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O “puto” de Vale dos Amieiros
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António Braz Pereira
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FICHA TÉCNICA O “puto” de Vale dos Amieiros António Braz Pereira EDIÇÃO: Edições Ex-Libris® (Chancela do Sítio do Livro) AUTOR:
REVISÃO:
Patrícia Espinha Ângela Espinha PAGINAÇÃO: Alda Teixeira
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ARRANJO DE CAPA:
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TÍTULO:
Lisboa, junho 2020 ISBN:
978-989-8867-87-2 468600/20
DEPÓSITO LEGAL:
© ANTÓNIO BRAZ PEREIRA
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DEDICATÓRIA
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Dedico este livro aos meus queridos pais que apesar das circunstâncias difíceis desse tempo, com enormes dificuldades e sacrifícios, conseguiram criar-nos com carinho e amor, numa casinha modesta mas repleta de grandiosos momentos manifestos de felicidade à nossa maneira… Aos meus irmãos e cunhados, sempre presentes, que me estenderam a mão nas ocasiões que mais precisei. Aos meus sobrinhos e afilhados, que connosco cresceram, junto dos avós, naquela casinha onde as portas estiveram sempre abertas, e jamais conheceram a miséria, apenas afeição carinho e amor… A três bondosas mulheres: Sra. Virgínia, D. Denérida e Emília Rodrigo às quais estarei grato enquanto viver. À minha esposa “guerreira” que tem um coração grande como o mundo… aos meus filhos, nora e netos que nos enchem a casa de alegria e felicidade… nossa razão de viver. A todos os meus amigos que comigo deram alguns passos ou caminharam sempre ao meu lado na longa viagem da vida… A uma menina de olhar cintilante e sorriso maravilhoso: para ti GabY. Agradecimentos sinceros, à minha sobrinha, Professora Maria de Lurdes Pereira Carlos, pelos incentivos a esta publicação e a sua preciosa ajuda. 5
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Sonho
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Agente só se dá conta dele depois que acorda, depois que ele acabou... E fica aquela vontade na gente de sonhar mais um pouquinho. Existem pessoas que são um sonho... Um sonho pelo qual a gente dormiria a vida inteira. Mas o destino vem e nos acorda violentamente... E nos leva aquele sonho tão bom... Existem pessoas que são estrelas. Doces luzes que enfeitam e iluminam as noites escuras de nossas vidas. Mas vem o amanhecer e nos rouba com toda a sua claridade aquela estrela tão linda. Existem pessoas que são flores... Belezas discretas que alegram o nosso caminho. Mas com o tempo as flores murcham e nos enchem de saudade de sua cor e de seu perfume. Existem, finalmente, as pessoas que são simplesmente amor. Um amor doce como o mel de uma flor... que desabrochou numa estrela e que veio até nós num lindo sonho! E ainda bem que são amor porque flores, estrelas ou sonhos, mais cedo ou mais tarde, terminam... Mas o amor...o amor não termina nunca... (desconhecido)
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INTRODUÇÃO
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Por um momento apenas... ... Quero um pedacinho de tempo para poder descansar esse peso do mundo que carrego sobre os meus ombros... Um tempo onde não me perguntem nada, nem me peçam nada, apenas me permitam o direito de dar vazão ao pranto que venho engolindo com o café da manhã enquanto visto a máscara de “olhem como sou valente e forte”.... Quero ser a criança que pode chorar livremente até que me ponham no colo restabelecendo, assim, o equilíbrio que necessito para dormir em paz. Quero aventurar-me na busca dos sonhos sem ter que vê-los pintados com as cores do desânimo ou coloridos com as cores do impossível... E quero poder brincar com os meus sonhos como se fossem massinha de modelar ilusões.... lambuzar neles meus dedos até decidir quando precisam desfazer-se... Quero ter companheirismo também nas horas em que tudo parece ter- se perdido e encontrar apenas um ombro onde possa repousar meu cansaço, um ombro que seja silêncio e carinho. Quero deixar que me invada toda a dor do mundo neste instante porque ela é minha, real e única, e que como tal seja aceite e compreendida... mesmo que eu ainda não saiba lidar com ela... E quero poder dizer: – Está doendo sim! – Sem assustar ninguém causando uma revolução tão grande que meu mundo pareça ainda mais desa9
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bitado. Seria possível? Daqui a pouco tudo vai parecer diferente e novo, eu sei. Vou secar os olhos e vou à luta outra vez e da dor hei de ressurgir mais forte... Porque sou noventa e nove por cento matéria que dificilmente se desintegra. Então, por favor, por um momento apenas neste meu pequeno momento humano, neste “por cento” de fragilidade, quero ser igual a todo o mundo e chorar...
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(Autor desconhecido)
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O nascimento
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Maio desbotado desabrochava na vastidão de afetos lépidos e ao mesmo tempo indigentes enquanto a luminosidade dos raios solares penetrava pelas paredes de granito esburacadas fixando-se no soalho roto, perante o deleite das ratazanas. No recôndito predileto de uma casinha de dois compartimentos, um deles assoalhado e abastardado, o outro térreo manuseado ao jeito de cozinha onde estava o renomado “lançadouro” (armário de cozinha) pútrido pelo uso e pelo tempo e enfeitado com jornais rendilhados magistralmente para dar um ar de alegria e felicidade inexistentes ou talvez para engodar o ego? Uma lareira veemente acesa e rodeada pela filharada e alguns familiares, incluindo a parteira, que vieram para o nascimento. A grande porta de madeira corrompida abria-se e fechava-se dando passagem às velhas mulheres, que ajudavam no parto, num vaivém acentuado pelo trepar das “socas” e saias de cor preta carregadas até aos pés, e de rostos amarroados como se se tratasse de um enterro. Finalmente, na solidão do firmamento e no silêncio abstrato dos que dormitavam soergue-se um chorar infantil determinado e voraz, surpreendentemente como se ninguém o esperasse. Era um “puto”! Teria havido manifestamente alaridos e sorrisos largos por ser um macho depois de três fêmeas, supostamente, porque na realidade 11
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dos factos, era a quarta boca a comer numa casa onde faltava o pão para cada dia, e os dias eram tão longos!… E o “puto” dias depois decidiu adormecer, tal como num coma barbitúrico, durante mais de 48 horas, sendo chamado o padre para o sopear por não ter sido batizado, considerando a morte inevitável. Renasceu antes de fincar com um berro de revolta, e só onze anos depois foi registado como cidadão português e os nomes que lhe foram atribuídos tiveram recusa absoluta, sendo os progenitores obrigados a escolher outro que deveria ter sido: o indesejado.
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O “puto” cresce…
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Tanto quanto me é permitido recordar, através dos cinquenta e nove invernos passados, dezassete dos quais permanentemente naquela aldeia, pacata como muitos lhe chamariam, para mim maravilhosa terra, Rebordainhos, ou idealizei, ou então sonhei, é um mundo lindo no interior dos seres e das coisas, pacífico, íntegro, com a sua movimentação natural virada quase sempre para o sentido da alegria e respeito. Desejava poder evitar a narração da parte negativa pela qual milhares de famílias passaram, e passam ainda no século em que vivemos, para não ser julgado como infeliz, coitadinho, ou simplesmente desprezado, sendo a discriminação uma deficiência mental das mais defeituosas da nossa existência. Contudo, eu vivi assim!... Vale dos Amieiros fica distanciado da aldeia uns três ou quatro quilómetros, mas não era a distância que metia medo ao “puto” quando tinha os seus seis anos. Enfiado nos socos de amieiro, feitos pelo tio Hermenegildo (Grilo), cheios de terra já calcada no interior, lá ia ele e o pai, atrás de um burro velho e ruço, lavrar um cantinho que possuíam, ou seria baldio, no topo da grande encosta, quase na Malhada Velha, onde o povo se revoltou contra a plantação dos pinheiros nas terras que alimentavam numerosas famílias. O sol era abrasador, a poeira entrava-lhe pelas narinas, água só na Ribeira… e, para cúmulo do infor13
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túnio, à sua volta ouvia-se apenas o cuco cantar, sempre e sempre, a mesma cantiga. E ele que gostava tanto de brincar no prado ou na cerca da escola!... Faltava ainda um ano para entrar na primária. E enquanto o tempo ia passando com aquela lentidão desconcertante encontravam-se, grandes e pequenos, nos tanques construídos para a rega – Vale da Frunha, Chãera e Covinha eram os mais frequentados – onde tomavam banho, ou melhor, eram as suas praias de nudismo, sendo poucos ou nenhum a possuir calções de banho. Ali permaneciam horas a nadar, aqueles que já sabiam; os outros iam aprendendo à sua custa. Eram lançados pelos mais idosos para dentro do poço, sendo apenas socorridos quando já tinham engolido grande quantidade de água, como se deve compreender “não potável”. Diziam eles – “É assim que se aprende a nadar!” – enquanto os pobres ainda sufocavam, tossindo, esperando que a água ingerida fosse rejeitada. Nas recordações do “puto”, apareciam frequentemente também, os grandes nevões. Num deles, talvez o maior, seu pai tentou abrir a porta da rua mas não conseguiu. Abriu outra, a da varanda, que dava para casa da tia Helena e o espetáculo era digno de um filme de ficção científica. Para retirar água na fonte grande os homens abriram um túnel idêntico ao das galerias onde os franceses guardavam preciosamente os vinhos milenares à temperatura desejada. Finalmente, abriu novo ano letivo, o dos seus sete anos. Eram seis rapazes e só duas ou três raparigas a entrar para a primeira classe. Nesse dia, os pais faziam sempre um esforço pela boa apresentação dos filhos. Iam mais lavadinhos, penteados com risca do lado esquerdo. Também o “puto” ia assim, ou quase? Calças remendadas, socos, e uma 14
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camisa que alguém caridoso deu à sua mãe para a ocasião. Para ele, o que levavam vestido não tinha qualquer importância. Queria aprender a ler, escrever, contar, falar e conviver com miúdos da sua idade. Começava a dar os primeiros passos na vida. Marcou-o o facto de quase todos levarem uma “pedra” (ardósia) enquanto ele ia de mãos vazias… No dia seguinte a sua mãe esclareceu-o: – “ Ó meu filho! Custa uma coroa, e nós não a temos para comprar...”. Como quando se é pequeno não se liga muito às coisas insignificantes não deu grande importância, pedindo a uns e a outros, sempre que necessitava Aliás, também, não teve qualquer livro, nem sequer na quarta classe, aprendendo nas aulas a gramática, os problemas, redações e reduções, geografia, português e história.
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Na terceira classe um primo emprestou-lhe o livro para decorar a Barca Bela, Vozes dos Animais, não esquecendo aquele poema de que tanto gostava “A Balada da Neve” de Augusto Gil, que dizia assim: Olho-a através da vidraça.
como quem chama por mim.
Pôs tudo da cor do linho.
Será chuva? Será gente? Gente não é, certamente
Passa gente e, quando passa, os passos imprime e traça
na brancura do caminho…
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e a chuva não bate assim.
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Batem leve, levemente,
Fico olhando esses sinais
mas há pouco, há poucochinho,
da pobre gente que avança,
nem uma agulha bulia
e noto, por entre os mais,
na quieta melancolia
os traços miniaturais
dos pinheiros do caminho…
duns pezitos de criança…
Quem bate, assim, levemente,
E descalcinhos, doridos…
com tão estranha leveza,
a neve deixa inda vê-los,
que mal se ouve, mal se sente?
primeiro, bem definidos,
Não é chuva, nem é gente,
depois, em sulcos compridos,
nem é vento com certeza.
porque não podia erguê-los!…
Fui ver. A neve caía
Que quem já é pecador
do azul cinzento do céu,
sofra tormentos, enfim!
branca e leve, branca e fria…
Mas as crianças, Senhor,
Há quanto tempo a não via!
porque lhes dais tanta dor?!…
E que saudades, Deus meu!
Porque padecem assim?!…
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É talvez a ventania:
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E uma infinita tristeza, uma funda turbação entra em mim, fica em mim presa. Cai neve na Natureza
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e cai no meu coração.
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Heranças
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Era uma vez… todas as histórias de encantar começavam assim, para os miúdos que tinham quem lhas contasse, carinhosamente, ao adormecer, n’uma cama confortável, à luz brilhante de um candeeiro, nas noites invernais geladas e silenciosas, onde o aconchego dos cobertores de Lã merina, proporcionavam sonhos lindos. Ao “puto”, na penúria herdada, à luz de uma candeia já com falta de “torcida” e pouco petróleo, deitado n’um “cheragão” (colchão) cheio de “colmo” moído, buracos no tecido de sacas velhas, “empelouricado” sobre quatro tábuas velhas a cair aos pedaços, envolto em mantas de farrapos, tecidas para os pobres, nunca ninguém lhe contou, os porquês de ter vindo ao mundo, no mesmo dia de Camões, e só onze anos passados foi registado civilmente?! Seria fatalidade ou ironia predestinada, proclamada pela justiça divina? Um dia, quando 19
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era pequenino, adormeceu tão profundamente, durante dois dias e três noites, deixando pressuposta partida para os anjos, o que levou sua mãe a chamar alguém competente, a fim de sopiar um filho que ainda não tinha sido batizado… e, na sua mais tenra infância, o “puto” teve fome… do caldeiro que cozia a “bianda” (refeição) para os porcos extraiu castanhas, (mamotas) para comer, sujeitando-se ao perigo eminente que o levou a cair nas brasas da lareira, acorrendo de imediato a mãe que o envolveu numa toalha, e das chagas extraiu uma a uma as brasas coladas ao corpo do menino desesperado com as dores que lhe penetravam o corpo, de forma sanguinolenta. Uma nutrição que supera a precaridade… metade de uma batata cozida com a casca água e sal, e uma pequena percentagem de meio quarteirão de sardinhas compradas a um sardinheiro familiar, que sempre deixava mais uma, moída, que ninguém queria, divididas por nove pessoas… passou dias inteiros com um naco de pão centeio, pedido emprestado a uma senhora de coração de ouro, a tia Emília do Outeiro, até que viessem uns tostões para comprar uns quilos de farinha e devolver a peça… muitas foram as vezes em que essa santa mulher não aceitou de volta o empréstimo por ter conhecimento das dificuldades financeiras da família. Quando a fome apertava ainda mais, tendo ingerido apenas um caldo de couves a navegar na água, uma batata esmagada, e adubado com uma lasca de unto, ia sentar-se nas escadas de granito de uma familiar. Com a mão direita segurava o queixo pendente, enquanto o olhar triste vagueava pelo imaginário da desventura, e dava às feições um ar de pedinte envergonhado.
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E o “puto” teve frio… de pés descalços, pisou a lama suja das ruas molhadas pelas lágrimas tristes que seus olhos derramavam, quando cruzava meninos da sua idade, correndo nos seus sapatos ou socos confortáveis dentro de meias quentes de lã. Trémulo, soluçando, erguia várias vezes os olhos para o céu, talvez a implorar o divino do peso que carregava na alma injustamente, porque não pedira para nascer, ou seria para contar as estrelas que brilhavam com menos densidade? Onde se notava também a injustiça discerne. As calças e camisa rotas que os remendos já não cobriam os buracos, deixavam entrar o vento gelado, que cruelmente entrava e penetrava no corpo, que a pele tentava proteger com pouca e impotente espessura. E o “puto” sentiu o medo atroz e traumatizante, que o persegue até ao final do seu viver… a violência doméstica, praticada pela embriaguez frequente de um pai irresponsável, viciado e violento… gastava na taberna, nos jogos e em copos, os poucos tostões provenientes de raras jeiras, e outros que pedia emprestados, voltando tardiamente, já alta noite, e gritava com sua mãe, porque ela tentava chamá-lo à razão envolvente, do miserável viver, seu e dos seus filhos… espancava-a com o cinto e tudo quanto lhe vinha à mão, enquanto os filhos choravam e iam pedir socorro, junto dos primos maternais mais idosos, os quais acorriam, ameaçando de tomar medidas caso voltasse a acontecer. Toda esta violência sobre o efeito do álcool era hereditário, sendo da mesma maneira tratada, a avó, fruto da frustração de irresponsabilidade, que no passado pela má gerência, e alcoolismo, o vício do jogo e a preguiça, levou uma das casas mais abastadas da aldeia, a penhorar prédios rústicos e urbanos, 21
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por umas cascas de alho, desvanecendo-se pouco a pouco a fortuna, a honra e a reputação de uma família considerada e respeitada. E o “puto” sentiu raiva com as doenças que chegavam naturalmente como os papos, varicela, sarna, sarampo, assim como as infeciosas (tuberculoses e bronco-pulmonares). Foi com uma broncopneumonia que um dos seus irmãos, já com os seus seis aninhos, caiu doente, e uma simples penicilina tê-lo-ia curado, se houvesse pessoas da terra com corações sensíveis que a ajudassem a comprar… mas essa ajuda não veio. Nem com pedidos desesperados perante um homem que trabalhava no Hospital de Bragança foi possível salvar aquela alma inocente que pedia socorro em alta voz e ninguém se comoveu… Deixaram-no morrer à míngua, ali para um canto, como um animal, sem dó nem piedade… que os remorsos daqueles que podiam e não quiseram fazer nada para o salvar os persiga para sempre neste e no outro Mundo. O “puto” vivia aparentemente alegre e feliz, quando jogava à pedrada com os dos Pereiros ou, mesmo, quando um dia ficaram presos na sala de aula. Havia um miúdo, o “rebelde” que um dia caiu do forro do telhado da escola, deixando um grande buraco aberto, pois procurava uns pardalinhos – e não era tão fácil subir lá cima! O “rebelde” foi sempre um quebra-cabeças para os professores. Num outro dia, no adro da Igreja, enquanto decorria o terço, lá estava ele dando pontapés a um pau que ia embater com força na porta central. Saiu de repente o Sr. Professor e desatou a correr atrás dele, enquanto ameaçava: “- Olha que eu toso-te! Olha que eu toso-te!” ao que ele respondia –“Já foi tempo...” 22
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–, esquivando-se pelourinho a cima. Num dia lindo de primavera, por volta das nove horas da manhã, um sujeito dos seus vinte e cinco a trinta anos dava de comer à sua turina (vaca leiteira) que tinha na loja (vacaria) junto da casa do tio Zé… e como todos os dias, também o “traiçoeiro”, à ida para a escola, passava por ali por junto da porta para lançar para dentro: – “Ó barbas d’alho!”. O sujeito, por quem o “puto” tinha grande respeito e admiração, com grandes dons para o teatro, apesar de só lhe ter visto encenar e realizar uma peça, ou melhor uma mistura de “esterlóquio” (teatro improvisado) lançando fogo pela boca e histórias diversas, mas também porque brindava a garotada com material escolar que oferecia em troca de outros favores, naquele dia esperava de pé firme o gaiato. Mal se aproximou da porta, já estava colhido por um braço forte de homem, dizendo – “Então sou barbas de alho?”. E, pegando numa bosta de vaca, encheu-lhe a boca com ela, enquanto murmurava: – “Para que não voltes a chamar-me isso.” E o garoto lá foi lavar a cara ao tanque, enquanto os que presenciaram a cena desatavam a rir, e claro, repetindo-a de seguida na escola. Enquanto frequentava a 2.ª classe, os mais velhos não ligavam nada aos petizes. Mesmo assim, ele tinha os seus ídolos, nomeadamente, o artista, como ele lhe chamava, que desenhava admiravelmente bem. Enquanto o “puto” viveu em Paris, exercendo a profissão de motorista de táxi, sempre que levava clientes à praça do Tértre, também conhecida por Montmartre dos pintores, o recordava com saudades. O que lavou as mãos, quando teve de escolher entre um malfeitor e jesus, e as asneiras que engendrava fumando o seu Kentucky; um moço que não tinha jeito para as letras, e os 23
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colegas humilhavam com insinuações sem dignidade, inadmissíveis, mas que ao “puto” revoltavam por compreender que o rapaz teria, por força, outros valores. Aproximou-se o exame de quarta classe para o qual só quatro dos oito alunos da classe foram propostos: duas raparigas e dois rapazes. Saía pela 1.ª vez da terra onde nascera o saloio trasmontano, vestido de fatiota comprada na feira, calças de cotim, camisa de riscado, sapatos emprestados para oito dias que era o tempo definido para o exame de 4.ª classe. Via também pela primeira vez o comboio de perto, dez anos depois de o ouvir apitar junto ao túnel ou já perto da estação e de avistar ao longe aquela fumaceira a sair pela chaminé, juntamente com o ruído típico de “pouca terra, muita lenha” cujas imitações despertavam o interesse da garotada. Teve uma sensação estranha ao entrar no cais onde outras pessoas esperavam já de bilhete na mão aquele monstro de ferro, deslizando pelos carris de via estreita. Assentou-se no primeiro banco de madeira repleto de machas negras, deteriorado pelos numerosos passageiros que por lá tinham passado. Olhou à sua volta discretamente e com a timidez de quem não se sente à vontade em propriedades alheias, sem balbuciar uma única palavra, viajou imóvel até à cidade, seguindo a pé para a estalagem onde iria ficar durante esses dias em troca de uns escudos previamente negociados por uma familiar. No dia seguinte às 9 horas devia comparecer na escola onde teria de ser examinado pelos professores. Mas, apesar de ter saído da estalagem antecipadamente, não conseguia localizar aquele maldito edifício. Valeu-lhe a ajuda de uma moça para chegar a tempo. Aprovado na prova escrita e oral, voltou para a paca24
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tez onde viveu, sentindo esmorecer aquele sentimento de liberdade juntamente com a esperança de sair daquela toca rotineira onde nunca se passava nada de novo. Época chamada hoje de Salazarista, ditadura governamental, não se podendo abrir a boca não sendo à feição desses governantes. Porém, para um “puto” de 11 anos, o mais importante não era a política. Voltaram com aprovação, e as moças que também foram aprovadas ficaram, pelo menos uma delas, para fazer a admissão ao liceu, já que a outra tinha seguido para Lisboa, onde realizou a mesma prova. Esta foi uma época em que grande parte dos rapazes era encaminhada a estudar para padre, exceto as famílias carentes, com poucos ou nenhuns meios, das quais o “puto” fazia parte. O saloio via partir para instituições religiosas, nomeadamente, para a Congregação de São Francisco de Sales toda a rapaziada onde lhes era facultado o privilégio de estudar supostamente para padre quase que gratuitamente, com a ajuda de conhecimentos e pedidos, mesmo sendo destinada aos pobres e desfavorecidos. Por lá se ficavam os “lafraus” até atingir um nível escolar bastante elevado onde o latim favorecia mais tarde as equivalências, sobretudo em Português via ensino. Tinham já partido para Mogofores, ou Arouca, uns seis adolescentes. Agora era a vez do seu primo enquanto ele meditava nos porquês da vida de uns e de outros. Gostava tanto poder ir também! Mas como? Quem não pode comprar livros aos filhos vai poder enviá-los a estudar? Meio resignado, lembra-se de um dia, sentado no tanque do prado, tristonho, vendo chegar a sua madrinha junto de si, murmurando atristada: – “não posso mandar-vos aos dois!...”. 25
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