-lhe metade da testa. Não demonstrava grande beleza exterior, mas o Fausto reparou que, enquanto falava, a expressão transfigurava-se totalmente, irradiando uma beleza interior incomensurável. Não admirava, pois, que ela tocasse tão profundamente o coração do César. – O que é que achaste? – É uma moça interessante, especialmente quando fala e ri. – Eu sei que ela não possui uma grande beleza, mas a verdade é que ela cativou-me logo na primeira vez que o meu olhar pousou nela. – E o que pensas tu fazer? 16

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– Quero conversar com ela, dizer-lhe o que sinto, perguntar-lhe se ela sente o mesmo por mim. – E se ela sentir por ti o mesmo que tu sentes por ela, o que pretendes fazer? Não te esqueças que és casado e pai de dois filhos. – Quero apenas manter o nosso amor ao nível do espírito… – E se esse sentimento, agora puro, descambar para o desejo carnal? – Não creio que isso venha a acontecer, para além de uns beijos castos… – Beijos castos entre um homem e uma mulher que se amam?! Isso não existe! – Juro-te que não haverá outros contactos para além de mãos dadas e beijos trocados. Duvidas? – Não, de modo nenhum. Acredito piamente. Agora, vamos para a aula, antes que o professor entre na sala. – Vamos. O César tinha grande dificuldade em se aproximar da Arlete, porquanto ela andava quase sempre acompanhada pela Carmo, a colega magra e alta, corcovada, com um defeito num dos olhos que tapava com um par de óculos escuros. No entanto, a paciência era uma das suas virtudes, pelo que aguardou a melhor oportunidade para a abordar. Enquanto esperava, os olhos de ambos continuavam a trocar serenamente olhares carregados de amor, o que os levava a sorrir de felicidade. Ela então baixava pudicamente o olhar e corava. Esta situação manteve-se assim durante duas semanas.

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Cansado de tanto esperar pelo ensejo, que não surgia, de falar com a amada, decidiu uma noite, quando os quatro estavam a conversar, pedir à Carmo: – Eu preciso de dar uma palavrinha à Arlete em particular. Não te importas, pois não, Carmo? – É claro que não. – Respondeu ela, com um sorriso a bailar-lhe na boca. – Vens, Fausto? – É evidente que sim. O Fausto e a Carmo afastaram-se ao longo do corredor, falando sobre assuntos triviais que nada tinham a ver com a presumível conversa do par que deixaram para trás. Quando terminou a conversa, a Arlete e o César dirigiram-se ao local onde permaneciam a Carmo e o Fausto. Vinham com uma expressão de grande felicidade. De faces coradas e olhos brilhantes postos no chão, a Arlete juntou-se à Carmo e entraram na sala de aula, em silêncio. O César piscou os dois olhos ao Fausto, cujo significado este interpretou como sendo: já está. Depois da aula, o César contou-lhe a conversa que tivera com a Arlete. – Fausto, tinha receio de que ela me recusasse, mas tudo correu muito bem. Vou contar-te a conversa que tivemos os dois. Contou pormenorizadamente e o Fausto registou mentalmente. ✳ ✳

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O César, a sós com a Arlete, disse-lhe naquele tom de voz de veludo que habitualmente usava nas conquistas: – Arlete, através do meu olhar, já deves ter-te apercebido que eu te amo. Pela maneira como me olhas, não posso deixar de concluir que tu correspondes a este meu sentimento. Que me dizes? – Não posso andar com um homem casado… – O problema que se põe é se tu me amas ou não. – Sim, amo-te, mas não devo amar-te… – O mais importante, já eu sei: amas-me, o que me enche de muita felicidade. A Arlete estava nervosíssima. A voz trémula, o coração a bater desordenadamente, ela ainda repetiu: – Não devo amar-te! És casado e pai de dois filhos!.. – O amor não escolhe quem se deve ou não amar. Acontece, simplesmente. – Não é assim tão simples. Eu sinto remorsos por ter permitido que este amor tivesse tomado conta do meu coração. Ao princípio, até achei graça a este sentimento à primeira vista, mas agora, não sei que fazer com ele. – Eu sei. Ainda não te disse, mas o que eu sinto por ti é um amor puro, que não tem outra intenção que não seja estar contigo, umas vezes de mãos dadas, outras, sentindo os teus lábios contra os meus, mas nada mais além disto. Eu só quero que correspondas às minhas palavras apaixonadas com palavras igualmente apaixonadas, ao meu olhar ardente com o teu olhar ardente, aos meus beijos frementes com os teus beijos frementes, às minhas doces carícias com as tuas meigas carícias… Juro-te que, embora

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eu possa ter outras mulheres, só me manterei fiel a ti, apenas tu ocuparás o meu coração para todo o sempre. – Sinto que não consigo resistir às tuas doces palavras que vêm de encontro aos meus desejos. Mas, peço-te encarecidamente, vamos com calma. Receio que isto não passe de um grande entusiamo que, decorrido algum tempo, esfrie e morra. Não me sentiria bem com a minha consciência se isso viesse a suceder. Por esta razão, não quero conceder-te muita esperança, para não ter de te dar um grande desgosto mais tarde. – Seja como tu quiseres. Por ti, farei tudo o que me propuseres. – César, não tornes pública esta situação. Continuaremos a ser bons amigos, quando acompanhados. Em privado, poderemos extravasar os nossos sentimentos mas que fique bem claro, eu jamais serei tua amante… – Querida Arlete, – ela sorriu, enlevada – eu somente quero que me deixes amar-te, eu contento-me com pouco porque sei que não te posso exigir nada. – Juras? – Juro! Só mais uma coisa. Achas que a Carmo me deixa sentar a teu lado? – Eu falo com ela. O César pegou discretamente na mão dela e apertou-a com suavidade durante alguns segundos, olhando-se intensamente. Depois, regressaram para junto da Carmo e do Fausto. ✳ ✳

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A partir daquele momento, o César passou a sentar-se ao lado da Arlete. Trocavam juras de amor, o qual se tornava dia-a-dia mais forte. As mãos de ambos tocavam-se frequentemente debaixo da carteira, em carícias suaves. Trocavam olhares apaixonados. O César começou, por uma vez ou outra, a acompanhá-la a casa. Encontravam-se num ponto pré-combinado, numa rua abaixo, onde ela montava a mota. Durante o percurso, ela apertava-se contra o tronco dele. O César parava a mota numa rua antes da dela, ficando ali minutos intermináveis a conversar. Uma noite, ele atreveu-se e deu-lhe um beijo. Ela aceitou o gesto e correspondeu com naturalidade. Todas as noites, ambos ficavam encostados à mota, abraçados e trocando beijos. Esta situação duraria ao longo dos quatro anos do curso. A relação deles jamais abrandou ou teve uma quebra, apesar das imensas aventuras amorosas do César, não só as confessadas, como tantas outras que não chegaram ao conhecimento do Fausto. A Arlete, naquele período, manteve a sua palavra de ser fiel ao César. Jamais lhe foi visto qualquer acompanhante do sexo masculino que não fosse o amado. O César continuava casado, mas não resistia a ter uma aventura com qualquer mulher que lhe proporcionasse alguns momentos de prazer carnal. Era um homem muito egoísta e possessivo, que dava excessiva importância aos seus prazeres. Por isso, mesmo que a Arlete quisesse desligar-se do acordo, ele não lhe permitiria. Tendo completado o curso, o Fausto deixou de ver a Arlete, se bem que continuasse a manter um contacto assíduo com o César, não só por amizade, mas também por motivos profissionais.

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Passado talvez um ano, o Fausto cruzou-se com a Arlete na baixa. Foi um encontro inesperado, de curta duração, inoportuno, já que ela estava acompanhada de um homem dos seus trinta anos, que apresentou como sendo: – Jorge, o meu namorado. Seguiram-se os cumprimentos da praxe e cada um seguiu o seu caminho. O Fausto ficou deveras surpreendido, dada a relação amorosa que ela mantivera com o César, a qual, segundo este, seria para a eternidade. Naquele momento, o Fausto pensou que a eternidade é um período demasiado pequeno para uns e lato demais para outros, razão por que uns cumprem as promessas e outros, não. Ao fim da tarde, quando esteve com o César, o Fausto não foi capaz de manter secreto o seu encontro com a Arlete e perguntou-lhe, sorrindo: – Sabes quem eu encontrei hoje, na baixa? – Como queres que eu saiba, se ainda não me contaste? – A tua Arlete. – Ah! Encontraste? Já não a vejo há uns tempos largos. – Não a vês?! – Estranhou o Fausto. – Pensei que continuavam com aquele namoro fingido… – Não me gozes. Sabes bem que é um namoro proibido e, por isso, secreto. – Eu sei disso. Durante quatro anos, não ouvi eu outra coisa. Pensei, porém, que esse namoro já tinha terminado. – Se bem que a não veja há uns meses, o namoro prossegue nos mesmos moldes. Eu continuo a amá-la e ela, a mim, como

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sempre tem sido desde que nos conhecemos e continuará a ser no futuro, até que a morte nos separe. – César, pareces mesmo convicto do que afirmas, mas julgo que estás enganado. – Enganado, eu? Nem penses nisso. – Penso, penso. E tenho uma forte razão para pensar. – Tens uma forte razão? – Perguntou o César, curioso. – E que razão é essa? – A Arlete estava acompanhada por um indivíduo que me foi apresentado como sendo o seu namorado. A expressão facial do César mudou completamente. O sorriso desapareceu do rosto, que se tornou violáceo e duro; o olhar refletiu chispas de ódio e a boca contraiu-se nuns rictos de raiva quando disse: – Esse namoro vai acabar e já! Ele vestiu o casaco e abalou sem se despedir do amigo. O Fausto andou preocupado durante todo o dia seguinte. No espírito, bailava-lhe a pergunta: – O que teria feito o César para acabar com o namoro da Arlete? – Não atinava com a resposta, por receio que ele tivesse feito alguma asneira irreparável. Pela tarde, dirigiu-se ao escritório da empresa onde ele prestava serviço. Sentiu-se aliviado quando o viu sentado calmamente à secretária. Entrou no gabinete e cumprimentou-o: – Olá, César. – Ah! És tu! Hoje vieste mais cedo, porquê? – Tenho estado preocupado contigo… – Preocupado comigo?! Por que razão, não me dizes?

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– Digo-te, digo-te. Ontem, disparaste daqui tão furioso que nem te despediste de mim. – Desculpa-me, Fausto. Estava deveras irado, mas já me passou a ira. – Então, resolveste o problema? – É claro que resolvi e de uma maneira definitiva. O Fausto olhou fixamente para ele, na espectativa: – Tive uma grande e seriíssima conversa com a Arlete. – E ela, como reagiu? – Disse-me que tinha aceitado o pedido de namoro daquele conhecido porque, como eu não a contactava há muito tempo, concluiu que eu já tinha perdido o interesse por ela e que, se eu fazia grande questão em que ela acabasse o namoro, que o faria naquela mesma noite, quando se encontrasse com ele. – Disse-te isso assim, sem mais nem menos? – É evidente que não. Fartou-se de chorar. Afirmou que continuava a amar-me, mas que se sentia muito só, que tinha necessidade de companhia, que gostaria de casar e ter filhos… Sabes como são as mulheres. – E cedeste? – Qual quê! Abracei-a e beijei-a. Prometi-lhe que iria vê-la mais vezes. Jurei amá-la… – Para ti, é fácil manter essa situação, na medida em que tens mulher e filhos, e arranjas companhias fáceis fora do casamento… – Não sejas chato! No fim da conversa, ela prometeu que acabaria com aquele namoro e que jamais seria de outro homem. – Pobre Arlete! Como eu a lamento. Ficar presa a ti durante toda a vida é um infortúnio muito grande. 24

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– O que é que queres dizer com isso? – Nada, absolutamente nada. Bom, vamos ao trabalho. A conversa ficou por ali. Uma grande amizade unia o Fausto e o César e nenhum deles estava interessado em quebrar esta união por causa de uma mulher. Mas, naquela noite, o Fausto não dormiu, brutalmente arrependido por não ter ficado calado. Por causa dele, a vida de uma mulher ficara talvez destruída para sempre. Tinha fortes dúvidas de que ela lhe viesse a perdoar alguma vez a indiscrição que matara à nascença a possibilidade de ser feliz. O egoísmo do homem não deve ser um óbice à felicidade da mulher. O do César quase o foi.

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IRINA, A DESINIBIDA Habitualmente, o César sentava-se junto do Fausto, numa carteira chegada à parede. Naquele dia, porém, ele atrasou-se, estando o lugar vago quando a Irina entrou na sala de aula e se encaminhou na sua direção, pretendendo ocupá-lo. O Fausto ainda tentou dizer-lhe que o assento não estava livre, mas foi antecipado pela pergunta dela: – Chamo-me Irina. Este lugar está vago, não está? O Fausto, percorrendo-lhe o corpo da cintura para cima e fixando o belo rosto cujos olhos negros o olhavam com simpatia e doçura, não foi capaz de responder que não, antes disse: – O lugar está vago, sim, e eu chamo-me Fausto. Ela sentou-se no preciso momento em que o César entrava na sala. Ele olhou interrogativamente para o Fausto e este fez-lhe um gesto com os ombros, como que a significar que tentou impedi-la, mas nada pôde fazer. A partir dali, ela passou a sentar-se naquele lugar. O César escolheu a carteira atrás da deles. A Irina possuía uma beleza sem par. Era morena sem ser muita escura, de cabelos pretos, ondulados e compridos, caídos pelas costas, emoldurando a face oval com uns admiráveis olhos negros, encimados por sobrancelhas bem delineadas. O nariz correto e a boca bem desenhada, mostrando os dentes brancos quando ria, 27

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completavam o conjunto. Os seios de tamanho médio espetavam-se contra o tecido do vestido. A cintura fina fazia sobressair a largura das ancas, abaixo das quais se moviam umas coxas e umas pernas perfeitas. Uma noite, sentado na carteira do costume, ao lado da Irina, sentiu o encosto de um joelho na sua perna. Primeiro, com leveza, como que por acaso, depois, com maior pressão, tendo principiado a tremer. Foi nesta ocasião que ele percebeu quão belos eram os seus olhos negros fixos nos seus. Ele sorriu e ela sorriu também. Pela primeira vez, entabularam uma conversa mais íntima. O professor prosseguia a debitar matéria que ele não escutava, pois estava inteiramente concentrado na perna trémula encostada à sua. Ele não deu por a aula ter terminado, pois toda a sua atenção, enquanto ela contava casos da sua vida privada, nos quais ele não estava minimamente interessado, estava presa unicamente à beleza impressionante dos seus olhos. Falou, falou…Ele apenas enxergava o modo como a sua boca de lábios levemente carnudos modulava as palavras que ele não escutava, o rosto oval de pele acetinada, os cabelos da cor dos olhos… Ele não conseguia fugir ao intenso fascínio da sua beleza. E foi somente quando ela lhe estendeu a mão de dedos esguios e compridos num gesto de despedida, que ele voltou a si. Ao apertar-lhe a mão, viu-lhe um fulgor intenso nos olhos, que lhe percorreu todo o corpo. Depois, o seu olhar perseguiu-a enquanto se afastava ondulando o belo corpo esbelto. Nos dias seguintes, o olhar da Irina transmitia ao Fausto, mensagens de iniludível amor. Os seus dedos apertavam os seus, os joelhos tocavam, trémulos, as pernas dele, a boca pedia-lhe fre28

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mentes beijos. Chegou a confessar-lhe, embora de modo indireto, que ele não lhe era indiferente e que bastaria uma palavra sua para ela lhe cair nos braços. O corpo dela colava-se ao seu, ansiando a carícia de um contacto… Apenas lhe faltou deitar-lhe os braços ao pescoço e beijá-lo. Esta situação repetiu-se várias vezes, mas ele não era capaz, por timidez, de se lançar numa aventura amorosa cujo desfecho desconhecia. Após duas semanas de ausência sem que alguém soubesse a razão, a Irina reapareceu num fim de tarde. Sentou-se, como habitualmente, ao lado do Fausto. Este disse-lhe, após os cumprimentos mútuos de boas-vindas: – Irina, eu já estava muito preocupado com a tua ausência. – Tive um problema de saúde que me levou ao hospital. – Foi grave? – Dá cá a tua mão. – Ela pegou-lhe na mão e colocou-a no lado direito do baixo-ventre. – Apalpa. – Disse-lhe. Ele passou a mão pelo ventre sobre o vestido e sentiu um pequeno alto. – É um penso. – Esclareceu ela. – Há duas semanas, senti uma grande dor no ventre, que me prendia a perna direita. Os meus pais levaram-me logo para a urgência do Hospital de Santa Maria, onde fui, nesse mesmo dia, operada a uma apendicite aguda. – Deves ter-te assustado muito… – Foi um grande susto! Estive em risco de sofrer uma septicemia, mas já estou boa. Num dos próximos dias, vou tirar os pontos.

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Ela continuava a segurar a mão do Fausto. Lentamente, deixou-a descair, pousando-a na perna abaixo da minissaia. Uma onda de desejo percorreu-lhe todo o corpo, mas conteve-a, embora a custo. Apercebendo-se disso, ela convidou-o: – Fausto, queres ir a uma sessão de cinema? Ou a um cabaret, dançar um pouco? – Irina, não gosto de faltar às aulas, – defendeu-se ele – é uma questão de princípio. A perna dela tremia encostada à dele, assim como a mão dela sobre a sua. Desiludida e contristada, disse: – Que pena! Apetecia-me tanto estar contigo. Se não queres, paciência. Após a aula ter acabado, ela levantou-se, despediu-se de todos os presentes com um “Até amanhã”, e foi-se embora. O Fausto ficou arrependido de não ter correspondido ao seu desejo, mas, ainda que ansiasse possuir aquele belo corpo que se lhe oferecia, não amava a Irina. O receio de a magoar não lhe permitia dar-lhe esperanças de uma relação firme no futuro. Não sentia por ela aquele grande amor que leva ao casamento, mas apenas uma grande atração física. Alguns alunos, incluindo a Irina e o Fausto, combinaram realizar um piquenique no campo no Domingo seguinte. Cada um levou o seu farnel, exceto o Fausto que preparara almoço para dois, conforme prometera à Irina. O grupo seguia aos pares, de mãos dadas, correndo pelos campos, brincando e rindo no matagal. Quando em comunhão com a Natureza, perdem-se os preconceitos, as vaidades e o medo do ridículo. Sentimo-nos mais nós próprios, desinibidos, despidos de quaisquer sentimen30

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tos mesquinhos; damos vazão ao excesso de magia dos corpos, ginasticando-os, distendendo-os, libertando os músculos. Assim acontecia com todos eles naquele momento em que ecoavam risos cristalinos, gargalhadas estrepitosas, ditos sem malícia, cantigas campesinas… Resolveram acampar num bosque, onde o mato atingia, por vezes, quase um metro de altura. O grupo dividiu-se em pequenos grupos ou em grupinhos de dois, apenas. A Irina arrastou o Fausto para um local isolado, longe da vista dos companheiros. Estenderam uma pequena manta sobre a erva macia e deitaram-se nela, sorvendo aos poucos a delícia de estarem sós… Quando o Fausto se dispunha a abrir o embrulho que continha as provisões, ouviu a voz do César bradar: – Há aqui mayonnaise? O Fausto fitou a companheira, que respondeu com rispidez: – Não. Não há. – Oiçam, vai ali uma grande animação. Não querem juntar-se a nós? O Fausto sentiu segunda intenção na pergunta do César. Este, sempre que alguma mulher se aproximava do companheiro, arranjava maneira de a desviar, de modo a concentrar nele toda a atenção. Era do Fausto bem conhecida a qualidade do amigo em adivinhar, por instinto, através de um olhar apenas, se uma mulher seria ou não conquista fácil. As gargalhadas e as vozes alegres dos companheiros de piquenique chegavam até eles e o Fausto, que começava a aperceber-se de uma sensação de vazio e isolamento, perguntou à Irina:

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– Vamos para ao pé dos nossos companheiros? Podem pensar que queremos fazer coisas que eles não podem ver. – Insinuou, brincando. O Fausto riu-se mas ela lançou-lhe um olhar faiscante de reprovação e respondeu, irritada: – Se quiseres, vamos. Foram. O Fausto esteve junto dela apenas durante a refeição. Após esta, ela aplicou-lhe um castigo, escapulindo-se para longe da sua vista, rindo e brincando com o César. Arrependeu-se de se ter juntado ao grupo, ele, que a teve junto de si, num rectângulo de erva macia, rodeado de mato alto, por isso totalmente invisível aos olhos dos outros!... Que grande trouxa! Contudo, não tinha de que se queixar. A culpa fora inteiramente sua. Perto da noite, o Fausto regressou sozinho, pois a Irina aceitara a boleia de mota oferecida pelo César. Na aula seguinte, a Irina sentou-se ao lado do Fausto como habitualmente. Ele rejubilou, convencido de que ela voltara para ele. No intervalo, porém, ela perguntou-lhe, surpreendida pela descoberta: – Fausto, não achas os olhos do César parecidos com os teus? O Fausto, olhando para trás, reparou na expressão enigmática do César num sorriso só de olhos. Ao incidir o olhar na cor da íris dos olhos dele, o Fausto verificou que eram azuis como os seus, embora de uma cor mais forte e acinzentada. – Sim, – respondeu ele – têm realmente uma certa semelhança. Naquele instante, ele sentiu que o César ocupava já o lugar que fora dele no coração da Irina. Olhando-a, vislumbrou que

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o seu olhar estava preso ao olhar líquido e aveludado dele, que a envolvia pleno de carícias. O Fausto teve, naquele momento, a nítida perceção do fim do interesse dela por ele. Não previu que, ao tê-la aproximado do César no piquenique, a tinha exposto à atração que o olhar dele exercia sobre as mulheres. Foi a este indivíduo de mais de trinta anos, com o grande atrativo de não ser novo nem velho, que atingiu o período mais belo da vida, quer intelectualmente, quer fisicamente, período em que o corpo humano se eleva ao mais alto grau de beleza e perfeição e a mente reflete o ponto mais alto da inteligência, sim, foi a este indivíduo, qual Adónis, que o Fausto tinha aproximado a Irina. Naquele momento, pensou: – Melhor fora estar quieto e calado! As relações entre o Fausto e a Irina esfriaram a partir de então, apesar de ele ter tentado várias vezes levar a conversa para o lado amoroso, mas era tarde. Já não era a primeira vez que só se apercebia da oportunidade de dizer ou fazer algo, depois de a ter perdido. Ainda insistia na tentativa de criar um novo ensejo, mas era tempo perdido. Uma oportunidade desaproveitada jamais se repete. Foi o que sucedeu ao Fausto, neste caso. Não lhe tendo perdoado não ter correspondido ao interesse que lhe dedicara, ao seu desinteresse sucedeu o desprezo e ela passou a implicar com ele por tudo e por nada, sem qualquer razão plausível. As discussões eram constantes e o Fausto começou a duvidar que terminassem algum dia. No entanto, porque ainda acalentava alguma esperança em reconquistá-la, revestia-se de grande paciência, ouvi-a calmamente, sem retorquir às palavras quase ofensivas pronunciadas com aspereza. Antes, era ela 33

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que o convidava para a acompanhar a sessões de cinema ou a passeios, o que ele tinha recusado sistematicamente. Naquela altura, inverteram-se os papéis: era o Fausto que lhos propunha e ela quem declinava os seus convites. A paciência dele principiava a esgotar-se e as relações entre os dois iam de mal a pior. Sempre que um dirigia a palavra ao outro, era para desconversar, irritar ou insultar. Foi um período muito difícil, durante o qual o Fausto se esforçou bastante para se equilibrar na corda bamba de uma amizade periclitante. Esta situação não podia durar eternamente. Uma noite, ela mudou de carteira, tendo-se sentado ao lado do César. O Fausto sentiu um enorme desespero, mas, a partir daí, desapareceram as discussões, as ironias, as ofensas. Regressaram as conversas interessantes, os ditos chistosos, os risos alegres e as gargalhadas irreprimidas, mas mantinha-se distante dele, o seu olhar perdera o fulgor de outros tempos quando o encarava. A sua atenção concentrava-se unicamente no César, com quem trocava olhares intensos, palavras pronunciadas com grande doçura. Eram as dele, as pernas que os joelhos dela procuravam debaixo da carteira. O Fausto começou a ter ciúmes do César, que o levavam a fazer-lhe perguntas capciosas ou sub-reptícias acerca das relações entre ambos. Foi claro que ele percebeu muito bem a intenção das perguntas, por isso, resolveu abrir o jogo, perguntando-lhe: – Fausto, houve alguma coisa entre ti e a Irina? – Não percebo a razão da pergunta. – Eu sei que a Irina esteve apaixonada por ti. Contou-me ela. Por isso, repito a pergunta: – Passou-se algo entre ti e ela? – Não. Não se passou rigorosamente nada. 34

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– E não sabes de nenhum facto da vida dela que me interesse? Ela tem vinte e sete anos, não sei se me entendes… – Acrescentou com um risinho malicioso. – Compreendo-te perfeitamente. É evidente que, se eu tivesse conhecimento de algo interessante, tê-lo-ia utilizado em meu benefício, não achas? – Claro, claro! – Exclamou, rindo. – Já entendi. Não sabes nada acerca dela. O sorriso dele acentuou-se, fitando o amigo e colega longamente com uma expressão irónica. Intrigado, o Fausto perguntou-lhe: – O que é? – Tu não aproveitaste aquilo, mas eu não vou perdoar. Adeus, Fausto, vou ter com ela. – Com ela? – Estranhou o Fausto. – Sim, com a Irina. Há uns dias que a levo a casa. – Depois, em confidência, confessou: – Ontem, na escada, trocámos o primeiro beijo. Já está combinado um piquenique para a tarde do próximo Sábado. – Não entendo que tu, sendo casado, andes metido com outras mulheres… – Sou casado mas não sou impotente! Adeus! – Gritou, já distante. – Adeus! – Correspondeu maquinalmente o Fausto. A lembrança da confissão daquele beijo trocado entre a Irina e o César perseguiu o Fausto durante o resto da noite. A sua imaginação, fértil e excitada, criou mil imagens nas mais variadas maneiras de beijar. Sentia-se logrado. Jurou a si mesmo que 35

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também ele havia de ter o seu quinhão. Tomou uma resolução ousada: aproveitaria a primeira ocasião em que estivessem sós, com autorização ou sem ela, para tocar, com os seus, os lábios da Irina. Talvez, desta feita, acordasse o sentimento que lhe dedicara em tempos. Os beijos são como as palavras: a um segue-se sempre outro, pensou, ensonado. Depois deste pensamento, mergulhou num sono profundo, sem sonhos. O dia seguinte parecia-lhe não mais findar, tal o estado de ansiedade e de excitação que o dominava. Revia, um sem número de vezes, o belo rosto de Irina oferecendo-se, com volúpia, ao roçar dos seus lábios nos dela. Sentia a sensação inolvidável dos seus braços a envolvê-lo num longo abraço. Sonhava, acordado, grandes e belos sonhos de amor. Se, na realidade, tudo se passasse assim, ele seria um homem feliz. À medida que o tempo decorria, esperava, impaciente, que o dia chegasse ao fim. O Fausto teve conhecimento de que, nessa noite, o César estava impedido de comparecer no Externato, devido a um compromisso inadiável. Era um trunfo com o qual ele contava para realizar o seu projeto. Se ela não faltasse, seria natural e gentil da sua parte que ele se oferecesse para a acompanhar a casa. A primeira parte do programa planeado estava cumprida: a Irina compareceu e o César faltou. O Fausto rejubilou. Ou hoje, ou nunca, disse para consigo. Quando as aulas terminaram e ela se levantou para a retirada, ele ajudou-a a vestir o casaco, ao mesmo tempo que pronunciava intencionalmente com voz meiga: – Acompanho-te a casa. Ela olhou-o um pouco surpresa, mas aceitou: 36

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– Como queiras. Mal saíram, caíram num mutismo constrangedor. As raras palavras do Fausto chocavam no silêncio da Irina, que, ou nada dizia, ou respondia por monossílabos. Tentou várias vezes dizer qualquer coisa interessante ou engraçada, mas as suas frases soavam a oco ou pareciam banais e ridículas. Maldisse o seu comportamento frustrante e, desanimado por não conseguir prender a sua atenção e inferiorizado perante o seu ar superior, arrependeu-se da resolução tomada. Apesar de se sentir intimidado com a atitude dela, ele estava determinado a cumprir a segunda parte do programa: beijá-la. Perto da casa onde morava, ela quis despedir-se dele, que se fez desentendido e continuou a acompanhá-la até à porta do prédio. Ela parou e estendeu-lhe a mão, com um sorriso irónico: – Até amanhã. – Até amanhã. – Repetiu o Fausto, apertando-lhe a mão, desencorajado do seu intento. Ela avançou e quando se aprestava para cruzar a umbreira da porta, virou-se para trás e atirou-lhe num tom de voz divertido: – Fausto, muito obrigada pela companhia!... Uma onda de revolta se apoderou dele e, sem atentar no que fazia, entrou na escada e agarrou-a por um braço. Ela estacou e olhou-o com surpresa e rogou-lhe: – Larga-me!... Estás a magoar-me!... O Fausto afrouxou a pressão dos dedos no braço dela. A sua voz submissa bastou para o acalmar. Fitou-a, indeciso. Apercebendo-se da indecisão dele, ela inquiriu: – Que queres de mim, afinal? 37

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Naquele momento, o coração do Fausto acelerou o ritmo de batimentos e todo o seu corpo principiou a tremer. – Dá-me um beijo. – Pediu-lhe desajeitadamente. – Estás parvo ou quê? – Ripostou ela prontamente, ao mesmo tempo que se desenvencilhava da mão que lhe prendia o braço e corria escadas acima, subindo os degraus de dois em dois. Falhada a tentativa de obter um beijo da Irina, o Fausto sentiu o sabor de uma derrota amarga. Pensou, então, que não podia persegui-la, pois a sua oportunidade já tinha passado. Tomou uma resolução irrevogável: esquecê-la. Apesar de já não estar interessado no relacionamento do César e da Irina, aquele fez questão em lhe contar o que sucedera naquele Sábado à tarde, num relato completo que permitiu ao Fausto ter uma ideia exata dos factos, como se eles se tivessem passado sob os seus olhos. ✳ ✳

Conforme o combinado, o César ficou de apanhar a Irina na paragem de autocarros do Marquês de Pombal. Ela compareceu um pouco antes da hora marcada; ele, como lhe era peculiar, surgiu depois das duas horas da tarde, montado na sua velha mota. Quando esta parou, ela saltou para detrás do banco e cruzou os braços no peito dele, que, sentindo as mãos dela bem seguras, arrancou rumo ao Parque Florestal de Monsanto. Depressa chegaram a Montes Claros. Parqueada a mota junto ao restaurante, refugiaram-se sob as árvores, dos raios solares que 38

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àquela hora incidiam quase a pique e cujo calor lhes trespassava a roupas. Não articulavam uma palavra, mas os olhares trocados transmitiam desejos inconfessáveis. O braço dele traçava-a pela cintura, puxando-a a si, meigamente, e as faces roçavam-se com frequência. Percorriam o parque em busca de um ninho isolado, onde pudessem dar vazão a todo o amor que transbordava dos seus corpos em brasa. Depois de muito procurarem, acharam-no, por fim. Sentaram-se no chão atapetado de folhas secas e vegetação rasteira. Os olhos fitaram-se, ardentes; as mãos agarraram-se com violência durante apenas uns segundos e, como que impulsionados pela mesma força, os dois corpos atraíram-se e chocaram com veemência; as bocas, ávidas e impacientes, uniram-se num beijo ardoroso. Em volta, os jovens pinheiros mansos, rasos e frondosos, preservavam o casal de olhares indiscretos. Indistintamente, chegavam até eles, sons de passos que se aproximavam e, depois, se distanciavam, das pessoas que caminhavam na estrada. Apesar de ser dia e o Sol projetar potentes raios de luz, o lugar escolhido era perigoso. Afastado da estrada umas dezenas de metros, isolado naquela floresta semivirgem de coníferas, sem possibilidade de socorro no caso de serem atacados por um qualquer grupo de malandrins, os quais, por vezes, faziam incursões por aquelas bandas, o local não oferecia condições mínimas de segurança. Se a Irina tivesse a percepção do perigo que corria, desde o roubo à violação, seria possível que tivesse receio e insistisse com o companheiro para abandonarem aquele sítio demasiado perigoso. Mas, quando a mente humana está focada num determinado 39

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