Crime no Feminino

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MARIA BASTOS

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CRIME NO FEMININO

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CRIME NO FEMININO é o nome dum programa de televisão onde a assassina conta, na primeira pessoa e diretamente para as câmaras, os quatro crimes que cometeu. Na PARTE I deste livro, ela fala das vítimas, explica porque as matou e de que forma as matou. Na PARTE II a jornalista toma conhecimento de todos os trâmites, todo o trabalho e todo o caminho que a polícia teve de percorrer, durante quatro anos, para a conseguir prender e também do trabalho exercido pela advogada para a tentar defender. Na PARTE III, a jornalista, completamente solidária com a criminosa, faz várias entrevistas para perceber as razões do comportamento daquela mulher que todos consideram psicopata. Por último, a jornalista volta a ter uma conversa com a assassina, pretendendo saber se a cadeia a irá modificar ou se no futuro, quando for libertada, continuará a planear a próxima morte. Um livro que nos deixa a pensar se, embora não sejamos psicopatas nem sequer simples criminosos, perante determinadas circunstâncias impostas pela vida, não seríamos todos capazes de matar…

MARIA BASTOS nasceu em Vendas-Novas, distrito de Évora. Tirou o Curso Superior de Educação em Lisboa e foi professora do ensino básico durante 19 anos. Deixou o ensino para se tornar empresária. Começou por escrever contos infantis, mas a grave doença do marido obrigou-a a parar. Quando enviuvou, retomou a escrita, desta vez com a sua paixão que sempre foi a literatura policial. Vive no Ribatejo, tem dois filhos e três netos.



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CRIME NO FEMININO Doença ou Maldade

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O Dilema sobre uma psicopata

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FICHA TÉCNICA

grafismo de capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira

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1.a Edição Lisboa, dezembro 2023

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título: CRIME NO FEMININO Doença ou Maldade – O Dilema sobre uma psicopata autora: Maria Bastos edição:  edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro)

isbn: 978-989-8986-79-5 depósito legal: 523895/23 © Maria Bastos

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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publicação e comercialização:

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Dedico este livro aos meus três netos: Tomás, Inês e João Maria.

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PAR TE I

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NA CADEIA

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A RECLUSA

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— Estava a pensar escrever um livro sobre a minha vida e até já sabia como ia começar: “Chamo-me Helena Moreira, tenho 26 anos e estou presa na cadeia de Casais da Serra.” Mas sabes Júlia, acho que não é preciso escrever nada. A diretora chamou-me ao gabinete dela. Perguntou se eu estou disposta a dar uma entrevista para a televisão. Como é que se chama mesmo a jornalista? É conhecida, mas não me lembro do nome. Não interessa. O que interessa é que vou ficar famosa. Estás a ouvir, Júlia? Estou a falar contigo. Crime no Feminino, é como se vai chamar o programa. Sugestivo, não achas? Não achas nada, claro. Era preciso que soubesses o que quer dizer sugestivo. Bem, é lógico que aceitei sim, fazer a entrevista. Já é tempo de ouvirem as mulheres — as vítimas — em vez de as meterem na cadeia. 9

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Quer dizer, eu até estou bem aqui. Ninguém me chateia e faço o que quero. Olha, se queres saber, Júlia, sou uma mulher realizada. E até sou um exemplo para todas as reclusas ignorantes, como tu. Consegui tudo o que me propus fazer. Vinguei-me de tudo o que me fizeram. Mas tu sabes isso. Se calhar é por isso que gostas de mim. Sim porque eu sei que gostas de mim e que gostas de me ouvir. Espera só até eu ser famosa. Depois sempre quero ver o que dizes. Quer dizer, tu não dizes nada, estás sempre calada; eu é que ainda tenho que adivinhar o que tu queres dizer. És mesmo pateta. Vou aparecer na televisão, Júlia. Vou ser a heroína da minha história. Pois, agora finge que estás a dormir.

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— A Júlia está é cheia de inveja. E as outras então nem se fala. É claro que me iam escolher para fazer o programa. Eles sabem que eu sou muito mais interessante do que elas. A maioria delas está presa por tráfego de drogas. O que é que isso tem de interessante? Tem alguma dificuldade? Compra-se num sítio e vende-se noutro.

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Até dá vontade de rir. É preciso ser inteligente para fazer isso? Têm é que ser muito parvas para serem apanhadas… Comigo têm o crime perfeito e a polícia aos papéis. Isto sim, revela inteligência. Já estou a ver as audiências…

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— Estão à minha espera. Aquela jornalista, como é mesmo o nome dela? Só espero que a estúpida da diretora não me obrigue a aparecer na televisão com este ridículo uniforme e me deixe maquilhar. Tenho o direito de estar bonita. E essa jornalista não julgue que me obriga a falar do que eu não quiser. O programa sou eu. Eu é que decido. Eu é que tenho o poder! É bom que ela perceba desde já que só está aqui para ouvir. Não está aqui para dar palpites. Os telespetadores irão ver o que eu quiser que eles vejam. A verdade sobre a minha pessoa. O programa não pode ser adaptado de acordo com aquilo que mais lhes convier. Não quero um programa bonito. Quero um programa verdadeiro. Só tenho que estar acompanhada por uma guarda prisional. Mas não me afeta. Ela até gosta de mim e eu chamo-lhe a minha segurança privada.

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— Uau, que sala toda pipoca que arranjaram. Olha lá está ela. Afinal não passa de uma miúda. É gira. Pequenina, mas elegante. E bem vestida. Quer dizer, eu com a idade dela metia-a a um canto, essa é que é essa. Alta, magra como eu era, de cabelos castanhos claros e olhos verdes. Ou talvez cinzentos… dependia dos dias e da minha fúria. A moça quer parecer simpática. Pediu-me que me sentasse e agradeceu-me muito eu aceitar contar a minha vida. Disse que era uma entrevista exploratória. Ainda não iam filmar nada. Primeiro perguntou-me como é que eu passava os dias cá dentro. Como era estar privada da liberdade. Isto é lá pergunta que se faça… coitada, devia ter-se preparado melhor. Mas eu vou fazer-lhe a vontade. Vou contar-lhe como se vive cá dentro. Isto é uma seca, é o que é, senhora jornalista. A comida não presta, vestimos que parecemos uma sopeira dos anos 70, não nos deixam usar maquilhagem nem sequer batom ou verniz para as unhas. Uma voltinha no pátio e toca de volta para as celas. Tudo em filinha indiana. Tipo formigas. Tempos livres não faltam. O que falta é serem divertidos.

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Pintura e trabalhos manuais. Voltámos a ser crianças. Ou então malha e renda, como as velhotas. Outras tratam das plantinhas. Eu tenho cá paciência para isso… Podia fazer bricolage, mas isso é coisa que não quero recordar. Depois até vai perceber porquê. Os livros da biblioteca, por amor da santa, não interessam nem às mais ignorantes. Se ao menos nos dessem umas revistas com uns gajos giros para animar o ambiente… Eu sou superior a esse tipo de coisas, gente com a mania que é V.I.P. enoja-me, mas elas até se derretiam todas. São espíritos mais corriqueiros. Filmes que até poderiam ter algum interesse, já têm bolor, todos com gente que já morreu. À noite tenho que aturar a Júlia que não é a pessoa mais inteligente que conheci, acreditem. E se andou na escola, disfarça muito bem. Não sabe nada de nada. E ainda por cima é piegas. Ou está calada ou está a chorar. Por tudo e por nada. Mas eu entendo, coitada. Nem todas podem ser como eu. Há muitas pessoas fracas no mundo. Tens que ser superior a essas coisas, Júlia, estou-lhe sempre a dizer. Tens que ser forte e se não és, pelo menos finge que és. Eu sei que tu só fazes aquilo que eu te aconselho a fazer.

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Mas é esse o segredo na cadeia. Finge, Júlia, finge que tens coragem para enfrentar tudo e todos e deixa-te de choraminguices. Só assim conseguirás sobreviver.

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— “Mas ainda não me disse como é que se sente por estar presa.” Ah…ah…foi o que ela disse? A jornalista? O que é que ela tem a ver com isso? Com isso e com outras coisas que me está a perguntar e que eu não estou a perceber muito bem onde é que ela quer chegar. Eu estava ali para dar a conhecer a minha história. Os factos e os motivos que me levaram à prisão. O porquê de ter feito aquilo que fiz. Não estava disponível para que ela se pusesse armada em psicóloga, para isso já me basta a outra, ou em padre e se pusesse a tentar dissecar a minha psique, a picar-me a alma. “Desculpe, mas você não tem nada a ver com isso”. E ainda lhe disse mais umas coisas para a meter na linha. E ela continuou a fazer perguntas e eu já me estava a começar a chatear com a conversa. Pode ser inteligente, mas não é lá muito esperta, se isso pode existir, ser esperta, mas ser burra ao mesmo tempo. Se me apetecer, posso sempre dar meia volta e sair da sala.

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— Gostei do gravador, Júlia, a máquina que gravava tudo o que eu dizia. O que eu faria com uma máquina daquelas! Claro que te entrevistava, Júlia. Duvido é que tivesses alguma coisa de jeito para dizer. Mas pronto, como já és minha colega de quarto há muito tempo, eras a primeira. E não era preciso agradeceres-me. Fazia um conjunto de entrevistas às reclusas como deve ser, em que cada uma contava a sua história. Sem lamechas, sem pieguices. Factos. Só interessam os factos. Aposto que dava um bom programa. Já a tipa que me entrevistou, não sei não. Parece que ainda não percebeu a qualidade do material que tem nas mãos. Claro que estou a falar de mim, de quem é que havia de ser… E depois aquela história de querer saber tudo sobre os meus sentimentos e tal e coisa. Os meus sentimentos não são para aqui chamados. Não são para um programa de televisão. O quê? Achas? Achas que não vai correr bem? Cala-te palerma, o que é que tu percebes disto? Dizes que eu devo ter dito alguma coisa que não devia? Achas então que me conheces bem, que sabes como eu sou e por aí fora… Se tu soubesses da missa a metade…

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Enfim, achas então que eles nunca vão fazer um programa de televisão comigo. Júlia, não comeces a meter-me minhoquices na cabeça. Senão faço-te o que fiz à outra. Sabes, quando eu era miúda tinha uma amiga a quem eu contava a minha vida. Como nós fazemos. Mas um dia, ela começou a criticar a maneira como eu agia e eu zanguei-me com ela. O que é que lhe fiz? Meti-a no contentor do lixo. Não, nunca mais a vi. Nem sequer sei se alguma vez ela conseguiu sair do contentor. Por isso, Júlia tem muito cuidadinho, não brinques comigo. Eu já percebi, tu estás com inveja, confessa. Não faz mal, é natural. Não te preocupes. Fazemos assim: Tu fazes aquilo que fazes bem que é estar caladinha e eu digo-lhes que és a minha melhor amiga aqui na prisão. A única. E que me tens apoiado muito. E então pode ser que eles te arranjem um papel como personagem secundária. Para ajudar a dar corpo à protagonista. Esta tua amiga. Ou para servires as bebidas, ou quem sabe para limpar o chão… compreendes?

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— Para dizer a verdade, eu estava um pouco preocupada. Não tinha a certeza se me iam voltar a chamar ou se tinham desistido. Mas parece que afinal não são assim tão burros.

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E o que é que lá estava quando entrei na sala? Adivinhem. Pois é, uma câmara de televisão e um cameraman. E um técnico de som e outro para as luzes. Tudo como se impõe. Mas tive ainda outra surpresa. A jornalista deu-me um saco que tinha lá dentro um fato cinzento claro e uma blusa cor de rosa. Não era bem a fatiota que eu escolheria, mas era melhor que nada. Lá dentro estava também um estojo de maquilhagem. E como é que ela conseguiu dar a volta à diretora? Gente da televisão. Conseguem tudo. Não interessa. Estava na altura de eu me ir pôr bonita, mais bonita quero eu dizer. E assim que entrei, agora mais apresentável, agradeci-lhe a toilette, mas ela tinha que estragar tudo, tinha que borrar a pintura. Começa logo por dizer que agora sim, tinha chegado a hora de me fazer perguntas sobre os acontecimentos da minha vida e sobre os meus crimes. Eu disse-lhe que ainda bem que íamos começar a filmar, mas não era preciso fazer-me perguntas nenhumas. Disse-lhe que não tinha a certeza que ela fosse fazer as perguntas certas para as minhas respostas. Como naquele jogo na escola em que eu dizia a resposta e tinham que adivinhar a pergunta.

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Só que agora eu já não sou criança. Por isso o melhor era que ela deixasse ser eu a contar a minha história. Claro que era a maneira de eu só contar o que quisesse. Para tudo é preciso esperteza, mas ela não entendeu nada. Com eu lhe disse que não se ia arrepender, ela até concordou.

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— E então, comecei assim: Tinha 12 anos quando fui violada por um rapaz de 16 anos que eu julgava que era meu irmão. Ia muitas vezes brincar para o quarto dele e, naquele dia, ele atirou-me para cima da cama e começou a desapertar-me a blusa. Ao princípio fiquei muito admirada e perguntei-lhe o que é que ele estava a fazer. Ele disse-me que eu ia gostar, que fazer amor era muito bom, dava muito prazer. Eu disse-lhe que nós não podíamos fazer amor porque éramos irmãos e foi nessa altura que ele se riu e disse que eu não era irmã dele, que perguntasse à mãe. Dá para imaginar o choque que eu tive. Mas não tive muito tempo para pensar nisso, porque depois ele despiu-me as calças e as cuecas e violou-me. Eu comecei a gritar, mas ele disse-me que não me servia de nada porque ninguém me ia acudir. 18

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Assim que ele saiu de cima de mim, corri para o meu quarto, fechei a porta à chave e chorei, chorei muito. Chorei porque tinha dores, chorei porque tinha vergonha, chorei porque me sentia perdida, chorei porque estava revoltada, chorei porque não sabia quem era. Entendam, eu era uma menina de 12 anos! Nesse dia não jantei, disse que estava mal disposta. Na manhã seguinte, disse que estava doente e não podia ir à escola. Mas todo o dia não consegui tirar da cabeça a frase que ele me disse. “Tu não és minha irmã”. Quem era eu, afinal? Quando, à tardinha, a minha mãe chegou a casa, eu contei-lhe o que ele me tinha feito. A minha mãe levou-me para o quarto, sentou-se comigo em cima da cama e disse-me que o meu irmão tinha 16 anos, era menor e por isso, mesmo que eu quisesse fazer queixa dele, o juiz dava-lhe um raspanete e mandava-o embora. Mas isso era suficiente para lhe estragar a vida porque ele jogava futebol num clube da Liga Portugal. Ela pediu-me para esquecer o que se tinha passado. Quer dizer, para a minha mãe, ele era muito mais importante do que eu. A minha violação não tinha qualquer interesse, o importante era a carreira que ele estava a começar e que ela não queria estragar. Ela nem sequer ralhou com ele!

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Eu disse-lhe que o que ele tinha feito ainda era mais horrível porque nós éramos irmãos. Foi quando a minha mãe me contou a verdade sobre o meu nascimento. Contou-me que se encontrou com a minha mãe biológica numa clínica que eu soube, mais tarde, tratar-se da Clínica Diogo de Alfaro, onde ambas, grávidas, foram ter os seus bebés. Só que o bebé daquela mulher que ali estava, que eu julgava minha mãe, nasceu morto. A minha mãe verdadeira tinha 15 anos e o pai dela, que era o médico obstetra da clínica, trocou as bebés e falsificou o meu registo. Ema Cardoso, o nome que a minha mãe verdadeira e adolescente tinha escolhido para mim, ficou como nado-morto. Depois, entregou-me a esta mãe, com a condição dela só me registar dois dias depois, como se eu tivesse nascido em casa. Ela pôs-me o nome de Helena Moreira, que é o meu nome verdadeiro. Resumindo: naquela clínica, a Ema Cardoso estava morta e a Helena Moreira não constava como tendo nascido lá. Depois de me contar esta história e de me ter dito que era o nosso segredo, pediu-me que lhe prometesse que ia esquecer o incidente da violação. E eu prometi. Só que não lhe prometi nada a ela. Prometi a mim própria que, mais tarde, me iria vingar de todos os que me humilharam. A minha revolta enchia-me de 20

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raiva e percebi logo que, a partir daquele momento, eu tinha que contar só comigo. Estava sozinha, sozinha aos 12 anos! À noite, à mesa, o meu “irmão” piscou-me o olho e riu-se de mim. Sabia que a minha mãe o tinha defendido. Então eu cheguei ao pé dele e disse-lhe ao ouvido: “Volta a fazer o mesmo e eu vou direta fazer queixa à polícia e acabo com a tua carreira num instantinho”.

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— Dê-me só um minuto — disse eu à moça — preciso de respirar fundo. Hum… engraçado… não me consigo lembrar da cara dele quando eu lhe fiz esse aviso. Bem, continuando… Os meus pais adotivos tinham uma fábrica de móveis: Móveis M&M, Lda. O meu pai gostava muito de mim. Eu era a menina a quem ele ensinava a mexer nas ferramentas que ele utilizava e… Pergunta-me se é aqui que entra aquela história da bricolage de que eu falei atrás? Tem razão. Foi o meu pai que me ensinou a usar a madeira e, se quer que lhe diga, eu até era muito habilidosa. Mas agora já não me apetece fazer essas peças que fazia quando era miúda. Não interessa. Continuando: o meu pai pedia sempre a minha opinião quando pensava fazer um móvel diferente.

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Por isso ele também era a única pessoa de quem eu gostava. E talvez por isso nunca lhe contei o que o meu irmão me fez. Não lhe quis dar esse desgosto. Além disso, o que é que ele podia fazer? Ele era um marido demasiado apagado. Fazia tudo o que a mulher queria. Ela ia-lhe dizer que o mal estava feito e era melhor não estragar a vida ao rapaz. Afinal quem era eu? Nem filha verdadeira deles eu era… Eu cresci no meio da decoração e, quando tinha 16 anos, a conselho do meu pai, fui tirar o curso de decoradora de interiores no Lisbon School of Design. Mais tarde, o meu pai vendia os móveis e apresentava-me como decoradora aos clientes que os compravam. E foi assim que eu criei a minha própria empresa de decoração. Quanto ao meu irmão, levou muito a sério o aviso que eu lhe fiz. Levava-me com ele aos treinos, apresentava-me aos colegas, levava-me às festas e eu era a “mana” de quem todos os rapazes falavam, porque eu era muito bonita. A mim convinha-me estar perto dele. Aprendi desde pequenina a seguir aquele ditado que diz para manter os amigos perto e os inimigos ainda mais perto. E aqueles colegas dele também me davam jeito. Namoradeira? Não, nunca tive grande interesse. Eram mais festas, copos que eles pagavam, claro, e algum sexo também. 22

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Depois, um chuto no rabo e iam de frosques. Afinal eles só serviam para me servir. É por isso que o animal que eu mais aprecio é a aranha. Em miúda, passava muito tempo a vê-la trabalhar. A tecer aquela teia tão bem feitinha só para apanhar a presa. Foi com ela que eu aprendi. Também sabia tecer a minha teia quando tinha necessidade disso. Depois, era só puxar o fio… era assim que me era fácil conseguir tudo o que queria. Mas a promessa que eu tinha feito a mim mesma, continuava presente no meu espírito. E os agrados que o meu irmão me fazia não me interessavam nada. Uma violação não esquece, é para a vida! Não acha? Não me responda. Não é preciso. Isto acabou, por hoje.

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— Vou continuar a partir do dia em que fiz 18 anos. Finalmente era adulta e totalmente responsável pelos meus atos. Estava na altura de fazer aquilo que tinha que fazer e que me tinha assombrado o espírito e estrangulado a alma durante tanto tempo. Nessa época o meu irmão já tinha ido para Inglaterra. Afinal tinha mesmo jeito para a bola. Tinha sido contratado por um clube do Championship, um clube de Londres do qual não me lembro do nome. É a 23

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segunda divisão, se não sabe. Foi ganhar uma pipa de massa. E de todos os antigos colegas dele que eu seduzi, havia um que estava caidinho por mim. Só tinha que tecer aquela teia de que eu falei. Para quê? Já vai perceber. Para pôr em prática o meu plano, o primeiro passo era ter uma nova identidade. Fisicamente era simples. Cabeleira loira, lentes de contacto azuis e problema resolvido. Mas precisava de documentos. Bem vistas as coisas, eu não precisava de uma nova identidade. Eu sou Ema Cardoso e estou morta. A vigarice do meu avô iria ajudar-me a conseguir os meus intentos. Só precisava de um documento com o nome de Ema Cardoso. E para isso só foi preciso aceitar namorar aquele pateta que estava apaixonado por mim. Ele era romeno e sabia o que fazer. Ele e os seus amigos falsificadores. Profissionais da coisa… Cartão de cidadão era mais difícil, diziam eles, mas passaporte era fácil. Depois de ter conseguido o que precisava, convenci-o a aceitar a transferência para um clube turco. Queria-o bem longe. “Vou ter contigo, amor, logo que venda a empresa. Confia em mim.” Palavras sábias. Já nem sequer me consigo lembrar do nome dele! Sim, dos12 aos 18 anos ensaiava como mentir descaradamente. Afinal era tão fácil! 24

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E eu sempre fui muito esperta, folgo em dizê-lo.

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— Vou contar como é que eu fiz. O primeiro crime, claro. Disse aos meus pais que ia de férias para Espanha. Fui de carro até Málaga e aí comprei dois bilhetes de avião, da Ryanair: um só de ida para Londres em nome de Ema Cardoso e outro de volta a Málaga para dali a dez dias em nome de Helena Moreira. Tinha os dois passaportes para mostrar nos aeroportos. Tinha escolhido rotas cujos aviões aterrassem no aeroporto de Luton porque é onde aterram a maioria dos voos lowcost, e fica mais perto da zona norte de Londres que era o que eu queria. Não costumo fazer planos. Sou suficientemente esperta para resolver os problemas quando eles aparecem. Foi o que fiz toda a minha vida. Mas, neste caso, tinha que estar tudo certinho ou arriscava-me a ser apanhada e eu ainda tinha muito trabalho para realizar. Por isso levei algum tempo a estudar o mapa de Londres. Alojamentos, transportes, itinerários. Não foi fácil, mas estava sempre perto. Fiquei a saber tudo sobre o meu querido irmãozinho. Seguia-o à distância com o carro que aluguei no aeroporto em nome de Ema Cardoso.

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