Leida no Sítio da Cabeça D'Anta

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Leida no Sítio da Cabeça D’Anta

José Maria Balhau
Romance

Leida no Sítio da Cabeça D’Anta

Romance

FICHA TÉCNICA

TÍTULO: Leida no Sítio da Cabeça D’Anta

AUTOR: José Maria Araújo Balhau

EDIÇÃO: Edições Vírgula® (Chancela do Sítio do Livro)

REVISÃO: Maria Gabriela Ferreira (Letra a Letra – Revisão de Texto)

ARRANJO DA CAPA: Carolina Araújo Gonçalves

PAGINAÇÃO: Carolina Araújo Gonçalves

1ª Edição

Lisboa, julho 2024

ISBN: 978-989-8986-89-4

D.L.: 534026/24

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Para a MI e para as nossas filhas e netos.

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O amor é a força mais subtil do mundo

Mahatma Gandhi

Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura

Nietzsche

Friedrich

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INaquela manhã de finais de março os trabalhos de amanho das terras e das sementeiras tinham acabado e, já primavera, os campos estavam floridos e verdejantes. O Sol, acima do horizonte, liberto de nuvens, iluminava os tapetes brancos, amarelos e roxos, estendidos ao longo dos Vales Ferreiro e do Sio sustentados pela margaça, margaridas e borragem. De tempos a tempos, misturado com o chilrear de outras aves, ouvia-se o gorjeio melodioso e variado dos melros, a definir o seu território. José Fernandes, sensível, e mergulhado naquela envolvência colorida, melodiosa e cheirosa, sentia-se ágil e feliz. Sentado no selim da equídea Marrafa, égua de raça garrana, ia cantarolando louvores à primavera e levava com ele, depois de noite bem dormida e pequeno-almoço a dar-lhe aconchego, o compromisso de chegar à aldeia da Torre Sineira, ao brasonado palacete de João Fajardo. José Fernandes tinha contrato com João Fajardo de arrendamento de extensas terras de regadio e sequeiro, com árvores de fruto pelo meio. Na deslocação ao palacete, para a reunião com o dono das terras, era necessário definir, para esse ano, as tarefas, deveres e haveres nas campanhas de cultivo das vinhas, olivais, centeio, trigo, milho e feijão-frade. Para trás, na casa da quinta de Vale de Lobos, deixou a mulher, Maria Inácia, ocupada no fabrico do queijo e nas ocupações caseiras, com os préstimos e ajuda dos empregados Luzia e Firmino.

Austera e exigente no trato com os outros, Maria Inácia, enquanto

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observava e dava ordens, ia alimentando as suspeitas costumeiras sobre desviadas andanças do marido do ninho conjugal. Suspeitas corroboradas, em segredo, pela empregada Luzia que, por razões não difíceis de entender, também a ela corroíam a alma. Maria Inácia, bonita de feições, mas pesadona, larga de braços, pernas e peitos fartos a balançar, a dificultar-lhe, no todo, o andar, alimentava que o marido, esguio e bem-parecido, poderia fraquejar aos encantos de uma “flausina”, como, em momentos de feroz ciúme, apelidava as suspeitas.

Se os ciúmes de Maria Inácia tinham sustentação é algo que à frente o leitor perceberá. Desde já se adianta que José Fernandes tinha potencial físico, modos e trato para sucesso com incautas donzelas, bonitas e belas, incapazes de evitar cair nas malhas de ousados e atrevidos predadores. É de notar, mesmo admitindo fragilidades que, em dadas circunstâncias, podem acontecer a qualquer homem ou mulher em relação ao sexo oposto, que José Fernandes transmitia aos outros, sem quaisquer suspeitas, uma imagem e comportamento de homem equilibrado, honesto e íntegro.

Chegado ao terreiro do palacete, prendeu a égua numa das argolas junto à entrada, depois de ter enxotado os corpulentos cães brancos cor de neve que, teimosamente, não se lhe despegavam. Entrou no átrio, onde já o esperava João Fajardo. De imediato, dirigiram-se para o escritório, no qual estava uma mesa, com desalinhados objetos e papéis a povoá-la, e cadeiras à volta para se sentarem. João Fajardo, altivo e dotado de força física e mental, capaz de deixar todos à sua volta constrangidos no falar e nos movimentos, dispunha de habilidade e astúcia para conduzir os seus interlocutores à concordância sobre o que mais lhe interessava.

Depois de ter mandado sentar José Fernandes, e de com ele apalavrar a necessidade de contactar a Ti’ Angélica para, como nos outros anos, organizar o grupo das mulheres mondadeiras para as Preview

terças, iniciou o que, no seu entender, devia caber a cada um nos resultados das colheitas nesse ano.

A jeito de aviso, começou por referir que no ano que findara recebera abaixo do estipulado no contrato em géneros e dinheiro, culpando o rendeiro de falta de zelo no tratamento preventivo das pragas que atingiram as culturas das vinhas e pomares e de ter iniciado tardiamente o amanho das terras para as sementeiras. Por isso, aconselhou-o a que pedisse aos deuses ano farto, pois sentia-se no direito de, independentemente de boas ou más colheitas, cobrar, além do que lhe cabia relativamente ao ano a decorrer, o que no ano transato não tinha recebido.

Constrangido, preocupado, perante ameaças anteriores de com ele romper o contrato, José Fernandes interiorizou e nada disse. A crise por que se estava a passar em encontrar terras para arrendamento, ocupação a que já estava habituado e que não queria perder, aconselhava-o a ser prudente.

Logo de seguida, João Fajardo quis passar revista a tudo a que tinha direito no final do ano: os cinco mil réis estipulados no contrato, mais mil em dívida; da produção do Carrascal, quatro almudes de azeite, mais um em dívida; da produção das vinhas da Quinta da Moliana, dois barris de vinho de quinhentos litros, mais um barril de duzentos litros em dívida; da produção ovina e caprina, duzentos queijos, mais cem em dívida; da produção do Vale de Ferreiro e Vale do Sio e da Várzea, vinte e cinco alqueires de trigo e cinquenta alqueires de centeio. Quanto ao que lhe cabia em milho e feijão-frade, respeitaria o que resultasse da produção da campanha das terças, um terço para ele, outro para o rendeiro e outro para o grupo das mondadeiras para dividirem entre si.

A alegria com que chegara, alimentada por uma noite bem dormida e pelos efeitos da envolvência primaveril com que, logo pela manhã, foi premiado, abrutadamente caiu da face de José Fernandes.

A acrescentar às que já tinha, receava ainda mais dificuldades futuras!

O ano anterior, de facto, tinha sido desastroso para a agricultura e, por via disso, não tinha conseguido reunir os proventos necessários para si e para satisfazer todos os compromissos com João Fajardo. Mas esperava do arrendatário uma atitude de maior complacência, partilhando os prejuízos, tendo em conta o mau ano e as grandes dificuldades por que estava a passar, de modo a dar uma vida minimamente digna à mulher, Maria Inácia, e aos dois filhos, um já a frequentar, na cidade de Cardosa, o liceu, Zélio, e o outro, Rosita, a escola primária da aldeia, ambos com anseios de chegar um dia à universidade.

Momentos houve de falta de dinheiro para sustentar a família nas coisas mais básicas, e João Fajardo sabia disso! Podia, senão perdoar-lhe tudo, pelo menos, parte da dívida. Com dificuldade, perante a insensibilidade e frieza do arrendatário, José Fernandes balbuciou algumas palavras sem as chegar a pronunciar com nitidez, no sentido de lhe suplicar compreensão. Mas, já a adivinhar o que ia ouvir, João Fajardo antecipou-se e disse que estava a passar por momentos difíceis e de muitas despesas com a mulher, Dona Teresa de Jesus, com os três filhos, Afonso, Sara e Leida, e com os vencimentos a pagar a Bernardete, perceptora dos filhos, à cozinheira, Maria Alice, e aos criados Arminda e Hermes, não podendo, por isso, ser complacente. Teresa de Jesus, Dona Teresinha, como na aldeia era chamada, oriunda de famílias ricas da oligarquia rural da região, com ligações à cidade de Cardosa, era média de altura e cheia de corpo, altiva e dotada de uma beleza majestosa. Profundamente religiosa, cumpria, com fervor, aos domingos, dias santos e dias da semana quando programados, todos os rituais da igreja. Na sua religiosidade católica, bem vincada, sentia-se lisonjeada e abençoada quando o padre da aldeia, Sebastião, aparecia no palacete para repastos e serões, férteis, acalorados e desrespeitosos, por vezes, no confronto de ideias, Preview

mas sempre classificados pelo padre nas despedidas de abençoados. No trato com os criados, era respeitadora, mas exigente no zelo e cuidados de limpeza e de outras tarefas, dentro e fora do palacete.

Aos olhos de João Fajardo, quando lhe foi apresentada pela primeira vez, mais por calculismo de herança e serventia do que por paixão, visualizou nela a mulher ideal para esposa e para lhe gerar os filhos. Passado um ano de casados, nasceu Afonso, três anos depois, Sara, quatro anos depois, Leida.

No seio da família Fajardo, Afonso foi crescendo e manifestando, no despertar para a vida, uma boa dose de timidez, a preocupar os progenitores. Já em fase de frequência escolar, metido consigo mesmo, refugiava-se no quarto, sempre que podia, e aí se entregava, zelosa e apaixonadamente, à leitura de livros que, avançados para a sua idade, levava das prateleiras da biblioteca e do escritório do pai. Precocemente, começou por se interessar por livros de história, filosofia e religião, com orientação e forte incentivo dado pela percetora Bernardete, que o orientou e preparou, e também às irmãs, nos estudos da instrução primária.

Sara, magricela, estatura abaixo da média, olhos belos, cinzentos e penetrantes, plácida, recatada e púdica, acompanhava a mãe nos preceitos da igreja, tendo-se tornado, quando já com desenvoltura para tal, devota e empenhada catequista, a ensinar aos miúdos da aldeia a ave-maria, o pai-nosso, os sete-pecados-capitais, os dez-mandamentos-da-lei-de-Deus e os exemplos a seguir, de crença e bondade, de Santa Maria Goretti e São Domingos Sávio.

Leida, caçula, com acentuada rebeldia a contrastar com a maneira de estar e ser da irmã, era dotada de corpo mediano e esbelto, cabelo cor de trigo maduro, a cair-lhe sobre os ombros, olhos também cinzentos, a aproximar-se mais do azul, e lábios morango, carnudos. A sua beleza e rebeldia, adocicada, por vezes, em gestos ternurentos, era o orgulho e encanto dos pais, beleza que não passava despercebida

às gentes da aldeia, nutrindo por ela admiração, respeito e simpatia.

Ao sair do palacete, José Fernandes, triste e amargurado pelas dificuldades que, com probabilidade elevada, iria ter para dar resposta às exigências do arrendatário, mas que, por experiência vivida já antes, não quis fazer ondas, dirigiu-se ao centro da aldeia, a uma humilde casa, na rua do Outeiro, de fachada granítica, com balcão também em granito a condizer. Bateu à porta e, sem demora, apareceu Florinda, moçoila com mais ou menos 20 anos, de tez morena e cabelo preto, bonita de feições e atraente, filha de Ti’ Angélica e Zé Moengas, este ganhão de profissão nos terrenos de João Fajardo. José Fernandes pediu para falar com a mãe que, percebendo a presença do rendeiro, antecipou o chamamento da filha.

A não ser dar conhecimento de que tanto ele como João Fajardo contavam com ela e com o grupo de mulheres do costume, para a formação do grupo das terças, pouco mais tinha a dizer. À T’i Angélica, uma vez obtido dela a indicação de assumir o compromisso de proceder aos contactos para formar o grupo das terças, José Fernandes pediu que, em função do desenvolvimento das plantas e da meteorologia, estivesse atenta, disponível, e as mulheres também, para, quando ele achasse, procederem às tarefas das mondas, colheitas, extração e limpeza do milho e do feijão, na eira. Pegou nas rédeas da égua, despediu-se e partiu, deixando para trás a aldeia, com regresso à quinta de Vale de Lobos.

IIComo sempre acontecia em ausências prolongadas, Maria Inácia, insegura e de imaginação fértil sobre comportamentos e cenários fora do alcance da sua visão que a ciumeira lhe provocava, entrava, doentiamente, num permanente desassossego enquanto o marido não chegava, sem deixar, contudo, de executar mecanicamente as tarefas que tinha entre mãos. Ao sentir a sua aproximação, remoendo e mastigando as suas suspeitas, foi ao encontro do marido e interrogou-o se o que o levara à aldeia da Torre Sineira, ao palacete de João Fajardo, lhe tinha corrido bem. José Fernandes relatou-lhe o sucedido e as preocupações que de lá trazia. A presença do marido, mais do que a sua ausência, como é bom de ver, acalmou Maria Inácia e, em diálogo ameno, comungaram as angústias e preocupações provocadas pelas exigências de João Fajardo. Era assim, as alegrias e tristezas e benefícios ou prejuízos delas resultantes para o todo da família tornava-nos mais unidos e solidários. Tudo o resto, ciumeira de Maria Inácia e reflexos recíprocos que dela resultavam, era esquecido por ambos naqueles momentos. A vida na quinta prosseguia e, sob a ameaça de tempos difíceis, Maria Inácia, profundamente religiosa, devota de Nossa Senhora da Ajuda, começou a colocar uma vela acesa junto a uma réplica da santa extraída da capela existente na aldeia, para que dela houvesse intervenção para um bom ano de colheitas e poder a família ultrapassar, assim, as dificuldades por que estava a passar, de forma

a satisfazer as suas necessidades e dar cumprimento às exigências de João Fajardo.

As preocupações de José Fernandes e Maria Inácia, visitando-os, com frequência, em noites de demoradas e persistentes insónias, não prejudicavam e esmoreciam a vontade e o fulgor com que apostaram tudo fazer para ultrapassar os maus momentos. José Fernandes, acostumado, em tempos mais favoráveis, a orientar apenas e supervisionar os trabalhos do pessoal da lavoura e pastorícia, passou ele próprio a meter mãos à obra, acompanhando e ajudando, frequentemente, o ganhão Zé Moengas, com o uso do carro de bois, nos carregamentos das sementes, produtos agrícolas, lenha e molhos de feno. E, sempre que necessário, ajudava o pastor Aristeu na ordenha das cabras e ovelhas.

As investidas de Luzia iam acontecendo com frequência, e ele a Preview

Era nestas alturas de ordenha, nos espaços da queijeira e dos palheiros, que sub-repticiamente, com Aristeu afastado em outras ocupações, Luzia se intrometia nas tarefas que não lhe estavam atribuídas e, arrojada e persistente, fazia investidas ao patrão. Desmesuradamente, expunha-se à sua frente, com insinuações de desejo expressas no uso da roupa a descobrir-lhe as partes mais atraentes do corpo e gestos adequados à entrega. Os seus olhos, lascivos e insinuantes, apontavam a José Fernandes o sítio adequado ao enlevo amoroso, o palheiro ao lado onde eram guardados os molhos de palha e feno.

José Fernandes, embora não desdenhando da beleza e dos atraentes atributos corporais da mulher que, à sua frente, o desafiava, a roçar mesmo, por vezes, a tentação de saltar a cancela da separação entre o compromisso assumido na igreja com sua mulher, Maria Inácia, e o desejo de ser maleável às investidas de Luzia, foi tendo, ainda assim, forças suficientes para lhe resistir. Sentia o desafio, mas ignorava-o, fazendo de conta que nada estava a acontecer, procurando situar o seu pensamento nas preocupações da família.

resistir. Até que, na última dessas investidas, Maria Inácia, desconfiada dos preparos da rapariga e de saídas demoradas quando a mandava fazer algo lá para os lados da queijaria e do palheiro, foi no seu rasto e, nos preparos do costume, viu Luzia a abeirar-se de José Fernandes e este, perturbado, quase a deixar-se enlevar. Ficou furibunda! Na sua ira, aos berros, determinou o despedimento imediato de Luzia, fazendo-lhe logo sentir a sua decisão.

José Fernandes, incomodado, e com mitigada culpa a pesar-lhe na consciência, apelou calma à mulher, pois nada tinha acontecido e precisavam da rapariga. Determinada na sua decisão, Maria Inácia contrariou o marido e iniciou logo a procura de uma nova empregada, mesmo com chorosas desculpas de Luzia, a manifestar-lhe a dificuldade que iria ter com os pais, sendo pobres, para justificar o despedimento, receando deles reprimenda, se não mesmo forte castigo, por perderem o pecúlio que a filha levava para casa. Reduzido, mas tanta falta fazia ao governo da família.

Não demorou muito a Maria Inácia encontrar uma nova empregada. Zé Moengas, ao corrente do sucedido, pediu aos patrões que fosse a filha, Florinda, a tomar o lugar de Luzia. Tratando-se da filha de Zé Moengas e da Ti’ Angélica, pessoas por quem Maria Inácia tinha muita consideração e estima, e sendo Florinda, pelo que lhe chegava aos ouvidos, muito boa miúda e de boa reputação, a decisão de a contratar foi rápida e sem hesitação.

Florinda entrosou-se, com facilidade, com as pessoas da quinta nas tarefas do dia a dia e teve logo a empatia, além de Maria Inácia, dos filhos, Zélio e Rosita, ambos, na altura, a sair da adolescência, e de Firmino, com quem passou a partilhar algumas tarefas. Da sua exclusiva responsabilidade, como acontecia com Luzia, tomou conta da limpeza da casa, da lavagem e passagem da roupa e das refeições e, com responsabilidade conjunta, ajudava Maria Inácia no fabrico dos queijos e cuidados a ter com as galinhas, patos e perus.

Nas sobras de tempo, ajudava Firmino, em conjunto com o pastor Aristeu, a ordenhar a vaca turina, as ovelhas e cabras e na limpeza e substituição das camas dos animais.

A vida no palacete ia decorrendo com normalidade, sem sobressaltos de maior. João Fajardo, dado ao exercício da caça, ia preparando, com antecedência, arma, pólvora, cartuchos e pedia a Hermes cuidados atentos e redobrados no tratamento dos cães galgos e perdigueiros, para que tudo ficasse operacional quando acontecesse a abertura da caça. Ia visitando, com frequência, os seus pares, ricos proprietários da aristocracia rural da região, entre eles o seu compadre, padrinho da filha Leida, Aristides Trigoso, senhor de um belo e enorme solar, na cidade da Cardosa, e de grandes extensões de terrenos de sequeiro e regadio nas aldeias vizinhas. Nos encontros falavam de experiências passadas da sua ocupação preferida, da caça aos coelhos, lebres, perdizes e javalis, da política e, desta, expressando extremo conservadorismo, dos acontecimentos políticos que iam acontecendo, realçando e enaltecendo as decisões daquele que consideravam o grande e competente timoneiro do país, e que muito admiravam, Oliveira Salazar.

Com reservas nas questões da religião, João Fajardo acompanhava sempre, ainda assim, mais por hábito e para obter boa imagem nas gentes da aldeia, Dona Teresinha à missa nos domingos e dias santos, e tinha pelo padre Sebastião uma relação de simpatia e cordialidade, contribuindo com algum dinheiro, quando a isso era chamado, para as despesas da paróquia. Aconteceu, numa das vezes, quando da necessidade de compra de um sino para colocar na

torre sineira, por um dos lá existentes se ter rachado e, numa outra, para restaurar o altar de um dos santos da igreja, o de São Pedro, padroeiro da aldeia da Torre Sineira.

Dona Teresinha, além de apurada atenção e atitude nos deveres de esposa, ia supervisionando, com aprumo e altivez, a atividade dos empregados, com especial atenção no que dizia respeito à alimentação e educação dos filhos, visando a sua saúde e preparação para a vida. Na alimentação, preocupada com todos, mas mais com os filhos, interagia, frequentemente, com a cozinheira, Maria Alice, orientando-a nos alimentos que considerava mais adequados a cada refeição. Sempre que recebia visitas, como acontecia, frequentemente, com o padre Sebastião, os compadres Aristides Trigoso, Dona Natividade Trigoso e Joãozinho, filho de ambos, acrescentava à preocupação com a qualidade dos alimentos o apuro e arte de bem cozinhar, para bem receber e facultar às visitas um bom manjar, orientando e supervisionando, de perto, a cozinheira Maria Alice.

Sobre a educação dos filhos, Afonso e Sara, a utilizar a casa da família na cidade de Cardosa, com o apoio e cuidados da governanta, quando a frequentar o liceu, era João Fajardo, mais do que a esposa, a acompanhá-los. No seu Chevrolet preto, deslocava-se com frequência à cidade para levar os filhos, segundas-feiras, e trazê-los de volta, ao palacete, sextas-feiras. Sempre que convocado, deslocava-se do palacete ao liceu, para reuniões e contactos com os professores. Entretanto, Afonso concluiu o liceu e entrou na universidade. Passados dois anos, Sara concluiu o liceu e, sem mais ambições, ficou-se por aí.

Ali mais a jeito, no interior do palacete, e enquanto não se juntou aos irmãos no liceu, Leida ia assimilando as matérias da instrução primária, sob a orientação da percetora Bernardete. Sempre que achava oportuno, Dona Teresinha interrogava a perceptora sobre o comportamento escolar da filha.

A família Fajardo, e em particular os filhos, tinha pela percetora

carinho e muita consideração. Associado às suas bonitas feições, corpo mediano, esbelto e equilibrado, a facilitar empatia, mostrava-se bem preparada, em métodos e conhecimentos, para o exercício de professora do ensino primário. Não querendo ficar apenas pelos conhecimentos adquiridos na Escola do Magistério Primário, frequentou a licenciatura em Histórico-Filosóficas, na Universidade de Lisboa, mas teve de desistir a meio do curso por insustentabilidade financeira. Apaixonada por tudo relacionado com a cultura clássica, em particular com a cultura grega, os conhecimentos adquiridos no referido curso, com as componentes História e Filosofia, levaram Bernardete a querer aprofundar, muito mais, tudo o que tinha que ver com a cultura grega, especialmente com a mitologia. Foi assim que, com a competência enquanto docente do ensino primário e com o caudal de conhecimentos da cultura clássica, Aristides Trigoso, conhecendo-a, a recomendou a João Fajardo para percetora dos filhos. O tempo foi passando e, no ano em que Leida iria concluir o liceu e fazer dezasseis anos, aproximava-se o dia 25 de maio, dia do seu aniversário. João Fajardo e Dona Teresinha, como sempre acontecia quando alguém em casa fazia anos, mobilizaram todos no palacete, membros da família e criados, para iniciar os preparativos para o grande evento festivo. Convidaram, com antecedência, os compadres Aristides Trigoso e Dona Natividade, com o filho Joãozinho, o padre Sebastião e, a pedido de Leida, alguns rapazes e raparigas da aldeia, entre eles, com especial gosto e entusiasmo, os amigos Zélio e Rosita, filhos de José Fernandes e Maria Inácia.

A amizade e cumplicidade entre Leida, Zélio e Rosita vinha-lhes dos passeios, quando tal se proporcionava, pelos caminhos e campos floridos da quinta de Vale de Lobos, normalmente durante as férias, nos quais acontecia contacto direto com a natureza, que lhes dava novas e férteis experiências e ensinamentos. Por vezes, nessas novas experiências, procuravam descobrir os grilos a cantar e os perdigotos

a sair dos ninhos.

Nessas alturas, Zélio, mais experimentado e com maior destreza nos movimentos e observações, logo que ouvia o cantar de um grilo, tentava mostrá-lo a Leida e Rosita. Por entre ervas daninhas, caminhava com cuidados redobrados para manter o canto, precioso guia para melhor descobrir o grilo. Logo que descoberto, o grilo calava e, em correria, entrava num buraco ali por perto. Zélio pegava numa palha seca, metia-a e retirava-a, repetidamente, do buraco, com insistência, até o grilo, espicaçado pela traseira, sair. Metia o grilo numa caixa de fósforos vazia, com serradela para se alimentar, e oferecia-o a Leida para o levar para o palacete e, assim, em momentos de dia e noite, o poder ouvir. Encantava-os, por vezes, o cantar das perdizes. Entravam pela seara dentro, direcionados os três ao seu cantar, e um bando de perdigotos, acabados de deixar a casca do ovo, saía do ninho em correriam desenfreada e tentava despegar do chão, acompanhados pela mãe, para admiração e enlevo, mais do que Zélio, de Leida e Rosita.

No dia de aniversário, por volta das onze e meia da manhã, começaram a chegar ao palacete os convidados. Tirando os rapazes e raparigas, que já lá se encontravam, Aristide Trigoso, Dona Natividade e o filho Joãozinho foram os primeiros a chegar. Entraram no terreiro numa charrete puxada por um elegante cavalo lusitano e, preso atrás, um bonito e vistoso cavalo branco com malhas acastanhadas, ainda potro, mas quase adulto. Era a prenda, no dia de aniversário, que traziam para oferecer à afilhada Leida.

Entregaram a charrete e os equídeos aos cuidados de Hermes, subiram a escadaria granítica exterior direcionada à entrada do palacete, onde já se encontrava João Fajardo para os receber. Entraram no salão onde iria ter lugar o banquete e, já presentes Dona Teresinha, os filhos Afonso e Sara, e percetora Bernardete, chega padre Sebastião, afogueado, vermelhão e com suor a cair-lhe do Preview

Leida no Sítio da Cabeça D’Anta

rosto, pela obesidade e pela temperatura do ambiente, ainda que nesse dia estivesse moderada.

Numa das salas ao lado, Leida, entretida nas conversas com os amigos, enquanto não chegava a hora do banquete, foi surpreendida com a aproximação dos padrinhos. Depois de os beijar, teve deles a indicação de que devia ir ao encontro de Hermes, no exterior do palacete, para lhe mostrar a prenda de anos que, por certo, iria gostar.

A correr, com os amigos atrás, e também Joãozinho, Leida foi ao encontro de Hermes. Ao ser confrontada com o cavalo, ficou maravilhada e feliz, achando-o muito bonito e belo, o mesmo achando os amigos que com ela foram e tiveram uma explosão de alegria e contentamento, sugerindo para ele o nome de Pégaso. Subiram as escadas do palacete e dirigiram-se ao salão, onde, já sentados nos seus lugares para o repasto, Leida agradeceu a bonita e valiosa prenda aos padrinhos. Sentada na mesa em lugar de destaque, com Zélio e Rosita a seu lado, aguardou, enquanto os adultos discutiam os acontecimentos do dia a dia, o início da refeição.

Chegou da cozinha Arminda, entretanto, com o recado da cozinheira, Maria Alice, de que tudo estava pronto para se iniciar o banquete. Dona Teresinha, como era seu costume, dirigiu-se à cozinha para verificar os alimentos nas travessas (Lagosta à Bela Vista, Filetes de Linguado Orly e Peru Assado à Portuguesa), e interrogar a cozinheira sobre os condimentos utilizados na confeção. Pegou numa colher e provou cada um dos cozinhados expostos nas travessas. Aprovou-os e ordenou que se começasse a servir, começando pelo padre Sebastião, padrinhos de Leida, filho Joãozinho e, de seguida, restantes convidados.

Enquanto se comia, os comensais iam conversando e discutindo assuntos e acontecimentos que mais sentiam e preocupavam. A dada altura, o padre Sebastião lamentou o fraco empenho e entrega da geração dos mais jovens às questões da igreja, sentindo, com amar-

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