edição: Edições Vírgula® título: Frangmentos autor: Rafael
Branco
(chancela Sítio do Livro) de uma Vida Sonhada
Patrícia Espinha Patrícia Andrade paginação: Paulo S. Resende revisão: capa:
1.ª edição Lisboa, maio 2017 isbn:
978‑989-8821-45-4 422399/17
depósito legal:
© Rafael Branco
publicação e comercialização:
www.sitiodolivro.pt
Rafael Branco
FRAGMENTOS de uma VIDA SONHADA
“Que díficil é a vida dos homens” pensou ela. “Eles não têm asas para voar por cima das coisas más.” Sophia de Mello Breyner Andresen
A Fada Oriana
Nota do Autor
“Fragmentos de uma Vida Sonhada” é um projeto antigo. Ele resulta de um desafio lançado por ocasião de uma entrevista conduzida por Michel Laban, escritor francês, que me convidou a redigir um texto para comprovar o meu desejo de continuar a escrever, depois da publicação de “Makuta, Antigamente lá na Roça”. Anos depois, publiquei o referido texto numa coletânea de poemas selecionados. Por razões que não cabe aqui referir, o projeto de “Fragmentos” ficou adiado até ao presente momento. O financiamento parcial do Banco Internacional de São Tomé e Príncipe (BISTP) e uma contribuição do meu amigo N’Gunu Tiny ajudaram muito a tornar o projeto uma realidade. Contrariamente a outras tentativas, a obra que ora se apresenta tem propósitos bastante limitados. Trata-se de uma homenagem pessoal aos livros e às leituras que marcaram o meu percurso pessoal que fica parcialmente testemunhado numa das cartas (carta 20). Na verdade, a opção por cartas trocadas entre dois personagens
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foi um artifício para dar cobertura à diversidade de autores, de estilos, de géneros literários e de épocas e momentos que se foram refletindo, em alguns casos, em posturas, crenças, ilusões e desencantamentos de natureza pessoal. Para ligar tão variadas fontes, elegi uma história de amor, tendo como pano de fundo a exuberante beleza de São Tomé e Príncipe e o percurso sinuoso e algo traumático que tem marcado a nossa história recente. Independentemente de juízos de valor literário sobre a obra, reafirmo aqui um dos temas permanentes da minha tentativa de ser escritor e um convite tantas vezes reiterado: Ler é uma bênção, uma janela para nós mesmos, para os outros e para o mundo. Espero, pelo menos, despertar o interesse para a leitura dos autores citados, que são de uma grandeza incomparável, e para outros que ainda não li. Ler faz bem.
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AGRADECIMENTOS
Tendo levado alguns anos a ganhar a sua forma atual, este livro beneficiou de vários contributos de amigas e amigos que leram as suas variadas versões em tempos distintos e que me foram encorajando a superar algum receio e dúvidas quanto à forma e ao conteúdo. Correndo o risco de me esquecer de alguém, não posso deixar de mencionar Jerónimo Salvaterra, Alcino Sousa, Maité Mendizabal, Elizabete Nazaré, Ângelo Bonfim, São Lima, Fernanda Pontífice e Gustavo dos Anjos. Um agradecimento especial ao BISTP e ao meu amigo N’Gunu Tiny pela atenção e consideração sempre demonstradas. A todos o meu agradecimento.
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Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas. Álvaro de Campos Heterónimo de Fernando Pessoa
Introdução Outra vez o meu amigo Joaquim, aspirante a escritor. A sessão de apresentação da 2ª edição de Lévelengué, As Gravanas de Gabriela chegava ao fim. Para minha surpresa, a sala estava cheia, notando-se apenas as ausências das excelências locais que, contrariamente a recentes atividades do género, costumavam ocupar as cadeiras reservadas na primeira fila. Terminada a sessão de autógrafos, saí e dirigi-me ao espaço improvisado onde tinha lugar o cocktail. Todos os convidados haviam partido e os empregados faziam as arrumações. Apenas um convidado se encontrava no local, um copo na mão esquerda e uma caixa debaixo do braço. Ao aproximar-me, reconheci Joaquim, o aspirante a escritor e autor da história original de Lévelengué. As suas feições tinham amadurecido, pareceu-me, ou talvez fosse o resultado do fato e gravata que envergava.
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– Assistiu à apresentação do seu livro? – Pergunteilhe. – Gostou? – Na verdade, – começou por dizer – não assisti. Cheguei tarde e decidi não entrar. Vim sobretudo para lhe fazer uma entrega. Puxou-me pelo braço até uma zona escura e disse-me, numa voz quase sussurrada: – Sabe, meu caro, entrei há cerca de dois anos para a política e o meu partido acabou de ganhar as eleições. Desempenho atualmente um alto cargo e nessa condição tive acesso a uma moradia que pertencia a um alto dirigente do partido vencido. O infeliz teve três dias para fazer a entrega da residência e veja só o grande achado que fiz. Escondida no fundo de um armário encontrei esta caixa e, pensando que se tratava de sapatilhas, abria-a e vi lá dentro um volume considerável de cartas. Meses depois, vencendo uma certa hesitação, comecei a ler e descobri que o homem guardava ali um importante segredo da sua vida. Fez uma pausa e prosseguiu: – Ainda pensei devolver a caixa mas não localizei o paradeiro do antigo morador e esqueci-me do assunto por algum tempo. Quando voltei a pousar os meus olhos sobre a mesma, decidi ler uma das cartas e passou-se algo estranho. O escritor que quero ser um dia viu naquela correspondência plena de revelações íntimas um romance
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quase pronto. Passou-me pela ideia aproveitar os textos e escrever de verdade o meu primeiro livro. Porém, cedo me apercebi de que iniciar tal tarefa, na minha presente condição, iria criar conflitos com uma carreira que promete abrir-me as portas para um futuro confortável. Por isso, quero depositar este espólio nas suas experientes e criativas mãos para que faça dele um livro que certamente irá dar que falar. Não resisti em interromper o meu amigo: – Joaquim, não posso aceitar a tua proposta. Primeiro, não me sinto confortável em fazê-lo e acho eticamente questionável aproveitar-me da correspondência de alguém que desconheço para escrever um livro. Segundo, continuo a pensar que já provaste com Levelengué as tuas potencialidades de escritor e … Não terminei a frase e já Joaquim me dizia agitado: – Meu caro, já pensou que, como nação, temos na atualidade uma reduzida produção literária? Já fomos um país de grandes escritores e poetas que marcaram as suas gerações. Depois da Independência, sobretudo no ramo da narrativa ficcional, a produção não tem sido famosa, embora na poesia haja autores de grande relevância. Pense em termos de património literário. Pense na nossa juventude que precisa de ler bastante e tem um acesso limitado a obras de autores nacionais. De toda a maneira, é evidente que o autor destas cartas é alguém com talento.
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Fez uma pausa e continuou: – Levei a cabo uma pesquisa rápida e sei que a senhora se chamava Bianca Lebed, era professora de Literatura Moderna, tendo viajado pelo mundo como consultora de uma organização internacional. Pela leitura das cartas, depreende-se que um desgosto de amor a transportou para o nosso país. Ainda segundo as cartas, regressou anos depois, tendo-se estabelecido com uma companheira por longos anos numa roça do Príncipe. Partiram já velhas para o Canadá. O homem foi, para mim, uma surpresa. Um político conhecido e mal-amado, direi incompreendido, muito dedicado ao seu país, mas solitário. Partiu para Angola pouco depois de perder a casa e acabou por falecer meses depois. Sei que tem família em São Tomé mas não o conheço. Prosseguiu com veemência: – Esta história precisa de ser contada porque é atual e tem ensinamentos úteis. Se não quiser escrever um livro, a proposta que lhe faço é mais simples e o trabalho mínimo. Arrume as cartas, tente dar-lhes uma sequência e, se possível, aproveite alguns poemas que estão num envelope. Na verdade, pode dar algum trabalho pois talvez tenha de modificar algumas cartas para permitir o casamento com os poemas – poemas que eles escreveram e citações de poemas de autores famosos.
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– Meu amigo, já é tempo de assumir a tua ambição. Como vês, Levelengué é obra tua e foi muito bem recebida. Se achas a história bonita, faz tu o livro. Joaquim olhou-me fixamente e disse determinado: – Eu não tenho tempo agora, começo uma carreira que pode levar-me muito longe. Além disso, não ia cair bem na direção do meu partido, com o perfil que construí, que eu aparecesse agora a falar de amor. Por isso lhe digo: ou fica com este arquivo ou queimo-o imediatamente. É também uma solução. Você decide. Não havia a menor hesitação na sua voz e postura. Disse-lhe: – Oiça, meu caro, estamos a falar de sentimentos íntimos de alguém que certamente não os quis partilhar. Não estaremos perante uma violação da intimidade e até do nome de alguém? Será justo usurpar um bem de alguém, utilizá-lo sem o seu consentimento e, sobretudo, revelá-lo perante o grande público? E mais, porque não publica você o livro utilizando um heterónimo? Olhe, autores consagrados fazem isso. Joaquim não se conformava e argumentou: – Vocês mais velhos têm uma moral que não leva a lado algum. Quem lhe garante que o autor destas cartas não desejaria publicá-las? Do ponto de vista da utilidade e do interesse público todos ganhariam. De certa maneira, pode até ser uma homenagem póstuma.
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Não pude deixar de alertar Joaquim para uma evidência: – Nisso até tem alguma razão. No nosso país, nunca reconhecemos o mérito das pessoas em vida. Depois de morrerem é que aparecem os reconhecimentos, os louvores e as manifestações de todo o tipo. Enquanto vivos ninguém se preocupa com as contribuições feitas, com os sacrifícios consentidos, com as dificuldades do dia-a-dia, antes pelo contrário. Joaquim mostrava-se impaciente. – Oiça, temos duas hipóteses: ou aceita trabalhar nestas cartas ou queimo-as. Será, estou certo, uma grande perda, mas nada posso fazer. E digo-lhe mais: vocês mais velhos, não escrevem sobre as vossas vidas, não deixam testemunhos escritos para que as pessoas conheçam as circunstâncias em que viveram e porque fizeram o que fizeram e, ainda por cima, não querem aproveitar material disponível. Sinceramente, não vos entendo! – Bom, Joaquim, vou ler as cartas e depois tomo uma decisão. Mas lamento que troque a atividade literária pela política. O sucesso na política é efémero e pouco gratificante, mesmo considerando os ganhos materiais, para além dos anátemas que ficam. Um livro resiste ao tempo e pode ser fonte de um reconhecimento duradouro. Mas isso, você irá aprender com o tempo. Vou ficar com as cartas mas não me comprometo em definitivo.
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Despedimo-nos e o resto já podem adivinhar. Li e reli as cartas e, contrariamente ao que Joaquim dissera, alguns poemas e citações estavam facilmente identificados com as respetivas cartas. Não foi possível recuperar algumas delas. Duvido da qualidade de alguns poemas e da coerência de algumas cartas. Mas, no geral, é uma história de amor bonita como são todas as histórias de amor, independentemente do final. Espero que gostem. P.S.: O meu amigo Joaquim prossegue uma carreira política de sucesso e recusa-se a qualquer ligação com livro a que deu origem. Acedeu, no entanto, a dar o título à obra: “Fragmentos de uma Vida Sonhada”.
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Adivinha Sem hora marcada chegou Sem anúncio aconteceu. Seu perfume embriagou Seu viver encantou. Felicidade plantou Sem aviso partiu. Coração fragilizou Infortúnio criou Vazio deixou.
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Carta 1 Minha Senhora, O prazer de ter falado consigo foi grande. Senti uma lufada de ar fresco naquele ambiente tão pesado em formalidades e sorrisos pronto-a-vestir. Lamento que o meu colega me tivesse afastado, interrompendo uma conversa que eu desejava ardentemente prolongar. Queria prolongá-la porque senti que as respostas que lhe fui dando não resolviam as contradições que elas próprias suscitavam. Gostei da sua curiosidade inteligente e espero ter a oportunidade de nos conhecermos melhor. Infelizmente, parto em missão esta noite. Perguntou-me se eu era poeta. Não sou. Desde pequeno que sinto necessidade de expressar sentimentos muito íntimos e tenho tentado dar-lhes forma escrita. Não partilho o que escrevo porque receio que a sua forma não respeite as técnicas que reconheço existir quando leio escritores consagrados. Mas escrever permite-me olhar para mim mesmo sem qualquer preocupação de ser julgado ou avaliado. Alberto Caeiro disse uma vez “Ser poeta não é uma ambição minha/ é a minha maneira de estar sozinho”. Sinto-me incrivelmente muito só apesar de estar envolvido na atividade política que obriga a muitos contactos com pessoas. Quero dedicar-me a sério ao ofício
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de escrever mas é difícil compatibilizar esse exercício com os compromissos de cidadão empenhado. Lá bem no fundo, existe o temor de não conseguir ser nem uma nem outra coisa. Deixo-lhe alguns pedaços de mim. Espero que a ajudem a encontrar algumas respostas que não lhe consegui dar. Fique bem.
Pintura é Vida
Pintura É Inédita conjugação: Latente aspiração Inocente tentação Indómito orgasmo Harmoniosa mistura Conseguida aventura. Na galeria de adiados sonhos Cada cor Inventa
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Figurados sentimentos: Incontidas pulsões Naufragados amores, Reprimidas ambições Mutiladas histórias. Tudo desenhado Nos enredos de vidas tentadas. Se vida é sonho Quadro é construção, é Lavra adestrada, Achada invenção, Acarinhada dádiva Um conto a descrever. Se sonho é vida Caminhar é aventura Nas rotas da procura Regada de desventura Reclamando bravura Nas esquinas da conjuntura
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Basta
Nos rostos de crianças onde a fome se espelha Súplice; Nos campos Onde o suor dos homens Rega a prosperidade alheia Ao ritmo do chicote feito regente de orquestra; Nos claustros Onde a miséria é excomungada Em nome da salvação das almas eleitas; Nas esquinas de ruas sombrias, Nos palacetes onde o amor está a leilão, E a podridão Pintada em cores de respeito; Nas fábricas Onde operários domesticados, Sepultam a sensibilidade, E se submetem ao império das linhas de produção; Nas casas, onde o pão é dia de sol no Inverno e a alegria Iguaria demasiado cara;
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Nos asilos e hospitais, Bairros de lata e cabarés, Orfanatos e tronos vitalícios; Aqui, já e agora Por toda a parte Amanhã e sempre Onde o lucro Comanda o barco da humanidade, Réquiem da exploração.
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Carta 2 Caro Senhor, Peço desculpas pela ousadia. Encontrei-me, por acaso, com o seu amigo num café e fiquei a saber (na sua terra tudo se sabe) que vai estar ausente por mais duas semanas. Confesso-lhe que me parece um tempo demasiado longo. Ouvi-lo, falar consigo, transformou-se numa urgência. Os dias tornam-se longos demais, a noite eterniza-se e eu sobressalto-me com pensamentos contraditórios. Li os “pedaços” seus que me deixou. Adivinho em si uma angústia que, suspeito, o vai consumir. E tenho algum receio. Para ser muito clara não gosto de políticos. É curioso como uma atividade tão nobre como a política seja protagonizada por homens e também algumas mulheres que, no geral, não estão à altura dos desafios ou que muito rapidamente se deixam corromper. Não falo só da corrupção material – essa é percebida quase como natural; falo da corrupção moral, do esquecimento fulgurante de princípios e valores básicos algumas vezes declarados, prontamente esquecidos. Penso que é um homem bom e quer servir o seu país mas, no entanto, tenho medo de que o homem sensível, esclarecido e sonhador que pressinto seja adulterado pelo realismo, pelo pragmatismo, pela podridão da política. Preferia vê-lo a dedicar-se mais
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a aprender a arte de escrever poemas, histórias e contos. Mas quem sou para preferir? Lutar para melhorar o mundo em que vivemos é necessário e urgente. Mas existem outros espaços de contribuição que cada um de nós pode escolher para transformar esta nossa passagem por este planeta numa aventura que vale a pena viver. Quem tem vontade, tem liberdade. Afinal, a escolha é sempre nossa. Tudo isso para dizer que eu também aguardo ansiosa pelo seu regresso para aprofundar e, se possível, confirmar a fotografia que vou construindo da sua pessoa. Bianca
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Carta 3 Minha Estimada Bianca, Depois de um dia preenchido com reuniões sem fim, regressei ao meu quarto e reli a sua carta. Confesso que me assaltam pensamentos tão turbulentos, tão ousados e ao mesmo tempo tão simples na essência que não consigo alinhá-los de forma coerente e ademais não caberiam nestas linhas que, apressado, lhe envio. De qualquer modo, espero terminar a missão amanhã e é muito possível que leia estas linhas quando eu já estiver no país. É que em mim também habita a urgência de concluir, ou melhor, de prosseguir uma conversa para a qual não antecipo fim próximo. A sua afirmação relativa à vontade e liberdade fez-me pensar muito. Espero voltar ao assunto quando estivermos juntos. O que lhe posso dizer é que ser poeta ou ser político não tem de implicar uma opção excludente. Na realidade, a política e a poesia têm territórios comuns: o sonho, a imaginação criadora, a escolha adequada dos temas, dos tempos e do ritmo (das mudanças e das palavras) a criação do novo, do bem-estar e da harmonia. Viajar dá-me o prazer da descoberta do novo: pessoas, locais, livros, gastronomia… Roma, em especial, transporta-me para um período da história humana onde homens
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