Aldeia da Bruma

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Aldeia da Bruma


edição: Edições

Parténon® título: Aldeia da Bruma autor: José Mora Ramos capa:

Patrícia Andrade Paulo S. Resende

paginação:

1.ª edição Lisboa, maio 2017 isbn:

978­‑989-8845-16-0 423198/17

depósito legal:

© José Mora Ramos

publicação

www.sitiodolivro.pt


JosĂŠ Mora Ramos

Aldeia da Bruma CONTOS



Quando a bruma deixa, do alto do Morro Alto, cume da Ilha, vê-se ao longe a pequena aldeia alongando-se pela sua única rua e mais além a outra ilha, irmãs gémeas na imensidão do mar azul que as rodeia.



Cândido



Chegado ao alto da canada, Cândido, ofegante, sentou-se de costas para o mar numa pedra lisa do topo do pequeno morjão, atrás do qual os pastos se estendem em declive até à falésia sobranceira ao ilhéu das Cabras. Tinha de os contar, aos vitelos, e de perceber se a bezerra vermelha saltara a vedação e se fora pelo pasto do Adriano abaixo, como se quisesse de mais perto sentir o cheiro das ervas que as cabras roíam no cimo do ilhéu. Mas primeiro tinha que descansar e fumar o seu cigarro, não ia verificar antes das primeiras fumaças se a vermelha estava ou não estava no pasto, como há pouco no café lhe sugerira o Agostinho –  Cândido, passei perto do pasto do Doutor e não vi lá a vermelha pois sabia que se lá a não visse lá se ia o cigarro e o merecido descanso. A bezerra que esperasse. Aos cinquenta anos pesavam-lhe as pernas da subida e dos quilos a mais, ganhos às sopas da Misericórdia desde que a Anastácia se pirara. Pelo menos na comida ficara a ganhar. A solidão, o ordenado menos que o mínimo e uma total falta de conhecimentos de como cozinhar sequer um caldo de carne ou de peixe, davam-lhe direito ao jantar que a carrinha da Misericórdia lhe deixava na entrada da casa, todos os fins de tarde menos aos Domingos, bem entalado atrás 11


da porta, não fosse algum cão ou gato vadio roubar-lho. Engordara, tivera que fazer mais dois furos no cinto, primeiro um, depois outro, e não havia camisa que lhe servisse, os abundantes pêlos grisalhos do peito a saltar cá para fora pelos intervalos entre os botões que restavam, que isso de pregar botões as da Misericórdia não faziam – Aprende Cândido, ao menos aprende a pregar um botão. Os Domingos é que eram uma chatice, quando voltava do gado tinha que se contentar com umas carcaças de pão duro com uns torresmos metidos dentro e uns copos de vinho. Nos últimos tempos a Anastácia fizera-o passar fome, uma forma de vingança pela falta de sexo, pela falta de desejo dele por ela. E repetia o ditado – Quem não trabuca não manduca lá trabalhar ele trabalhava, as pernas curtas a correr pasto acima pasto abaixo atrás do gado, mas aquilo de trabalhar entre as pernas da Anastácia é que não, nada, nada de todo, dava-lhe nojo, não o sentiria decerto com a Paulina, ou com a Dona Luísa, a mulher do sobrinho do Doutor veterinário, o seu patrão, mas estas estavam-lhe vedadas, pernas juntas e cerradas para ele. Enrolou o cigarro, devagar, prendeu-o no buraco entre os dentes da frente do lado de cima, negros do fumo e das cáries, coisa normal aqui na aldeia onde ninguém trata dos dentes e acendeu-o puxando duas grandes fumaças. 12


Ficou a ver o fumo a dissipar-se no ar, o pensamento a saltar-lhe para a mulher do sobrinho do doutor, não é como as mulheres cá da ilha, todas muito gordas, de carnes flácidas, as coxas esfoladas de tanto roçarem uma na outra, ele ainda se lembrava bem das da Anastácia quando ela, saia levantada, as afastava à frente dele numa provocação que o fazia baixar os olhos para as unhas dos pés papudos da mulher, pintadas de vermelho vivo – Levanta os olhos Cândido, olha para mim e lá estavam aqueles olhos de um verde muito claro, quase transparentes, aquele olhar que o atravessava – Não vês que estou toda molhada, até nas cuecas se nota, vou ter que as pôr para lavar e baixava as cuecas, mostrando-se primeiro pela frente, os pêlos ruivos e crespos do púbis a cintilar entre as coxas vermelhas e suadas e virava-se depois para se mostrar por detrás, as nádegas descaídas, tão brancas que até pareciam cobertas de cal. A Dona Luísa era diferente, era escorreita, de seios pequenos mas rijos, que ele bem os sentia quando tinha a oportunidade de a abraçar no dia em que ela chegava para as férias no Verão. Ficara espantado com o primeiro abraço que ela lhe dera – Cândido tenho muito prazer em voltar a ver-te e concluíra que lá no continente as mulheres abraçavam os homens quando estavam muito tempo sem os ver, mesmo os que conheciam mal. De ano para ano esperava 13


ansiosamente por esse abraço e guardava-o, mais ao cheiro dos cabelos castanhos escorridos da Dona Luísa, até ao abraço do ano seguinte – O seu sobrinho João, o do continente, e a Dona Luísa, quando chegam, Doutor? – Lá mais para o fim do mês. – Mas vêm, não vêm? – Vêm sim Cândido, o João tem por aí muitos assuntos a resolver, aliás queria que mandasses matar um bezerro antes de eles chegarem, para termos carne fresca para os churrascos. – Claro Doutor. – Mas a vermelha não. –  Porquê Doutor, a carne é tão boa como a dos outros bezerros. – A vermelha não puta da vermelha que estava sempre a fugir e ele Cândido que corresse pastos fora atrás dela, enquanto o Doutor olhava para os bezerros de longe, da estrada, sem sequer sair do Mercedes – Olha Cândido, não vejo a vermelha no pasto. – É verdade Doutor, também não a vejo. – Vai depressa Cândido, não caia ela pela barroca abaixo. – Não cai não Doutor, ela de parva nada tem nada não sei que raio deu ao Doutor para engraçar com esta puta desta bezerra, por mim era mesmo esta que ia direitinha para o matadouro, está sempre a saltar as vedações e eu que 14


vá por ela antes que os donos dos pastos vizinhos me venham chatear os cornos. Verdade que isto de saltar vedações não é só a vermelha, por mais estacas e verga de aguilhões que se ponham há dias em que parece que ficam loucas, mais as bezerras que os bezerros, deve ser dos primeiros calores e vá de atirar as vedações abaixo e correr pelos pastos fora. Mas a vermelha é pior, não há dia em que não faça merda, vá-se lá saber porque é que o Doutor engraça com ela. Por ele acabava com as vedações e deixava-os pastar todos juntos, independentemente do dono, como fazem na ilha da montanha grande, não que Cândido lá tivesse ido ver, nunca daqui saira, desta sua pequena ilha, mas é o que ouvira dizer e achava muito bem e até falara nisso ao Doutor – Vê-se mesmo que nunca tiveste nem pastos nem gado de teu o que era verdade, ele dono de bezerros não era, nem nunca fora, andara sempre à jorna, agora até tinha coisa certa, empregado do Doutor, pouco dinheiro mas certo, chegava-lhe para o tabaco de enrolar, as carcaças para a bucha do meio dia, que as mais das vezes comia secas, os torresmos dos Domingos mais a cevada da manhã e o garrafão de 5 lt de vinho tinto, a sua principal despesa, que isso de vinho as da Misericórdia recusavam – Não te faz bem Cândido, ainda te embebedas e cais da falésia. 15


Sabem lá as da Misericórdia o que é que faz bem ou mal a um homem. Bezerros nunca os tivera, mas em tempos ainda tivera dois porcos e meia dúzia de galinhas comprados com o dinheiro das mondas dos pastos dos outros e principalmente das silagens do fim do Verão, que por essa altura do ano ganhava sempre mais algum, mas a Anastácia matara os porcos e levara as galinhas com ela quando se fora mais o Adriano – Hão-de pôr os ovos para quem os merece comer, que tu por mais que os comas não te dão vontade de empinar essa coisa frouxa que tens pendurada entre as pernas. Puxou mais uma fumaça antes de se levantar e olhar para o pasto a contar o gado, um, dois, três, e lá está a vermelha, desta vez não tenho que ir atrás dela, quatro, cinco e foi contando até trinta e dois, estão todos, isto é que é grandeza, este pasto do Doutor, trinta e dois animais e aguentam-se aqui por duas semanas nesta altura do ano, no Inverno é diferente, o pasto fica ralo e quando faz muita chuva e frio os animais enterram-se na lama a tremer sem conseguirem andar, é um dó de alma vê-los, e no Inverno não há dias como o de hoje em que se vê a outra ilha, a Gémea, gosto de a ver, parece que se dermos um passo largo estamos lá, não eu que tenho as pernas curtas, mas olha até podia ser a Dona Luísa, eu bem que já lhe vi as pernas longas quando se põe ao sol quase nua deitada na espreguiçadeira. A Gémea corta esta imensidão de oceano, não que eu não goste do mar, até que

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gosto mesmo, embora nunca me tenha metido nele, lá nadar não sei nem quero aprender, isso é coisa de peixes, mas assim visto ao de longe, aqui do alto dos pastos, pés na terra é que se está bem, e gosto de ver a Gémea, principalmente de ver à noite as luzes da vila a brilhar no escuro, no Inverno passam semanas em que não se vêem, sempre chuva, sempre vento, sempre nevoeiro, não que eu goste do calor, até prefiro o frio, não fico todo suado a ter que depois ouvir as da Misericórdia – Cândido, quando foi a última vez que tomaste banho? – Cheiras a suor e a bosta que tresanda banho para quê, ele até o tomava no dia da chegada do sobrinho do Doutor, não fosse a Dona Luísa recusar-lhe o abraço devido ao cheiro da bosta, raio de cheiro, eu bem o sinto, não que me incomode, no fundo até gosto, mas parece que se levanta do chão e se cola à roupa e à pele, e além disso água quente em casa não tenho, mesmo de Inverno o banho é com a mangueira a despejar água pelo corpo abaixo, queria ver as da Misericórdia a tomar banho frio de mangueirada em pleno Inverno. Abriu a cancela, entrou no pasto, voltou a fechar a cancela, não fosse algum animal fazer-lhe a desfeita de se pirar pela canada e começou a descer, andar trôpego como sempre, que os muitos buracos feitos pelos cascos do gado, mesmo os mais pequenos, são covas fundas para as suas pernas curtas, que o fazem mais baixo do que devia ser, já que o tronco é grande e robusto. 17


Foi-se até à vermelha que o olhou sem desconfiança, deixando-o aproximar-se e encostar-se a ela sem sair de onde estava – O que é que tu tens de especial para o Doutor se te ter afeiçoado, que o pêlo tens liso e macio isso não há dúvida, como também é verdade que as moscas em ti não poisam, não és como os outros bezerros em que às vezes as moscas são tantas e tão juntas que até parece que lhes mudam a cor, deve ser o teu vermelho que as afugenta e não cheiras tanto como os outros bezerros, lá isso também é verdade, pois passo-te as mãos pelo pêlo e nelas quase não fica cheiro, como estou a verificar neste mesmo momento e aspirou intensamente uma e outra vez as palmas das mãos e os dedos curtos, grossos e calejados, de pele tão rija que não havia espinho de silva ou pico de urtiga que nela entrasse. Deixou a vermelha e foi até ao poço do pasto, cem metros distante, onde bebeu água da mangueira sempre a correr, pois por ali a água é tanta que ninguém pensa em poupá-la e com as mãos em concha molhou a barba espessa, a testa e os cabelos encaracolados. Sentou-se no muro da borda do poço e enrolou outro cigarro, que voltou a meter no buraco entre os dentes – Devias ir ao dentista Cândido, tens uns dentes que são uma vergonha, agora há dentista no Centro de Saúde raio das mulheres da Misericórdia que não me deixam em paz, não lhes chega chatearem-me com o banho, têm que ser também os dentes, ir ao dentista para quê, isto do buraco 18


dos dentes até que dá jeito, posso fumar e ter as mãos livres para outra coisa e meteu a mão esquerda pela braguilha das calças em busca do sexo, mas voltou a tirá-la e fumou calmamente enquanto agora era a vermelha que dele se aproximava e aí estava ela a esfregar a testa, o lombo e as partes traseiras nas suas pernas, penduradas do muro do poço – E lá meiga também és, não me lembro de alguma outra bezerra fazer isto, as éguas sim, principalmente quando estão maniadas, em período de quentura. Acabou o cigarro e devagar subiu o pasto, abriu a cancela, saiu e regressou à aldeia, não sem antes voltar a olhar o gado, a vermelha ao pé do poço, cara virada para ele – Diabo de bezerra, parece que percebes tudo o que digo, até mesmo o que penso. Desceu a canada, fez o trilho e entrou no café para uma merecida cerveja e lá estava o Agostinho e agora a Paulina ao lado dele, ambos encostados ao balcão, ombro contra ombro, será que andas a comê-la, meu filho da puta sortudo – Então a vermelha? – Estava no pasto, foi engano teu e encostou-se ao balcão do outro lado da Paulina – Irra Cândido, cheiras que tresandas a suor e a bosta. – É do trabalho Paulina, não tenho como evitá-lo, farto-me de correr pastos acima, pastos abaixo. Dá-me uma cerveja Amílcar, bem fresca que me fartei de caminhar. – Mas podias tomar banho de vez em quando. 19


– Para quê Paulina, o meu cheiro é só comigo, não que eu não quisesse que fosse também com mais alguém os olhos a comê-la, dos seios fartos, meio expostos, às coxas roliças e ao rabo empinado, redondo e apetitoso. – Deixa-te disso Cândido, deita esse olhar às bezerras, que tu para mulheres já não tens serventia, pelo menos era o que a Anastácia dizia à boca cheia. – Essa puta gorda bem que podia estar calada, se fosse por ti até tomava banho todos os dias, com champô e tudo e ias ver se eu era ou não era capaz e bebeu a cerveja de um trago, a espuma a escorrer-lhe pelas beiças, deitou um euro para cima do balcão e saiu de rompante do café – Não te zangues Cândido, é que esse cheiro fica por aqui a empestar o ar, mesmo depois de te ires embora. – Vai-te foder, mulher dum raio. – Com quem Cândido, se não há homem de préstimo por aqui, só mesmo se mudar de terra. Subiu a rua até à sua casa e sentou-se nos degraus da escada da entrada encostado à parede de pedra, merda de terra esta em que não deixam um homem em paz com o seu cheiro a suor e a bosta, como se tomassem banho todos os dias e cheirassem ao perfume que em Julho e Agosto deita a cana-roca, essa sim cheira bem, é como os cabelos da Dona Luísa, também cheiram sempre bem, não a cana-roca, não sei que cheiro é aquele, deve ser do champô que ela usa, e é também verdade que a Anastácia antigamente, 20


quando tomávamos banho, também ficava a cheirar bem, era dos perfumes que ela punha, o pior era quando ficava aquela mistura de cheiro a suor e a perfumes que com o tempo começou a enjoar-me, ao princípio não era assim até parecia que me dava mais vontade. Acendeu mais um cigarro, encostou a cabeça à parede de pedra rija e deixou-se dormitar, fazendo por ter a mente vazia de pensamentos, é melhor assim, os pensamentos chateiam-me tanto quanto as falas das da Misericórdia ou da Paulina – Aqui tens a marmita do jantar Cândido, aquece-o que já está frio. Ainda tens gás? -Tenho sim não a ouvira chegar, a carrinha das da Misericórdia – Até amanhã Cândido e se ainda tens gás aproveita e toma banho que o cheiro atravessa a rua, chega até aqui à carrinha e se já não tens gás toma banho frio. – É do trabalho e deste calor, desta humidade, farto-me de suar. – Até amanhã como se eu tivesse esquentador e dinheiro para aquecer água para o banho, putas de merda, são todas iguais, dão-se ares de fazer bem a quem precisa, até parece que os homens delas não cheiram a bosta e a suor, aqui na ilha não há quem não tenha gado e não tenha que suar para tratar dele, nem todos têm as posses do Doutor que me paga a mim para suar por ele. 21


Viu a carrinha afastar-se rua abaixo, levantou-se, agarrou na marmita, abriu a porta e entrou no escuro húmido da casa, que casa de pedra é sempre húmida e escura, mesmo no Verão e até nas horas em que o sol anda alto. Acendeu a luz do único aposento, quarto, sala, cozinha e uma pequena casa de banho, sanita e lavatório, feita há pouco, já depois da partida da Anastácia, com dinheiros da Câmara para melhoria das habitações, dinheiros que ainda deram para o reboco de dentro, mas que já não chegaram para a tinta, foi pena, se pintada por dentro, de branco, a casa ficaria mais alegre e com mais luz. No tempo da Anastácia, lavatório e sanita eram lá fora, na privada, e o duche era de mangueirada como agora, quem é que há-de quer tomar banho em pleno Inverno com água fria e na rua. Quando a Anastácia veio viver com ele até que tomavam banho mesmo no Inverno. Era aos Domingos. A Anastácia aquecia três ou quatro panelões de água que levavam para a privada e deitavam na grande celha de madeira. Metiam-se os dois lá dentro e esfregavam-se um ao outro, nesse tempo não tinha repulsa pelas carnes rosadas e abundantes da mulher, muito antes pelo contrário, até lhe davam muita tusa, que as mais das vezes eram duas ali mesmo na celha, sem posição de jeito, ela bem se queixava 22


– Assim não Cândido, assim é só para ti, a mim assim não me dá posição de gozo, fico toda torta, doem-me as costas, só se fizeres por detrás, por detrás é que eu gosto e virava-se, dobrada, mãos apoiadas na borda da celha e lá se metia ele por detrás dela, raio de mulher era como os animais, gostava de apanhar por detrás, mas nessa altura, embora lhe doessem os joelhos, até que não desgostava pois as nádegas dela ainda que bem grandes eram rijas e gostava de olhar para baixo e de o ver a entrar e a sair nela, meio escondido pelo vapor que saía da água da celha, até fazia lembrar os nevoeiros de Junho, quando a gente nem vê os bezerros ali mesmo a dois passos de nós – Isso Cândido, assim mesmo, devagar que eu quero ter tempo, isso, isso mesmo, agora com mais força e agarra-me bem pelas virilhas para eu não me desequilibrar, isso Cândido, ai que grande que ele está, isso mesmo, aí mesmo, nesse sítio, ai que bom, aí mesmo, isso, isso mesmo, ai, ai Cândido e depois, sentada na celha, beijava-o por tudo o que era corpo, aqueles olhos verde escuro olhando-o ternamente. Foi só depois que tiveram a filha, a Isabel, que os banhos a dois acabaram, as nádegas descaíram, as carnes de rosadas passaram a brancas, os cheiros se alteraram e ele começou a pouco e pouco a sentir aquela merda daquela repulsa. Levou a marmita até à pequena bancada da cozinha e separou os dois recipientes, o da sopa de nabiças, sempre 23


a mesma, e o das batatas, hoje são com carne já que ontem foram com peixe, ele até as preferia com carne, principalmente se de porco, o que era raro, pois em toda a ilha as vitelas abundam e os porcos são poucos, cada um tem os seus e deles guarda para si carnes e linguiças, as promessas pagas as mais das vezes com carne de uma vitela para tal abatida. Acendeu os dois bicos do fogão, colocou sobre eles as duas marmitas e sentou-se no único banco da casa, que a Anastácia, para além das galinhas e do armário dos vestidos, levara o outro banco quando se fora – Basta-te um banco Cândido, sozinho como vais ficar. Esperou, olhos fixos no lume, que a sopa começasse a ferver, ele a comida queria-a bem quente, não era como a Anastácia que gostava de tudo frio, aliás foi por aí que começaram as zangas, as discussões, já perto do fim da gravidez – Oh! Mulher, onde é que já se viu comer a sopa fria, não sei de que terra és tu que gostas da comida fria como os cães, aos cães é que só se dá a comida depois que arrefeça. – Sou daqui como tu e era bem melhor que fosses chamar cadela à puta da tua mãe. Quando a Isabel nasceu, há quatro anos que estavam juntos, até que as discussões pararam por uns tempos, sol de pouca dura como o sol da ilha que sempre pouco dura, pois logo vem chuva e nevoeiro, e assim foi, não chuva e nevoeiro, mas gritaria de criar bicho, de assustar a vizinhança, gritaria, choro, 24


e mesmo porrada, batiam-se um ao outro com as mãos e os punhos, até mesmo pontapés, a Anastácia não era mulher para se ficar, era cada chapada que uma vez saltou-me mesmo o dente da frente, já estava meio estragado, este onde eu agora encaixo o cigarro, os vizinhos bem nos avisaram que nos tiravam a criança, até que chegou mesmo o dia em que a protecção da infância, ou lá como se chama essa cagada dessa merda, nos bateu à porta e acabámos por ir a Tribunal – Não têm condições para educar uma criança, uma criança não pode crescer nesse mau ambiente em que vivem e parecem gostar de viver ainda prometemos mudar e o Juiz deu-nos uma oportunidade, mas também nesse caso foi sol de pouca dura, que no mês seguinte voltámos ao Tribunal, por ordem dos mesmos da protecção da infância, e o Juiz mandou que a criança fosse entregue a uma instituição de solidariedade social, ou lá como é que se chama essa porra, lá longe, na ilha grande, faz doze anos para o mês, a Isabel, no dia 15, ele do dia de anos da filha nunca se esquecia, um dia havia mesmo de escrever-lhe pelos anos com a ajuda do Doutor, ele até já se oferecera – Minha querida filha, há muito tempo que ando para te escrever, mas faltam-me as palavras, não sei como dizer-te aquilo que sinto e o problema é que não sabia mesmo o que sentia, talvez seja melhor ir vê-la à ilha grande, no mês que vem, também para 25


a viagem o Doutor lhe prometera o dinheiro, mas não, ainda não seria no mês seguinte que iria, faltava-lhe a coragem – Doutor, a Dona Luísa e o seu sobrinho não têm filhos? – Ainda não e quando vierem a tê-los não lhos tiram pela certa, que ele nunca lhes ouvira uma palavra mais dura um ao outro, bom, sabe-se lá quando estão sós, isto dos casais dá sempre discussão, mesmo o Doutor e a gorda da mulher, ele tão franzino não sei como se aguenta com ela, gritam um com o outro com palavras feias, eu bem os oiço quando vou lá a casa tratar dos porcos, belos porcos, aquilo é um regalo de olhar, este ano quero ser eu a matar a porca, no outro ano o Doutor pediu ao filho do Barros, um matulão de vinte anos – Tem muito mais força que tu e já está habituado, mata-os de um só golpe, o animal sofre menos. Sabe lá Doutor o que é sofrimento. Deixou as batatas com a carne em lume brando enquanto comia a sopa fumegante directamente da marmita, pratos não havia, a Anastácia levara-os com os porcos e as galinhas – Levo os pratos Cândido, a ti pouca falta te fazem, mas deixo-te uma colher, uma faca e um garfo, para não teres de comer com as mãos pratos bonitos foi no jantar da Dona Luísa, uma vez fora convidado para jantar em casa do sobrinho do Doutor, eram uns pratos grandes, cinzento claro, brilhantes, aquilo é que é louça fina, a gente até parece que tem pena de pôr 26


a comida nos pratos, tira-lhes o brilho, e os talheres, um talher para cada coisa, o Doutor foi-me explicando como os usar à medida que a Dona Luísa ia trazendo a comida, para que eu fizesse boa figura, até musse de chocolate houve, e no fim uma aguardente velha, boa como eu nunca tinha bebido. Mas do que mais se lembrava era do vestido da Dona Luísa, de alcinhas, tecido fino, devia ser seda, com florzinhas vermelhas e muito justo ao corpo, que ele teve grande dificuldade em não estar sempre a olhar para ela, não tinha nada por debaixo, estou certo disso, viam-se os bicos do peito e o ondulado dos pêlos da cona, se tivesse cuecas o vestido devia estar liso naquele sítio e não assim, ondulado, pelo menos é esta a minha ideia. Comeu depois a carne e as batatas, devagar, garfada a garfada, era bom fazer durar o momento, lavou a marmita em muita água a correr, detergente não tinha mas água era quanta quisesse, aqui na aldeia água ninguém paga, e foi sentar-se na escada, à porta da casa, marmita ao lado, para que as da Misericórdia no dia seguinte a levassem quando viessem novamente trazer o jantar, não fosse mais tarde esquecer-se de a por lá fora. A noite estava sereníssima, o tempo parado, tudo parado, nem uma brisa sequer, nem gado nem pássaros se ouviam, é assim às vezes aqui na ilha, parece que a natureza se suspende, pena não se ver daqui o mar, lá no alto da canada é que deve estar bonito, o pasto a enlarguecer a caminho 27


da falésia, as luzes da Gémea a verem-se, até que me apetece ir até lá embora o caminho seja longo e tenha lá ido há bem pouco a saber da vermelha, mas até que numa noite assim um homem gosta de caminhar e sinto uma chamada que não sei porque é que a sinto e tenho mesmo que ir até lá. Cândido levantou-se e em passo lento mas decidido desceu a rua, fez o longo trilho, subiu a canada até ao alto do pasto, abriu a cancela que voltou a fechar, não fosse alguma bezerra fugir-lhe para os caminhos, que de noite é mais difícil encontrá-las, hoje não que o céu está limpo e a lua está quase cheia, desceu até ao poço, sentou-se na borda, enrolou um cigarro que acendeu e fumou em grandes fumaças, olhos fixos ora nas luzes da vila da ilha Gémea, já acesas, ora nas luzes do céu estrelado, que começavam a ver-se na penumbra e que anunciavam uma noite tão limpa como ele há muito não via. Esperou um tempo largo sem se mexer, fundindo-se naquele ar suspenso, naquela natureza parada, até que a vermelha veio ter com ele e lhe roçou o lombo pelas pernas soltas uma vez e outra vez e de forma tão meiga o fez que Cândido começou a sentir que o sexo lhe intumescia. Baixou as calças subiu para uma pedra, fez com que a vermelha se pusesse a jeito, meteu-se dentro dela e então foi um ir para a frente e um vir para detrás até que se despejou dentro da bezerra. Subiu as calças, desceu o pasto a caminho da estrada de luz que a lua pintara no mar, ali mesmo à sua frente, saltou 28


a vedação de hortênsias passando para o pasto do Adriano, foi até ao limite da falésia e voou para o destino que essa estrada lhe abria trezentos metros abaixo, num voo sereno apenas perturbado por um longo mugido da vermelha.

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Anastรกcia



No dia em que fez quarenta anos Anastácia pôs-se nua, de cócoras, diante do espelho de corpo inteiro do armário dos seus vestidos, exactamente na mesma posição em que estava na fotografia que o Elias lhe tirara há cerca de vinte anos e que sempre pendurara por cima da sua cama nas casas em que vivera, como que a mostrar desde logo aos seus homens, antes de com ela se deitarem, aquilo com que podiam contar, os olhos verdes de um verde desconcertante, que parecia alterar-se com o sentimento com que os olhava, ora verde muito claro quase transparente quando estava irada, ora verde muito escuro quase negro quando uma onda de doçura a percorria, a boca de lábios cheios num sorriso rasgado de orelha a orelha, a pele lisa, luminosa e rosada, os grandes seios a quererem saltar da imagem, a barriga saliente continuada para as ancas por carnes generosas, o púbis escondido pelas grossas coxas viradas para o lado esquerdo e que deixavam apenas entrever alguns pêlos crespos de um ruivo cintilante, igual ao dos cabelos encaracolados que lhe emolduravam o rosto redondo, os braços soltos caídos ao longo do corpo com as palmas das mãos, nas quais se descortinava uma energia pura, mas contida, viradas para a frente, num misto de um convite mudo, de um dizer sem dizer – Vem, sou assim. 33


Olhou-se, olhou a fotografia pendurada por cima da cama, cá está o mesmo rosto de antes, agora enobrecido por rugas finas nos cantos da boca e dos olhos, cá está o mesmo corpo, melhor ainda para o amplexo porque mais cheio e enlarguecido pelos anos, coberto pela mesma pele que agora adquiriu este belo tom branco leitoso e baço, próprio de damas, com algumas estrias dispersas de mulher mãe, cá estão os mesmos seios de antes, é certo que agora descaídos, mas ainda cheios e rijos e cá estão as mesmas coxas fortes embora com alguns borbotos, que os apertam com força para dentro de mim, cá está tudo isto, é a minha verdade aos quarenta anos, deve ser esta verdade, esta feminilidade madura, que os torna indiferentes, os afasta, ou talvez mesmo os atemorize, aos mesmos que antes me assediavam a toda a hora, o corpo mudou, é certo, perdeu a juventude, a graça, o viço, mas ganhou em nobreza, em experiência, em sabedoria de mulher, e eu sou a mesma, o mesmo desejo, a mesma vontade, a mesma capacidade de amar, de ter prazer e de ter prazer em dar prazer, a mesma alegria de viver, a mesma vontade em me entregar, não está certo, não é justo que não me queiram como me queriam antigamente, apenas porque algumas estrias me cruzam a pele. Abriu as pernas, olhou o púbis de pêlos ruivos e crespos e com as mãos afastou ligeiramente os grandes lábios – Tu ao menos não mudaste, continuas luzidia e apertadinha como sempre foste, pronta a ficar húmida ao primeiro estímulo, pronta a fazer enlouquecer dentro de ti um sexo 34


que te mereça e a com ele enlouquecer, desde que te encha e te toque naquele sítio, não sabem o que perdem, não imaginam o que ainda lhes posso dar, como sempre dei, àqueles a quem eu quis, que a muitos e muitos, por mais prendas e promessas, rejeitei, pois que não me apraziam. Perdera a virgindade cedo, aos catorze anos encostara o corpo ao do Manuel, um discreto e garboso rapaz dos seus vinte anos que ela mal conhecia, pois vivia numa casa isolada lá no alto, nos matos sempre cobertos de névoa, mas com quem se cruzara várias vezes, quando ele montado no seu alazão descia à aldeia – Olá Manuel e ele olhava para ela, os olhos negros exibindo um claro desejo e ela sabia que o poderia encontrar num pasto perto do Morro Alto, longe da aldeia, e porque a necessidade de saber mesmo como é que aquilo era era maior do que ela, procurara-o e encontrara-o como se por acaso e encostara-se a ele como se por desequilíbrio e descuido e o Manuel não resistira, que não queria por nada resistir – É a primeira vez, não sei como se faz. – Deixa comigo, eu sei como fazer e sabia, e ela agarrou-se com força àquele corpo poderoso de jovem macho e foi bom logo nessa primeira vez, até que lhe doeu, mas doeu uma dor boa e no fim limpou-se com umas folhas de cana-roca, que as há por todo o lado na ilha, embora não tantas pelo alto como em torno dos pastos 35


mais em baixo, e o sangue e o sémen não eram assim em tanta quantidade – Adeus Manuel, até amanhã. – Amanhã? – Sim, amanhã, aqui, a esta mesma hora, mas levas-me ao Morro Alto no teu alazão, nunca lá fui, e fazemos lá outra vez e no dia seguinte, no alto do Morro Alto, o olhar abarcando o planalto cortado por vales profundos ao derredor, a imensidão do mar azul que tudo cerca, a Gémea, que nesse momento Deus deixava que se visse, estendeu-se no pasto e recebeu o Manuel, e até foi melhor do que na véspera, embora lhe doesse mais, que a tinha ainda ferida, e com o Manuel foram só essas duas primeiras vezes, pois que ele emigrou para o Canadá dias depois e não voltou a vê-lo, mas ficara-lhe a marca daquele corpo forte e seco, feito de osso e de músculos, daquela pele curtida pelo frio, pelo vento e pela chuva e depois dessa primeira vez, quando lhe vinha aquela vontade, sempre encontrara outro que para ela estivesse disponível e cujo corpo lhe agradasse como agradara o do Manuel, que os homens da ilha, pelos muitos esforços que fazem, ele é a monda, ele são as silagens, o passar o milho, o fazer os fardos, ele é o agarrar em força os bezerros para os vacinar e lhes colocar as etiquetas de identificação nas orelhas, quais brincos de âmbar, têm os corpos escorreitos e musculados, coisa de que ela ainda hoje gosta e assim era só escolhe-los, não eram eles que a escolhiam, 36


não foram assim tantos, foi pena, deviam ter sido muitos mais, assim era só escolhe-los e deitar-se com eles nos pastos, as mais das vezes entre vacas e bezerros, o barulho do rebentar das ondas na base das falésias a musicar-lhes o encontro dos corpos. O primeiro com que assentara, teria bem mais de vinte anos, já então sabia de saber próprio o que era uma mulher feita, fora o Cândido, homem de pernas curtas e grande tronco, maciço, um tronco em que uma mulher podia confiar e sobre ele deixar-se adormecer nas noites de trovoada, homem de mãos fortes, grossas e ásperas, que a agarravam devidamente nos sítios e nos momentos certos, com o Cândido as coisas até que correram bem, ao ponto de terem tido uma filha, a sua única filha, a Isabel, ele era bem mais velho, mas tão ingénuo e moldável, que ela o soube trabalhar e fazê-lo fazer a seu jeito durante alguns anos, não se lembrava bem de quantos, até que a pouco e pouco ele deixara de a desejar, deixara de querer meter dentro dela aquela coisa grossa dele que a enchia e de que ela tanto gostava, nem sequer os banhos de água muito quente na celha da solitária o espevitavam e por isso e não querendo voltar a deitar-se nos pastos em encontros de ocasião se fora com o Adriano, mais parte da mobília, os porcos e as galinhas, restava uma, a poedeira, que ela defendeu a muito custo, já que os porcos e as outras galinhas os acabou por comer o Adriano, homem de muito alimento e de um corpo gigantesco que muito prometia, devia ter mais de um metro 37


e noventa, grande engano fora, durou pouco aquilo com o Adriano, não chegou a dois anos, pois que não era homem para ela, não que ele não a quisesse, até que queria, mas era só uma vez de vez em quando, nem as muitas gemadas que ela lhe fazia, que a poedeira era generosa no pôr, o reanimavam e o pior é que apesar de todo o saber que ela sabia e praticava eram sempre trabalhos de curta duração, nunca lhe davam tempo, não a satisfaziam, por isso também o deixara e regressara, ao fim de meia dúzia de anos, sozinha, ao pequeno palheiro feito casa de gente que o pai lhe deixara, quarto em cima, cozinha em baixo, uma escada de madeira estreita e muito inclinada a ligar as duas divisões, no cimo da qual o mestre Jacinto Carpinteiro, pagara-lhe com duas galinhas e um borrego, na altura ainda tinha ovelhas, fizera um corrimão de protecção, não vá a gente distrair-se a meio da noite e cair pela escada abaixo quando nos dá aquele aperto que nos obriga a levantar e a ir meio ensonadas de corrida à solitária, que a privada fica lá fora, por detrás da casa, como também era na casa do Cândido. Nesse palheiro feito casa, situado na parte alta da aldeia, entrara tempos depois o Ilídio que ela trouxera uma noite do outro lado da ilha, depois de com ele muito bailar durante uma grande festa, como o era em tempos a nossa, a da Senhora do Pilar, antes me tivesse mudado eu para casa dele e isso é que foi amor, amor como nunca tinha tido, amor que lhe enchia o corpo e a alma, que o Ilídio também a tinha 38


grossa e era homem de muitas vidas e de muito saber, quer de cama quer de conversação, e com ele era uma e outra vez e em arranjos e posições que ela desconhecia e que tão gozosas eram e o corpo do Ilídio, seco, esguio, de músculos longos e tensos, bons de agarrar com ambas as mãos, trazia-lhe invariavelmente à memória o do Manuel e aquelas duas primeiras vezes que com um homem se deitara. Era um retomar de sensações antigas mas ampliadas, mais densas, mais profundas e quando aqueles olhos cinzentos se punham nela, desconcertantes, impenetráveis, sem que ela verdadeiramente percebesse o que diziam, se era de amor por ela que brilhavam, se ele estava ali ou em outro lugar muito longe, agarrava-se ao seu corpo como se à vida, aos seus cabelos que tinham começado a ficar grisalhos, ao seu sexo, às suas coxas, numa fome desesperada de sentir que era a ela que ele queria, a ela tão sómente, e num querer acreditar que aquele amor seria duradouro, para sempre ela sabia que não, apenas duradouro. Mas agora fora o Ilídio, que ela amava verdadeiramente, pela primeira vez na vida sentia o que era amar um homem, com o Ilídio o verde dos seus olhos era sempre escuro, quase preto, agora fora o Ilídio que a trocara pela escanzeladada da vizinha, a Paulina, aquilo não é corpo de mulher, umas boas mamas, um rabo espetado, mas de resto só ossos e peles, que um homem deve ficar com as partes baixas cheias de nódoas negras de tanto em osso bater, mas 39


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