Contos inverosímeis

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António Enes Marques

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FICHA TÉCNICA

revisão: Patrícia Espinha arranjo de capa: Paulo Marques paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, janeiro 2024

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isbn: 978-989-8986-80-1 depósito legal: 525030/23

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título: Contos Inverosímeis (ou quase) autor: António Enes Marques edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro)

© António Enes Marques

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

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Na literatura, o inverosímil acontece quando a ficção supera a realidade.

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Aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.

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Antoine de Saint-Exupéry

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ÍNDICE

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O medronheiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Na esteira do tesouro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Quarentena e teletrabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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À mesa do café . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Recuperação improvável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Férias atribuladas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O rei das garagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O intruso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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No lugar da anta de Agualva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Uma experiência ultrajante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Pandemia, a quanto obrigas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Pandemia, a quanto obrigas

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o gabinete, Martim escutava as últimas indicações do patrão sobre a preparação de uma campanha publicitária de um produto inovador para a queda do cabelo. No seu entusiasmo, Júlio gesticulava com vigor para dar mais força às suas palavras: — Desta vez, temos que ser mais criativos. De deixar explícito e de forma inequívoca, através de imagens e diálogos sugestivos, a qualidade e fiabilidade do produto… Uma ligeira pancada na vidraça da porta do gabinete suspendeu abruptamente a explanação vibrante e emotiva de Júlio. Era Sónia, a mulher do patrão. Sem esperar por autorização, ela entrou gabinete adentro. Com a sua voz cativante perguntou se não seria incómodo suspender a reunião, pois tinha algo de extrema importância a comunicar ao marido. De imediato, Júlio solicitou a Martim o favor de sair do gabinete para se inteirar do que a esposa tinha de tão urgente para lhe dizer. Enquanto aguardava que o patrão voltasse a chamá-lo, Martim ficou de pé, junto a uma secretária. Era a primeira vez que a mulher do patrão aparecia na empresa. Através da transparência da porta envidraçada, Martim não conseguia descolar o olhar de Sónia. Era na verdade uma mulher absolutamente deslumbrante, bonita, sensual. Deu consigo a pensar como era possível uma brasa daquelas estar casada com Júlio, um sujeito desinteressante, baixo, um pouco anafado, com uma precoce calvície a despontar no cocuruto. A conversa entre eles já ia longa, quando o telefone tocou e Júlio fez um gesto a pedir uma pausa para atender o telefone. Sónia, contrariada por aquela súbita interrupção, virou-se de frente para a porta e deu com Martim a medir-lhe com nítida desfaçatez os contornos do corpo. Dos seus olhos de um azul profundo surdiu 9

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um sorriso tão maroto quanto atrevido face àquele inacreditável e inesperado assédio visual. Reação que pareceu dar a entender a Martim que a mulher do patrão gostava de ser apreciada. E não se fez rogado. Com um sorriso provocante, deu a entender o quanto ela lhe agradava. O que ela fez a seguir deixou-o siderado. Num gesto deveras provocante, Sónia sentou-se, rodou a cadeira de frente para Martim e traçou a perna. A saia subiu um pouco acima do joelho esquerdo mostrando a linha perfeita da perna até ao começo da liga. Estava naquele despropósito, a mirá-lo com ar insolente, e ele atónito a engolir em seco, quando Júlio desligou o aparelho. Rapidamente destraçou as pernas e firmou a sua atenção no que Júlio lhe dizia como se tudo tivesse sido apenas uma encenação para se divertir. Demoraram-se ainda durante alguns minutos, até que ambos deram por concluída a conversa sobre o que levara Sónia a interromper a dissertação do marido quanto ao lançamento do produto capilar que iria acabar, definitivamente, com a calvície. Perante a impaciência de Martim, Júlio deu-lhe, finalmente, permissão para tornar a entrar no gabinete. — Como já está na hora para o almoço, adiamos a nossa conversa para logo à tarde. Já agora apresento-te a minha esposa. Sónia, este é o Martim, já te falei nele; o meu melhor especialista em marketing. Sónia estendeu a mão e no seu olhar já não havia malícia. Os seus olhos apenas refletiam ingenuidade e simpatia. Porém, a sensação da pele aveludada da mão dela na sua suscitou nele uma indescritível sensação de prazer. Alguns dias depois, Martim ainda não esquecera a atitude deveras provocatória de Sónia. Vinha-lhe constantemente à ideia a maneira como o mirara, o gesto de fazer subir a saia e mostrar o começo da coxa. O que seria capaz de fazer para possuir tão voluptuosa mulher, mesmo correndo o risco de se envolver com 10

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uma mulher comprometida, ainda por cima, casada com o seu patrão. Certa tarde, Martim saiu um pouco mais cedo da empresa. Após uma deslocação de carro, mais demorada do que o habitual, devido ao trânsito infernal que lhe esgotava os nervos, estacionou o Renault na rua onde morava. Antes de ir para casa, dirigiu-se ao café para comprar um maço de tabaco. Ao entrar no estabelecimento, Martim ficou espantado ao descortinar Sónia, sentada num recanto do café. Estava só, a ler uma revista. Era a segunda vez que a via. Desta vez, numa zona da cidade longe do sítio onde ela e o patrão residiam. Estaria à espera de alguém? E quem seria? Questões a que logicamente não saberia responder. Sem que ela o visse, pôs-se a analisar em pormenor a impressionante beleza que emanava dela. E quanto mais examinava os dotes físicos de Sónia, maior era o desejo de se atirar à mulher do patrão. Talvez fosse uma excelente oportunidade para tirar a limpo a cena que ela fizera no gabinete, murmurou para consigo. Sem saber como abordá-la e qual seria a sua reação, Martim hesitava se deveria ir-se embora ou tentar descobrir por que razão ela agira daquela maneira. Será que esteve a gozar com ele? Não conseguindo reprimir a curiosidade, arriscou — Olá, boa tarde. Sónia desviou os olhos da revista para ver quem fora o intrometido que lhe interrompera a leitura, disposta a dar uma resposta torta, acaso fosse alguém que não conhecesse. Ao reconhecê-lo suavizou a irritação. Na sua voz não se refletia contrariedade ou desprazer: — Ah, é você! Estou bem, obrigada. Não me diga que mora aqui perto? — Sim, na verdade, tenho a minha casa nesta rua, mesmo de frente para este café. Eu é que nunca supus encontrá-la por estes lados. 11

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— Como o mundo é pequeno, não é? Mas trata-se apenas de uma coincidência. Vim visitar uma amiga. Tinha acabado de beber um café e só por pouco me encontrou por aqui. Tenho o meu marido na empresa à minha espera. Vamos ao Bairro Alto, a um restaurante que me disseram ser excelente. Sónia estava a receber o troco, a despedir-se dele, quando o seu telemóvel tocou. Era Júlio a dizer que não podia ir jantar com ela, que tinha surgido um assunto urgente com uma sucursal de Brasília, que não sabia a que horas saía, mas possivelmente antes das onze da noite não estaria despachado. Um gesto de desagrado desenhou-se no rosto de Sónia. Não contendo a irritação, desabafou: — Já é a terceira vez que me faz isto. Diz-me que vamos jantar fora, depois telefona a dizer-me que não pode por causa de assuntos inadiáveis. Talvez para a acalmar, Martim tentou pôr água na fervura, dispondo-se a desculpar o patrão: — Vejo que está zangada, mas tem de desculpá-lo. A vida de empresário é mesmo assim: montes de compromissos; reuniões que se prolongam; assuntos importantes de última hora. Se quiser, se não vir nenhum inconveniente, posso fazer-lhe companhia e jantar consigo, para não ficar com o resto do dia estragado. Mal acabara de falar e já se havia arrependido do seu arrojo, um pouco a despropósito. Por que razão ela iria jantar com alguém que mal conhecia? E logo com o empregado do marido? Ainda por cima, ainda não esquecera a cena do escritório, em que ela estivera a gozar com a sua cara. A resposta só podia ser negativa… Ao contrário do que esperava, ela não reagiu de imediato. Hesitante, Sónia não sabia se seria boa ideia. Mas não lhe apetecia comer em casa, sozinha. Sempre podia telefonar ao marido, dizer-lhe que ia jantar com a sua amiga. Então, para grande surpresa dele, disse: 12

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— Estive a pensar… e, realmente, não me apetece ir já para casa. Determinada, retirou o telemóvel da carteira e telefonou ao marido, a comunicar a sua decisão. Acrescentou que iria jantar com a sua amiga Celeste; que estaria em casa antes das onze da noite. Boquiaberto, Martim não susteve uma interrogação que estava a bailar na ponta da língua: — E se a sua amiga se descai, e diz ao seu marido que não jantou consigo? — Não se preocupe com isso. Eu avisarei a minha amiga. Ela é da minha inteira confiança e confirmará a minha versão. Foram no veículo dela, um Maserati amarelo. Mandaram vir uma dose de ostras, a seguir um arroz de tamboril, tudo regado com vinho verde branco. Arremataram com duas bicas e rejeitaram a sobremesa. No fim do repasto, a intimidade estava no auge e a conversa fluiu sem reservas nem preconceitos. Às tantas, Martim segurou nas mãos dela e declarou como se sentia atraído por ela desde o primeiro dia em que a viu. Durante alguns minutos, Sónia não descolou as mãos das dele. Os seus olhos azuis pareciam claudicar entre manter-se fiel ao marido ou deixar-se arrastar pelas ondas da aventura. O seu coração tendia para aceitar, já que há muito que não sentia o fogo do desejo a crescer nela em labaredas tão ardentes como nesse momento. Martim fizera renascer nela um sentimento tão forte que estava acamado no esquecimento. Ao saírem do restaurante, não se contiveram mais. Num esconso escuro beijaram-se com uma fogosidade louca. No auge do desejo, a mão direita de Martim insinuou-se por entre a blusa dela, soltou as amarras do sutiã e, com perícia e desvelo, acariciou-lhe a textura delicada e firme dos seios, rodou os dedos nos duros mamilos. Já Martim se alargava no desejo de a possuir ali mesmo, a mão esquerda sob o vestido, quando estalaram passos. 13

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— Cuidado, vem aí alguém. Apressadamente ajeitaram a roupa e afastaram-se do recanto escuro. Por eles passou um sem-abrigo com duas mantas ao ombro. Mais adiante fez o ninho num canto sujo e fétido do passeio. Durante o caminho de volta, Sónia aludiu com a vergonha estampada no rosto, no perigo que haviam corrido. Ambos tomaram consciência de que se haviam exposto em demasia, que por pouco não eram apanhados em flagrante ato indecoroso a roçar a indecência. Disseram isto a rir, mas logo se puseram a lamentar como pode uma cidade ver crescer os miseráveis que dormem na rua, sem nada ser feito para alterar essa péssima situação. Ao chegarem à porta do prédio, onde ele morava, com as luzes do carro desligadas, Martim quis beijá-la, sentir os seus palpitantes lábios, o fogo da sua boca. Mas o receio de se repetir uma situação semelhante à experimentada no recanto da rua impediu-o, sequer, de a beijar. Num último recurso, ele sugeriu que fossem para casa dele. Sónia opôs-se, dizendo-lhe que já era tarde e que possivelmente o marido podia estar preocupado se já estivesse em casa. Acabaram por combinar um encontro na casa dela, no sábado seguinte. Nesse dia, Júlio estaria todo o dia no norte do país, a participar numa conferência sobre novos produtos capilares. A hora para se encontrarem dependia da mensagem, que ela lhe enviaria, com a respetiva morada, assim que o marido telefonasse a dizer que já havia chegado ao Porto. Finalmente, após um apressado beijo de despedida, Sónia meteu-se a caminho. Quando entrou em casa verificou para seu sossego que o marido ainda não havia chegado. Durante três longos dias, a Martim só lhe acudia ao pensamento os momentos emocionantes daquela noite com Sónia. Na sua mente agitada relembrava o perfume do corpo dela, o calor dos seus beijos. Contudo, uma inquietante dúvida atormentava14

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-lhe o espírito. Teria sido para Sónia apenas uma fugaz aventura? Uma fraqueza motivada, quiçá, por alguma incompatibilidade entre ela e o marido? E se Júlio adiasse, por qualquer razão, a viagem ao Porto? Apesar de tantas perturbantes dúvidas, decidiu não lhe telefonar por recear que, ao fazê-lo, pudesse escutar um rotundo não. Preferia alimentar o sonho. Acreditar que lhe enviaria a mensagem a confirmar que estava disponível para o acolher nos seus braços. Ainda não era meio-dia de sábado quando o telemóvel de Martim soou. A tão ambicionada mensagem afirmativa de Sónia luzia no ecrã. Num instante, ultrapassando a velocidade permitida por lei, chegou ao destino, onde o amor enalteceria as estimulantes sensações de prazer. Subiu ao terceiro andar num ápice. Sónia esperava-o de roupão curto de cetim azul. Ao desapertar o laço do roupão, Martim verificou, para seu gáudio, que ela estava desprovida de roupa interior. Já na cama, após reiterados beijos e carícias, vogaram no paraíso da volúpia, até que os corpos exaustos e saciados se renderam ao cansaço. Entretanto, um perigoso vírus parecia querer alterar o quotidiano da humanidade. Embora houvesse na empresa quem só falasse no coronavírus, Martim ainda não dera grande importância à doença que proliferava numa terra de nome esquisito, nos longes da China, e se propagava à Europa. Há alguns anos antes, também na Ásia, ocorrera uma enfermidade a que se chamou de «gripe das aves», que diziam poder afetar o ser humano através do contacto direto com aves infetadas, vivas ou já disponíveis nos talhos para consumo humano. A princípio, deu pouca importância ao que se dizia sobre o perigo de contrair a doença. Porém, o receio de que essa moléstia pudesse saltar da China para os outros continentes causou mal-estar entre a população. A enxurrada de informação veiculada pelos órgãos de comuni15

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cação social sobre essa doença se poder tornar numa pandemia, as conversas entre os seus colegas e amigos sobre a hipótese de alguns deles serem infetados levaram-no a deixar de consumir o seu franguinho no churrasco. Na sua ementa, de carne passou somente a constar o bife de vaca e a carne de porco. Dieta em que persistiu durante escassos meses até se convencer de que podia voltar a comer frango, sem que daí viesse algum mal. A mesma atitude tinha agora em relação à doença designada de Covid-19. Aquilo, no início, soou-lhe a um número de código a que não deu grande importância. Assim que na rádio, na televisão, no jornal se referiam ao vírus, lembrava-se do que sofrera com a maldita crise aviária, e prontamente mudava de estação de rádio, de canal de televisão, no fundo virava a página por não acreditar naquele chorrilho de mau agouro. E porquê tal atitude tão despreocupada em relação ao perigoso vírus originado nas lonjuras do Extremo Oriente? Havia uma forte explicação para esse descuidado comportamento. Martim estava doidamente apaixonado pela mulher do seu patrão. Vivia obcecado por esse louco e escondido amor. No seu pensamento morava, exclusivamente, aquela doce mulher e nada mais lhe importava. Nos momentos de ócio, longe dela, Martim ocupava o seu espírito a lembrar a amada, quando lhe abria a porta de casa, meio despida, a coroá-lo de beijos e carícias, a ofertar-lhe o sexo quente, abrasador. O risco que corria por causa daquela relação que lhe dominava os sentidos era logo esquecido, assim que se afundava nos braços dela, e sentia o frenesi da concupiscência, o deleite dos seus beijos. Temia, todavia, que o patrão viesse a descobrir que andava com a sua mulher — perfídia que podia suscitar uma reação intempestiva, feroz e agressiva de Júlio, e o consequente despe-

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dimento da empresa, onde auferia um bom ordenado, por ter chifrado o patrão. Terça-feira, março de 2020. Martim, logo que saiu do emprego, apressou-se a ligar a Sónia. Deixou que a primeira palavra soasse do outro lado. Receava que fosse o marido a atender. O patrão havia saído de tarde para ter uma reunião com um fornecedor. A voz aveludada dela tranquilizou-o: — Preciso de te ver — disse num tom ansioso e imperativo. — Há uma semana que não estou contigo. Posso ir aí agora? Normalmente, ela rejubilava e quase gritava um impetuoso «Sim! Sim!», ou se a hora não era propícia, murmurava um desconsolado «Não». Desta vez, todavia, só surdiu um ensurdecedor silêncio. — Está? Está? — insistiu Martim, a impaciência a tecer-lhe rugas na testa. — Sim, podes vir amanhã por volta do meio-dia — disse ela, voz sumida de entusiasmo. — O Júlio parte para Londres amanhã de manhã. Vai estar fora durante dois dias. E desligou o telefone, com um tímido «até amanhã». Dois dias com ela! Martim quase explodia de alegria. Faltaria ao emprego só para estar com Sónia. Meteria férias. Sempre era por uma boa e deliciosa causa. Normalmente eram só fugazes horas na sua companhia, e sempre com o temor a fluir-lhe ao cérebro, não fosse o Júlio entrar e dar com eles nus na cama. Contudo, aquele «sim, podes vir» saíra frouxo, com pouca expressividade. Uma severa dúvida ensombrou-lhe o ânimo. Pressentia que algo errado se passava. Inseguro, associou à forma vacilante com que lhe falou como um prenúncio de uma iminente rutura. Teria ela decidido renunciar ao seu carinho por algum motivo que lhe escapava? Da última vez que estiveram juntos, Sónia pusera-se a falar de modo evasivo sobre a relação deles: talvez fosse hora de acabar; que não se sentia bem consigo mesma; que temia que o 17

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marido descobrisse que andava com o seu melhor colaborador; o escândalo que seria! Ele rogou, ajoelhou-se aos seus pés, pedindo que não o deixasse. Que faria tudo para continuar com ela. Chegou a sugerir que deixasse o marido e fosse viver com ele. Estava disposto a tudo, a perder o emprego, a procurar outro. O desespero terminou assim que o amor se sobrepôs às dúvidas e receios. Decidido a afastar para bem longe maus presságios, entrou no carro e meteu-se a caminho. Durante o trajeto, deu consigo a pensar que, talvez, quem sabe, o menor fervor na voz dela se devesse a uma indisposição, a uma noite mal dormida?… E animado por estas suposições, não tão desalentadoras como as que receara momentos antes, o seu pensamento focou-se nela, no sabor melífluo dos seus beijos, no corpo coleante e quente, nos arquejos que soltava na intensidade da cópula. Subiu as escadas a correr, dois degraus a cada passada, tomado de impaciência, com um imenso desejo de a abraçar, de a cobrir de beijos e afagos. Quando tocou à campainha, Martim ficou abismado com o que viu assim que a porta se abriu. Na semiobscuridade da breve sala de entrada, um vulto despontava ameaçador: rosto coberto por máscara e viseira; uma touca que escondia a cabeça e as orelhas; os óculos a ocultarem as sobrancelhas e a desfigurar a cor dos olhos; luvas cirúrgicas a cobrir-lhe as mãos; bata de brancura rutilante tapando o corpo até abaixo dos joelhos, pernas e pés isolados com plástico transparente. Só a voz inconfundível de Sónia lhe permitiu saber que era a sua querida amante, que o saudou com um distante «Olá». Ainda não refeito do susto, já Sónia lhe fazia algumas recomendações antes de entrar: descalçar os sapatos e colocá-los num saco; despir calças e camisola para lavar na máquina; higienizar as mãos com o gel desinfetante colocado sobre o móvel da entrada. Como medida de precaução disse-lhe, ainda, que teria de tomar 18

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banho e vestir o pijama que deixara sobre o móvel da casa de banho. Atónito com aquela insólita receção, Martim não sabia o que dizer. O que lhe teria passado pela cabeça para se vestir de maneira tão ridícula? De súbito ocorreu-lhe uma possível explicação para ela aparecer trajada daquela maneira: seria a sua atitude causada pelo medo de ser atingida pelo vírus tão badalado nos últimos dias? Sem saber como reagir, Martim conformou-se e obedeceu às instruções transmitidas como se de repente se tivesse transformado num autómato. Nunca lhe passara pela cabeça que a amante se comportasse daquela maneira tão tresloucada com as notícias sobre o vírus. Uma semana antes, recebera-o seminua, com desenfreado carinho! O que é que lhe teria dado para tão drástica mudança de conduta? Teria enlouquecido por receio desmesurado de ser infetada. Mas ele sentia-se bem, saudável… No patamar, em trajes menores, calças e camisola nas mãos, Martim escutou o ruído de uma porta a abrir atrás de si. Num impulso inconsciente, sem cuidar de preservar o anonimato, rodou a cabeça para ver quem era. Com o olhar apontado ao seu traseiro, um rapaz de brinco na orelha, cabelo arroxeado, mirava-o com desmedido atrevimento. Era só o que lhe faltava, pensou. E exasperado, atirou: — Ouve lá! Nunca viste um homem em cuecas? E se te metesses na tua vida! Imediatamente, o rapaz encarreirou escada abaixo, sem antes resmonear um azedo remoque num tom de voz efeminado: «Que mal-educado, credo!» Martim encolheu os ombros num gesto de enfado. Estava à espera de outra receção por parte da amante que não aquela tão fria e distante, e ainda tinha de aturar o descaramento daquele inopinado intrometido.

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Procurou refrear a sua indignação. Até podia compreender que, face às últimas notícias que anunciavam um horrível vírus que se expandia pela Europa e pelo mundo, que era natural que ela tomasse algumas previdências com receio de ser contagiada. Mas não estaria a ser excessiva nos cuidados a ter? Obrigá-lo a despir-se no patamar do prédio. Aparecer mascarada como enfermeira de hospital em serviço nos cuidados intensivos! Se calhar fez de propósito para o embaraçar? Normalmente, Sónia era danadinha para lhe pregar partidas. E veio-lhe à memória aquela vez que lhe entreabriu a porta e disse-lhe que teria de se ir embora, que o Júlio não tardaria a chegar. Uma tremenda desilusão tomou conta dele. Já desesperava quando de repente ela o puxou para dentro de casa. Para sua surpresa, descobriu que sob a transparência da camisa de dormir, se agitava o seu corpo desprovido de roupa interior, com o novelo escuro e triangular da púbis a despontar. Uma doce visão que lhe agitou o desejo. Porém, ao entrar na sala de estar, depois de ter tomado banho e vestido o pijama que devia ser do marido, Sónia ainda não se despojara dos adereços protetores do propalado vírus. Aborrecido com aquela suposta brincadeira, Martim fez uma careta de desaprovação. Com um sorriso contrafeito, disse: — Não achas que já chega de brincares comigo? Sónia encarou-o com tristeza. Dos seus olhos azuis não raiou o brilho usual em situações semelhantes: — Eu não estou a brincar — ripostou, ar sério, convicto. — Tu nem imaginas o que nos pode acontecer com esse mal que já chegou ao nosso país. Segundo dizem, é um vírus perigoso e altamente contagioso e mortal. Tenho medo, muito medo, que me pegues a doença ou que eu ta transmita. — Mas eu não tenho os sintomas típicos dessa doença, segundo corre na imprensa: febre, dor de cabeça, dores de gar20

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ganta. Estou tão saudável como da última vez que fizemos amor! Ao dizer isto, uma pertinente dúvida agigantou-se nele. E se a atitude dela significasse que a contagiante era ela e não ele? Sem a querer ferir com a sua suposição, quis certificar-se da sua condição, e com voz carinhosa perguntou: — E tu, como te sentes? Será que tu… — Eu também me sinto bem. Mas… e se ambos formos assintomáticos?! Ouvi dizer na tevê que há pessoas que não têm sintomas, mas que podem estar infetadas e transmitir a doença aos outros. Fez-se um silêncio pesado, constrangedor. Martim a ruminar uma maneira de lhe dar a volta. De a convencer que não havia nada a temer. Estar com ela vestida daquela maneira era-lhe insuportável. Não sentir a sua sedosa cútis, a viseira a impedir de a beijar, de sentir o gosto dos seus carnudos lábios. Pior ainda: ter de suportar o odor insuportável a polipropileno. Enfim, era mais o desconsolo do que o deleite. Por fim, quebrou o silêncio. De voz meiga, apelou ao seu bom senso, tentando persuadi-la a abandonar aquela caricata atitude: — Não achas que estás a ser pouco razoável? Pelo que consta, este vírus ainda mal se manifestou por cá. Há poucos casos, que se saiba, e a mortandade é zero. Além de que pouco se sabe sobre a doença, cujos sintomas são muito parecidos aos de uma simples gripe. E entre tantos milhões de pessoas, por que carga de água havia logo de nos atingir? Se estamos os dois saudáveis… Em vão. Sónia mantinha-se teimosamente renitente em ceder à vontade de Martim de se livrar de todo aquele plástico que rangia ao mínimo movimento quando ele a abraçava. O receio dela de ser infetada era mais forte que o apelo da libido. — Continuo a achar que o melhor é não arriscarmos. Se não quiseres ficar comigo assim, talvez seja melhor voltares quando tudo isto passar. Eu compreendo a tua insatisfação. E podes acre21

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ditar que o meu desconsolo é tão grande quanto o teu. Além do desconforto que me provoca estar assim vestida. — Mas isto pode demorar meses — exclamou Martim, prevendo largo período de abstinência. — Pois, tens de ter paciência. Eu também vou sofrer muito com este afastamento. Mas, podes crer, que quando tudo voltar ao normal, eu vou querer em dobro, em triplo… Promessa que não lhe amainou o desencanto. Se uma semana longe dela constituía um suplício, esperar um mês, dois meses, sabe-se lá quanto, seria insuportável… Estavam neste propósito, já quase a desistirem dos seus intentos, face ao mal-estar sentido por ambos, quando escutaram a porta que dava para a escada a abrir. De súbito, quase num pulo, Sónia afastou-se de Martim, sem antes lhe ciciar ao ouvido uma alarmante notícia: «Só pode ser o meu marido!». «O meu patrão!», exclamou Martim para consigo. Imediatamente, um pavor imenso assaltou o espírito de Martim. Ficou sem reação, aterrado, sem saber o que fazer. A voz de Sónia brotou como um trágico apelo, tirando-o da letargia: «Esconde-te atrás da cristaleira, que eu depois aviso-te, quando o caminho estiver livre para saíres, vá despacha-te», ordenou sacudindo-o do marasmo. Quando Júlio entrou e viu a mulher naquele destempero, abriu um sorriso irónico, sacudiu a cabeça em sinal de reprovação, e disse: — Não me digas que estás com medo de que eu te pegue o corno vírus — disse Júlio face à maneira risível como ela estava vestida, sem conseguir conter uma larga gargalhada, com o trocadilho que fizera com a designação do microrganismo infecioso. — Pois vai-te habituando até que façamos o teste e dê negativo. Todas as cautelas são poucas, não achas? Já agora, o que é que aconteceu? Não ias a caminho de Londres?

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— Olha, cancelaram o voo. E ainda avançaram que não sabem se haverá avião amanhã. Logo se vê o que farei — E com voz áspera a ressoar a forte censura, disse: — Vou ao quarto mudar de roupa, e tu tira-me essa farpela, pareces uma astronauta. «Já não sei o que hei de fazer! Esta mulher está cada vez mais hipocondríaca», resmungou para consigo. Assim que o marido entrou no quarto, Sónia, aos tropeços, foi buscar os sapatos e a roupa do amante que tinha metido no saco da roupa para lavar. Com extremo cuidado para não fazer o menor ruído, encostou a viseira ao rosto de Martim, e segredou-lhe ao ouvido: «Vai-te embora, mas devagarinho, para a porta não chiar.» De pijama às riscas azuis e brancas, calças e camisola numa mão, sapatos na outra, Martim desceu as escadas numa louca correria, meteu-se no carro e arrancou a caminho de casa. Um dia após a fuga do nosso herói da residência de Sónia, a empresa de Júlio enviava os colaboradores para casa em regime de teletrabalho. O governo acabava de decretar o estado de emergência, limitando a circulação na via pública às funções essenciais à sobrevivência das pessoas, e a exercer as funções profissionais a partir do domicílio. Limitação que constituiu um duro revés para Martim. Ficar encerrado em casa, sem poder encontrar-se com a sua amada. Na manhã seguinte à debandada dos trabalhadores, Martim tentou ligar-se online com o departamento de marketing e publicidade. À hora do almoço, depois de receber as primeiras diretivas de como podia e devia funcionar, encomendou uma piza. Ao toque da campainha, colocou a máscara na cara e abriu a porta ao rapaz da pizaria que também usava máscara. Martim pagou a piza e despediu-se do rapaz. Este, sem que nada o fizesse prever, antes de começar a descer as escadas, teve o arrojo de lhe dizer, em tom de chacota, entre duas desbragadas gargalhadas: 23

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— Epá, então já não usas o pijama do vizinho? Era bom, não era, mas acabou-se. E pôs-se em fuga, escadas abaixo. Sem reação, Martim apenas teve discernimento para reparar no tom arroxeado do cabelo e no brinco na orelha. Subitamente fez-se-lhe luz: era, nem mais nem menos, o mesmo que o havia visto em cuecas à porta de casa da Sónia. Danado com o atrevimento do rapaz, Martim deitou a correr atrás dele para lhe assentar um murro na cara. Mas já não foi a tempo.

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anhã primaveril, amena. Um doce apelo soa no bosque. — Olá! Olá! Chamamento persistente que despertou Rufino do revigorante e aprazível sono sob a sombra de uma bondosa árvore. — Olá! Olá! — tornou a melíflua voz. Ainda ensonado, mas invadido pela natural curiosidade, olhou em redor para descobrir quem seria que o saudava. Não divisou ninguém ao redor. Rufino havia feito uma pequena paragem com o intuito de descansar um pouco, após o esforço pela costumada corrida que fazia naquele ambiente puro. Porém, embalado pelo ambiente aprazível, pela quietude da natureza envolvente só quebrada pelo pipilar das aves, acabou por adormecer. Estava só. Pelo menos assim o julgava. Apenas rodeado de luxuriante paisagem. Uma multiplicidade de flores, plantas e frondosas árvores com os seus rugosos e acastanhados troncos. Vegetação densa que o isolava da agitação urbana. Um espaço cuja luz dos raios solares se esvaía na copa das árvores, atenuando o brilho das cores da natureza. Agora aquela voz perturbante, vinda de algures sem que corpo algum, aparentemente a suportasse, atraía a sua atenção. Para ver melhor levantou-se para tentar descobrir quem era? Debalde! Continuou sem saber a origem daquele enigmático e vago “olá!” — Olá! — reiterou a meiga e misteriosa voz. Talvez esse “olá” viesse do som das árvores, imaginou Rufino. Como se as folhas das árvores, agitadas pelo vento, pudessem imitar a voz humana. Estava claramente a exagerar. Um excesso desmedido próprio de ingenuidade infantil. — Sou eu! Não me conheces? 25

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Afirmação que o confundiu ainda mais. Na realidade, era mesmo alguém que tentava comunicar com ele. Mas de onde? Quem? — Se não te conheço! Eu nem sequer te vejo! — Estou mesmo atrás de ti — disse a vozinha tremelicando nas sílabas, denotando alguma impaciência, enquanto a folhagem de um velho medronheiro se agitava, fustigada pelo vento. Devagar, lentamente, Rufino voltou-se, deu uns passos ao acaso tentando descortinar quem lhe queria falar, verificando cuidadosamente cantos e recantos esperançado em ver alguém escondido a coberto de alguma árvore, zombando descaradamente da sua incapacidade para descobrir a origem daquela voz. Apesar da pertinaz procura não descortinava ninguém em derredor! Desolado, desconfiando de que estivesse a enlouquecer, sentou-se sobre o solo atapetado por folhagem seca, encostando as costas no tronco do medronheiro, que parecia abraçá-lo enquanto descansava. De súbito, quando já cerrava os olhos, teve a sensação de que os estalidos das folhas do medronheiro sacudidas pela aragem se pareciam com o som das palavras. — Olá amigo corredor dos sábados de manhã. Escusas de procurar mais por mim. Sou o medronheiro que te sirvo, neste momento, de apoio ao teu repouso e o culpado da tua incredulidade. — Não sabia que as árvores falavam! — retorquiu Rufino, num impulso, sem se dar conta de que estava a falar com um medronheiro! — E não falam! O que escutas são as minhas folhas que batidas pelo vento emitem sons que se assemelham a palavras; vocábulos que só quem tem um coração generoso como o teu é capaz de decifrar.

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— Mas o coração não tem ouvidos! — contestou aturdido, com diálogo tão improvável e caricato. — Onde já se viu folhas e coração a comunicarem entre si, que disparate!... — Não é assim tão estranho como tu possas supor — interrompeu o medronheiro abanando abruptamente as folhas em sinal de reprovação. — Quando tu me acaricias com o teu olhar, o teu coração sente, pulsa, emociona-se, e através do teu sorriso, da candura com que afagas o que te rodeia, refletes emoções. Nesses momentos, o meu amigo vento dá-me uma preciosa ajuda, agitando os verdes segmentos, imitando o som das batidas do teu coração que nos transmite o que sentes. E isso provoca uma telepatia entre nós e os humanos, tornando possível o diálogo. — Mas, por que é que só hoje fui tocado por esse diálogo entre as tuas folhas e o bater do meu coração? — questionou enquanto beliscava a face com receio de que estivesse a sonhar ou a ter alucinações. Mas a árvore continuava nas suas explicações perante a sua intensa perplexidade. — Porque, embora tu te emociones com a minha venturosa natureza sempre que passas por mim, vens a correr, sem realmente te aperceberes ou sentires a especial e particular emoção com que te sigo. E se não te falei antes, tal deve-se ao facto de hoje vires em passeio, sem a companhia da tua amiga. Aproveitei esta grata ocasião, em que a mata está deserta, para agradecer o teu gesto, daquela manhã que fizeste uma pausa para chamares a atenção da tua amiga para a minha beleza. E emocionei-me, ainda mais, quando vi o teu contentamento ao provares os meus medronhos e os teres partilhado com a tua amiga. A mesma que beijaste junto ao meu surpreendido tronco. Nesse dia senti o teu coração bater mais forte do que nunca. E gostei tanto, muito, de me teres escolhido como abrigo para a beijares. Senti um desejo enorme, uma vontade tão grande de experimentar, também, os teus doces

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