O princípio da Autonomia na Ética de Kant

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FICHA TÉCNICA

título: O princípio da Autonomia na Ética de Kantt autor: Manuel João Matos edição: edições Ex-Libris ® (Chancela do Sítio do Livro)

revisão: Patrícia Espinha capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira

1.ª Edição Lisboa, outubro 2022 isbn: 978-989-9028-69-2 depósito legal: 503535/22

© Manuel João Matos

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Índice

Agradecimentos 9 Edições e Abreviaturas 11 Introdução 13 capítulo i OS FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT 19 capítulo ii O IMPERATIVO CATEGÓRICO E A FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL 41 capítulo iii A TÍPICA DA RAZÃO PRÁTICA – REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DO JUÍZO PRÁTICO EM KANT 67

Conclusão 93 Bibliografia 97 Índice Onomástico 107 Preview

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Agradecimentos

Os meus agradecimentos ao Professor Doutor Michel Renaud, Professor Catedrático aposentado da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, à Professora Isabel Renaud, Professora Catedrática aposen tada da FCSH da Universidade Nova de Lisboa e ao Professor Luís Baptista, Director da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

Os meus ag radecimentos à minha mulher Sílvia, ao meu filho João e à minha irmã Ana Matos.

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Edições e Abreviaturas

Kants Gesammelte Schriften, hrsg. von der Preussischen Akademie der Wissenschaften zu Berlin, 1902 ̶, à qual remetemos pela sigla AK, seguido do tomo e do número da página.

KrV Kritik der reinen Vernunft (1781, 1787), AK III

GMS Gr undlegung zur Metaphysik der Sitten (1785), AK IV

KpV Kritik der praktischen Vernunft (1788), AK V

KU Kritik der Urteilskraft (1790), AK V

Rel Religion innerhalb der Grenzen der Blossen Vernunft (1793-1794), AK VI

MS Metaphysik der Sitten (1797-1798), AK VI

Ant Anthropologie in pragmatischer Hinsich (1798), AK VII

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INTRODUÇÃO

A vigorosa posição do valor da liberdade e da autonomia do sujeito moral enquanto legislador de si próprio, princípio racional da nor matividade e da causalidade prática, constitui a matriz da moral kantiana. Mas, se a autonomia engendra a subjectividade prática, opondo-se à tirania passional ou patológica da sensibilidade heterónoma, a auto nomia evoca também uma espécie de auto-afecção do incondicionado intrínseca à lei, que a voz simbólica da consciência e o seu horizonte de perfectibilidade infinita, remete para um acontecimento paradoxal de produção e doação endógena da lei. Com efeito, para Kant, na experiência do «Faktum» da lei e no sentimento do respeito que suscita, há uma conexão entre passividade e actividade, afecção e geração, acolhimento do dom da lei e acto de auto-legislação moral.

A existência da lei moral é uma evidência universal que surge como um «facto da razão» («Faktum der Vernunft») que desvenda uma espontaneidade absoluta, não derivável e irredutível. A arqueologia da lei desemboca na claridade inexorável da consciência de si que acompanha a consciência da lei moral e que impede todo o progresso para além de si própria ou a possibilidade de um antecedente mais originá rio. Se, em mim, a consciência da lei é um «Faktum»1, é porque se põe

1 KANT, I., KpV, AK V, 31-32, 47.

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e impõe a si própria. Assim, na linha das categorias do entendimento puro, a lei moral exprime uma actividade sintética a priori. Nas catego rias teóricas tal como na lei moral, o entendimento engendra a priori a estrutura ou a forma de um todo articulado por uma necessidade interna: o sistema da natureza formalmente concebida (natura forma liter spectata) que, na ordem prática, deve ser qualificada de sistema da natureza supra-sensível.

A lei moral universal revela que a razão é imediatamente prática, formadora e legisladora de um sistema submetido a uma necessidade interna: uma natureza supra-sensível. Contudo, a lei moral revela a natureza da própria razão que aparece como tabula formaliter inscripta onde se pode ler uma lex naturae insita, uma lei comum a todos os seres racionais possíveis. Razão e lei, logos e nomos, espontaneidade e neces sidade, são os pares conceptuais da filosofia crítica. A evidência da sua unidade dá-se graças à co-pertença a uma ipseidade que é a claridade qualitativa e activa que se manifesta como uma doação endógena da lei.

Pelo «facto da razão», a razão humana submete-se a uma necessidade inter na, mas a sua interioridade não se abre para que se perceba plenamente a dinâmica do seu trabalho gerador de necessidade e universalidade. A razão prática legisla constitutivamente: exercendo-se não poderá, pela sua natureza, não legislar. Na apercepção transcen dental prática dá-se um «Eu quero» que, na sua pureza, coincide ori ginariamente com o «Eu devo» da razão sob o auto-constrangimento da forma universal, necessária e incondicionada da lei.

Na Religião2 , a ideia da lei moral como respeito que lhe é insepa rável, revela a existência na natureza humana de uma disposição à personalidade, disposição estritamente racional que, ao contrário da

2 KANT, I., Rel., AK VI, 26-28.

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Manuel
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disposição à animalidade (amor de si físico), não pode ser negada sem aniquilar a própria possibilidade da natureza humana. A consciência da lei é originária e co-pertence necessariamente à possibilidade do ser racional capaz de acção. Ora, tal facto originário da razão testemunha a constituição da natureza humana que define a própria personalidade: a ideia de lei e a da humanidade são indissociáveis.

A investigação sobre as condições de possibilidade da lei moral con duzida na Crítica da razão prática, apresenta a lei originariamente independente e legisladora, livre de qualquer móbil heterónomo Ora, a posição originária da lei e da razão explicam-se reciprocamente, uma não podendo ser pensada sem a outra, como se tratasse de uma tauto logia de uma só e mesma natureza, porque a lei é naturalmente uma forma universal e a razão é naturalmente uma legislação necessária. A lei é constitutiva da natureza da razão que não a pode suspender, nem transgredir a sua legislação sem se contradizer a si própria. A razão reconhece-se como pessoa no dom da lei, dom que envolve um acto racional puro, portanto, autónomo e autárquico. Para Rogozinski, a autonomia está do lado do Nomos e «a doação da Lei pela razão é, na verdade, auto-doação e auto-revelação originária da Lei em si própria. Dom da Lei pela Lei que se oferece logo de início a nós»3. O sentido da revolução prática kantiana reside na ipseidade da Lei: «Nada senão a Lei, que não é lei de um Outro, nem aquela de Deus, ou mesmo do ser, que não é a Lei senão de si própria Lex index sui –, a Lei da Lei»4 .

Se a lei exprime a autonomia, a lei é de imediato a «coerção interior»5 da razão prática que no exercício do seu poder, sofre e pro duz a sua própria necessidade como auto-afecção da sua pura espon

3 ROGOZINSKI, J., Le don de la Loi. Kant et l’énigme de l’éthique. Paris, PUF, 1999, p. 91.

4 ROGOZINSKI, J., Le don de la Loi. Kant et l’énigme de l’éthique, p. 123.

5 KANT, I., KpV, AK V, 32.

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taneidade incoercível. Assim, o «Eu devo» contém «Eu posso dever» e «Eu quero dever», fór mula matricial do Bem, quer dizer, da boa vontade que implica, pelo menos para a vontade, que se identifica à razão prática: «Eu não posso senão querer o dever». O exercício da razão prática é originariamente a constituição normativa do Si da razão segundo a sua própria lei moral.

Assim, a vontade reconduz-se a uma «deter minação unicamente pela representação da lei»6, a qual, em última análise, não pode ser senão absolutamente necessária, conexão integ ral do Si prático com a Lei, que tor na inválida a distinção entre acto livre e não livre no seio da boa vontade, em favor da vontade qua razão no acto legislador. Se a liberdade parece vulnerável na asserção hipotética e problemática de uma causa noumenon, tal vacuidade teórica é ultrapassada pela fun ção do postulado da razão prática e pela elevação desta Ideia, fundamento de inteligibilidade da realidade da lei prática, ao nível de res facti7 , g raças à demonstração suficiente da sua efectividade causal pela lei, contrariamente às Ideias de imortalidade da alma e da existência de Deus que se confinam na esfera da possibilidade e são objectos de crença (res fidei).

Se «Eu devo» cumprir a lei, então é necessário que «Eu possa querer o meu dever». A racionalidade do agir absorve a bondade do agir e, portanto, a «vontade absolutamente boa» é também uma razão produtora de representações universalmente válidas, uma legislação universal, um mundo estritamente inteligível cujas acções decorrem puramente do Si prático, sem o concurso da sensibilidade e da alte ridade. A bondade seria a «forma do dever em geral», o dever livre, objectivamente e subjectivamente «verdadeiro», que comanda ao infi

6 KANT, I., KpV, AK V, 55.

7 KANT, I., KU, AK V, 468-469. Preview

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nito todo e cada um dos seres racionais, para o máximo assimptó tico que é a perfeição ou a santidade, acordo perfeito entre a razão e a vontade. No sistema prático de Kant, a forma do querer instaura uma representação auto-determinante, cuja objectividade reside no acordo da razão com a vontade. Kant propõe na interioridade da voz moral racional o incondicionado do bem absoluto. Mas o absoluto e o incondicionado que acompanham a lei moral repousam unicamente na razão, fundamento auto-suficiente do acto da legislação moral. A Ideia do ser moral supremo não se identifica com a Lei: a teologia emerge da ética e Deus justifica-se na Lei como o Soberano Bem.

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capítulo i

OS FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA PRÁTICA DE

KANT

As duas edições da Crítica da razão pura (1781/1787) deixam em aberto a questão da existência da liberdade transcendental e, portanto, a da razão prática. O Prefácio da Crítica da razão prática, no seu começo e por meio de uma questão sobre o título da obra, define a sua finali dade que é estabelecer que há uma razão pura prática: «O seu objecto é somente o de estabelecer que existe uma razão pura prática e é com este objectivo que critica todo o poder prático da razão»8 .

O Prefácio da Crítica da razão prática está dividido em duas partes. A primeira parte (§1 a §6) afir ma a realidade objectiva do conceito de liberdade do ponto de vista prático enquanto a razão teórica não tinha senão estabelecido a possibilidade. Tal mostra a superioridade da segunda Crítica em relação à primeira e esclarece «o enigma da crítica»: acordar ao uso prático das categorias o que tinha sido recusado no seu uso teórico. Mas se os dois usos da razão são distinguidos, é da mesma razão que se trata, considerada nas duas g randes tarefas indis pensáveis: o conhecimento e o agir. Kant afir ma a identidade da vontade, ou seja, da própria razão prática, com a lei moral, necessária e univer sal, presente na consciência comum de cada homem.

8 KANT, I., KpV, AK V, 3.

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Na segunda parte (§7 a §17), Kant prevê as objecções que surgem de uma compreensão falaciosa do seu sistema. Ele responde àquelas que já lhe foram apresentadas depois da publicação da Fundamentação da metafísica dos costumes e defende-se de ter querido inventar uma teoria nova, relembrando o seu desejo de ser compreendido pelos seus leito res: a seu respeito, estabelece a diferença entre os amigos da verdade que caminharão com ele na procura da verdade e aqueles que, seguros do seu sistema, desdenham da sua filosofia. O Prefácio da segunda Crí tica ter mina pela evocação do empirismo na sua forma absoluta que, se fosse verdadeiro, arruinaria a empresa crítica.

O Prefácio à Crítica da razão prática começa por uma questão que Kant põe a si próprio, mas que supõe que lhe possa ser dirigida por um leitor sensível ao paralelismo entre a primeira e a segunda Crítica. Os leitores esperavam ver o ter mo «pura» no título da sua obra: Crítica da razão pura prática em vez de Crítica da razão prática. A resposta de Kant permite-lhe definir de imediato o seu desígnio: estabelecer a realidade da razão pura prática. Para tal, Kant fará uma Crítica da razão prática na sua totalidade, que lhe per mite distinguir uma razão pura prática, ou seja, a priori, universal e necessária e uma razão prática simples mente empírica. O que Kant põe como premissa é que «enquanto razão pura, ela é efectivamente prática, prova a sua realidade e aquela dos seus conceitos e nenhuma argúcia pode contestar a possibilidade de ser prática»9.

Há uma notável mudança da primeira para a segunda Crítica que, no §3, Kant vai explicitar de uma maneira que é o ensinamento prin cipal do Prefácio. O conceito de liberdade, que é a pedra de toque de toda a filosofia crítica, é aqui promovido a um papel fundamental no interior do sistema kantiano: «O conceito de liberdade enquanto a

9 KANT, I., KpV, AK V, 3.

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realidade é provada por uma lei apodítica da razão prática, forma o fecho da abóbada de todo o edifício do sistema da razão pura, com preendendo aí a da razão especulativa»10. Kant utiliza uma imagem arquitectural afir mando a realidade (Realität) de um conceito que, até então, não era senão problemático. Kant insiste sobretudo no papel da ideia de liberdade que assegura a unidade do todo, isto é, da razão pura nos seus dois usos teórico e prático. A liberdade surge como o «fecho da abóbada» que per mite às duas partes do edifício manterem-se em conjunto sob a égide da razão prática. A ideia de liberdade cria esta unidade e a sua realidade prova-se pela lei da razão prática cuja necessidade é certa e indubitável.

Todavia, a lei moral é a priori universal e necessária e imediatamente acessível à consciência comum bem como à minha existência, como afirma Kant na Anotação 7 do capítulo primeiro «Dos princípios da razão pura prática», pois repousa num «facto da razão» (ein Faktum der Vernunft)11. Assim, a lei moral mostra, de uma maneira incontestável, a realidade da liberdade, mas as outras ideias como a de Deus e da imortalidade da alma que, no plano teórico, tiveram um estatuto problemático, pelo seu laço com o conceito de liberdade adquirem com e por ele consistência e realidade possível. Kant precisa que se trata da sua possibilidade, mas no plano prático opera-se uma mudança de estatuto, de problemática a possível, bem como a mudança de estatuto da ideia transcendental da liberdade, de possível a real, que é revelada pela lei moral.

O ensinamento do §4 da Crítica da razão prática é o de que temos o saber (wissen) da lei moral em nós e o da possibilidade da liberdade que é a condição da primeira. Ora, não há aqui um círculo que Kant evoca

10 KANT, I., KpV, AK V, 3.

11 KANT, I., KpV, AK V, 31.

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