Contos que vos conto

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edição: Edições Vírgula®

(chancela Sítio do Livro) que vos conto autor: Emanuel Góis título: Contos

Patrícia Espinha Patrícia Andrade desenho de capa: Domingos Mota paginação: Paulo S. Resende revisão: capa:

1.ª edição Lisboa, abril 2017 isbn:

978­‑989-8821-44-7 421880/17

depósito legal:

© Emanuel Góis

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt


emanuel gรณis

contos que vos conto



Prefácio Sempre conheci o Emanuel e já lá vão quase 4 décadas, como homem de letras. Facetado jornalista, o que lhe deu balanço para outros voos… Homem de leis, com prestígio das ficções jurídicas que construía nos direitos e liberdades que patrocinava. “Algures no Tempo” fez-se a poesia… “Momentos” há que nos fizeram sonhar a realidade de um poema repartido na maturidade do sentimento… Agora “Conto que vos Conto” que a vida é marcada por vivências da própria vida, que por vezes ultrapassa o imaginário para voltar àquela realidade que se sentiu. Tudo isto de rica forma simples e cheia de ânsia de conversar, está aqui! As vivências acumulam o que se convencionou de chamar competências. O Emanuel tem uma vida repleta dessas magníficas competências… Chamar-lhe-ia de fantásticas se adoptasse a moda das palavras… bastará ler

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para entrar num mundo que afinal é o de todos nós… somos cativados pelo que nos rodeia e nem sempre atentamos da forma que agora nos é contada. O que nos é dado a ler implicará para o seu autor uma enorme responsabilidade. Cria vontade de mais… nesta linguagem humana e normal… de quem busca uma originalidade assente na vontade de conversar… Um punhado de histórias, que prendem, com o apetite da página seguinte. Ironia presente nos momentos políticos, que bem conhece. Fica-se com a sensação da realidade da escrita, onde decerto a ficção terá encontrado algum espaço, obviando a coincidências! Contrapõe com arte pinceladas românticas com reais vivências bélicas. Daí a visão que toca, verificando que as conquistas de hoje não seguem a bala, mas a tomada por poderes privados do que ainda respirava a todos! Nunca nos cruzamos pelos caminhos judiciais. O Emanuel sempre foi devoto da “rive gauche”, onde não ancorei! Mas sei… Daí não ser surpresa, por exemplo, que no fenómeno judicial, em particular na vertente da decisão, ter encontrado em “A Decisão” o equilíbrio da verdade. A dificuldade, por vezes raiando o drama, do decisor “… não é uma decisão fácil de tomar…”. Com toda a sua envolvência,

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está conseguido. Sente-se que está para além das palavras! Está ali com particular destaque de que o acto de decidir, sendo solitário, não pode nunca ser desacompanhado pelos entendimentos dos interlocutores processuais e muito em particular pelos que, cientes do múnus, são chamados a emitir entendimentos. Julgar é isto. Foi saboroso perceber pela mão do autor que, afinal, é por aqui! No mais brilhante o acto de sisudez patente naquele advogado, decalque da forma como o autor também soube pautar aquela outra profissão. Em suma e como disse o enorme também contista Drummond de Andrade “Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante.”. Pedro Mourão Juiz Desembargador

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Porque escrevo? Ora, porque gosto de conversar. o autor



EU VI MORRER DAVID

I

Jorge olhou o relógio que, pausadamente, dava a meia-noite. Era um relógio de parede demasiado grande para ocupar um lugar dentro daquela sala tão pequena. A seu lado achava-se um retrato, talvez do seu dono. Nele via-se um homem de longas barbas brancas, de uma acentuada calvicie e com uma ligeira cicatriz no lado esquerdo da face. Talvez já não vivesse, ao contrário do relógio que continuava a marcar o tempo para aqueles que, como o seu dono, um dia deixariam de o ouvir. Era fantástico como relógios feios como aquele faziam girar o mundo até ao dia em que, como o mundo, parariam.

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Enquanto sentia fluírem estes pensamentos, Jorge pegou novamente no copo com mãos frias e trémulas, desejando, ao fazê-lo, apertá-lo tanto que lhe fizesse sentir o sangue escorrer pelas palmas das mãos, tentando dessa forma absurda encontrar, quem sabe, um pouco de coragem e paz para não mais reviver o passado. Vinha sentindo que aquele o atormentava a todo o momento desde que deixara de sonhar. Desejava que naquele momento, por mais breve que fosse, tivesse um minuto daquela alegria que conhecera no início da sua adolescência. No meio de um trago do vinho branco que tinha pela frente, recordou que desde então a sua vida começara a ser diferente. Era no tédio que passara a viver. Tinha deixado de brilhar para ele a chama da felicidade e da esperança própria da juventude. Passou a ver-se envolto num corpo sem vida, sem vontade. Sentia-se longe, num mundo irreal, parecendo mais um farrapo humano, ludíbrio do destino. O seu espírito acomodava permanentes inquietações, encontrando-se numa constante miscelânea de incómodos pensamentos. A guerra. Sempre ela e a morte. Não a poderia esquecer por mais que tentasse. Sempre as duas unidas, sempre as duas de mãos dadas como duas crianças que brincam, ingénuas e inocentes.

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Ela fora o seu refúgio naquela altura em que o ódio e o desânimo se apoderaram do seu corpo, da sua alma. Quisera viver somente para a guerra. Curiosamente, sabia-o, apenas por cobardia. Não desejava matar, nem tampouco morrer. Como o seu corpo pedia alimento, assim o seu espírito lhe pedia a guerra.

II

Haviam já passado mais de dois anos desde que se afastara para bem distante de tudo e de todos aqueles que fizeram parte da sua infância. Mas, não era essa ausência que o motivava para deixar a guerra. Odiava-a, mas, paradoxalmente, era isso que lhe dava, precisamente, forças para a enfrentar, para viver com ela. Enquanto pousava os cotovelos na mesa e passava os cabelos por entre os dedos das mãos, vieram-lhe à memória as longas conversas que tivera com David, o seu melhor amigo, mas tão diferente dele na forma de encarar a situação que diariamente viviam lado a lado naquele quartel edificado no meio daquele mato.

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Para David, Jorge não passava de um louco, de um obcecado. Bem tentava Jorge explicar-lhe, fazer-lhe ver que não tinha ninguém, que era ali que se sentia realizado como homem, que era ali, ao fim e ao cabo, a sua vida. Em vão conseguia fazer valer os seus argumentos por mais que se esforçasse. Amiúde, ouvia as respostas de David de que as suas desculpas para justificar ali a sua presença mais não passavam de fingida valentia e que, tal sentimento, apenas e só, contribuía para causar nos outros companheiros tristeza e amargura. E sem esconder alguma irritação, chegara mesmo a dizer-lhe que talvez até se alegrasse com a sua morte. Naturalmente que Jorge, veemente, negou. Mas David voltara-lhe as costas. Ele, o melhor amigo que encontrara naquelas paragens longínquas. Reconhecia, porém, que era bem diferente de si. Desfiando os pensamentos e indiferente ao movimento de quem entrava e saía daquele bar já quase vazio, sentia que ao se lhe avivarem as recordações tinha de lhe dar razão agora. Na verdade, viera procurar a felicidade e alegria na amargura e na morte dos homens bons como David.

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A vontade de ir para a guerra fora mais forte e desde essa altura passara a ser esse o alimento diário do seu espírito. Não tinha ninguém. Escolhera-a e, com isso, se conformara. Mas David tinha mulher e um filho. Para ele, a guerra em que se vira obrigado a participar não lhe interessava e estava a roubar-lhe os melhores anos de vida. – Já quase passaram dois anos que não os vejo – lamentava-se muitas vezes. Jorge ouvia-o falar frequentes vezes do filho e contar os dias que faltavam para o regresso a casa. De forma entusiástica, nalgumas das noites mais calmas debaixo do alpendre da caserna, lá falava do seu menino loiro como ele, e tão traquino, que aos oito meses tivera já de apanhar dois açoites, na fralda, claro, fazia questão de esclarecer. Riam de gosto. Falava da mulher e igualava-a a uma deusa. Não se cansava de lhe elogiar a beleza, chegando ao ponto de afirmar que era a mais bela mulher do mundo. Jorge ria a bons pulmões, mas David continuava sempre sério. Uma vez, pediu-lhe que mostrasse a fotografia dessa mulher tão endeusada.

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Respondeu-lhe que não, que não a mostrava a ninguém com receio de que alguém enlouquecesse. Ao ouvir isto, Jorge chegou à conclusão de que David amava loucamente a mulher e que ela devia, de facto, ser bastante bonita.

III

E chegou o mês de Outubro. Tarde escura aquela. As negras nuvens tapavam o céu azul e, apenas, por escassos momentos, deixavam ver a luz amarelecida de um sol doentio. Poucas horas faltavam para escurecer. Fora tudo tão rápido que Jorge julgou que a terra se lhe abria debaixo dos pés. Tinha sido ferido numa perna, junto ao joelho, mas sem gravidade. Olhou em redor e viu aqueles corpos dos seus companheiros estendidos no meio de um mar de sangue, uns agonizando e gritando roucamente por ajuda, e outros já imóveis, a quem a morte não perdoou. Arrastando-se como podia, Jorge tentou encontrar David, pois foram poucos os companheiros que

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se aproximaram. Chamou por ele, mas respondeu-lhe o silêncio. Por fim, encontrou-o moribundo e com nítidas marcas de sangue no peito que encharcavam o camuflado que vestia. Vivia, mas a sua vida estava contada. Vários projécteis rasgaram-lhe a carne sem piedade. David agonizava e continuava a perder muito sangue. Jorge pegou-lhe nos braços. Nesse momento um arrepio percorreu-lhe o corpo. David enganara-se ao dizer que talvez se alegrasse com a sua morte. Chorou e, pela primeira vez, começou a odiar a guerra. Sim, ela era cruel, ignóbil, desumana. Ela matava. Roubava aqueles como David, amigo e companheiro de guerra. Não, ela não era já o seu refúgio e começava a ter medo, esse medo de sofrer como aquele que tivera quando Maria partiu. Promessas vãs de amor fizeram, afinal. Quis isolar-se, ir para longe de todos. Para um mundo diferente. E quis servir o País, alistando-se como voluntário. Estava-se em guerra e julgou ser necessário o seu contributo. Partiu para África. Talvez por fraqueza e medo, admitia-o. Amores proibidos e infortunados de adolescentes. Maria fora tudo para ele. Jurou amá-la pela vida fora e cumpriu a promessa.

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Olhou novamente para David e David olhou para ele. Pediu-lhe, então, para lhe desabotoar a camisa e retirar a fotografia. Jorge fez-lhe a vontade e, quando ia para lha dar, segurando já sem forças o seu braço, David perguntou-lhe se era seu amigo. Surpreendido pela pergunta, Jorge disse-lhe que fizera uma pergunta tola. Sorriu. Sorriso esse que mais não era do que um esgar dorido. Entregou-lhe a fotografia, fazendo-lhe prometer que cuidaria da mulher e do filho. Jorge olhou a fotografia salpicada de sangue, uma e mais uma, duas, três e sabe lá quantas vezes mais. Julgou sonhar. Não podia acreditar. Ia a dizer qualquer coisa a David, mas este já não o escutava.

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JOÃO BRITO

I

Pedro Silva conheceu João Brito quando ainda eram crianças. Moravam perto um do outro, sensivelmente a uma distância que não ia para além dos cinquenta metros. Haveria talvez entre ambos uma diferença de dois ou três anos entre eles, sendo Pedro mais novo, mas para brincar isso não era obstáculo para eles. João Brito era oriundo de família bastante modesta e não fizera mais do que a antiga escola primária. A sua casa, embora não se encontrasse recheada de objetos de valor, não deixava de demonstrar enorme asseio, sempre arrumada, até porque a mãe, a dona

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Cassilda, era aquilo a que se chamava e ainda hoje se chama de “doméstica” e era bem ciosa das suas coisas. E ai deles se tocassem ou mexessem no que quer que fosse. Açoites no rabo não faltariam ao João, claro que Pedro estava a salvo. Para ele, sempre havia um papo-seco com margarina, que manteiga, naquele tempo, poucos se podiam dar ao luxo de a comer. Nas muitas vezes que Pedro foi a sua casa sempre encontrava motivo para brincadeira dado que existia um quintal com dimensões razoáveis que até dava bastante jeito. Mais tarde, já adolescentes, haveria de o ajudar a escrever cartas à sua amada. Em suma, João Brito era, pode dizer-se, um excelente rapaz e amigo de todas as crianças e jovens que residiam naquele bairro.

II

Cresceram, assim, juntos, até que já na adolescência os convívios entre eles começaram a ser mais espaçados no tempo, muito embora, de quando em vez, se encontrassem para aquilo a que chamavam umas “patuscadas”

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ou para a ida a uns bailaricos que, naquele tempo, essa coisa de discotecas era só para gente fina. E, claro, a tal ajudazita a escrever as cartas para esse amor de João que Pedro nunca chegou a conhecer, nem sequer por fotografia. Aliás, neste particular, sempre lhe fizera alguma confusão, senão mesmo estranheza. Por que se limitava o seu amigo a escrever cartas e não pegar no pé, como se diz, e pôr-se a caminho? De facto, se a miúda era de Lisboa, ali bem perto, por que raio escrevia ele as cartas? Bom, foram coisas que nunca lhe explicou e nem Pedro se atreveu a perguntar, apesar da confiança e amizade que entre eles existia. Contudo, pelo conhecimento do que diziam as cartas, as quais, algumas delas, até já as conhecia de cor, e pelos desabafos de apaixonado que escutava com paciência e muito agrado, sabia que João Brito sentia o que dizia. Só que facilmente se apercebeu de que se tratava de uma paixão não correspondida, daqueles amores platónicos dos adolescentes. No meio de tudo isto, sempre ia valendo a ida às colectividades com uns dinheiritos que os pais lhes davam. Chegados aos sábados à noite ou às matinés de Domingo, lá iam dar um pezinho de dança ou, então, a um “cinemazito”, que também apetecia de vez

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em quando, tanto mais que os filmes e os artistas da época eram apelativos. Teria Pedro já os seus dezasseis anos quando deixou de se encontrar com alguma regularidade com João a não ser quando ia visitar os seus pais – nessa ocasião tinha ido estudar para o Porto – deixando de viver em casa daqueles. Mas, sempre que tal acontecia, de imediato o seu amigo encontrava nele um grande confidente. De facto, assim que tinha conhecimento da sua presença, logo o procurava para estarem juntos, aproveitando essas ocasiões para contar as suas aventuras e desventuras e, claro, uma vez mais lá vinha a sua desdita amorosa do tal amor que, pelo visto, já nem as cartas restavam. Mas, o que era um facto é que Pedro Silva, à semelhança de anos anteriores, nunca ficava indiferente aos desabafos e lamentos, de tal sorte que, até sem querer, acabava por se ver envolvido, e ambos acabavam por partilhar alguns momentos mais nostálgicos. Podiam existir outros temas ou assuntos, mais ou menos importantes, mas a sua estória maior e aquela com que sempre terminavam os encontros e conversas era a paixão que teve pela Madalena. No pensamento de Pedro, a ideia que lhe surgia era que, na verdade, foi mesmo fogo que pegou naquele rapaz.

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O entusiasmo que empregava na sua narrativa fazia prender Pedro Silva à cadeira do café onde tinham lugar esses encontros. Nem mesmo a “Laranjina C” ou o “Canada Dry”, que eram moda na altura entre os refrigerantes, os bebia frescos, tal o entusiasmo que empregava, esquecendo-se de que os tinha na sua frente. Com efeito, não bastava já o calor dos dias, como ainda o que o João Brito emprestava à sua forma peculiar de contar o seu desamor para não beber um bom refresco. Segundo lhe contara, foi aquilo a que se chama amor à primeira vista, embora isso nos tempos actuais já não seja tão vulgar. Naquele tempo nem televisão a cores existia, e, mesmo a preto e branco só alguns cafés e colectividades as possuíam. Hoje, os skipes os smartphones e toda essa tecnologia já permitem primeiro conhecer à distância e, depois, se valer a pena, continuar. Valia-lhes umas cabinas telefónicas do tipo inglês e, mesmo assim, sempre eram precisas umas moeditas trocadas, que para pouco tempo de conversa, sempre dava, já que eram umas autênticas máquinas devoradoras. Mas, no caso de Pedro Silva, vivendo fora de casa dos pais – a necessidade sempre aguça o engenho – aprendeu uma forma de telefonar à “borla”. E dava resultado.

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Com um alfinete atravessava o fio preto que ligava a caixa ao telefone, propriamente dito, e nessas caixas também pretas e feitas de um material áspero e rugoso que não sabia qual era – nem nunca lhe interessou saber –, e que precederam outras então mais modernas de alumínio, cada vez que aparecia o sinal para colocar mais moedas, riscava com o alfinete na caixa duas ou três vezes e o efeito era como se caíssem as moedas. E, claro, é escusado dizer que aquela cabina, nesses dias, não dava lucro.

III

Pedro Silva deixou de ver João Brito e saber dele talvez já estivessem passados uns quarenta anos. Não foi fácil enfrentar o embaraço que a situação lhe causou naquele seu regresso, por dever, à terra que o viu nascer. Sem qualquer vergonha aceitou que as lágrimas lhe corressem pela face e, por momentos, não fez qualquer esforço para impedir o choro silencioso que o invadiu. Bolas, sempre era o pai de um amigo.

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Como não tinha lenço, serviu-lhe a manga do casaco, como acontece nestas alturas, para assoar o nariz. Tirou os óculos e com a palma da mão lá limpou o resto das lágrimas que ficaram entre as pálpebras. Apesar de não ser muito destas coisas que o perturbavam bastante, afastou-se dos restantes acompanhantes e foi dar uma volta pelas campas, já que para além de existir alguma arte, também serve para muitos, até na morte, ostentarem a sua riqueza e poder, como se na vida, para alguns, isso já não tivesse bastado. Por essa razão Pedro nunca perfilhara a ideia dos que apregoam que quando nascemos e morremos todos somos iguais. Uma treta, pensou. Nesse estranho deambular por entre outras tantas sepulturas que ali se encontravam, uma houve que lhe chamou logo a atenção. Parado, olhou uma vez, e outra e outra. Já com aspecto de abandonada – embora viesse depois a saber que se tratava de campas perpétuas muito em uso antigamente por parte das famílias que as adquiriam às Câmaras Municipais –, leu na lápide que a encimava: João Brito – Nascido a 15 de Fevereiro de 1947 – Falecido a 28 de Junho de 1983.

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Obviamente, ficou espantado com tal descoberta e, terminada a cerimónia, dirigiu-se à secretaria e confirmou a sua suspeita. Aquela campa era do meu amigo João Brito. C’um raio. Trinta e seis anos... O que teria acontecido?!

IV

Pedro Silva não esperou pela resposta, sabendo que a não podia ter. Rapidamente, entrou no carro e de imediato tomou o caminho para o local onde, em tempos, toda a rapaziada da sua idade se costuma encontrar para conviver, na esperança de encontrar alguém que por ali ainda vivesse e fosse do seu tempo, que isto de contar os anos, já se haviam passado muitos. – Olha quem ali vem. O nosso doutor. Então rapaz, há quanto tempo não te via. Que é feito de ti? Que fazes por estas bandas? Tás cá com uma barriguinha, vai lá vai, pá... – e num acto contínuo lá lhe deu umas palmadinhas na barriga enquanto rematava aquela efusiva saudação: – Dá cá um abraço, meu velho. Pedro quase nem teve tempo para respirar.

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Marinho, para além daquele “disparo” de perguntas, fê-lo ao mesmo tempo que o abraçava com força pela cintura e o levantava do chão. Nada que os seus noventa quilos o tivessem assustado. – Como vais Marinho? Então ainda estás por aqui? E o resto da rapaziada? –  Desapareceram quase todos. Olha, vamos ali para a mesa, que isto em pé não dá muito jeito e depois destes anos temos de desenferrujar a língua. – Dona Odete, traga mais uma mini e tu, Pedrito, o que é que bebes? Vai uma mini? – Não, Marinho. Bebo um café. – Dona Odete, mais um café. – Então rapaz, conta-me coisas. Que tens feito? Olha, eu pouco tenho para contar. E sem esperar pela resposta: – Tive um acidente no trabalho (sabes que a estiva naquele tempo era dura, não é nada como nos dias de hoje, tudo à máquina). Antigamente, era à mão e os lingrinhas não punham lá o cu. Como é que julgas que arranjei este corpinho? Só que aos 50 anos fui reformado, o meu filho foi para a Suíça e eu para aqui estou com a “velha”! E, dando-lhe uma palmada suave nas costas, continuou: – E tu, conta lá, que tens feito?

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Ainda atónito pelo que se passara momentos atrás e com a recepção feita pelo Marinho, perguntou de imediato: – Que aconteceu com o João Brito? – O João? Eh pá, há quanto tempo é que isso foi! Por onde tens andado? Pisgaste-te quando tiraste o curso e nunca mais apareceste por cá. Então não soubeste? Naturalmente a pergunta não fazia sentido, mas mesmo assim, respondeu: – Não, não soube. – Olha, admira-me, porque vocês eram bastante amigos. Mas o João morreu já vai aí para... – olhou para o tecto, bebeu um trago da cerveja, fez umas contas de cabeça e, olhando-o, disse: – Já vai aí para uns bons 40 anos… – Sim, sei. Acabei de ver a lápide no cemitério. Estive lá há pouco num funeral. Marinho, ainda não refeito do facto de Pedro ter dito que não soubera da morte de João, insistiu: – Mas não sabias mesmo? – Não, não sabia, garanto-te. Novo trago e Marinho lá contou: - Oh, pá, foi um grande choque para toda a malta aqui. Como sabes, os pais do João morreram, praticamente, um a seguir ao outro. Como te lembras, já eram velhotes. – Sim, sei – interrompeu – mas continua.

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– Pois, o nosso João, logo a seguir foi viver para Lisboa. – Espera, foi viver com uma miúda... – Nada disso! – atalhou Marinho ao mesmo tempo que lhe dava um pequeno safanão no ombro. – Não? – Não, já te disse. Embora algum tempo antes da sua morte tivessem começado a correr alguns rumores... o Trinitá, lembras-te dele, daquele “ganda cóboi”? Vendo-o acenar a cabeça, afirmativamente, continuou: – Pois o Trinitá apareceu aqui uma noite na colectividade e para quem o quis ouvir, disse que tinha visto o João lá por Lisboa a entrar para um bar de homossexuais. E sabes como é, daí a um bocadinho já toda a malta sabia. – Mas, diz-me lá Marinho, vocês nunca mais o viram? – Não pá, só soubemos dele pelo Trinitá e quando foi o funeral. – Mas ele morreu onde? – Em Lisboa, mas como tinha cá a campa da família, veio para cá. – Tudo bem, mas de que morreu ele? Acidente, cancro...? – Não pá! – Marinho bebeu novo gole, abanou a cabeça e olhando para Pedro, respondeu: – De sida, meu doutor, de sida... – e repetia, ao mesmo tempo que abanava a cabeça. Foi como se um raio o tivesse atingido.

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Num gesto brusco que até assustou Marinho, Pedro Silva arrastou a cadeira, pagou a despesa, abraçou-o com força e, dizendo-lhe adeus com a mão, dirigiu-se para a porta: – Adeus Marinho, gostei de te ver, até qualquer dia. Ainda olhou para trás e viu o ar de estupefacção de Marinho, revelador da surpresa pela sua rápida e inesperada atitude e sem ter ficado a perceber nada do que naquele momento lhe ia na alma. Entrou no carro, comprou umas flores a uma vendedora que por ali se encontrava e deixou-as na campa. – Adeus também, João Brito, até qualquer dia.


O REI MENTIU

I

Gostando uns e outros não, a verdade é que a feira aí estava. Muitas outras existiam no reino, mas aquela como que tinha um sabor especial, diferente. Mexia mais directamente com as pessoas. Ricos e pobres, nobres e clero, bastardos ou não, ninguém poderia passar ou ficar indiferente. A aldeia engalanava-se com pendões suspensos nas árvores, atavam-se flores nos archotes que pouco iluminavam – diga-se – as ruelas e ruas estreitas da cidade, e aproveitava-se tudo o que era parede para fazer passar as palavras de ordem que mais interessavam.

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Enquanto, por outro lado, os “barões” da corte se faziam passear nos seus coches dourados, e duques e condes e populares, cada um à sua maneira, davam largas ao que lhes ia na alma. Eram mais ou menos quinze dias de festa, se bem que, anteriormente, quer no tempo dos tiranos absolutistas que haviam sido banidos, quer nos primeiros tempos da dinastia dos Leónidas, descendentes deste antigo imperador a vida do povo, não era assim tão fácil. De facto, a liberdade também esteve condicionada durante algum tempo, pois se alguém naquela altura fosse contrário aos ideais do rei e sua corte, ainda que, no plano teórico, e tentasse apresentar-se como defensor das “liberdades e garantias” dos seus súbditos, logo era alvo de perseguições que só não acabavam no cadafalso porque os reinos, que então, existiam na Europa da época, tinham proibido terminantemente que alguém pudesse ser encarcerado ou objecto de tortura só porque não partilhava ou não comungava dos “mandamentos” reais. Após reduzidos que foram os poderes dos apoiantes da dinastia dos Leónidas, foi instituída a feira que, de quatro em quatro anos, passou a ter lugar em todo o reino e logo conquistou um lugar especial no coração dos aldeões e dos burgueses foliões. Eram os comícios, eram os folhetos e estandartes, eram os debates para a “caça” aos “fregueses” do seu

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apoio na venda do melhor produto que cada um tinha para oferecer ou prometer. Verdades ou mentiras, cabia às gentes do reino saber escolher aquilo que lhes era apresentado para eleger os seus representantes na corte. E assim, uma vez mais, aí estava a feira. Corria o longínquo ano de 1993 do século passado, praticamente vinte anos após a deportação do monarca que durante quase cinquenta anos governara aquele pequeno reino situado na parte mais ocidental da Europa e depois de afastados, também, os Leónidas dos principais lugares de decisão. No entanto, a atracção principal da feira era aquilo que já passara a ser tradição. No último dia, todos sem distinção eram chamados a escolher o novo rei, agora já não em resultado da linhagem sanguínea. Também o mesmo acontecia com os nobres e burgueses e restantes membros da corte. Uma liberdade que havia sido conquistada com a implantação pelo povo e tropas revoltosas do novo regime à semelhança dos restantes reinos existentes na Europa. Cada aldeão procurava, de forma individual ou integrando movimentos populares, fazer prevalecer a sua vontade. Havia, porém, algumas contrariedades.

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Cada vez mais se verificava uma distanciação maior por parte dos “barões” da corte em relação aos camponeses e artesãos, intelectuais, pedintes e sem-abrigo. A consequência a que isto levava era que todos eles se sentissem desmotivados nas lutas argumentativas para a conquista do poder no confronto com as hostes e elites mais avançadas. E daí que, organizados em grupos maiores ou noutros mais pequenos, todos ambicionassem ter o rei da sua escolha e preferência, marqueses e burgueses da sua simpatia e confiança. Obviamente, que o rei que nessa altura governava, dispondo de todos os seus exércitos e acólitos apegados aos prazeres da corte, não queria deixar ir parar a mãos estranhas os destinos do reino. Por isso, por entre boatos e verdades, depressa passou a circular por tudo o que era local de conversa a contra-informação convenientemente preparada pelos conselheiros régios. – Tomai cuidado, gentes do meu reino. Se eles – a referência era feita habitualmente aos seguidores e apoiantes, cada vez em maior número, da nobreza que estava em oposição à dinastia dos Leónidas – tomarem conta da corte, todos os coches, galeras, tipóias e carroças que têm servido para os transportar para os campos, vilas e cidades serão entregues às gentes da burguesia seus

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amigos – na altura falava-se de um bem instalado burguês de nome Barroquite – para além de todos os cocheiros serem mandados embora e se verem arredados para trabalho incerto e sem possibilidade de ganharem o pão paras suas mulheres e filhos, porque esses não os vão querer ter com eles. Escusado será dizer que tais boatos caíram que nem uma bomba junto da população. A notícia havia sido cuidadosamente preparada e os receios, ainda que na altura fossem infundados, naturalmente que desassossegaram os espíritos mais optimistas. Todos pensaram que o futuro passaria a ser incerto e nada melhor do que a segurança do trabalho, ainda que muitos deles, apesar de não nutrirem especial simpatia pela dinastia dos Leónidas, então no poder, sempre achavam que seria melhor votar no mesmo rei do que noutro, onde se podia correr o risco de mudança, isto de acordo com as informações que passaram a ser difundidas pelos espiões do palácio real. E foi assim que o rei abanou, estremeceu, mas não caiu. Havia, para esse efeito, resultado em pleno a divulgação pelos “agentes secretos” do reino que seriam entregues ao tal marialva burguês Barroquite os transportes do reino, pessoa que era estranha à corte, caso o povo entendesse mudar o rumo à história para uma possível dinastia dos “opositores”.

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Isto, porque, o outro grupo da alta burguesia, ainda que com menos possibilidades e tendo no seu representante máximo o já muito conhecido Bispo Costano, pessoa de grande manha e astúcia, a quem os “novos ventos” políticos o haviam tornado bem instalado na vida e secundado pelo não menos oportunista burguês Brunoli – em boa verdade um favorecido e protegido de outros reinos –, não mostrava como expoente da nova casta burguesa e clerical (aqui disfarçada por interesses de poder) condições para receber o apoio popular. Ora, quando a feira terminou, o rei voltou a sorrir. É verdade que os adeptos dos “opositores” haviam introduzido um número de nobres na corte em igualdade aos protegidos do rei, o que não deixou de ser um sucesso para a época. Mas o monarca também sabia que com o apoio do Bispo Costano e do famoso burguês Brunoli, também ele fazendo parte da corte, bastaria que desse a este algumas condições para obras de caridade e sociais, para além de algumas regalias pessoais, no caso, uns dinheiritos – de que, naturalmente não se faria rogado – para poder confiar por mais quatro anos numa governação descansada até que viesse a nova feira. Cansados, exaustos, mas, obviamente satisfeitos, os brazonados e conselheiros mais próximos do rei não se cansavam de repetir que aquela ideia de dizer ao povo

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que as galeras, coches, carroças e tipóias seriam entregues aos burgueses caso o chefe dos opositores assumisse com os seus apaniguados o comando do reino havia acertado em cheio. Daí a incontida euforia triunfal. Tinha sido, como diziam, um golpe de mestre, só digno da inteligência sábia dos defensores da monarquia pertencente à linhagem dos Leónidas. Era o sinal de alívio em todos e não se cansavam de rejubilar com o feito. Dois ou três anos passaram e tudo parecia esquecido. Mas eis que um mendigo da cidade, ao vaguear um dia junto às paredes do palácio na esperança de encontrar alguma comida atirada fora pelas sentinelas, encontrou um papiro semienterrado na areia endurecida e já amarelecido pelo decurso do tempo sem saber qual o seu significado, mas que ao mesmo tempo lhe despertara a curiosidade. De facto, era visível a chancela real e nele constava a letra do rei, sendo ainda possível verificar que se destinava aos seus conselheiros. Surpreso e incrédulo por tão estranho achado, nem queria acreditar. Deixou sair um grito de espanto que quase se ouviu nos reinos vizinhos na convicção de que achara algo que certamente teria muito valor.

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e m a n u el g óis

Quase tropeçando em cada passo que dava, chegou ofegante e encharcado em suor à primeira estalagem que encontrou. Já no seu interior, foram vários os olhares espantados que se fixaram nele. Todos quiseram saber o que se passava. O mendigo tirou, então, do bolso das suas calças, já gastas pelo uso, esburacadas e de cor já consumida pela sujidade, o papiro que encontrara e que tanta curiosidade e ansiedade que lhe causaram. E foi então que o povo ali presente viu e o espanto foi geral. Afinal, o papiro mais não era que a prova da MENTIRA ardilosamente propalada pelos conselheiros do rei que haviam ajudado a manter no poder os Leónidas por mais quatro anos. Desanimado por ver gorada a expectativa que pensava conter tal documento, saiu da taberna e, enquanto a voz lhe permitiu, ao mesmo tempo que percorria as ruas e ruelas da cidade não se cansava de gritar bem alto para a população que com ele se cruzava: – O rei mentiu, o rei mentiu.

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EM COMA PROFUNDO

I

Não se podia dizer que fosse uma mulher bonita, embora se deva dizer que, tal como Miguel, ninguém lhe conseguira ver a totalidade das linhas do rosto a não ser alguns que, sabe-se lá por que forma, com ela mais lidaram de perto, apesar de se saber que era uma mulher reservada e pouco dada a amizades. Uma coisa, porém, era indesmentível. Onde quer que fosse vista e até ao dia de hoje, ninguém podia ficar indiferente à sua presença. De facto, sobre os ombros caíam-lhe longos cabelos lisos que refletiam uma miscelânea de cores indecifráveis. Essa característica, aliada à sua figura imponente, levava a que Miguel, ao pensar nisso, acreditasse não

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