Retrato Marcelina AurĂŠlia Baptista Pereira
FICHA TÉCNICA Edição: Maria Clara Madeira Título: Retrato Autora: Marcelina Aurélia Baptista Pereira Arranjo de Capa: Patrícia Andrade Paginação: Nuno Remígio 1.ª Edição Janeiro, 2014 Depósito legal: 364878/13 ISBN: 978-989-20-4207-7 © Marcelina Aurélia Baptista Pereira PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt
Retrato . 5
Sentimentos
6 . Marcelina AurĂŠlia Baptista Pereira
Retrato . 7
Este livro é de mágoas. Desgraçados Há tantos que eu nem sei contá-los, Mas vejo tantos olhos magoados… Já contei mil… quis abraçá-los. Este livro é para vós. Abençoados… Podeis lê-lo, não é nenhum pecado… Tem a planície, o sobreiro, o gado E o pastor errante lado a lado. Livro de mágoas… Dores… Ansiedades! Enologias postas a voar Com as aves tão tristes como eu. Irmãos da Dor, olhos rasos de água, Estou aqui Irmã dos que me amam E que a cantar esquecem o que é breu.
14/02/1995
8 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
O pensar e o sentir São duas coisas diferentes, O pensar é tão profundo Mas mais rico se o sentes. O pensar e o sentir São o meu grande tormento. Ai, quem me dera gastar Todo este sofrimento.
13/12/1995
Retrato . 9
Que dor tem teu coração Que anda sempre sozinho? Ai, como era alegre Quando eras pequenino! Tão manso e irrequieto Tão forte como a alegria. A alegria para ti era O viver de cada dia. Que aspeto tem o teu vulto Entregue aos teus pensamentos…? Solitário como um busto, Como as pedras de um convento. Que dor tem teu coração Que anda sempre sozinho? Meu amigo, meu irmão, Vamos mudar de caminho.
05/12/1995
10 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
A minha dor, a minha inquietude, O meu alvoroço de asa ferida É maior que a dor Porque a dor Cabe dentro de uma vida. Mas esta angústia Não cabe dentro de mim, Tem um rebentar de cordas Do meu piano Arlequim.
Retrato . 11
Quis espargir a minha dor, Fui procurar o mar E as ondas que se desfaziam. Sem contorno, (A forma não é essencial), Naquele vai e vem de muitas ondas, A dor se desfez no areal. Caminhei sobre a areia, Cruzei-me com um homem de manto branco, Emudecido gesticulava Para os barcos que passavam navegando. O pôr do sol chegou E a Dor com a Saudade ali ficou, Gesticulou e não falou. Foi o essencial!
17/02/1996
12 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
“Sabes o que é a dor?” – perguntei, comovida, A uma pequenina flor, Nascida na fenda de uma rocha. “Não! Não sei o que é a dor”. E perguntei-lhe mais “Às vezes não tens sede?” “Tenho, mas não sinto, Porque a fenda desta rocha me dá amor.”
Casa do Sol, 10/12/1988
Retrato . 13
Que peso levo na alma? Que peso levo nos ombros? Pareço cair cansada, Esmagada sobre escombros. Esta figura cansada, Humana, sem dimensão, Mesmo que estilhaçada Não perdeu a direção.
06/02/1997
14 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Quando a minha dor Ficar cravada na paisagem, Penso esquecer mais depressa a linguagem Daquele que hoje diz “sim”, amanhã “não”.
16/04/1991
Retrato . 15
Saudades do que não tive, Mágoa descendo a calçada, Um pôr-do-sol onde estive, Com a alma alvoroçada. Saudades do que não aconteceu, Da chuva que não caiu, Um luar que se perdeu, A bordo do meu navio. Saudades do que não fui… E que seria… Se fosse aquela… e não esta, Saudades de me prender… À vida… Como uma festa.
16 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Saudade de mãe que já não tinha. Procurei-a em todas as igrejas e capelas. Percorri todas as ruas, Fui bater a toda a porta. Deixei o meu nome escrito. Ela existe. Hás-de encontrá-la! Pela ternura da manhã, Quando ela acorda com o seu vulto de infinito, Sente a vertigem da queda, Mas saudade… Traz-me ela.
Retrato . 17
Saudades do meu país, Saudades do meu lugar, Daquela praia onde fiz Uma noite de luar. Saudades da laranjeira, Que me dava luz poente, Saudades da trepadeira, Que me tornava envolvente. Saudades do meu país, Saudades do meu passado, De tudo fazer raiz E criar no não criado.
18 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
A saudade é sempre companheira, Eu simpatizo com ela, Faz e refaz o retrato, Criado pela mão dela. A saudade volta sempre É ave de arribação, Traz no bico a nostalgia Viaja com o coração.
Retrato . 19
Só eu sei o que isto é, Só eu sei o que significa, É um sofrer em silêncio, Que não mata, mas mortifica.
09/07/1992
20 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
NEURASTENIA “Sinto-me hoje cheia de tristeza” Que sol de alegria me fugiu assim? Onde é que perdi a minha riqueza, Se o Pai Nosso tanto rezou por mim? “O vento desgrenhado chora e reza” Por quem reza o vento ao gemer assim? Talvez seja por quem a vida inteira Quis cumprir seu sonho até ao fim. Chuva… Tenho tristeza! Mas porquê? Vento… Tenho saudades! Mas de quê? Talvez seja do que fui e já não sou. Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Meus ouvidos! Levantem a voz, por mim, que já não grito E já não grito porque não sei quem sou.
17/03/1996
Retrato . 21
Tens no teu olhar a tristeza e a doçura E os teus lábios tão murchos e unidos, Todo o teu rosto escorre tal ternura, De ternura fizeste os anos vividos. A tua alma sofrida, flagelada, Naufragou em tantos portos, longe Do porto de partida, desterrado. Voltaste um dia sem dizer de onde. Tão tarde que voltaste vivo e morto, Tão tarde que te vi voltar, surpreendida, Quando abri a porta, ia caindo morta. Vinhas velho, doente, desfigurado… Nem uma única palavra soletrada, Quem dera agora, meu Pai, abrir-te a porta, Para seguir contigo uma outra estrada.
29/01/1997
22 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Por ser verdade digo: Estou triste; Por ser mentira digo: Sou feliz; Por ser sozinha digo: Deus existe; Por ser poeta digo: faz-me falta minha mão; Por ter nascido digo: Minha mãe.
09/06/1993
Retrato . 23
Tange uma guitarra, Tem por amor o guitarrista, Explora dela toda a chama. Sons plangentes Ecos, ecos. Concentrado o guitarrista, A arte ali tem um nome, Que dor da vida lhe deu. NĂŁo chamem triste Ă guitarra, Porque a tristeza sou eu.
08/02/1997
24 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Triste… A solidão num vulto Pede uma palavra de ternura. E um muro, com a hera de quintal, Diz à solidão Que peça à hera essa ternura.
Retrato . 25
A solidão sou eu que a represento Em espelhos baços. Nuvens negras de alma e coração Suicidam-se no chão, Mortas de cansaço. Na cena triste deste chão Ninguém vem ver Um drama neste teatro.
29/05/1996
26 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Não é de hoje nem de ontem A minha crua solidão. Julgava-me acompanhada, Traiu-me um mundo cão. Os anos foram passando Dentro do meu coração, Que agora só bate horas, As horas da solidão.
26/01/1997
Retrato . 27
Nem teatro nem plateia Representam a minha solidão. O ponto morreu antes de entrar em cena, Caiu morto no chão. Tantas vezes foi palco Sem sequer me consultar. Ai tanto que ele me ajudou Sem sequer eu o ajudar. Mas que pena, mas que pena, Fazer tudo sem pensar, Foi só por minha culpa Que o ponto morreu. Quem sabe se ele queria Que o meu coração fosse seu.
20/10/1996
28 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Senhor A dor que me deste, Por estranho que pareça, Torna-me mais doce e maior, Mesmo que a dor não te peça. Não sei se foste Tu, Senhor, Que essa dor me deste. Bendita seja esta dor Que com o amor se parece.
06/01/1997
Retrato . 29
Pensar em ti como penso E sem nada te pedir, Até parece que mal penso Por te esconder o sentir. Tudo o que penso e repenso, Amanhã, volto a pensar. Eu bordei um branco lenço Será que é para te acenar?
11/01/1996
30 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Ó vento despenteia-me. Sou uma Ofélia a sofrer. Enche-me a alma por dentro, Por dentro quero viver. Irradia-te no meu ser. Dá-me o dom das tuas asas Eu quero ser condoeira, Também quero bater asas Ó vento, ó vento… Não queiras que eu me renda, Porque me perco sem ti Nesta luta, nesta senda.
02/02/1997
Retrato . 31
Tempo…tempo… Só de vento. O que me enche a alma por dentro.
32 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Um rio tão volumoso De lágrimas sem solução Correra o tempo todo Em busca de um coração. Correra sem encontrar E estava dilacerado. Tinha dado de beber E tinha sido ignorado. Só Deus é que o tinha visto, Só Deus é que tinha implorado, Que aquele rio não fosse Tão cruamente ignorado.
Retrato . 33
Sentir a alma apaixonada e crente, Uma emoção profunda e jubilosa, Sentir as aves irmãs do céu azul, Sentir, sentir, a vida mais formosa! Sentir bater o coração na lua, Quando no mar traça longa estrada. Ajoelhar ao amanhecer, Pedir que a esperança Seja, para todos, alvorada. Sulcar o mundo onde não houver pegadas, Ir plantar um oásis no deserto, De tudo fazer útil estrada. Viver, viver, com os crentes puros Que têm desejos palpitantes De se cruzar com outros na mesma estrada.
04/02/1997
34 . Marcelina Aurélia Baptista Pereira
Tão viva a minha carne, Tanta febre que sinto no sentir… Acolhe minha alma este fogo que arde, Misto de fé pagã do meu sentir. Descrente em Deus Que me deixou descalça e nua, Extasio o olhar neste clarão E na fé minguada que trazia… É Deus que acolho inteiro no coração.