POR SÉCULO E MEIO
edição: Edições
Parténon® Século e Meio autor: Alberto Branquinho título: Por
capa:
Patrícia Andrade Paulo S. Resende
paginação:
1.ª edição Lisboa, maio 2017 isbn:
978‑989-8845-17-7 424910/17
depósito legal:
© Alberto Branquinho
publicação
www.sitiodolivro.pt
ALBERTO BRANQUINHO
POR SÉCULO E MEIO POR TERRAS DO DOURO DESDE MEADOS DE OITOCENTOS ATÉ MEADOS DA SEGUNDA DÉCADA DO SÉCULO XXI
OBRAS DO AUTOR
Prosa: – CAMBANÇA - Guiné / morte e vida em maré baixa – CONTOS COM ENCONTROS – CAMBANÇA FINAL - Guiné (guerra colonial) – FILHOS D’OUTREM OU D’ALGURES
Poesia: – SOBRE VIVÊNCIAS (identificado como Alberto Abrunhosa) – QUASOUTONO?!
I. Meados de Oitocentos O homem, de avançada idade, estava sentado num banco junto à casa. Colocou a bengala tosca entre as pernas e baixou a aba do chapéu para cortar o sol poente, que lhe causava incómodo. Observava o neto que chegava da vinha, a arrumar a carroça ao lado do telheiro e a desatrelar os machos. Acenou para o avô, que lhe correspondeu. (- O rapaz é desembaraçado. Graças a Deus que a minha Adelina arranjou um bom homem que não se importou de ela já ter um filho de outro. E trata o rapaz como se fosse filho, sem fazer diferenças dos outros dois, os dele.) Suspirou. (- As guerras ‘inté já tinham acabado há tanto tempo, p’ró que é que aquela gente ‘inda andava naquelas vidas?) Mudou de posição no banco, mudou a posição do chapéu, tentou afastar as recordações, mas não conseguiu. Não sentia remorsos, era… era… nem sabia bem o quê. Era o mesmo nos sonhos, que o atormentavam de vez em quando.
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Anoitecia. Regressava a casa. Ele e os dois filhos. Vinha à frente, trazendo o macho pela rédea e os filhos lá mais atrás, quando viu ao longe, no monte em frente, três cavaleiros, a passo, que iam na direcção da casa. Porque estavam na penumbra do poente, os cavaleiros não os teriam visto. Estavam em terreno mais elevado, mas tinham o sol a bater-lhes nos olhos. – Vós dois, agachai-vos! E ide-vos de volta, com cuidado. Escondei-vos. Evitava, assim, que fossem arrebanhados para as lutas que ainda havia, apesar de, há muito, ter sido assinada a Convenção de Évora-Monte. O pai continuou a caminho de casa. Foi descarregar o macho. Estava a meio do trabalho quando chegaram os outros, que pararam a alguma distância. Adiantou-se um, que montava um bonito cavalo. – Ó da casa! Tirou o chapéu, observou-os, mais as armas que traziam. – Sim, meu senhor. – Quem tens na casa contigo? – Despois da morte da minha mulher, que Deus tenha e despois que me levaram o filho para as guerras que aí vão, sou só eu e a filha, que é quem me vale. – Chama lá a tua filha. – Ó Adelina, anda cá fora que estão aqui estes senhores. A rapariga apareceu à porta, limpando as mãos ao avental. – É bem… bem apessoada, sim senhor. – É quem me tem valido despois da morte... – Dás-nos gasalho por esta noute? 8
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Perguntou, enquanto desmontava, mantendo-se os outros dois a alguma distância, montados e de armas empunhadas, com as coronhas apoiadas no selim. – É uma honra, meu senhor. – Olha lá! A que horas é a primeira barca amanhã para as bandas de lá? – Ao romper d’alva, meu senhor. – E há barqueiro? – Na semana passada havia. – Mostra lá onde nos podemos aboletar e dar cobertura às montadas. – Se fosse mais cedo matava um chibinho. – Deixa lá, homem. Chega o que tens na salgadeira. Tens presunto, toucinho e umas chóriças? – Sim, meu senhor. – E um bocado de pão e vinho. E… bonda. – Ora, mostra lá donde se pode lavar a cara. Retirou a arma e um saco de dentro dos alforges e entregou as rédeas do cavalo ao dono da casa. Os outros dois seguiram-no, sempre de armas na mão, depois de amarrarem também as suas montadas ao lado do outro cavalo e retirarem os alforges. – Adelina, põe lá na mesa pão, vinho, presunto, queijo. Tudo o que havêr. Encaminhou-os para a fonte, atrás da casa. Enquanto esperava que os três se lavassem, viu, com preocupação, o filho mais velho sair do palheiro, cosido com as sombras, entrar em casa e voltar ao palheiro, com os mesmos cuidados. Quando regressou, levava uma caçadeira. 9
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O pai encaminhou-os para dentro de casa. Ofereceu o seu próprio quarto ao chefe, o último, ao fundo do corredor. Era o quarto maior. Depois, disse aos outros que se acomodassem à sua vontade. Entraram os dois para o quarto que ficava ao lado e atiraram com os alforges para cima da cama. Sentaram-se e começaram a descalçar as botas. – Vossas senhorias estejam à vossa vontade. A casa é vossa. É tudo muito pobrezinho, mas de gente honrada. Eu vou ter com a minha Adelina para ver se há vinho que bonde. Saiu da casa com as vasilhas para o vinho, mas, disfarçadamente, levou pão, conduto e vinho que deixou à porta do palheiro. Regressou rapidamente com mais vinho para que a filha não ficasse só com os três homens, que estavam já sentados à mesa, na cozinha, com as armas em bandoleira. Observavam a moça, que ia cortando pão, presunto, queijo. O pai pousou as vasilhas com o vinho em cima da mesa e ateou o lume por baixo da chaminé. Depois foi, pelo corredor, aos fundos da casa buscar mais uns gravetos e cavacas. Eles comiam e bebiam conversando, em linguagem quase cifrada. O que seria o chefe fez perguntas ao dono da casa sobre quem costumava passar por ali, se vinham armados, se eram muitos, se passavam para o outro lado do rio, se vinha gente de Espanha, se viam passar gente para Espanha. O homem respondia quase sempre que não sabia, que não saía dali, do amanho da terra e do trato da vinha, a não ser quando ia ao mercado à vila, da dificuldade em arranjar homens para o trabalho do campo. Comeram e beberam bem e demoradamente. Foi-se instalando um ambiente de mais confiança, embora sempre altaneiro da parte dos forasteiros e receoso da parte dos da casa. 10
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– Ó homem! Tanta acelga, tanta acelga que tens ali. Para que queres tanta acelga? Assustou-se, receando que ele tivesse concluído ser hortaliça de mais só para duas pessoas. – Eu e a minha Adelina comemos acelga todos os dias e a toda a hora. Até mesmo à ceia. É muita boa para a tripa e para os resfriados. E para mais outras cousas. Já o meu pai e a minha mãe, que Deus tenha, faziam o mesmo. – Ó homem, o teu vinho é bom, mas está quase a acabar. Tens mais, com certeza? – Tenho sim, meu senhor. Então não havêra de ter? Vou por mais. – Tens uma boa vinha. Grande… – Não, meu senhor. É pequena. – Eu bem vi lá de cima, quando chegava. Vai quase até ao rio. – Parece, porque as terras lá mais p’ra diante abaixam munto p’ró lado do rio. Vou por mais vinho. Agarrou duas vasilhas que estavam vazias e saiu. Ainda não tinha chegado à adega, quando ouviu os gritos da filha. – Não!!! Não!!! Ai!! Ai!! Acuda, meu pai! Acuda!!! Voltou para a casa, a correr. Tentou abrir a porta da casa, mas não conseguia. Estava trancada por dentro ou alguém a bloqueava. A filha continuava a gritar, quase sem fôlego ou com a voz abafada. Continuou a empurrar a porta, até que ela cedeu. À entrada estava um dos dois acompanhantes, que o empurrou para fora. Caiu. O outro disparou a arma para o ar. Pelos gritos da filha 11
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constatou que estava a ser violada. Caiu de joelhos: – Não desonrem a minha filha! Não... O indivíduo colocou-lhe um pé na cara e empurrou-o. Voltou a cair. Não conseguia falar. O choro embargava-lhe a voz. Outra vez os gritos da filha se tornaram mais audíveis. – Acuda! Acuda! Ai! Ai! Não! Não! Tentou erguer-se, mas já um outro veio de dentro da casa e deu-lhe uma sapatada num ombro, fazendo-o, de novo, cair. Empunhava a arma com uma das mãos e com a outra puxava as calças para cima. A filha tinha, agora, um choro sofrido e quase inaudível. Teve um ímpeto de raiva e atirou-se contra as pernas do que estava junto à porta. Ele pontapeou-o e disparou para o chão, mesmo ao seu lado. O pai berrava: – Filhos de puta!! Filhos de puta!! Adelina surgiu, descomposta, fugindo para o escuro da noite, passando pelo pai sem o ver. A porta foi, então, fechada com força. Ela fugia pelo terreiro sem ouvir o pai, que a chamava. Quando conheceu a voz do pai, parou. Abraçaram-se e, abraçados, perderam o equilíbrio e caíram no chão, a chorar. O pai levantou-se, ajudou-a e fugiram para a adega. Tentava confortá-la. Quando entendeu que estava mais calma, levou-a para mais longe, para junto de uma árvore de grande porte. – Ficas aqui escondida só um poucachinho, que eu venho logo. – Meu pai, não me deixe aqui sozinha. Vamos fugir daqui. – Só vou falar com o Manel e o Augusto que estão além escondidos. E venho logo. 12
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Foi ao palheiro para falar com os filhos. Movimentou-se cuidadosamente e, pelo caminho, espreitou a casa. Estava tudo em silêncio, como se nada tivesse acontecido. Voltou para junto da filha, que chorava baixinho. Assustou-se com o vulto do pai. – Pai, vamos fugir daqui. – Sim. Vamos para a casa dos arrumos, que fica mais longe e tem muito onde a gente se esconda. Depois… veremos.
A noite ia já alta. A filha dormitava e acordava em sobressaltos. O pai manteve-se acordado todo o tempo. Acordou-a e disse-lhe para se manter ali escondida e não sair a não ser que ele ou um dos irmãos a viesse buscar. Saiu e, com cuidado, encaminhou-se para o palheiro. Bateu levemente: – Sou eu. O filho mais velho, ao reconhecê-lo, baixou a caçadeira. – Manel, quantos cartuchos tens? – Seis, meu pai. Mais o que já tem. – Augusto, vamos levar uma roçadeira cada um. Das novas, que têm fio. Manel, levas a caçadeira. Mete três cartuchos no bolso e dá cá os outros três. Vamos entrar pelas traseiras, pela casinha da lenha. Despois, vemos o que se passa lá dentro, a ver se estão a dormir. Despois, entramos pela porta dos fundos. É milhor ser eu a levar a caçadeira. E vou à frente. Vós dois levais as roçadeiras. Vai o Manel atrás de mim. Deixa ver a caçadeira. Se me acontecer alguma coisa, tu tens os outros três, não te esqueças. Já está carregada? – Sim senhor, meu pai. 13
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– As roçadeiras, vá. Esperou. Os filhos voltaram. Cada um com a sua. Deram uma volta larga, a caminho das traseiras da casa. O pai disse para pararem: – Vou ver como está a Adelina, que está ali escondida. Voltou. Retomaram a marcha. Lenta, com o pai à frente, colando-se às sombras, como nos tempos de militar, quando era rapaz novo. Fez-lhes sinal para esperarem. Avançou sozinho até à porta do anexo, nas traseiras da casa. Cuidadosamente correu o ferrolho de madeira. Depois, com as pontas dos dedos, correu o ferrolho de dentro, que fez um pequeno ruído. Estacou, encostado à parede. Ficou à escuta. Nada do interior. Abriu a porta lentamente para evitar que chiasse. Ficou novamente à escuta. Voltou para junto dos filhos. Fez-lhes sinal para o seguirem. – Lá dentro, cuidado com os pés, não vão bulir com a lenha ou tombar alguma cousa. Entraram na casa da lenha, até ao pé da porta de ligação, no fundo do corredor. Ouvia-se alguém ressonar. O pai, novamente segurando a arma com a mão esquerda, tacteou e abriu os ferrolhos de madeira, ainda com mais cuidados. Quando a porta estava já um pouco aberta, escutou, durante cerca de um minuto, o ressonar, alternado, de dois, que dormiam profundamente. O pai espreitou e viu a suave iluminação do corredor, que vinha do braseiro através da porta da cozinha. O corredor estava vazio. Com a caçadeira apontada para a frente e dedo no gatilho, fez, lentamente, os três ou quatro metros que distavam da porta do quarto grande, onde tinha ficado o chefe. Os filhos seguiam-no. Ao chegar junto à porta do quarto, parou. 14
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A luminosidade ténue vinda da porta da cozinha, denunciava a presença deles no corredor. Escutou o ressonar profundo e espaçado que vinha de dentro do quarto. Então, entregou a caçadeira ao filho mais velho, trocando com a roçadeira. Fez sinal ao filho para lhe passar à frente, para se colocar para além da porta do quarto e ficar atento ao corredor. Levantou a roçadeira acima da cabeça, empurrou, cuidadosamente, com o pé direito a porta do quarto, entrou e colocou-se junto à cama. Apurou o ouvido para localizar bem a cabeça do que ressonava e desferiu um golpe nessa direcção e, logo a seguir, outro. O homem atingido produziu um “hum” bem audível no momento do primeiro golpe. Imediatamente surgiu um vulto na porta da cozinha. O filho mais velho disparou contra ele, que caiu no corredor. – Carrega-a já, Manel! – berrou-lhe o pai. O terceiro elemento do grupo disparou duas vezes de dentro do outro quarto contra o vão da porta e, depois, surgiu a correr por esse mesmo espaço, tentando alcançar a porta da rua. Foi atingido por segundo tiro da caçadeira, tropeçou no outro caído à porta da cozinha e ficou tombado contra a porta da rua, a gemer. – Carrega-a já, Manel! Ambos os atingidos com os tiros de caçadeira davam sinais de vida. O filho mais novo descarregou a raiva sobre o que estava caído à porta da cozinha, golpeando-o com a roçadeira repetidas vezes. – Já chega, Augusto! Já chega! Vai à cozinha e traz a candeia. Retiraram-lhes as armas. 15
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Quando o rapaz regressou com a candeia já acesa, ela baloiçava-lhe na mão como se estivesse a ser batida pelo vento. O pai foi ao quarto grande. O chefe tinha um golpe na cabeça e outro num ombro. Voltou ao corredor. O homem que estava caído contra a porta da rua agonizava. – Arrastem estes dois lá para fora, que eu já venho. Correu para junto da filha, que gritava desesperadamente. Abraçou-a: – Prontos, Adelina, prontos. Acabou-se. Acabou-se tudo. – Que foi aquilo, meu pai? – Acabou, acabou-se. Estão todos mortos. Os três. Vamos. Amparada ao pai, caminharam para a casa. Ao chegarem, pressentindo os dois irmãos, abraçou um, chorando. Chegou-se o outro e, abraçados, choravam. O pai olhava a cena, segurando a candeia. (- Nunca mais há paz e sossego. No tempo do meu pai foram os franceses, depois foi a guerra e agora estes filhos de puta! Nunca mais há sossego nesta terra.) Abraçou-os também e foi dizendo em voz baixa: – Vá, vamos lá! Temos que os tirar dali. Temos que os enterrar antes da aurora. Separaram-se, limpando as lágrimas. – Vá. Estes dois já cá estão fora. Temos que ir buscar o outro lá dentro, Manel. Esse tem que vir em cima do colchão. – Do colchão, meu pai? – Sim, o colchão deve ter a palha cheia de sangue. Vamos lá ver. Augusto, tu vais levar as cavalgaduras deles até ao pé do rio. Mas bem p’ra lá. E vais a pé. Em chegando lá, soltas os três, separados, um em cada lado. Mas não os amarres. Percebestes? Sem os amarrares. E nunca ates as rédeas umas 16
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às outras. Sempre separadas. E se sentires alguém, largas as rédeas, soltaze-os e fuges com cuidado. Vá, vai. Manel, vamos buscar cá p’ra fora o colchão, com o morto em cima. Despois, vamos puxar os três até ao pé do curral. Aí a terra é mais de feição. Abrimos uma cova para enterrar tudo: os mortos, alforges, armas, tudo. E tu, Adelina, quando nós sairmos com o colchão, vais limpar tudo com baldes de água e a vassoura. Antes que o sangue comece a coalhar. A rapariga deu um grito de horror. – Adelina!! Já estão mortos, prontos! Não pode ficar sangue à vista. Quando nós pudéremos, tamém vamos-te ajudar. E o Augusto também, quando vier.
O pai e o filho mais velho abriam a cova, com os mortos e os seus pertences arrumados a alguns metros. Quase a acabarem, fizeram medições, a passo, da largura e comprimento e a altura do fundo. Chegou o filho mais novo. – Então, ficaram de ao pé do rio? – Sim, meu pai. – E cada um longe do outro? – Sim, meu pai. – Está bem. Agora vai ajudar a tua irmã.
Quando a cova parecia ser já suficiente, tanto em larguras como em fundo, o pai disse: – Vamos. Primeiro as carabinas e as cartucheiras. – Ah meu pai, posso ficar com uns zagalotes? 17
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– Para que é que tu queres os zagalotes? Para mostrares ou para os verem? – P’ra lembrança. – Isto não é para lembrar, é para esquecer. – Atão e o dinheiro? Se tiverem dinheiro... Vasculharam os bolsos dos casacões. A carteira do chefe estava bem recheada de notas. Colocou-a em cima da carroça, ali ao pé. Estava já tudo bem acomodado dentro da cova, tanto os mortos como os seus pertences. O filho ia começar a enchê-la. – Espera aí. Vai lá buscar a criolina. – Criolina?! – Vamos por um bocado. Ajuda a tapar o cheiro e não venha p’raí algum bicho a cheirar, a querer desenterrá-los. O cheiro da criolina enxota-os. Depois da cova bem coberta e aplanada, espalharam palha por cima, para disfarçar. A suave luminosidade do dia que se anunciava permitia ver, ali ao pé, o colchão manchado de sangue. Com a enxada o pai desfazia e disfarçava os rastos de sangue deixados pelos corpos arrastados até ao pé da cova e, vendo que o filho não o ajudava: – Que estás para aí, especado, a fazer? – Atão, meu pai?! E o colchão? Fica ali? – Não. Vamos queimá-lo já. – Queimá-lo? E se alguém vê o fumo? – Nós dizemos que tivemos que o queimar porque os percevejos já eram muntos. E vamos, também, queimar a tua roupa e a minha, toda a que tiver sangue. E a da Adelina e do 18
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Augusto. Vamos ver isso quando hóver mais luz. Despois, p’rá semana, vamos à vila comprar outras. Fixou o horizonte do lado nascente, já com farrapos de nuvens escuras tingidas de cor avermelhada e disse: – Vamos lá ver o dinheiro e queimar o que tiver sangre.
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II. Finais de Oitocentos
1 Era noite. Chovia e trovejava ao longe. Os cães começaram a ladrar. De dentro de uma das casas um homem espreitou o exterior. Os cães continuavam a ladrar. Berrou: – Quem é lá? – Dá lecença qu’a gente se recolha? – Quem és tu? – Somos dois. Eu e o mê amigo, que tostegou um pé. – A esta hora?! – Estávamos a voltar do outro lado de lá do rio. – Espera aí. Saiu de caçadeira empunhada. Sossegou os cães. – Chega-te aqui ao pé. Aproximou-se um homem carregando um saco. Um outro vinha amparado a ele. 21
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– Qu’é que vocês andam a fazer por aqui a uma hora destas? – A trabalhar. Estávamos a voltar do lado de lá. – Então, e o que é que querem? – Abrigo. Até que escampe. E a ver se consigo fazer um aperto no pé dele. – Venham lá. – Vimos uma luz aqui e vinhémos. – Vamos pr’áli. Lá pode-se fazer lume. – Fico agradecido. Muito agradecido. Entraram para uma arrecadação. O dono da casa acendeu uma candeia e pendurou-a numa viga. Os outros sentaram-se no chão. – Tira lá a bota, ó Fernando. O dono da casa juntou umas cavacas no espaço por baixo do que parecia ser uma chaminé e começou a acender o fogo. – Então, vós andais no contrabando? – Pois. É a nossa vida. Agora estou a ver a sua cara. Já o conheço, lá da vila. – Vou lá às vezes. Nos dias de mercado. – Não tem por aí uns panos velhos? Qualquer coisa que possa atar o pé dele? – Vou a casa ver. O outro homem, com o pé descalço, tentava, de rojo e com um esgar de dor, aproximar-se do fogo. Olhou para o dono da casa, que o estava a observar: - Fico-lhe muito agradecido. – Já volto. Saiu. Quando regressou, trazia numa mão uns trapos e na outra uma garrafa. 22
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– Tome lá os panos. Trouxe-vos uma pinga d’aguardente p’ra aquecerem por dentro. Precisam de mais alguma coisa? – Não senhor. Muito agradecidos. Não é preciso mais nada. Quando ele se sentir melhor e quando escampar, nós abalamos. Com sua leçença. – Quando vossemecês quiserem. Fiquem à vossa vontade. Quando for de manhã, venho ver se ‘inda estão por cá e saber de alguma precisão. – Até logo.
Quando estava a nascer o dia foi à arrecadação e encontrou só o homem com o pé empanado. – Bons dias. ‘Atão, o seu amigo? – Bons dias. Olhe, foi-se e deixou os sacos. Há-de voltar com o macho p’ra me levar, mais os sacos. – Então e vossemecê já comeu alguma cousa? – Já comi pão… molhado e, de peguilho, tinha aí um cibo de toucinho. Fiquei desconsolado, que o pão estava todo molhado, meio desfeito. – ‘Atão espere aí, que eu já venho. E aguardente, ainda tem? – O Amadeu levou a garrafa p’ró caminho . Voltou com pão, presunto e uma garrafa com vinho. Trazia pela mão uma menina de quatro ou cinco anos. – Ora, aqui tem. Pão e algum presigo. – Agradecido. Muito agradecido. A garota, assustada, olhava para o homem, agarrada às pernas do pai, que se sentou ao lado do homem. Colocou-se encostada ao pai, do lado oposto ao homem. Este puxou 23
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um saco para si, procurou, procurou lá dentro e tirou uma boneca pequena. – Toma. Anda cá. É para ti. Uma muñeca. Toma uma muñeca. Ela olhava fixamente a boneca, mas não se aproximava. O pai tomou a boneca e entregou-a à filha: - Pega. Vai mostrar à tua mãe. Ela agarrou a boneca e saiu a correr. – Então, vossemecê sente-se melhor? – Perece-me que sim. – Então, vocês costumam passar por aqui? – Um bocado mais para lá, mas saímos do barco perto daqui, que o terreno é mais de feição. Despois, vamos pela beira do rio acima e lá mais p’ra diante é que subimos. – E ontem vieram p’r’áqui? – Pois. Tosteguei o pé logo ao sair do barco. A gente já sabia aqui da sua casa. É perto p’ra pedir gasalho. Com sua lecença… O homem começou a comer. – E vossemecês fazem vida disto? Dá para viver? – Dá. Dá munta ajuda. Sempre é melhor do que andar à jeira. Olhe, se eu tivesse estas casas, assim, estas suas, mesmo aqui de ao pé do rio, assim é que eu fazia um bom negócio. – Porquê? – Dava p’ra arrecadar as cóisas. P’ra levar e traguer. Com os braços apontava para norte, para sul e para o lado oposto ao rio. – Ah! E vossemecês vivem na vila? – Com tanta precura que me está a fazer… até parece que está a pensar ir dizer à guarda. 24
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– Não senhor! – Eu vivo lá na vila. Ele vive mais lá p’ra dentro. – E o que é que vocês levam e trazem? – Ora… varia. É o que querem lá… e o que querem cá. O que não têm lá e cá. Ou porque é mais caro. É consoante… E nem sempre é o mesmo. – Ah! – Vossemecê não fique aqui preso comigo. – Está bem. – Com sua lecença, eu fico por aqui, à espera do Amadeu. – Está bem. Vou à minha vida. – Quando for à vila, precure pelo Fernando Simão. Tenho uma venda por trás da igreja. Quer-se dizer: a minha mulher é que tem. E como é a sua graça? – José Augusto. José Augusto Acelga. Um dia apareço-lhe por lá. – Não se importa se nós fumos daqui assim lá mais p’ró meio da tarde? É mais seguro… assim cheguemos pela noute. – Não senhor. Esteja à sua vontade. Saiam quando lhes aprouver. E não precisam de dizer nada.
2 O dia nascia e José Augusto estava já a descer a encosta, a caminho do rio, ziguezagueando pelo terreno, apalpando as cepas e os rebentos novos, arrancando folhas, ressequidas e escuras, desfazendo-as com os dedos contra as palmas das mãos e parando para olhar os pedaços, baixando-se para examinar as cepas junto ao chão. Ao chegar próximo do rio 25
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olhou para cima, olhou a vinha para um e outro lado, caminhando mais próximo do rio. Subiu a encosta até ao ponto mais alto. Olhou em volta. Caminhou por essa parte mais elevada e, depois, voltou a descer. Assim foi subindo e descendo, sempre examinando as videiras e arrancando um ou outro respigo do que poderiam ter sido futuros cachos, que não eram mais que conjuntos de filamentos ressequidos com umas pequenas formas arredondadas, mirradas e escurecidas, nas extremidades. Quando parecia ir regressar a casa, parou. Voltou a olhar a vinha, puxou o chapéu para a nuca, coçou a cabeça e acabou por se sentar, com as mãos apoiadas no chão, atrás das costas, olhando para os campos, ao longe. Assim esteve muito tempo, olhando a vinha e olhando para longe, para o outro lado do rio. Levantou-se e regressou. Lentamente. Ao passar pela casa onde viviam a irmã, o cunhado e os filhos, viu o mais velho a cavar o quintal. – Ó Miguel! Bom dia. O teu pai está lá dentro? – Nã, senhor mê tio. Saiu co’ a minha mãe. – Donde foram? – Nã sei. Foram p’ra lá. Seguiu a direcção que o sobrinho lhe indicara. Foi encontrar a irmã e o cunhado junto ao curral dos porcos. – Bons dias. – Ó Zé Augusto! Hoje madrugaste! – Pois. – P’ró que há que fazer… Estava aqui a falar co’a tua irmã que talvez fosse boa altura para matarmos este. Dava bem p’ra nós dois. P’rá tua casa e p’rá nossa. Já está bem medrado. – Está bem. Mas eu queria falar contigo… por outra cousa. 26
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– ‘Atão diz. – Já andaste pela vinha nestes dias? – Fui… quer-se dizer… vi, mas… não dá vontade nenhuma. – Eu já não andava por lá, assim, com esta demora, já há quase uma semana. – Parte-se o coração de um home… – Olha, anda daí comigo, qu’a gente tem que falar. Foram caminhando para a vinha, mas um pouco mais à frente, José Augusto parou e sentou-se num tronco de árvore, ali caído. – Trouxe-te p’r’áqui por causa da minha irmã. É que a vinha já está toda apanhada pela maleita. Fez uma pausa, a olhar para o chão. – Isto é assim: eu, a Maria, tu e a minha irmã, mais os nossos, é muita boca para sustentar. – Estás a querer dizer para que nós nos vamos… – Não! Mas, ainda bem que a Adelaide e o filho já foram ter com o meu irmão, à espera das passagens, porque, se não, ‘inda era pior. Sempre são menos três bocas. A gente tem é que pensar bem na nossa vida. Estive a ver a vinha, quase cepa a cepa, e aquilo já está tudo... tudo apanhado. É mais um mortório. Esta ainda é pior que a outra de quando eu era garoto. O meu pai bem se queixava, mas havia de ver esta, agora. – Ó Zé Augusto, já ouvi dizer que há que há quem ande a pensar arrancar tudo e pôr tabaco. – Está bem, está bem. Há-de dar para todos… – ‘Atão e qual é a tua ideia? – Enxertar. Enxertia, que é o que dizem os que sabem. Mas onde é que há dinheiro? Temos que tornar a fazer tudo! – Pois. E ‘atão? 27
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– É preciso arranjar dinheiro. Alguns enxertos nós havêremos de fazer p’ra ver… p’ra ver se dá. Talvez até mais que aqueles que já tinha pensado. Mas parece-me que é preciso fazer tudo. Tudo! E é assim: quem fizer primeiro, é o primeiro a ter vinho de vinha nova, que é capaz de dar munto dinheiro. – Pois. E ‘atão? Olhou o cunhado nos olhos e puxou o chapéu para a nuca. – Tu alembras-te daqueles dois que, aqui há uns anos, vieram cá pedir gasalho numa noite chuva? – Sim. Queres… estás a pensar pedir-les dinheiro emprestado? – Não!!! - ficou, de olhos esbugalhados, a fitar o cunhado. - ‘Atão se tu achas que eles têm dinheiro para emprestar, nós não podemos fazer o mesmo? – Ah!... – E a Espanha é mesmo além ao fundo, daquele lado, carago! – Nós os dois? – Sim. Despois…despois, logo se vê. Logo se vê se, com o andar do tempo, pode dar munto trabalho.
3 Caminhava de um lado para o outro, com as mãos atrás das costas, entre uma das janelas e a estante, carregada de livros, na parede do lado oposto. Cada vez que se aproximava da janela sentia vontade de se sentar num dos bancos de pedra implantados na parede, de um lado e do outro, mas ficava a observar a rua. Os ombros roçavam ligeiramente pelo 28
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veludo cor de mosto dos cortinados, fazendo um froufrou quase imperceptível, que lhe causava prazer. Esperava o visconde que chegara do Porto na tarde do dia anterior, a quem, na qualidade de procurador, iria dar conta das diligências de que o tinha incumbido. Parou junto a um dos cortinados e agarrou-o, tomando-lhe o toque suave, enquanto olhava, mais uma vez, as paredes da biblioteca quase inteiramente cobertas de estantes de vidro. Nos espaços das paredes, entre as estantes e por cima delas, estavam quadros a óleo de familiares do visconde. Colocou-se junto à janela, olhando a rua. Assim estava já há algum tempo, quando ouviu, atrás de si, a voz do visconde: – Bons dias, meu caro Luciano. – Bons dias. Como está vossa excelência, sr. visconde? Fez boa viagem? Cumprimentaram-se. O visconde, enquanto se sentava numa das poltronas, fez-lhe sinal para se sentar. – Ora, cá estamos. É sempre o mesmo problema com malas e mais malas, embora, desta vez, fossem menos. E você como tem passado? – É só o reumatismo que me apoquenta. Com estas noutes a arrefecerem… O sr. visconde é que continua um jovem. – Ora, sou mais novo… – Pois. Eu já passei bem os sessenta. – Não me pergunte a idade… Então, diga-me lá das suas diligências. – Isto está tudo uma tristeza. Veja o sr. visconde: há bem poucos anos, vossa excelência vinha aqui para as vindimas. Vinha ver as suas coisas e ver como corriam os trabalhos. Era o lagar, cheiro a mosto, mais tarde o vinho novo, provar 29