VINGANÇA SEM NOME Sara Quintela
FICHA TÉCNICA Edição: Vírgula® (Chancela Sítio do Livro) Título: VINGANÇA SEM NOME Autora: Sara Quintela Capa: Patricia Andrade Revisão : Ana Domingos Paginação: Nuno Remígio 1.ª Edição Setembro 2013 Depósito legal: 363018/13 ISBN: 978-989-8678-18-8 © Sara Quintela PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt
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Dedicatória Este livro é dedicado a Sara Oliveira, por todo o apoio e pela amizade e o incentivo em relação à escrita. Dedico ainda especialmente à minha mãe, sempre presente para me apoiar e dar esperança através do seu sorriso que ilumina o meu dia. Dedico ainda aos meus avós, Elsa, Ferreira, Lurdes e Joaquim, e às minhas primas, Íris e Lia, porque, apesar de raramente os ver, estão sempre presentes no meu pensamento e na minha Obra.
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Prólogo Aconteceu há mais de quinze anos, mas lembro-me como se tivesse ocorrido há menos de um segundo. Foi há muito tempo, mas todos os anos tenho de recordar este dia que me tornou naquilo que eu sou hoje. Uma estranha em relação a mim mesma. Considero-o o dia que mais me marcou, não só graças a uma cicatriz persistente que não consigo apagar da minha pele, mas sobretudo a uma seta que se espetou no meu coração. Se pudesse, certamente tentaria voltar atrás no tempo e alterá-lo, mesmo que me custasse a vida. Como não consigo, tenho de viver com este momento todos os segundos, todos os minutos, todas as horas, todos os dias, todas as semanas, todos os meses, todos os anos… E embora tenha apenas a duração de uns meros minutos, é uma recordação que me pesa como se carregasse todo o mundo. Enfim, toda a minha vida, até que o meu coração pare de bater, irei viver num pesadelo que me aprisiona. Sei que tenho de viver com esta penosa memória cada vez que me olho ao espelho e vejo as minhas feições. Já faz parte de mim. Tenho de viver com ela cada vez que olho para um relógio e tenho a noção do tempo. Tenho de viver com ela e só isso é o suficiente para me autodestruir. Vai-me desfazendo lentamente. Foi o dia mais rápido que alguma vez vivi e nunca consegui 7
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agarrá-lo, nem mesmo prendê-lo, ainda que por um breve momento, embora ele me tenha como sua reclusa. Na verdade, acho que fui eu que fiquei presa naquele dia…
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Capítulo 1 Cedo demais – Sam, acorda. Olha as horas. Já estás atrasado para a escola e ainda não tomaste o pequeno-almoço – dizia a mãe caridosamente, enquanto tentava puxar os lençóis e expulsar o seu filho da cama. – Já vou, já vou. Ainda é cedo – respondia Sam, de olhos fechados. – Não, não… vais tomar banho, vais comer, vais para a escola e ponto final. Agora! – disse com uma voz mais autoritária e conseguindo finalmente puxar os lençóis com sucesso. – O.K., ´tou a ir… – disse Sam revoltado e sonolento, enquanto se levantava da cama e se adaptava ao frio da manhã. – Já te disse que odeio que me puxes os lençóis. – Sei muito bem como tu és. Assim que te destapo, voltas a tapar-te e depois chegas atrasado. Vá. Despacha-te! A mãe saiu do quarto e prosseguiu para a cozinha onde o seu marido já comia e lia silenciosamente o jornal como fazia todas as manhãs. Pegou numa tábua e cortou o pão em fatias fininhas, nas quais colocou manteiga e queijo. Depois, foi ao armário e retirou a caixa dos cereais, colocando-a em cima da mesa e verificando se estava tudo preparado para o seu querido filho comer. Ainda ontem ele tinha feito nove anos. Dizem que o tempo passa rápido, mas para ela estava a passar a correr e já começava a sentir umas rugas na sua expressão, como se tivesse cada vez a envelhecer ainda
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mais. Todos os dias se observava ao espelho, procurando marcas de velhice, cabelos brancos, ou quaisquer outros sinais, e tentava eliminá-los com base, idas frequentes ao cabeleireiro e ioga para relaxar. O stress quotidiano, tal como dizia uma notícia que lera no outro dia, era uma das principais causas do envelhecimento e da manifestação das suas marcas. – Queres mais sumo de laranja, querido? – perguntou docemente, tentando libertar-se do seu pensamento. – Não vale a pena. Já estou a acabar – respondeu, sem tirar os olhos do jornal. Preparou então a lancheira com o almoço e o lanche do filho e dez minutos depois já estava ele, ainda revoltado, a comer a sua taça de cereais de chocolate e umas fatias de pão com manteiga. – É sempre a mesma coisa… – refilava. – Acordar cedo para ir para a escola. Porquê? Aposto que mais de metade do que ‘tou a dar vou esquecer, porque não vou precisar disso para nada… – Sam, deixa-te de coisas – disse o pai, retirando a cabeça do jornal por cinco segundos. – Já sabemos que queres ser um astronauta, mas tens de aprender os conhecimentos básicos que toda a gente tem e é assim. Não podes fazer nada contra. Para além disso, já tens nove anos e já começo a ficar farto da mesma conversa à hora do pequeno-almoço cada vez que tens de ir para a escola. – Por isso mesmo, já sou um adulto – disse, levantando a cabeça como se se considerasse alguém muito importante. – Já está na altura de escolher o que não quero e isso inclui não me levantar cedo e não ir à escola. Além disso, acho que nem vocês os dois se lembram de metade do que aprenderam na escola. – Sam, querido… – disse a mãe com ternura antes que o pai se chateasse. – Achas que os astronautas não foram à escola? – perguntou, vendo a sua expressão pensativa. – Eles também tiveram de aprender e é claro que acordavam cedo. E ainda acordam, pois na sua profissão é
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essencial manter a cabeça fria – disse, convicta, vendo que o seu filho tomara a expressão de ter perdido os argumentos na conversa e dando-lhe razão. – O.K. 'Tá bem. Mas quando eu for um astronauta importante vou fazer qualquer coisa contra esta “exploração” – disse. – Sim, sim, já se percebeu – respondeu o pai revoltado. – Agora não tens de ir para a escola? E não te esqueças de chegar cedo, ainda estás de castigo pelo que fizeste ontem na tua própria festa de aniversário. Sam levantou-se amuado e pôs a sacola às costas. Despediu-se da mãe com um abraço amoroso e recebeu a sua lancheira do Homem Aranha. – Até logo, mãe – disse, saindo pela porta da cozinha pela última vez. – Adeus, querido! – saudou pela última vez a sua mãe.
Dois quarteirões acima, dez minutos antes. Michael Wilton, 31 anos, empresário de sucesso, rico e no início de uma carreira profissional fabulosa, ainda dormia quando o seu telemóvel começou a tocar. Oh não, já estava atrasado para aquela reunião importantíssima que marcara dois dias antes e que poderia torná-lo num empresário ainda mais rico. Rapidamente se levantou, arrumou a sua mala com o portátil e as pastas que deixara abertas em cima da sua mesa do quarto na noite anterior para rever os processos e pôs o café a fazer. Depois da higiene, vestiu rapidamente o seu melhor fato. Era um fato cinzento-escuro, com uma camisa branca simples e a sua gravata da sorte cinzenta com linhas finas pretas. Quem diria que um empresário rico não teria alguma coisa que lhe desse sorte? Como se precisasse… Olhou-se ao espelho uma última vez antes de agarrar na mala
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e beber o café. “Estou perfeito”, pensava, “Hoje a minha sorte vai mudar.” Michael começou a descer as escadas rapidamente em direção à garagem quando viu que o elevador nunca mais chegava. Chegou finalmente ao seu BMW preto que conduziu de forma frenética para o escritório. Mal ele sabia que a dois quarteirões o destino lhe traçaria um novo rumo…
– Olá, Sam! – disse Rufus, quando viu o seu colega de turma a preparar-se para atravessar a rua. – Nem sabes o que me aconteceu. O meu pai comprou-me aquele Jipe que eu queria. Agora já te posso vencer nas corridas de carros. O meu Jipe ultrapassa o teu Ferrari num instante. – Não ultrapassa nada. O meu Ferrari é rápido, muito rápido. Vais ver no intervalo. Vou ganhar-te como sempre! – sorriu. – Sim, sim… – Vais ver. O meu Ferrari é super rápido. – Vamos ver isso, vamos. Mas é melhor irmos para o outro lado. Já vejo o autocarro da escola a vir – disse Rufus, apontando para o autocarro amarelo que começava a aparecer na estrada, do outro lado, e de onde saíram uns acenos das janelas abertas, chamando-os. – O.K. Bora lá. Mas no intervalo vais ver. Os dois avançaram.
Michael acelerava com o pé enquanto olhava para o relógio do seu carro. Já estava um quarto de hora atrasado e isso podia comprometer o seu futuro. Sendo assim, e já não era a primeira vez, começou a ignorar os semáforos e acelerou ainda mais o carro. Estava quase a chegar ao seu destino.
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Faltavam apenas três quarteirões e, em menos de dez minutos, estaria sentado na sua cadeira da sala de reuniões, reunido com os seus melhores clientes. No entanto, quando já só faltavam dois quarteirões, o tempo deixaria de interessar. Atravessou o semáforo que acabara de ficar vermelho e ficou marcado para sempre.
Edgar colocou a gravata e dirigiu-se à cozinha, onde a sua mulher também se preparava para ir trabalhar. – Querido, temos de parar de discutir o mesmo assunto ao pequeno-almoço – disse-lhe Marge docemente, enquanto acertava a gravata ao seu marido. – Eu sei, Marge. Mas já começo a ficar farto. – O Sam ainda é uma criança. Ainda está a crescer. Só quer é brincar e por isso faz esses comentários. Deixa-o fazer e ignora-o, pois um dia ele há de fartar-se de estar sempre a dizer a mesma coisa sem ninguém lhe ligar nenhuma – continuou Marge, enquanto arrumava as coisas no balcão. – Sim, tens razão. Tenho de descontrair mais. Eu só não quero que ele faça asneiras como as de ontem. Atirar duas raparigas à piscina, lançar o bolo ao outro rapaz e ainda gritar com a tia por não lhe ter dado o que queria. Mas onde é que já se viu? – Acho que ainda estou muito desiludido com a forma como ele reagiu ontem. E teve sempre por certo concretizarmos a festa numa altura em que ele só faz asneiras. Juro que não sei o que se passa com ele. Talvez devêssemos ter sido mais rígidos? – perguntou pensativo. Ambos permaneceram calados uns breves segundos. Subitamente, Marge gritou baixinho. – Está tudo bem? Marge… Marge? Edgar levantou-se e Marge ajeitou-se: – Foi apenas um aperto no coração. Deve ter sido cansaço. Foi só um susto.
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– Vê lá, Marge, se queres ficar em casa. – Não, não. Marge levou a mão ao peito, respirou fundo e continuou como se nada tivesse acontecido. – Acho que o Sam está apenas a passar por aquela fase pela qual já todos atravessámos. É natural que cometa asneiras. Sim e é por isso que ele já está de castigo e vai estar até tomar consciência dos erros que cometeu. E, se for preciso, continuamos a castigá-lo. Agora vamos mas é para o trabalho que já estamos a ficar atrasados. Edgar, ainda ansioso por causa do pequeno susto que Marge pregara, já estava no hall à sua espera quando esta fora ao pequeno corredor buscar o seu casaco. Foi nessa altura que, estranhamente para as horas, o telefone de casa começou a tocar. Marge, sentindo o mesmo estranho aperto no coração, atendeu rapidamente o telefone e exatamente quinze segundos depois largara tudo o que tinha nas suas mãos e caíra no chão.
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Capítulo 2 Sede de vingança Uma semana depois. – Estou? Daqui é Michael Wilton – afirmou a partir do seu telemóvel do escritório respondendo a uma série de murmurinhos incessantes. – Sim, sim. Não se preocupe. Não há problema… – os murmurinhos continuavam. – Não, não. Esta situação foi um pequeno incidente. O negócio vai de vento em poupa – largou uma grande risada, tentado convencer o locutor, que se silenciou pensativo. – Então falamos para a semana? Ótimo. Wilton desligou o telemóvel com um suspiro. O negócio, apesar de todos os percalços, tinha sido realizado e ele já podia ver nas suas mãos o futuro de um milhão e meio de euros com uma maior ligação ao governo, o que o beneficiaria ainda mais. Apesar de estar excêntrico com a sua riqueza, uma pequena parte de si pesava no seu interior. Ainda se lembrava de quando tinha atropelado aquele pequeno rapaz de apenas nove anos. Não tinha a certeza do seu nome, mas isso não interessava. Por sua culpa, a vida daquela criança acabara naquele momento. Aliás, a culpa de certeza que não era dele. Os rapazes haviam atravessado sem tomar precauções, como é óbvio. Ainda se sentia um vencedor pelo facto de ter ganho a audiência
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graças a um conjunto de três advogados, cujos custos adicionais compensavam com muita frequência em negócios e simples incidentes. Não havia testemunhas, a não ser Rufus, a outra criança que ficara aterrorizada quando viu o seu amigo a ser atropelado, mas nem ele conseguira dar um testemunho fiel de tão assustado e confuso que estava. Para além disso, era um rapaz de nove anos. Era ele contra uma criança traumatizada e uns pais revoltados. Uns pais que nem queriam um acordo, mas, sim, que fosse condenado à morte. Onde já se viu, num mundo tão desenvolvido e num país tão “à frente”, alguém como ele ser condenado a uma pena de morte? Alguém como ele, um verdadeiro homem de negócios, considerado duas vezes pela revista Wealthy Life um dos homens mais inspiradores do país e, uma vez, um dos homens mais ricos? Alguém que até aparecera mais do que cinco vezes na capa de várias revistas e magazines? Alguém que praticamente controlava todo o mercado daquele tipo de negócio? A audiência transformara-se numa autêntica caça dos pais à sua presa, uma forma de vingança. Mas isso resolveu-se num instante. Ter sucesso valia a pena nestas ocasiões. Já escapara de multas e agora seria um mero atropelamento, cuja culpa fora provada não ser dele, o obstáculo que o impediria de construir um império? Sorriu para si mesmo relembrando-se de como chegara à sua posição. Nem precisara de fazer contas à vida. Os seus antepassados deram-lhe o início de um legado que lhe garantiria riqueza e poder para toda a vida. Nada podia estragar os seus planos. Depois, só faltava arranjar uma bela donzela, com quem aparecesse nas notícias, e uma família, a quem doaria todo o seu sucesso e continuaria a construção do seu império. Até lá, o trabalho, o dinheiro e o estatuto eram tudo o que tinha e que mais estimava. Desfez o sorriso e, por momentos, fitou a paisagem urbana pela sua grande janela. Dela podia ver-se praticamente toda a cidade, desde os longínquos subúrbios até ao grande centro e à zona comercial, desde
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os simples apartamentos até aos grandes prédios de escritórios que cobriam as alturas que muitos, no passado, não se atreveriam a sonhar. Mas algo continuava a pesar-lhe na consciência: seria o facto de ter morto uma criança, de ter de cumprir 255 horas de serviço comunitário, de ter dificuldade em atrair uma mulher no bar para um romance noturno, ou de ter de pagar uma elevada indemnização a ambas as famílias? Na realidade, ninguém queria o dinheiro a não ser ele próprio. Este não podia ajudar Rufus a sorrir nem a voltar a brincar com os seus carrinhos e muito menos podia voltar a trazer Sam à sua família. O dinheiro era tudo para ele, mas nem este poderia curar terríveis malefícios como a morte e a perda.
Edgar estacionou o pequeno Citroën vermelho à porta de um pequeno edifício amarelado. Com uma estrutura moderna e quase sem decoração, de pequena altura e com um teto de forma quadrangular, o edifício apresentava-se ao mundo com uma grande tira presa na parte superior da porta que anuncia uma outra reunião. Marge e Edgar, após algumas semanas de lamentos e choros com noites mal dormidas e ausência de refeições, atreveram-se, finalmente, a entrar naquela sala quadrangular cheia de pessoas e bancos que os convidava a sentarem-se. Aquele seria o seu destino principal nos próximos dias, senão meses, embora ambos ainda duvidassem que a terapia de grupo poderia de alguma forma ajudá-los a ultrapassar a morte do seu filho Sam. Desde aquele dia que o casal não falava com ninguém, nem sequer um com o outro. Apenas trocavam olhares tristes e choravam abraçados durante a noite. Nenhum deles entrara ainda no quarto de Sam e Marge nem conseguia lavar a roupa ou arrumar a casa com medo de encontrar uma meia pequena aqui ou um carro perdido por ali.
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Edgar, por sua vez, já não lia o jornal e mal comia o pequeno-almoço, relembrando as pequenas discussões que tivera com o seu pequeno astronauta, cujo futuro fora impedido por um rico que escapara impune do crime. Nenhum deles sequer queria aceitar o dinheiro daquele idiota que lhes estragara a vida e matara o seu querido menino. Estava tudo acabado para eles e já não tinham razões para se levantarem de manhã. Apesar das tristezas, ambos sabiam que tinham saudades do seu pequenino. Acabara de fazer nove anos e simplesmente já não o voltariam a ver. Já não o obrigariam a comer os legumes ou a beber o sumo. Já não discutiriam com Sam para ele deixar o quarto arrumado ou fazer os deveres. Já não o ouviriam gritar durante a noite com um pesadelo ou rir e brincar com os carros. Já não o ouviriam desabafar contra a “exploração dos testes”, nem saltar de alegria quando lhe davam um presente novo para explorar. Já não fariam mais festas, nem convidariam os seus amigos. Nem sequer conseguiam olhar para uma criança, temendo começar a correr e abraçá-la com todas as forças como se fosse o seu querido Sam. Tudo tinha acabado demasiado cedo e, por isso, sentiam raiva. Raiva por Deus lhes ter levado o filho antes do tempo. “Os pais não devem ver os filhos morrer.” Sentiam raiva pelo homem que o atropelou. Raiva pela justiça não ter feito a sua função e tê-lo deixado impune. Raiva por tudo e por todos. Raiva, raiva, raiva… Olhavam para qualquer lado e tudo era agora uma razão para ficarem desiludidos e irritados com o mundo que os rodeava. Um mundo que para eles estava sem vida e sem cor. Esta enorme fúria que lhes ocupava o coração obrigava-os a pensarem constantemente que não podiam ficar parados e que tinham de fazer alguma coisa. Se a justiça não tinha feito nada, achavam que tinham de agir. No entanto, era-lhes difícil. O próprio Edgar atrevera-se a enfrentar o homem empresário
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na rua. Tivera no momento uma arma no bolso do casaco. Chegara mesmo a agarrá-la com a mão e quase que apontava esta ao idiota que lhe tirara o seu filho. Mas, no momento, nem sequer conseguira tirar a arma do bolso. Ficara paralisado a olhar para o imbecil que lhe roubara as razões para viver. Ficara a olhar para o homem relembrando-se do seu querido Sam e tentando imaginar a sua reação ao saber que o papá tão respeitador da lei havia sido preso. Relembrara também a sua mulher agora a chorar por dois e a dor afligiu-lhe o coração. O homem nem sequer reparara nele, atravessando a rua com um ar sereno, como se nada na sua vida se tivesse passado. Edgar não conseguira e ficara desiludido consigo próprio. Nesse mesmo dia, quando chegara a casa e contara à mulher que não conseguira vingar a morte do seu filho, esta ficou ainda mais triste e mais lágrimas escorreram-lhe da cara. Desapontada com o mundo que lhe roubara o seu menino e com o marido que não conseguira cumprir a sua missão, chegara mesmo a ameaçar que o homem teria de morrer, nem que fosse pelas suas próprias mãos. Edgar ficara em choque ao ouvir as palavras cruéis da mulher e impedira-a de continuar. Sam não quereria ver os pais a chorar por vingança e viver em reclusão, enclausurados do mundo só porque este os traiu. Edgar relembrou Marge disso. Obrigou-a a prometer que não cometeria tal crime e prometeu ele mesmo que ambos arranjariam uma solução para tratar daquela situação, nem que utilizassem o próprio dinheiro que o empresário lhes daria contra ele, sem mancharem a imagem do seu filho, Sam. Estando ambas as promessas feitas, o casal, unido de novo, procurou outras formas e soluções para punir o empresário como escumalha que ele era. Até que tudo ficasse resolvido, não só teriam como continuar as suas rotinas, como disfarçar a pequenina alegria que surgia dentro deles ao saberem que o culpado de toda aquela situação seria punido, nem que fosse às suas próprias mãos. E qual a sua surpresa quando receberam
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a chamada que lhes prometera toda a serenidade que procuravam. O contato prometera-lhes a morte do empresário e, mesmo que isso não trouxesse Sam de volta para os seus braços, a cochichar sobre isto e aquilo, dava-lhes uma certa paz na alma. O encontro estava combinado para aquele dia. Seria mesmo naquela reunião, depois dos discursos comoventes de viúvos, pais agora sem filhos ou filhos agora sem pais, ou até mesmo sem avós, bisavós ou amigos próximos e mesmo íntimos, depois de todas aquelas dores partilhadas, tudo ficaria finalmente resolvido. Embora não pudessem recuperar Sam, poderiam libertar-se daquela angústia que sentiam por verem que o sucesso e riqueza daquele empresário se acumulavam ao longo dos dias, sem nenhuma punição pelo crime que cometera. Queriam sobretudo evitar que o homem pudesse voltar a cometer perdas a outros como eles. Estava tudo planeado. E o mais doloroso era a espera. Esperar impacientemente, ouvindo todos aqueles pesares e mágoas da reunião e relembrando o seu próprio sofrimento. Não compreendiam o porquê de terem de esperar. O porquê de terem de ouvir aquilo tudo de pessoas que se lamentavam, culpavam a fúria divina, castigavam Deus e procuravam soluções para seguir em frente. Como podiam seguir em frente? Também não o compreendiam pelo facto de eles mesmos terem de subir ao palco e compartilhar a sua dor. Isso não resolveria nem arrumaria o assunto. Apenas traria mágoa por relembrar, mágoa por saberem que o culpado anda livre e feliz como um passarinho. O entrar na sala foi o suficiente para abrir ainda mais o buraco que surgira no coração. O jovem casal, agora sem filho, observava todas as pessoas da sala e tentava saber quem lhes iria libertar de grande parte do peso que piorava a sua grande dor. Observava-os a conviver, a compartilhar as suas histórias e a apoiarem-se. Mas, para eles, isso não era suficiente. Continuaram à procura do contato, sem efeito. Não
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viam nenhum sinal de que a pessoa lá estivesse, ou pelo menos esta não se manifestara. Sendo assim, tiveram de se preparar para aguentar até ao final daquela longa sessão.
Uma hora e meia depois, já com o clima da sala abafado e com todos os intervenientes chorosos, a sessão estava terminada e Marge e Edgar aguardavam junto da porta no exterior como planeado. Sem se aperceberem, uma jovem mulher de cabelos pretos e curtos, com olhos castanhos, aproximava-se deles e pedia-lhes para a acompanharem até ao final da rua, a um sítio isolado. Sem qualquer apresentação, perguntou-lhes porque a procuravam e Marge, sem esperar o final da pergunta, começou logo a falar a uma velocidade estonteante: – Você é que nos telefonou. – Eu só telefono a quem me procura. Vendo que nada mais iria obter, Edgar olhou para Marge. – Tem de nos ajudar – disse. Ela olhou-os fixamente, como se os tivesse a avaliar. – O nosso filhinho morreu mesmo depois de fazer nove anos e não houve qualquer justiça contra o término precoce da sua vida. Oh, Sam, porquê? – lágrimas começaram a escorrer pela face de Marge que, sentindo-se muito frágil, foi obrigada a apoiar-se no seu marido, impelindo-o a continuar. – O sacana ficou livre, só tem de fazer umas quantas horas de serviço comunitário e já teve de nos pagar uma indeminização. Nós nem queremos o dinheiro dele. Por isso, se fizeres o “serviço”, será todo teu – prosseguiu o marido raivoso, ficando com a face avermelhada. – Ouviram a sessão? Ambos ficaram surpreendidos. – O que quer dizer? – perguntou Marge perplexa, entre soluços. – Acho que sabem muito bem.
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– Aquilo não nos ajudou nem nos ajudará. Agora, quer ser ou não a nossa solução? – perguntou Edgar. – Já sabe que dinheiro nós temos. Daquele escumalha. E não é pouco. É todo seu. Ela olhou para os olhos dos dois, um a seguir ao outro. – Muito bem – disse a jovem mulher, estendendo a mão. O marido rapidamente tirou do seu bolso interior do casaco um conjunto de papéis dobrados e entregou-lhos, pedindo a maior rapidez possível. – Daqui a três dias no máximo o problema estará resolvido. Qual é a quantia? – Quinhentos milhares de euros. Foi o que nos deram. Não sei se é o suficiente. Mas é a única coisa que temos – disse a mulher ainda sentada no passeio e com as mãos a cobrirem-lhe a face chorosa. – Transfiram-na para esta conta até ao final da tarde de amanhã – disse-lhes, entregando ao casal um pequeno cartão com o número da sua conta bancária. – Tem alguma mensagem em especial para ser entregue? – perguntou. – Mande-o para o inferno. Diga-lhe que, por sua culpa, o meu filho morreu e ele merece ser morto também – disse o marido com violência. – Muito bem – respondeu por fim a jovem mulher a quem tinha sido entregue o papel. – Continuem com a terapia – disse baixinho, indo-se embora sem qualquer despedimento. Marge e Edgar ficaram ali ambos, no passeio, durante a meia hora seguinte a matutar sobre o que tinham acabado de fazer e ganhando forças para voltarem àquele sítio que antes fora o seu doce lar. – Está tudo bem – disse Edgar. – Agora vai ficar tudo bem – disse à sua mulher, abraçando-a ternamente e sentindo um menor peso sob os seus ombros. – Talvez não seja mau experimentarmos outra sessão de terapia. Não percebi bem, mas… – disse receoso. – Sim, meu querido Edgar. Se esta mulher se livrar de quem
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matou o nosso filho, continuo a ir lá como agradecimento – respondeu a mulher, esboçando um breve sorriso naquela cara que tanto envelhecera nos últimos dias. – De qualquer das formas, acho que precisamos de aceitar o jantar dos vizinhos e outros convites que tenhamos recebido e declinado. Precisamos de frequentar espaços públicos. Vamos ser suspeitos e, por isso, precisamos de um álibi para todas as circunstâncias. Quando menos esperarmos, o problema estará resolvido. – Tudo bem – respondeu a mulher. – Mas agora vamos para casa. Acho que já consigo dormir um pouco.
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