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(Dicionário bibliográfico português, Tomo XII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894)
Joaquim Martins de Carvalho
JOAQUIM MARTINS DE CARVALHO, natural de Coimbra. Nasceu na Rua de Coruche, da freguesia de S. Tiago, aos 19 de novembro de 1822. Destinavam-no seus pais ao estado eclesiástico, para o que frequentou uma das aulas de Latim que os jesuítas tinham em Coimbra, nos anos de 1833 e 1834; ficando, porém, órfão em tenros anos, não pôde continuar os estudos; e por isso teve de seguir a carreira do comércio e depois a das artes. Por se achar envolvido nos acontecimentos políticos, de que resultou a guerra civil, denominada da Maria da Fonte (1846-1847), foi preso em 4 de fevereiro de 1847, e conduzido em 19 do mesmo mês, com alguns Lentes da Universidade e outros indivíduos, para a Figueira da Foz, e dali para Buarcos, onde o obrigaram a embarcar no vapor da marinha de guerra Terceira com destino a Lisboa. Aqui o meteram na cadeia do Limoeiro com os demais companheiros, e se conservou na prisão até o dia 29 de abril de 1847, em que, juntamente com os outros presos, pôde evadir-se. Foi recapturado no mesmo dia, e só o soltaram em virtude da Convenção de Gramido, em julho do indicado ano. Tem prestado inumeráveis serviços à classe operária e às letras pátrias. Em 1851 cooperou em Coimbra com alguns académicos e artistas na fundação da Sociedade de Instrução dos Operários, que prestou muitos benefícios aos desvalidos. No mesmo ano foi o principal fundador do Montepio Conimbricense, que teve, e tem ainda hoje, vida próspera e segura. Tem pertencido a outras associações, e desempenhado várias comissões, não poupando esforços para lhes ser útil. Em 1851 também administrou e colaborou no Liberal do Mondego, folha que então saía em Coimbra; e colaborou no Observador, gazeta cuja publicação começara naquela cidade no dia 16 de novembro de 1847, e da qual veio a ser proprietário, quando mudou o título para o de Conimbricense, em 24 de janeiro de 1854. Em 30 de outubro de 1855, fundou uma tipografia na Rua de Coruche para imprimir o mencionado periódico, e atualmente a possui na Rua das Figueirinhas, onde igualmente reside e possui uma escolhida biblioteca, valiosa não só pela quantidade de volumes, mas pelo grande número de miscelâneas e coleção de obras políticas e históricas, em harmonia com os estudos prediletos do seu proprietário, tantas vezes demonstrados nas páginas do Conimbricense, sem dúvida a folha portuguesa que tem mais vasto e importante repositório de escritos e memórias acerca da antiguidade do Reino, e especialmente de Coimbra; e a que encerra maior soma de notas e apreciações de subido mérito para a história política e literária de Portugal, compreendendo esclarecimentos inéditos, fruto de aturadas e bem sucedidas investigações do seu benemérito redator. BRITO ARANHA
Apontamentos para a História Contemporânea
OBRAS DE JOAQUIM MARTINS DE CARVALHO
Joaquim Martins de Carvalho
Apontamentos para a História Contemporânea Recolha de textos, introdução e notas por
Mário Araújo Torres www.sitiodolivro.pt
Joaquim Martins de Carvalho nasceu em Coimbra em 19 de novembro de 1822 e aí faleceu em 18 de outubro de 1898, Órfão muito jovem, o regime de morgadio então vigente determinou que a parte substancial do património familiar fosse encabeçada no filho primogénito, Venceslau Martins de Carvalho. Como filho segundo, fora Joaquim Martins de Carvalho destinado à carreira eclesiástica, ao que ele resistiu. A sua única instrução formal consistiu na frequência, durante um ano, em 1833, da aula de Latim no Colégio das Artes, então dirigido pelos jesuítas. Deve-se ao seu abnegado esforço de autodidata a aquisição de vastíssimos conhecimentos, sobretudo nas áreas da história e da bibliografia. Na sua juventude, exerceu as modestas profissões de empregado comercial e de latoeiro, que lhe valeu o epíteto de Doutor Latas ou Lord Latas. Convicto lutador liberal, esteve vários meses preso na cadeia do Limoeiro, em 1847, como membro do Partido popular (patuleio) contra o cabralismo. Depois de libertado, dedicou-se ao jornalismo, essencialmente no Observador (1847-1853), a que sucedeu, logo em janeiro de 1854, o Conimbricense, de que foi proprietário, diretor e principal redator, até à sua morte, em 1898. Liberal progressista, foi membro da Maçonaria e da Carbonária Lusitana. Promotor do associativismo, sobretudo no sentido do progresso económico da região de Coimbra e da defesa das classes laboriosas, nos domínios da instrução e do mutualismo. Foi membro de diversas instituições científicas, designadamente a Academia das Ciências de Lisboa e o Instituto de Coimbra. Em vida publicou dois livros, com seleção de artigos e estudos seus saídos em O Conimbricense: Apontamentos para a História Contemporânea e Os Assassinos da Beira.
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APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
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A NOSSA ALIADA!
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título: A pontamentos
para a História Contemporânea seguido de A Nossa Aliada! Martins de Carvalho (1822-1898) edição: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) recolha de textos, introdução e notas: Mário Araújo Torres autor: Joaquim
F otografia de Joaquim Martins de Carvalho, publicada em Os livros em sua ordem: Para a história da Biblioteca Geral da Universidade (antes de 1513-2013), coordenação de A. E. Maia do Amaral, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, pág. 97. capa: Ângela Espinha paginação: Paulo Resende
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1.ª edição Lisboa, novembro 2021 isbn:
978‑989-9028-42-5 489879/21
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depósito legal:
© Mário Araújo Torres
Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao seu autor, a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. publicação e comercialização:
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JOAQUIM MARTINS DE CARVALHO
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APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
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A NOSSA ALIADA!
Recolha de textos, introdução e notas por Mário Araújo Torres
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INTRODUÇÃO I ‒ NOTAS SOBRE A VIDA E A OBRA DE JOAQUIM MARTINS DE CARVALHO
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1. Joaquim Martins de Carvalho nasceu em 19 de novembro de 1822, em Coimbra, na freguesia de São Tiago, numa casa da então estreita e tortuosa Rua de Coruche, que ligava a Rua da Calçada (a que, em 1883, foi dado o nome de Rua Ferreira Borges) ao Largo de Sansão (desde 1874, oficialmente designada Praça 8 de Maio, para comemorar a entrada das forças liberais em Coimbra, em 8 de maio de 1834). Viveu nessa casa até 1858, ano em que foi sacrificada por força das obras de alargamento e retificação da via, que então passou a designar-se Rua Visconde da Luz 1. Posteriormente residiu, até à data do seu falecimento, em 18 de outubro de 1898, numa casa da Rua das Figueirinhas, arruamento a que, em 1888, por iniciativa do Montepio Conimbricense, apoiada pela Associação dos Artistas de Coimbra, foi dado o nome de Rua Martins de Carvalho, “em comemoração do 66.º aniversário natalício daquele cidadão a 19 do corrente, pelos serviços importantes que tem prestado, como jornalista, a bem dos interesses desta cidade” 2. Foi o segundo filho varão de Máximo José de Martins e de Maria do Rosário de Carvalho, falecidos, respetivamente, em 1828 e 1833, por ocasião da cholera morbus. A parte principal do património familiar consistia em prédios rústicos na região de Atadoa (Condeixa-a-Nova), onde seu avô materno, Manuel Agostinho de Carvalho, fora importante proprietário, capitão de ordenanças e juiz da Confraria da Igreja do Santíssimo de Condeixa-a-Velha 3. Esses prédios estavam vinculadas ao regime do morgadio 4, pelo que a sua propriedade se transferiu integralmente para o filho varão primogénito, Venceslau Martins da Carvalho, nascido em 28 de setembro de 1817 5. Órfão de pai aos 6 anos de idade (1828) e de mãe aos 11 (1833), a Joaquim Martins de Carvalho foi-lhe nomeado tutor o seu tio Joaquim António Dinis, que, destinando-o ao estado eclesiástico, o fez
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frequentar, no ano letivo de 1833/1834, a cadeira de Latim no Colégio das Artes, então dirigido pelos jesuítas 6. Foi essa a única educação formal de que Joaquim Martins de Carvalho beneficiou. Dando precoces mostras do seu espírito independente e rebelde, negou-se Joaquim Martins de Carvalho a seguir a carreira eclesiástica e, reputando intoleravelmente injusto o regime do morgadio, segundo revela o seu sobrinho Alberto de Almeida Martins de Carvalho 7, recusou o apoio económico que o seu irmão morgado se teria proposto facultar-lhe 8, optando por ganhar ele próprio o seu sustento, com empregos humildes, no comércio e como artífice latoeiro, que durante a sua vida lhe valeria o epíteto de Doutor das Latas ou Lord Latas, com que os seus futuros adversários políticos, supondo deprimi-lo ou minimizá-lo, irão lembrar-lhe a sua humildade profissional de origem, designação que ele próprio não repeliu e de que sempre se vangloriou. Esta opção levou-o a abandonar a instrução formal, o que suscitou forte desaprovação do seu tio e tutor, que, para exteriorizar o seu desagrado, não o convidou para a cerimónia de imposição de insígnias doutorais da Faculdade de Direito a seu filho, Francisco António Dinis 9. Como reação a esta afronta, terá Joaquim Martins de Carvalho resolvido estudar por si próprio, dedicando-se ao jornalismo e à história, e conseguindo, como autodidata, tornar-se um jornalista e historiador altamente apreciado e estimado 10. Entretanto, em 27 de setembro de 1844 nasce em Coimbra, provavelmente de uma relação extramatrimonial 11, o único filho de Joaquim Martins de Carvalho, Francisco Augusto Martins de Carvalho 12, que, após uma brilhante carreira militar, lhe sucederá na direção de O Conimbricense. 2. De sólidas convicções liberais progressistas, Joaquim Martins de Carvalho inicia a sua atividade política no período de forte contestação ao governo despótico de Costa Cabral (1842). A oposição do “partido popular” ao cabralismo ‒ que teve a primeira manifestação na revolução militar de fevereiro de 1844 em Torres Novas, que alastrou a Coimbra, mas que seria jugulada com o cerco à Praça de Almeida e a suspensão das garantias políticas
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(ver o capítulo XVIII da I Parte dos Apontamentos para a História Contemporânea) ‒ traduziu-se em Coimbra sobretudo através da publicação do jornal A Oposição Nacional (23 números, de julho a setembro de 1844, quando foi proibido pelas autoridades), ligado à loja maçónica Filadélfia, com João Lopes de Morais 13 como editor, António Augusto Teixeira de Vasconcelos 14 como redator principal, e António Luís de Sousa Henriques Seco 15, Justino António de Freitas 16, Francisco José Duarte Nazaré 17 e Agostinho de Morais Pinto de Almeida 18 como colaboradores. A crescente oposição ao cabralismo explode na revolta da Maria da Fonte, na primavera de 1846, que rapidamente se estende do Minho a todo o país, obrigando D. Maria II a demitir, em maio de 1846, o seu valido Costa Cabral e a nomear novo governo, chefiado pelo Duque de Palmela, com a promessa da realização de eleições. A revolução popular, triunfante em Coimbra, manifestou-se, logo em 16 de maio de 1846, com a saída do Boletim Oficial de Coimbra, publicado pelo Doutor Manuel dos Santos Pereira Jardim 19, secretário interino da “Comissão preparatória até a instalação da Junta”, que, no dia imediato, após eleição da Junta Governativa, presidida por José Alexandre de Campos 20, deu lugar a O Grito Nacional (135 números, de maio a dezembro de 1846), em que colaboraram os ainda estudantes João de Lemos 21 e Sebastião Frederico Rodrigues Leal 22, além de Joaquim Marcelino de Matos 23 e Joaquim Guilherme de Sousa Refoios. Como sucessor da Oposição Nacional, surgiu O Povo (113 números, de junho a dezembro de 1846), com António Francisco dos Santos Crespo e o Padre António Lopo Correia de Castro 24, o Padre Patuleia (ver, na II Parte, o capítulo “18441851 ‒ Imprensa da Oposição Nacional e do Povo”). Confiada no afastamento de Costa Cabral, a Junta Governativa de Coimbra cessou funções em 9 de junho de 1846 (ver Capítulo XIX da I Parte destes Apontamentos). As esperanças assim criadas são rapidamente defraudadas com o golpe palaciano conhecido por Emboscada, quando a Rainha, na noite de 6 de outubro de 1846, chama Palmela a Belém, força-o a demitir-se e nomeia novo Governo, presidido por Saldanha, recém-chegado de Itália, composto por vários ministros cabralistas, que
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suspende a realização de eleições. A notícia da Emboscada desencadeia a sublevação do Porto, chefiada por José Passos, presidente da Câmara, e com o comando militar do Conde das Antas, nomeado presidente da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino. Iniciou-se assim a Guerra da Patuleia, que só terminará em 29 de junho de 1847, com a assinatura da Convenção de Gramido, pelos comandantes das forças militares espanholas e britânicas, que tinham entrado em Portugal ao abrigo da Quádrupla Aliança, e os representantes da Junta do Porto. Com a reviravolta da Emboscada e os avanços e recuos da Guerra da Patuleia, Coimbra voltou, no início de 1847, ao controlo das forças governamentais, que iniciaram feroz perseguições aos patuleias. Um dos primeiros a ser capturado, por ordem do quartel-general do Duque de Saldanha, existente em Oliveira de Azeméis, de acordo com as autoridades cabralistas de Coimbra, foi Joaquim Martins de Carvalho, em 4 de fevereiro de 1847, a que se juntaram, no subsequente dia 19, mais doze, presos em Coimbra e seu concelho, entre eles 25 os Lentes da Universidade Agostinho de Morais Pinto de Almeida 18, Francisco Fernandes da Costa 26, Francisco José Duarte Nazaré 17 e Raimundo Venâncio Rodrigues 27. A eles se juntaram mais 15 presos, todos de fora de Coimbra 28, que haviam chegado a esta cidade poucos dias antes das prisões efetuadas no dia 19 de fevereiro. Nesse dia, os 28 presos foram conduzidos em diferentes barcos para a cadeia da Figueira da Foz, e a 21 embarcaram a bordo do vapor de guerra Terceira, sendo sempre acompanhados por uma numerosa força de Infantaria n.º 4, dando entrada na Cadeia do Limoeiro ao anoitecer do dia 22. A Joaquim Martins de Carvalho, segundo as particulares instruções que tinham ido de Coimbra, foi aplicado o maior rigor: após uma noite na enxovia n.º 15, a qual estava cheia de numerosos presos, foi, na manhã do dia 23, enclausurado na terrível Casa Forte. Em 29 de abril de 1847, juntamente com os outros presos, conseguiu evadir-se, mas foram recapturados nesse mesmo dia (com exceção de Raimundo Venâncio Rodrigues, que conseguiu refugiar-se
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em casa de amigos, que o acolheram até ao fim da guerra), tendo Joaquim Martins de Carvalho estado na iminência de ser então assassinado. Finalmente libertado em julho de 1847, Joaquim Martins de Carvalho regressa a Coimbra, onde em breve iniciará a sua carreira de jornalista, a que se dedicará até à sua morte.
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3. Apesar da amnistia decretada pela Convenção de Gramido, em Coimbra não se seguiu a esperada pacificação, prosseguindo as perseguições aos patuleias por parte dos cabralistas, organizados num clube na Couraça de Lisboa, nas casas do antigo juiz da comarca, José Ricardo Pereira de Figueiredo, que, em 1845, havia pronunciado e ordenado a prisão dos tidos por responsáveis pela publicação do folheto Duas palavras aos governados por ocasião das eleições, o que levou ao encerramento da tipografia da Oposição Nacional. Envolvendo-se Joaquim Martins de Carvalho na campanha para a manutenção de José Cupertino da Fonseca e Brito 29 como secretário-geral do Governo civil, de que era titular o Visconde de Valongo 30, ambos desafetos aos cabralistas, foi por esse motivo, em 14 de setembro de 1847, espancado por um grupo de nove sicários, armados de clavinas, que o feriram gravemente na cabeça. Para reagir contra este estado de coisas, membros do partido progressista decidiram fundar um jornal, com o título O Observador, saindo o primeiro número em 16 de novembro de 1847, tendo por: editor, José Maria Dias Vieira; fiador, Francisco Henriques de Sousa Seco 31; administrador, José de Morais Pinto de Almeida 32; e primeiros colaboradores, Justino António de Freitas 16, Agostinho de Morais Pinto de Almeida 18, António Luís de Sousa Henriques Seco 15 e Francisco José Duarte Nazaré 17; a que depois se associaram José Maria de Abreu 33, Joaquim Augusto Simões de Carvalho 34 e António Xavier Rodrigues Cordeiro 35. Lê-se no editorial do número inaugural: “A segurança pública tem sido uma mentira, as vinganças particulares apareceram com todos os horrores desde que houve certeza da impunidade, os espancamentos e assassinatos a título de opiniões políticas têm
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sido presenciados por toda a parte; enfim, e para em tudo se faltar ao programa pomposo, cuja execução se nos afiançara, deu-se-nos há pouco o espetáculo da mais completa prostituição da urna que pode imaginar-se.”
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É este o primeiro jornal em que Joaquim Martins de Carvalho participa, primeiro como revisor; depois, como colaborador, fazendo a sua estreia jornalística num pequeno artigo publicado no dia 13 de agosto de 1850, com o título “Sociedades de Socorros Mútuos”; mais tarde, como comproprietário; e, finalmente, como substituto efetivo do editor titular, José de Morais Pinto de Almeida, nos períodos de ausência deste em Lisboa, como Deputado
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4. Entretanto, quando, em 27 de maio de 1851, um grupo de 41 liberais progressistas funda o jornal O Liberal do Mondego, tendo como redator principal o Doutor Antonino José Rodrigues Vidal 36, e entre os quais se contavam os Lentes da Universidade João Lopes de Morais 13, Francisco Fernandes da Costa 26, Manuel Pais de Figueiredo e Sousa 37, Pedro Augusto Monteiro Castelo Branco 38, Francisco Ferreira de Carvalho 39 e José Gomes Ribeiro 40, é escolhido para administrador Joaquim Martins de Carvalho, identificado como “artista e administrador de jornal”, e que colaborará, logo no n.º 1, de 3 de junho de 1851, com quatro notas de atualidade política 41, a que se seguem dois trechos de maior fôlego 42. O jornal apresenta-se nestes termos, no editorial desse n.º 1:
“A necessidade de um jornal que, advogando os interesses gerais, represente ao mesmo tempo os da Universidade de Coimbra, é de todos reconhecida. Se o não há, se o não tem havido, não discutiremos nós agora; se o será o jornal cuja publicação empreendemos, o público, único juiz competente, o julgará sem recurso. Da nossa parte ficará, e isso prometemos nós, fazer todos os esforços ao nosso alcance para que a importância política da Terceira Cidade do Reino, da antiga capital da Monarquia, por tanto tempo desconhecida, reconquistada pela Revolução do Minho, e de novo firmada pela Revolução do Duque de Saldanha, não seja perdida.”
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Joaquim Martins de Carvalho cessou as funções de administrador de O Liberal do Mondego no n.º 49, de 23 de setembro de 1851. Nas decisivas eleições de 2 de novembro de 1852, Joaquim Martins de Carvalho é eleito, pela freguesia de S. Tiago, para integrar o conselho eleitoral do círculo de Coimbra. O Liberal do Mondego (n.º 67, de 4 de novembro de 1852) salienta a importância desta primeira eleição de um “artista” nestes termos:
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“O dia 2 de novembro abriu uma nova época de vida social e transmitirá à posteridade que os artistas da Lusa Atenas não hesitam empregar todos os seus esforços para o completo triunfo da democracia. A classe operária de Coimbra, que sobejas provas tem dado de acrisolado amor da Pátria e da Liberdade, e que se ufana de ter ocupado a vanguarda no momento do perigo, (...) já conta um eleitor: é o Sr. Joaquim Martins de Carvalho, artista ilustrado. (...) Saudamos os paroquianos de S. Tiago, a quem estava destinada a glória de primeiro encetar a eleição de um artista. Tão patriótico procedimento revela exuberantemente a sua ilustração.”
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5. Interrompida a publicação de O Liberal do Mondego, nos anos subsequentes Joaquim Martins de Carvalho vai assumindo relevância crescente na redação e administração de O Observador, participando na sua propriedade e mantendo firme a orientação de desassombrada denúncia dos despotismos do governo cabralista, suas autoridades e satélites, bem como do banditismo que grassava na província da Beira. Nos finais de 1853, O Observador publica diversa correspondência de Lavos, denunciando os crimes da responsabilidade de Joaquim Gonçalves Curado, mais conhecido por Joaquim da Marinha, administrador desse concelho desde 1841, destituído a seguir à revolução popular de maio de 1846, mas reposto no poder em 1847 pelo governo cabralista. Tinha o Joaquim da Marinha um grande protetor no seu compadre Frutuoso José da Silva, abastado proprietário de Coimbra e amigo íntimo de José de Morais Pinto de Almeida, que oficialmente era o editor do Observador, mas que estava ausente
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em Lisboa, como Deputado, sendo Joaquim Martins de Carvalho o responsável efetivo pela edição do jornal. Em meados de janeiro de 1854, José de Morais Pinto de Almeida escreve para Coimbra, ameaçando interromper a publicação do Observador se prosseguissem os ataques ao criminoso de Lavos. Indignado, Joaquim Martins de Carvalho procura o então Governador civil de Coimbra, António Luís de Sousa Henriques Seco, e juntos decidem mudar o nome do periódico para O Conimbricense e passando Joaquim Martins de Carvalho a ser o editor responsável dele. No sábado, 21 de janeiro de 1854, saiu o último número (n.º 681) de O Observador, e na 3.ª-feira, 24 de janeiro de 1854, apareceu o n.º 1 de O Conimbricense, com Joaquim Martins de Carvalho como responsável 43. No editorial desse número inaugural, lê-se:
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“Um princípio de justiça, um ponto de honra, uma causa de pundonor para a sua redação dão hoje começo a este jornal, cuja origem já se vê que é nobre e se deve esperar que a sua vida o seja igualmente. Adotamos este título porque o nosso jornal, não aspirando à vanglória de representante principal da política liberal progressista, contenta-se apenas com o modesto título que mais quadra à posição que pretende ocupar na imprensa, a saber: a defesa dos interesses de Coimbra e do seu distrito, e, se tanto for mister, também da província da Beira. Além de que não devíamos agora denegar-lhe o nome que já quisemos por no jornal que em 1845 pretendemos publicar nesta cidade e que, a despeito dos nossos esforços, nunca conseguimos que prosseguisse, graças ao arbítrio desregrado dos mandões dessa época, os quais, mancomunados, estabeleceram entre si um conflito de jurisdição negativa, para que nos não tomassem conta da habilitação 44. Vê-se, pois, ainda que o nome do Conimbricense é também um protesto contra o despotismo. E, por último, tomará a peito, muito principalmente, a causa da ordem e segurança pública; e para este fim defenderá sempre o fraco contra o forte, e pedirá a aplicação das penas convenientes contra os criminosos, aos quais não dará tréguas, porque não tem, e mesmo rejeita, com eles e os seus protetores, quaisquer que eles sejam, obscuros ou poderosos, todos os compromissos.”
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A partir daí, a vida de Joaquim Martins de Carvalho confundiu-se com a do Conimbricense: “edita-o, e por ele se responsabiliza; escreve-o todo ‒ folhetim, artigo de fundo, escavações históricas, noticiário; administra-o; cinta-o até!” 45. Joaquim Martins de Carvalho dirigiu O Conimbricense até morrer, em 1898, sendo desde o seu falecimento substituído na direção por seu filho, Francisco Augusto Martins de Carvalho, que continuou nessa direção até que o periódico terminou com o n.º 6230, de 31 de agosto de 1907. No ano seguinte, ainda o General Martins de Carvalho fez sair um número único, em 11 de julho de 1908, para celebrar o centenário do primeiro periódico de Coimbra ‒ Minerva Lusitana, cujo primeiro número saíra em 11 de julho de 1808. Sob a sua direção, O Conimbricense foi um combatente corajoso e pertinaz contra o banditismo que grassava na província da Beira, com a complacência ou a proteção das autoridades políticas e administrativas, que encontravam nos chefes dos guerrilheiros preciosos instrumentos de caciquismo eleitoral. Essa luta colocou pelo menos por duas vezes Joaquim Martins de Carvalho na mira dos assassinos: em 28 de junho de 1854, véspera da festividade de S. Pedro, andou João Brandão, “o terror da Beira”, trajado de estudante, a percorrer a cidade para o liquidar, e a 1 de maio de 1856, dia de Ascensão, chegou a Coimbra o António Rodrigues, o Boa Tarde, que, com apenas 26 anos, já tinha praticado seis assassinatos, e a quem a morte de Joaquim Martins de Carvalho havia sido encomendada pelo vigário de Antuzede, Francisco José Pereira de Figueiredo, e por João Lúcio de Figueiredo Lima, o Lima Valentão, cujos crimes haviam sido denunciados no Conimbricense 46. Outro alvo das críticas severas de Joaquim Martins de Carvalho eram os comportamentos tidos por menos próprios por parte dos estudantes da Universidade, que suscitavam frequentes diatribes no Conimbricense, com subsequentes remoques por parte da Academia, mas que acabariam com a publicação do número único do Preito Académico, na homenagem, em 1888, ao decano dos jornalistas portugueses, por ocasião do seu 66.º aniversário natalício 47. Na comemoração quinquagenária de O Conimbricense, jornal e diretor foram homenageados pelo historiador João Augusto Marques
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Gomes, com a publicação de O Conimbricense e a história contemporânea (Aveiro, 1897), em que apontou, ano por ano, os artigos mais importantes sobre a história portuguesa contemporânea, insertos no jornal desde o ano de 1866, lendo-se na introdução:
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“É preciosa a coleção do Conimbricense. Mais vasto repositório de história não é possível encontrar-se em nenhum jornal político dos muitos que se têm publicado no país. É um arquivo inestimável de factos e documentos valiosíssimos, uma bússola indispensável a todos os cabouqueiros da história pátria. Quando mais não seja a história contemporânea de Portugal não pode fazer-se com segurança sem a consulta prévia da coleção do Conimbricense. Está ali reunido um trabalho da mais acurada investigação, longo, de muitos anos, bastante só de per si para firmar a reputação de uns poucos de historiadores. E essa obra enorme, riquíssima, é o fruto do trabalho de um só, deve-se ao venerando jornalista Joaquim Martins de Carvalho, uma glória do jornalismo português, de quem hoje é ilustre decano.”
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Em 1953, José Pinto Loureiro publicou o Índice ideográfico de «O Conimbricense» (separata de Boletim da Biblioteca da Universidade, Suplemento ao vol. 21.º), referindo na nota de apresentação: “Não tendo ele sido verdadeiramente um escritor, na aceção estilística do termo, foi um jornalista ardoroso e intemerato, arrostando tão corajosamente os perigos como afrontava sobranceiramente chufas e arruaças, em luta permanente contra tudo e contra todos pelo Progresso, pela Ordem e pela Verdade. Foi uma figura típica de um período tempestuosamente agitado, concentrando-se sobre as suas coleções e os seus livros, salvando da destruição tudo o que tivesse valor cultural ou histórico e tudo arquivando nas colunas do seu jornal, a todos prodigalizando generosamente o fruto das suas canseiras. Autodidata incansável e perseverante, foi eleito sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa (1895) e forçou as portas da história da literatura, como historiador e como jornalista, valendo-se somente da sua inteligência, do seu temperamento combativo, da sua indomável coragem e da sua inquebrantável vontade ao serviço de uma incontida ânsia de tudo averiguar, de tudo saber, de tudo comunicar pela palavra impressa,
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sempre minudente nas suas informações, passadas pelo crivo severo da mais escrupulosa probidade.”
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A par da parte noticiosa da atualidade política internacional, nacional e local, inteiramente a seu cargo, Joaquim Martins de Carvalho reproduziu no seu Conimbricense preciosos documentos descobertos nas suas incessantes investigações bibliográficas e estudos de fundo em forma de folhetins, de que se destacam as séries dedicadas à História dos hospitais de Coimbra, à História da Irmandade da Venerável Ordem Terceira da Piedade de Coimbra, e aos Apontamentos para a história da tipografia em Coimbra, além de inúmeras biografias. Entre os muitos nomes da cultura e da política que colaboraram no Conimbricense contam-se: Abílio Augusto da Fonseca Pinto, Abílio Roque de Sá Barreto, Alberto Bessa, Aníbal Fernandes Tomás, António Augusto Gonçalves, António Cardoso Borges de Figueiredo, António de Faria, António Feliciano de Castilho, António Francisco Barata, António José Ferreira Caldas, António José Teixeira, António Ribeiro Saraiva, António de Serpa Pimentel, Augusto Filipe Simões, Augusto Xavier da Silva Pereira, Bernardino Machado, Fran Paxeco, Francisco Augusto Rodrigues de Gusmão, Francisco Manuel de Sousa Viterbo, Gabriel Fernandes, Inocêncio Francisco da Silva, João Correia Aires de Campos, Joaquim de Araújo, Joaquim Possidónio da Silva, José Liberato Freire de Carvalho, José Luciano de Castro, José Maria Pereira Forjaz de Sampaio, José Silvestre Ribeiro, Júlio César Machado, Luciano Cordeiro, Olímpio Nicolau Rui Fernandes, Simão José da Luz Soriano, Teófilo Braga, Tomás Ribeiro, etc.
6. Sendo naturalmente O Conimbricense o centro principal da produção jornalística de Joaquim Martins de Carvalho, ele não deixou de colaborar, para além de no O Liberal do Mondego e de no O Observador, já assinalados, noutras publicações periódicas, como no Jornal dos Artistas (1878-1879). semanário democrático que tinha por fim defender os interesses da classe operária; no número único (dedicado à memória do Marquês de Pombal) da Folha Literária
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(8 de maio de 1882), dirigida por Eugénio de Castro; no número único de Fraternidade Militar (30 de abril de 1887), da iniciativa de seu filho Francisco Augusto Martins de Carvalho, promovido pela comissão da festa militar realizada pelos oficiais do Regimento de Infantaria n.º 23; e na revista O Instituto (“A Imprensa da Universidade”, no volume XL, n.º 6, dezembro de 1892, págs. 448 a 461).
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7. Apesar de dedicar vários capítulos dos seus Apontamentos para a História Contemporânea às associações secretas em Coimbra, nunca Joaquim Martins de Carvalho se refere a si próprio como membros delas. Porém, é sabido que pertenceu à Carbonária Lusitana, de Coimbra, entre 1848 e 1850 48, tendo desempenhado os cargos de 1.º Secretário da barraca Igualdade, de que era presidente Antonino José Rodrigues Vidal 36, e de Orador da choça 16 de Maio (nome adotado para comemorar a vitória da revolução popular contra o cabralismo em Coimbra, em 16 de maio de 1847), de que era presidente António Marciano de Azevedo 49; esta choça depois reorganizou-se sob o nome de choça Segredo, de que Joaquim Martins de Carvalho foi presidente, usando sempre o nome simbólico de Ledru Rollin 50. Foi iniciado na Maçonaria, com o nome simbólico de Lamartine, em 1852, na loja Pátria e Caridade 51, de que era Venerável Filipe do Quental 52, que usava o nome simbólico de Chatterton. 8. A promoção do associativismo das classes operárias, com fins instrutivos e mutualistas, foi também uma preocupação constante de Joaquim Martins de Carvalho. Da conjugação de esforços de alguns alunos da Universidade com operários surgiu, em outubro de 1851, a Sociedade de Instrução dos Operários, de cuja primeira direção fizeram parte Joaquim Martins de Carvalho (presidente), Carlos Ramiro Coutinho 53 e Filipe do Quental 52 (secretários), ficando as aulas a cargo destes e dos então ainda estudantes José Afonso Botelho de Andrade da Câmara 54, António José Teixeira 55, Albino Augusto Geraldes 56, João António dos Santos Silva 57 e Jacinto António Perdigão 58, como se descreve no Capítulo XXIII da I Parte desta obra.
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Também em 1851 fundou o Montepio Conimbricense, a que posteriormente (1882) viria a ser dado o nome de Associação de Socorros Mútuos Montepio Conimbricense Martins de Carvalho, visando proteger os operários e suas famílias em situações de infortúnio (desemprego, doença, velhice, morte, orfandade, viuvez). Em 1872 organizou a Biblioteca Popular da Sociedade Terpsicore Conimbricense, depois denominada Centro Promotor de Instrução Popular. Foi ainda sócio da Associação dos Artistas de Coimbra, da Escola Livre das Artes do Desenho de Coimbra, da Sociedade Protetora do Asilo de Mendicidade de Coimbra, do Grémio dos Empregados de Comércio e Indústria de Coimbra, dos Bombeiros Voluntários, do Montepio Figueirense, da Sociedade União Beneficente A Voz de Operário, do Centro Promotor de Melhoramentos das Classes Laboriosas de Lisboa, da União Beneficente do Rio de Janeiro.
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9. Outra das suas preocupações foi o desenvolvimento e promoção das atividades económicas de Coimbra e sua região. Foi presidente da Associação Comercial de Coimbra e teve papel relevante na organização da Exposição Distrital de Indústria, Agrícola e Fabril e de Arqueologia (Coimbra, 1869) e da Exposição Distrital de Manufaturas (Coimbra, 1884), de cuja Comissão Executiva foi presidemte 59, e teve ainda intervenção na organização da Secção de Produtos e Artefactos de Coimbra na Exposição Industrial Portuguesa (Lisboa, 1888).
10. Em 1895, foi Joaquim Martins de Carvalho eleito como sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, cabendo a Teófilo Braga a redação do parecer relativo à candidatura, nele traçando elogiosas referências à obra literária e à intervenção cívica do candidato, pautada pela defesa do regime parlamentar, das liberdades públicas e dos interesses locais, considerando O Conimbricense como “um arquivo inestimável de factos e documentos, uma bússola indispensável a todos os cabouqueiros da história pátria” 60. Em 1896 foi eleito sócio efetivo do Instituto de Coimbra, dizendo Bernardino Machado, no respetivo parecer:
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“Poucos filhos desta cidade a têm ilustrado tanto nos últimos tempos, como Joaquim Martins de Carvalho; e o seu nome é também uma honra para a Academia a que a nossa sociedade pertence, porque, se o venerando jornalista nunca cursou aulas, não é menos certo que o seu espírito se desenvolveu sob a influência da Universidade e no diuturno convívio de alguns dos varões mais eminentes dela; conceder-lhe o título de nosso sócio efetivo será simplesmente fazer justiça aos provados méritos do publicista que, do alto da tribuna da imprensa, tem estado, com inesgotável erudição, a professar às novas gerações o ensino da nossa história contemporânea durante uma larga vida, que é ao mesmo tempo uma clara lição moral de trabalho e de civismo.”
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Foi ainda Joaquim Martins de Carvalho fundador da Associação Liberal de Coimbra e sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, da Associação dos Arquitetos Civis Portugueses, sócio honorário do Grémio de Instrução e Recreio de Bragança, de El Fomento de las Artes de Madrid, da Scuola Dantesca de Nápoles, da Associazioni di Mutuo Socorro de Salvatori de Nápoles, da Associação Tipográfica Lisbonense e Artes Correlativas, do Recreio Literário Português do Rio de Janeiro e do Grémio Literário de Angra do Heroísmo.
11. O momento de consagração de Joaquim Martins de Carvalho ocorreu em 19 de novembro de 1888, no dia do seu 66.º aniversário natalício, em que, por iniciativa da Associação dos Artistas e de outras associações e agremiações populares operárias de Coimbra, foi alvo de concorrida homenagem, iniciada por um cortejo cívico, que se deslocou da sede daquela Associação, pela Praça 8 de Maio e Ruas do Visconde da Luz e do Corpo de Deus, até à sua casa, na Rua das Figueirinhas, a que então foi dado o nome de Rua Martins de Carvalho. À noite, houve sarau no salão da Associação dos Artistas (antigo refeitório do Mosteiro de Santa Cruz), presidido pelo Doutor Luís da Costa e Almeida, presidente da Câmara Municipal, e secretariado por António Augusto Gonçalves, em que, entre outros, usaram da palavra Augusto Pinto Tavares (decano da Associação e antigo
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mestre de Joaquim Martins de Carvalho no ofício de funileiro), o Visconde de Ouguela 53 e o Conselheiro José Dias Ferreira 61. A homenagem teve larga repercussão em toda a imprensa nacional, tendo os extratos desses artigos e dos discursos proferidos no sarau, bem como a descrição do cortejo cívico, sido recolhidos no número único de Memoranda ‒ Homenagem a Joaquim Martins de Carvalho, publicado em 31 de março de 1889 pela Tipografia Operária. No próprio dia 19 de novembro saiu o número único de Preito Académico ‒ Congratulação dos Filhos de Minerva pelo faustoso 66.º aniversário natalício do grão varão Joaquim Martins de Carvalho, com que a Academia de Coimbra “normalizou” as suas difíceis relações com o redator do Conimbricense. No “Público agradecimento”, publicado no Conimbricense de 21 de novembro de 1888, não deixa Joaquim Martins de Carvalho de se apresentar como “filho do povo, criado no trabalho manual, de que muito se honra, que nunca teve estudos oficiais e que o pouco ou muito que é o deve a si mesmo”.
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12. Os últimos anos de Joaquim Martins de Carvalho foram marcados pela progressiva perda de visão e pela angústia quanto ao destino que iria ser dado à sua riquíssima livraria, onde reunira, durante décadas, com paciência beneditina, obras raras, opúsculos, correspondência de personalidades históricas, manuscritos, documentos diversos (como os estatutos e proclamações de várias associações, e, por exemplo, o processo judicial relativo ao caso dos Divodignos, donde copiará as sentenças que condenaram à morte os estudantes de Coimbra, implicado no caso da “morte dos lentes” perto de Condeixa, publicadas nestes Apontamentos) e dezenas de miscelâneas de documentos agrupados por temas, por ele cuidadosamente encadernadas e indexadas 62. O seu desejo de ver a sua livraria mantida unida numa biblioteca pública (Biblioteca Nacional de Lisboa ou Biblioteca da Universidade de Coimbra) não se concretizará e o valioso acervo, continuado pelo seu filho, será disperso em leilão 63.
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Joaquim Martins de Carvalho faleceu em Coimbra em 18 de outubro de 1898, constituindo o seu funeral uma impressionante manifestação de pesar de toda a cidade, com repercussão na imprensa de todo o país. Em 19 de novembro de 1899, em discurso proferido na sala da Associação dos Artistas de Coimbra, em sessão solene promovida pelo Montepio Conimbricense Martins de Carvalho, disse José Dias Ferreira:
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“Tive ocasião de apreciar devidamente as finas qualidades de Joaquim Martins de Carvalho, com quem mantive estreitas relações de amizade. O redator do Conimbricense era um carácter imaculado, um jornalista vigoroso, um trabalhador indefesso, um estudioso e um erudito. No seu jornal, como espelho claríssimo da sua alma e do seu pensamento, só escrevia o que lhe ditava a consciência e o raciocínio. Nunca o demoveram interesses mesquinhos, quer defendesse a causa popular, quer combatesse com a sua vigorosa pena os desmandos dos poderes públicos. Sempre o vi animado por inabaláveis convicções na vanguarda dos defensores das liberdades públicas. Esta foi, sem dúvida, a sua feição predominante como jornalista. A reação teve em Martins de Carvalho um formidável inimigo. Mas onde mais e melhor se afirmava a sua intransigência e a sua firmeza de carácter era na defesa calorosa da liberdade de imprensa, em que ele sempre se empenhou de alma e coração. Neste particular foi um herói. Confesso francamente que, para a elaboração de algumas das minhas lucubrações, tive de recorrer várias vezes, e sempre com proveito, à competência e ao estudo de Martins de Carvalho, principalmente sobre assuntos da nossa história política, especialidade em que ninguém o excedia. Joaquim Martins de Carvalho pode ter errado. O que, porém, posso afirmar é que, se errou, nunca foi com má intenção, não tendo a guiar a sua pena senão os princípios de liberdade, o progresso e os interesses da sua querida Coimbra, e o amor pela verdade e pela justiça.”
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II ‒ A PRESENTE EDIÇÃO
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Durante a sua vida, Joaquim Martins de Carvalho apenas publicou dois livros com textos de sua autoria: Apontamentos para a História Contemporânea (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1868, VIII + 424 páginas) e Os Assassinos da Beira ‒ Novos Apontamentos para a História Contemporânea (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1890, VIII + 360 páginas). Trata-se, em ambos os casos, basicamente de recolha e reelaboração de artigos publicados em O Conimbricense, dividindo-se o primeiro em duas partes: a primeira, intitulada Miscelânea, contém o relato de factos políticos e a reprodução de documentos relevantes para o período histórico que vai desde a invasão de Junot, em novembro de 1807, até à extinção da loja maçónica Liberdade, em junho de 1864; a segunda reproduz a extensa série de 115 folhetins que, desde o n.º 2080, de 2 de julho de 1867, até ao n.º 2196, de 11 de agosto de 1868, daquele jornal se ocuparam da história da imprensa em Coimbra 64. Na segunda obra, são recolhidos os artigos sobre o flagelo do banditismo na província da Beira, que teve em Joaquim Martins de Carvalho um pertinaz e intemerato acusador. Os Assassinos da Beira conheceu uma segunda edição em 1922 (Coimbra, Coimbra Editora, VIII + 450 páginas) e em 2004 a Arquimedes Livros produziu uma versão facsimilada da edição original, de fácil acesso. Diversamente, os Apontamentos para a História Contemporânea, de 1868, nunca foram reeditados, tornando-se obra difícil de encontrar. Joaquim Martins de Carvalho chegou a trabalhar numa nova edição, mas a idade e a doença impediram a concretização desse propósito. O exemplar da 1.ª edição por ele utilizado nessa preparação, com notas manuscritas pelo próprio e colagem de recortes de artigos entretanto publicados, sobretudo sobre a história da imprensa em Coimbra, foi acedido por Manuel Lopes de Almeida, que, no vol. XXIII (1966) do Arquivo Coimbrão, publicou essas notas e aditamentos. Na presente edição, com atualização de grafia, reproduz-se a 1.ª edição dos Apontamentos para a História Contemporânea,
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complementado pelos Apontamentos aos «Apontamentos para a História Contemporânea», publicados por Manuel Lopes de Almeida, e, em anexo, o opúsculo A Nossa Aliada!, recolha de artigos de Joaquim Martins de Carvalho em O Conimbricense, entre 1881 e 1883, sobre as relações de Portugal com a Inglaterra, editada pelo seu filho Francisco Augusto Martins de Carvalho (Porto, Tipografia de António Henrique Morgado, 1883, 78 páginas).
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1 Em homenagem a Joaquim António Velez Barreiros (Oeiras, 1803 - Lisboa, 1865), 1.º Barão (1847) e 1.º Visconde (1854) de Nossa Senhora da Luz, “por ter este cavalheiro, na qualidade de Diretor-geral do Ministério das Obras Públicas, contribuído para facilitar este melhoramento”. Ver a descrição da cerimónia da inauguração das obras no Capítulo dedicado à Imprensa Conimbricense na II Parte desta obra. 2 Em ambas as casas chegou Martins de Carvalho a instalar tipografias para impressão de O Conimbricense: na antiga Rua de Coruche, de 1855 a 1858; e na Rua das Figueirinhas, de 1860 até ao seu falecimento. Na frontaria desta última casa foi, em 1897, por iniciativa de uma comissão de operários de Coimbra, colocada uma lápide, de mármore lioz de Sintra, esculpida pelo artista conimbricense João Machado (1862-1925), comemorando o 50.º aniversário da fundação do jornal Observador (1847-1854), continuado pelo Conimbricense (1854-1908). Essa lápide foi posteriormente retirada e depositada na Biblioteca Municipal de Coimbra. 3 Cf. Francisco Augusto Martins de Carvalho, Guerra Peninsular ‒ Notas, Episódios e Extratos Curiosos, Coimbra, Tipografia Auxiliar de Escritório, 1910, pág. 52. 4 A instituição dos morgadios implicava que as propriedades sujeitas a esse regime vinculístico eram inalienáveis, indivisíveis e insuscetíveis de partilha por morte do seu titular, transferindo-se nas mesmas condições ao descendente varão primogénito, condenando os filhos segundos a uma condição económica muito inferior da do morgado, sendo geralmente obrigados a seguir a vida eclesiástica ou a carreira militar. A extinção desse regime, tido por injusto e economicamente prejudicial, iniciou-se com os Decretos de Mousinho da Silveira, de 4 de abril de 1835 e de 30 de julho de 1860, que aboliram os morgadios cujos rendimentos anuais líquidos fossem inferiores a 200$000 e a 400$000, respetivamente; tendo finalmente sido revogado pelo Decreto de 19 de maio de 1863, com uma única exceção
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para a Casa de Bragança, cujos bens foram declarados apanágio do Príncipe Real e sucessor da Coroa. 5 Venceslau Martins de Carvalho seguiu inicialmente, em Coimbra, a carreira comercial até que, em 1840, foi residir para o lugar de Atadoa, para dirigir as propriedades que constituíam o morgadio de seus falecidos pais. Para além dessa atividade, passou a exercer, desde 1846, diversos cargos públicos municipais, como vereador e presidente da Câmara Municipal. Nesta qualidade, tomou várias iniciativas para o melhoramento local, como a fundação de escolas primárias em todas as freguesias, criação de mercados, arroteamento de baldios, arborização de estradas, embelezamento da vila e salubridade do concelho, como a construção do cemitério da Atadoa, que começou a servir para as vítimas da cholera morbus, em 1860. Promoveu a representação de Condeixa em exposições industriais e agrícolas, nomeadamente na Exposição Distrital de Coimbra de 1884, realizada por iniciativa da Escola Livre das Artes do Desenho. Em 1864 fundou a Sociedade Indemnizadora e Protetora de Animais, cooperativa de seguro para garantir aos sócios o preço de bois e outros animais de carga, vitimados por doença ou acidente. A pedido da classe popular foi atribuído o seu nome à até aí designada Rua Nova. Liberal moderado, filiou-se no Partido Regenerador. Deixou escritos vários apontamentos para a história local, tendo prestado valiosos serviços na exploração das ruínas romanas de Conimbriga, que justificaram a sua nomeação como associado correspondente da Secção de Arqueologia do Instituto de Coimbra. Cf. artigos de Rodrigues Davim no jornal Distrito de Aveiro, transcrito por Alberto de Almeida Martins de Carvalho, Joaquim Martins de Carvalho ‒ Apontamentos Biográficos, 4.ª edição, Coimbra, Imprensa Académica, 1924, págs. 36-37, e de Francisco Augusto Martins de Carvalho, “Um Benemérito”, em O Conimbricense, n.º 5450, de 6/2/1900, pág. 1, por ocasião do seu falecimento. 6 Sobre a permanência dos jesuítas na direção do Colégio das Artes, em Coimbra, de 1832 a 1834, ano em que voltaram a ser expulsos, ver o Capítulo XV da I Parte destes Apontamentos para a História Contemporânea. 7 Alberto de Almeida Martins de Carvalho, filho de Venceslau Martins de Carvalho, nasceu em 1863, em Atadoa (Condeixa-a-Velha). Surge no Arquivo da Universidade de Coimbra com o nome de Joaquim Alberto Martins de Carvalho, matriculado na Faculdade de Direito em 2/10/1886 e formado em 12/7/1892. Com o nome de Alberto de Almeida Martins de Carvalho, ou simplesmente Alberto Martins de Carvalho, publicou, para além dos Apontamentos Biográficos sobre o seu tio (1.ª edição, 1916; com três reedições), diversas obras de cariz literário (Trabalhos jornalísticos: artigos e pequenos romances; opiniões da imprensa, cartas e bilhetes, 1921; Cartas do Dr. António Cândido, dirigidas ao autor deste opúsculo e precedidas de algumas considerações, 1923; Vida pastoril e a senhora professora: dois romances pequenos, 1925; Na Escola de Atadoa: discurso, 1932; Um brasileiro: drama em três atos, 1934) e jurídico (A lei da separação das Igrejas