A ST R O AM
SUPER CIRURGIA MATERIAL DE DIDÁTICO
CAPÍTULO
6
Câncer da tireoide
“Os vitoriosos constroem uma vida antes de ganhar a vida”. Stephen R. Covey
Introdução Corresponde a cerca de 1% de todos os cânceres, sendo, no entanto, a neoplasia endócrina mais comum, com predominância no sexo feminino;
para as formas diferenciadas (papilífero e folicular), observa-se uma baixa frequência de mortalidade (4 a 9 mortes por milhão de habitantes ou de 0,4% a 0,9% de todas as mortes por câncer). Apesar das baixas frequências e mortalidade, existem, entretanto, várias razões para justificar a importância clínica do câncer da tireoide.
Primeiramente, a neoplasia tireoidiana apresenta-se, em geral, como um nódulo da tireoide,
achado clínico extremamente comum, presente entre 4% e 5% da população adulta, mas também é sinal de várias outras doenças tireoidianas benignas; desta maneira, o diagnóstico diferencial do nódulo tireoidiano, com o objetivo de discriminar os casos malignos, sempre em menor número do que os benignos, é um problema importante da clínica médica.
Classificação simplificada dos tumores da tireoide Benignos Malignos 1- Bócio endêmico 1- Carcinoma papilífero 2- Bócio esporádico 2- Carcinoma folicular 3- Adenoma folicular 3- Carcinoma medular 4- Outros 4- Carcinoma indiferenciado 5- Outros Tabela 6.1 Tipos e frequência relativa dos tumores tireoidianos malignos Classificação % Papilífero 80 Puro Misto (papilífero-folicular) Variante folicular Folicular 10 Células de Hurthle 3 Medular 5 Anaplásico 1
81 6 Câncer da tireoide Tipos e frequência relativa dos tumores tireoidianos malignos (cont.) Outros 1 Linfoma Teratoma Carcinoma metastático Células escamosas Tabela 6.2
Classificação histológica e comportamento biológico Tumor Idade Crescimento Metástase Papilífero Todas Lento Linfonodos Folicular Acima de Lento Distantes 40 anos Medular Todas Moderado Linfonodos e distância Indiferenciado Idosos Rápido Local e distância Tabela 6.3
Fatores de risco para carcinoma tireoideo em pacientes com nódulo tireoideo História de irradiação História familiar de câncer tida cabeça e do pescoço reoideo ou NEM-2 Idade < 20 ou > 60 Paralisia das cordas vocais, voz anos rouca Nódulo de tamanho Nódulo fixado a estruturas maior (> 4 cm) adjacentes Massa cervical nova Suspeita de acometimentos de ou crescente linfonodos Sexo masculino Deficiência de iodo (câncer folicular) Tabela 6.4 NEM 2A (síndrome de Sipple): carcinoma medular, feocromocitoma e hiperparatireoidismo; NEM 2B (síndrome dos neuromas mucosos): carcinoma medular, feocromocitoma e neuromas mucosos e por vezes aspecto marfanoide, neurofibromatose e síndrome de Von Hipel Lindau (angiomatose retiniana e cerebelar).
Carcinoma papilífero (75% a 80% dos casos)
Etiologia
A causa mais comum do carcinoma papilífero CP é uma única mutação no gene BRAF, presente em 50% dos casos na dependência da idade e do subtipo histológico. Há três isoformas da quinase
Fatores hereditários
HLA-DR1: associação com outras síndromes genéticas (síndrome de Gardner e de Cowden) – câncer papilífero.
Fatores de crescimento e estimulação crônica pelo TSH (para os tumores diferenciados).
Fatores ambientais
Deficiência de iodo (Ca folicular).
Irradiação cabeça e pescoço (Ca papilar e folicular).
Atenção:
Síndrome de Gardner (herança autossômica dominante) caracteriza-se por polipose adenomatosa, osteomas, tumores de partes moles, tumores desmoides, fibromatose mesentérica e alto risco para câncer de cólon; há relato de maior incidência de câncer papilífero de tireoide nesta população.
A síndrome de Cowden (síndrome de múltiplos hamartomas) se caracteriza por pólipos hamartomatosos, tricolemomas faciais, ceratose das mãos e pés e alta taxa de malignidade sistêmica.
serina-treonina RAF nas células de mamíferos, A-RAF, B-RAF e C-RAF; C-RAF é expressa de modo ubíquo, enquanto B-RAF é altamente expressa em neurônios e testículos e, em níveis menores, nas células hematopoéticas e na tireoide. Seu interesse em oncologia deriva-se da observação da presença de mutações ativadoras do gene BRAF em diversos tipos de câncer, dos quais o mais prevalente é o melanoma, que apresenta mutação em aproximadamente 70% dos casos. Vários estudos nos últimos anos demonstraram, depois da observação pioneira de Kimura e cols., que uma mutação no gene BRAF está presente na maioria dos casos de carcinoma papilífero (29% a 83%). Trata-se de uma mutação somática do tipo transversão de timina para adenina (T1799A) no éxon 15 de BRAF, que causa a substituição, na proteína, do aminoácido valina por glutamato (V600E). Essa mutação produz a ativação constitutiva da BRAF quinase, pois insere um resíduo carregado negativamente adjacente a um sítio de fosforilação (Ser599), o que causa a ruptura de interações hidrofóbicas entre resíduos exatamente no local de ligação de ATP que mantinha a conformação inativa. Além disso, demonstrou-se o valor biológico desta mutação, pois a superexpressão do BRAF mutado em células tireoidianas de camundongos transgênicos causa carcinoma papilífero da tireoide.
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82 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica A pesquisa da mutação pode melhorar a qualidade da citologia aspirativa do nódulo de tireoide, pois além de confirmar os casos com diagnóstico citológico sugestivo de CP, pode discriminar, com certeza, casos duvidosos. Além disso, a presença de BRAF está relacionada a um pior prognóstico, como a associação com invasão extratiroideana, estádio avançado e metástases. A segunda causa mais comum na patogênese do carcinoma papilífero da tireoide é o rearranjo RET/CP, presente em até 30% dos casos na dependência de idade, subtipo histológico e grau de radiação. O gene RET não é expresso normalmente
nas células foliculares da tireoide; porém, a expressão aberrante de várias formas de RET pode ocorrer exclusivamente no CP. A ativação de RET deve-se a rearranjos cromossômicos entre o gene RET e os genes heterólogos, fato que causa a fusão destes novos parceiros com a formação de genes quiméricos denominados RET/CP. A característica comum aos genes que se fundem ao RET é a capacidade de expressão onipresente, o que permite o aparecimento da forma alterada do RET nas células foliculares, local em que este gene normalmente não se expressa. Todas as formas de rearranjos identificadas apresentam uma característica em comum, ou seja, a perda do domínio extracelular e parte do domínio transmembrana de RET, devido à quebra que ocorre sempre dentro do éxon 11 que codifica para o domínio transmembrana. Consequentemente, a proteína aberrante sofre sublocalização da membrana para o citoplasma. Da mesma forma, todos os rearranjos RET/CP são genes quiméricos constitutivamente ativados que apresentam sinalização controlada pelo fragmento N-terminal presente nos diversos genes parceiros nas correspondentes fusões.
os linfonodos pericapsulares e cervicais. Dessa forma, lesões multicêntricas na tireoide são comuns e, por ocasião da apresentação, 25% dos pacientes têm metástases cervicais, 20% têm invasão extratireoidiana e 5% apresentam metástases a distância, especialmente para o pulmão. De maneira curiosa, por motivos não completamente esclarecidos, a presença de metástases em linfonodos cervicais não está relacionada a um pior prognóstico nos indivíduos jovens. Em crianças pode haver comprometimento ganglionar ao tempo do diagnóstico em até 90% dos casos. As metástases pulmonares podem ter distribuição miliar ou apresentar-se na forma de imagens numulares. Os 5% a 10% dos casos de carcinoma papilífero, que apresentam pior prognóstico são constituídos pelo grupo de pacientes, apresentam um ou mais dos seguintes fatores: idade mais avançada ao diagnóstico, presença de lesões aderentes às estruturas vizinhas, presença de metástases invasivas cervicais ou a distância e variantes celulares do carcinoma papilífero mais agressivas, como as de células altas e esclerosante difusa.
Patologia Usualmente não são encapsulados e apresentam corpos de psamomas em 40% dos casos. Os núcleos, geralmente, são grandes, irregulares, com inclusões intranucleares (orphan Anne eye change). As variantes de células altas, ou colunares, são formas mais agressivas de CP.
Quadro clínico Incide em indivíduos mais jovens (entre a terceira e quarta décadas) podendo acometer inclusive crianças e corresponde, nas diversas séries atuais, a mais de 70% de todos os carcinomas tireoidianos. Seu crescimento é lento e apresenta baixo grau de malignidade, de modo que períodos longos são necessários para o seu aparecimento. De maneira geral, o prognóstico é bom e pelo menos 80% dos pacientes estão vivos 10 anos após o diagnóstico. As grandes séries da literatura indicam que o carcinoma papilífero é um processo essencialmente benigno nos adultos jovens, raramente levando ao óbito em pacientes abaixo dos 40 anos. Sua disseminação se dá por meio dos linfáticos intraglandulares, evoluindo do foco inicial para as outras partes da tireoide e para
Figura 6.1 Carcinoma papilífero. Células arranjadas em padrão papilífero bem delineado, notando-se uma célula gigante. Coloide presente. Os núcleos geralmente são grandes, irregulares, com inclusões intranucleares “orphan Anne eye change”. Coloração de Leishman, x1900.
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83 6 Câncer da tireoide
Carcinoma folicular A patogênese do carcinoma folicular (CF) não é tão bem esclarecida como a descrita no papilífero. Algumas alterações genéticas, entretanto, têm sido evidenciadas, como o gene decorrente da fusão entre PAX8 e PPARg e mutações no gene RAS, além da expressão ou perda de uma série de genes demonstrados por técnicas de expressão diferencial de genes.
Quadro clínico O carcinoma folicular ocorre em um grupo etário mais avançado que o papilífero, tendo seu pico de incidência na quinta década de vida, sendo também três vezes mais frequente em mulheres. Corresponde a cerca de 20% de todos os carcinomas tireoidianos, apresentando maior prevalência em áreas deficientes de ingestão de iodo. Da mesma maneira que o papilífero, o carcinoma folicular é geralmente diagnosticado pela presença de nódulo único na tireoide. Outras vezes, porém, apresenta-se com crescimento recente de um nódulo, em bócio, de longa data ou pela presença de metástases a distância (15% a 20% dos casos), principalmente para pulmão e ossos. Metástases cerebrais são menos comuns. Vale ressaltar que o CF mesmo com tamanho < 1 cm pode se manifestar com metástases a distância. Diferentemente do carcinoma papilífero, o folicular raramente mostra metástases para linfonodos cervicais. Apesar de não existirem estudos tão sistemáticos dos fatores prognósticos no carcinoma folicular, a maioria dos autores considera que a idade é o fator mais importante, apresentando melhor evolução os pacientes com idade ao diagnóstico abaixo dos 45 anos. Outro fator importante é a invasividade do tumor, pois aqueles com alto grau de invasão dos vasos e da cápsula da tireoide têm pior prognóstico. Finalmente, a presença de metástases ao diagnóstico está também associada à pior evolução.
Patologia É um tumor bem encapsulado, e nesse estágio é difícil fazer o diagnóstico diferencial entre o adenoma folicular benigno e o carcinoma folicular bem diferenciado. A principal característica para firmar o diagnóstico é a invasão da cápsula e/ou dos vasos. (Atenção!)
Figura 6.2 Carcinoma folicular. Células arranjadas em padrão folicular com núcleos irregulares e polimórficos. Neste caso o diagnóstico citológico de carcinoma folicular pode ser feito. Coloração de Leishman, x1200.
Carcinoma de células de Hurthle Cerca de 3% dos casos de câncer de tireoide. Variante do câncer folicular, com comportamento mais agressivo. Comportamento multifocal e bilateral, ao contrário do folicular. Cerca de 90% de suas metástases não captam I (ao contrário do que se observa no câncer folicular), portanto não está associado à tireotoxicose. 131
Carcinoma medular (CMT) Mutações germinativas do oncogene RET causam predisposição para todas as formas de carcinoma medular da tireoide familiar, seja quando estas fazem parte de MEN2, seja quando se apresentam como manifestação isolada. As diferentes formas clí-
nicas de MEN2 estão associadas a mutações distintas do RET que causam alteração de apenas um aminoácido. Todas essas mutações de ponto provocam um efeito de “ganho de função” que causam, por sua vez, uma ativação descontrolada da atividade tirosina-quinase (TK) do receptor. O mecanismo molecular dessas alterações é uma homodimerização constitutiva que afeta as cisteínas extracelulares; apesar de a estrutura tridimensional do domínio extracelular do RET ainda ser desconhecida, essas cisteínas formam, provavelmente, pontes dissulfeto, no receptor mutado, que resultam numa cisteína não pareada que forma uma ponte intermolecular ativadora. A explicação dos diferentes fenótipos encontrados na prática clínica é dada pelas
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84 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica intensidades variadas de indução da dimerização observadas nas diversas mutações. Assim, mutações de RET associadas a FMTC apresentam uma dimerização possivelmente menor, e isso explicaria por que suas atividades quinase e oncogênicas seriam menores do que as apresentadas pelos mutantes de MEN 2A. No caso de MEN 2B, as mutações causam uma ativação constitutiva do potencial transformador do RET, pois, além das alterações quantitativas da atividade basal e da atividade quinase, a mutação mais frequente (Met918Thr) induz modificações conformacionais do núcleo catalítico do domínio da quinase e ativa o RET sem dimerização, mudando a especificidade do substrato da TK de uma quinase típica de receptor (RTK) (sempre com metionina na posição 918) para uma quinase típica do citoplasma (com a treonina na posição 918), o que causa ativação sem a necessidade de dimerização, pois esse resíduo localiza-se na região da ligação do substrato. Dessa forma, o mecanismo molecular pelo qual a mutação Met918Thr altera a função de RET é, provavelmente, múltiplo; por um lado, a mutação causa uma ativação independente do ligante sem promover a dimerização constitutiva das moléculas de RET; por outro lado, o Met918Thr modifica a especificidade do substrato RET, o que causa a modificação da autofosforilação, assim como o padrão intracelular de fosforilação das proteínas. A quinase do MEN 2B pode ser ainda mais ativada pelo ligante e por essa razão a estimulação é mais forte que a causada pelas mutações MEN 2A. O carcinoma medular da tireoide é um tumor das células C ou parafoliculares da tireoide produtoras de calcitonina, que representa cerca de 10% de todos os tumores da tireoide. Habitualmente, antes da trans-
formação em tumor, ocorre a hiperplasia multifocal das células C, lesão precursora do carcinoma medular, cuja progressão é variável e pode levar muitos anos. O carcinoma medular pode apresentar metástases locais para os linfonodos das cadeias centrais, laterais, cervicais e mediastinais, além de metástases a distância, especialmente para o pulmão, fígado e ossos. O produto principal secretado pelo carcinoma medular é a calcitonina, que funciona como excelente marcador tumoral para a persistência ou recorrência da moléstia. Os valores de calcitonina são habitualmente elevados nos casos de carcinoma medular; além disso, estímulos com pentagastrina ou cálcio provocam a elevação da calcitonina em indivíduos com carcinoma medular. Pode apresentar-se de duas formas, esporádica (75% a 80% dos casos) ou familiar (até 25% dos casos transmitidos de modo autossômico dominante, com alta penetrância e expressão variável). Em 80% a 85% dos pacientes com carcinoma medular familiar, este se apresenta em associação com outras alterações endócrinas, constituindo a neoplasia endócrina múltipla tipo 2, por sua vez dividida em neoplasia endócrina múltipla tipo 2A (NEM 2A) e neoplasia endócrina múltipla tipo 2B (NEM 2B), e em 10% a 15% o carcinoma medular é transmitido de forma isolada (carcinoma medular familiar, FMTC). Entre as formas familiares do carcinoma medular, a NEM 2A é a doença
mais comum (tabela 6.4), sendo o resultado de um traço dominante que dá 100% de penetrância de carcinoma medular, 50% de feocromocitoma e 25% de hiperparatireoidismo. A NEM2B é uma doença menos frequente, na qual os pacientes têm uma forma mais agressiva e mais precoce de carcinoma medular (menos de 10 anos). Poucos pacientes com MEN 2B sobrevivem além dos 20 anos quando o CMT é detectado clinicamente e não por rastreamento genético. Outras manifestações da NEM2B incluem feocromocitoma, habitus marfanoide, neuromas múltiplos da língua, pálpebras e mucosa oral, acompanhados de ganglioneuromas espalhados pelo trato digestivo que provocam quadros clínicos variando de megacólon a diverticulite. Tipos de carcinoma medular de tireoide (CMT) I. Forma esporádica (75% a 95%) II. Forma familiar (10% a 25%) 1. Neoplasia endócrina múltipla do tipo 2A (MEN-2A) – CMT – Feocromocitoma – Hiperparatireoidismo primário 2. Neoplasia endócrina múltipla do tipo 2B (MEN-2B) CMT Feocromacitoma Fenótipo anormal a) Neuromas mucosos b) Hábito marfanoide 3. CMT familiar isolado Tabela 6.5
Patologia É um tumor não encapsulado, e uma de suas características histológicas é a presença de depósito amiloide no estroma. Na maioria das vezes, é multicêntrico e bilateral. A hiperplasia das células C pode preceder ao CMT.
Quadro clínico O carcinoma medular da tireoide acomete ambos os sexos e se apresenta em qualquer faixa etária. A forma esporádica apresenta pico de incidência durante a quinta e a sexta décadas de vida, enquanto as formas familiares se apresentam mais precocemente. A forma familiar isolada tem a idade típica de aparecimento na terceira década, NEM 2A na segunda década e NEM 2B em indivíduos com menos de 10 anos. O carcinoma medular que se apresenta na NEM 2B é muito mais agressivo que aquele observado na NEM 2A e frequentemente está associado à extensão extracapsular da glândula e à presença de metástases linfonodais e a distância ao diagnóstico. Poucos casos de NEM 2B sobrevivem acima de 20
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85 6 Câncer da tireoide anos. É importante referir que, com o início do rastreamento genético do carcinoma medular familiar, o diagnóstico e o tratamento do carcinoma medular têm sido cada vez mais precoces.
Carcinoma anaplásico ou indiferenciado
Os pacientes com carcinoma medular, seja da forma esporádica, seja da familiar, apresentam-se geralmente com um nódulo palpável, duro, localizado nos dois terços superiores da tireoide, onde estão as células parafoliculares. Metástases linfonodais estão presentes em 50% dos pacientes ao diagnóstico e podem ser o primeiro achado ao exame físico. Metástases para o fígado, pulmão e ossos estão presentes em 20% dos pacientes ao diagnóstico. Outras manifestações
Representa até 5% (1% a 3%, na maioria das séries) dasneoplasias malignas da tireoide. É mais prevalente em áreas de deficiência de iodo, predominando em mulheres (M:H = 3:1) e em idosos (pico entre 65 e 70 anos). É muito rara a ocorrência em pessoas com menos de 50 anos. Trata-se de uma das formas mais agressivas e resistentes de câncer, com crescimento rápido, invasão local precoce e prognóstico extremamente desfavorável (6-12 anos).
clínicas que podem acompanhar a doença são a diarreia aquosa e flush cutâneo, presentes em um terço dos pacientes e, mais frequente, naqueles com grandes massas tumorais. Sintomas referentes ao feocromocitoma, diarreia e história familiar de tumor tireoidiano devem sempre ser averiguados no paciente com nódulo tireoidiano.
Figura 6.3 Carcinoma medular. Células ovais ou poligonais, com núcleo redondo ou oval situado excentricamente. O citoplasma contém grânulos azurrófilos, característica de tumores tipo APUD; observa-se depósito de amiloide (seta). Coloração de Leishman, x1900.
As mutações BRAF e do RAS são encontradas em até 10% dos casos.
A mortalidade é muito alta, e a sobrevida raramente ultrapassa seis meses após o diagnóstico. Os pacientes geralmente apresentam tumores de crescimento muito rápido. A rouquidão está presente em 80% dos casos, seguida de disfagia (60%), paralisia da corda vocal (50%), dor cervical (30%) e dispneia (20%). As estruturas vizinhas, como músculos, traqueia, esôfago, nervo laríngeo recorrente e laringe, geralmente estão acometidas. Mais de 40% dos pacientes apresentam metástases a distância ao diagnóstico, sendo a metade para os pulmões, 15% para os ossos e 10% para o cérebro. Metástases cardíacas podem estar presentes. O tumor cresce além da tireoide por extensão direta. As metástases ganglionares podem estar presentes, mas nem sempre são reconhecidas devido à extensa invasão da região cervical pelo tumor.
Patologia O carcinoma anaplásico pode se desenvolver a partir de um carcinoma papilar ou folicular preexistente. Folicular Célula folicular
Carcinoma
ou
Carcinoma anaplásico
Papilar Figura 6.4 Possíveis transformações da célula folicular através de mutações.
Figura 6.5 Carcinoma indiferenciado. Células grandes, isoladas ou agregadas, de formato fusiforme, associadas a outras, ovais, com núcleos excêntricos. Vê-se também um bloco de células com características normais. Coloração de Leishman, x1900.
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86 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Linfoma primário O linfoma raramente surge na glândula tireoide, tipicamente se apresentando nas pessoas mais idosas, como um bócio difuso e doloroso, de crescimento rápido. Os pacientes muitas vezes têm uma história precedente de tireoidite autoimune (Hashimoto). Suspeita-se ainda mais desse diagnóstico quando a aspiração por agulha fina rende abundantes linfócitos sem outras características celulares de tireoidite autoimune. A coloração imuno-histoquímica e a citometria do material coletado podem servir para caracterizar uma população linfocítica monoclonal. A biópsia cirúrgica às vezes é necessária para estabelecer o diagnóstico. Em 50% dos casos, o linfoma é primário à glândula tireoide, geralmente um linfoma de grau intermediário de tipo não Hodgkin..
Figura 6.6 Linfoma da tireoide. Tumor composto de inúmeras células pequenas e uniformes. Hematoxilina - eosina, x400.
Tumores metastáticos (raros) Metástases para a tireoide ocorrem raramente. As neoplasias mais comuns que podem lever a metástases tireoidianas são:
páveis no pescoço ou observados numa radiografia de tórax, ou, ainda, em virtude de fratura patológica consequente a metástases nos ossos longos ou de paralisias decorrentes de metástases na coluna torácica ou lombar. Seguem as características dos nódulos com aspecto maligno. Características dos nódulos tireoidianos malignos História Câncer de tireoide prévio História familiar de câncer de tireoide Nódulo em criança menor de 14 anos Exposição a radioterapia no pescoço e na face Rouquidão Nódulo de crescimento rápido Nódulo doloroso Nódulo recente em homem abaixo de 30 ou numa pessoa acima de 65 anos História de metástases a distância Exame físico Nódulo de consistência pétrea Nódulo fixo às estruturas vizinhas Adenopatia cervical Paralisia de corda vocal Achados laboratoriais PAAF positiva para câncer (99% de chance) PAAF suspeita para câncer (33% de chance de carcinoma folicular) Nódulo “frio” solitário Nódulo que avança sobre estruturas extratireoidianas ao ultrassom Calcitonina e CEA elevados em pacientes com risco de câncer medular Tabela 6.6
Exames complementares PAAF (padrão-ouro para o diagnóstico). Limitação principal da PAAF: incapacidade de distinguir o adenoma do carcinoma folicular.
mama;
hipernefroma;
câncer de pulmão de pequenas células;
melanoma.
Análise da biópsia por agulha fina
Diagnóstico do câncer de tireoide A apresentação clínica usual é sob a forma de um nódulo descoberto acidentalmente no pescoço pelo próprio paciente, pela sua família ou pelo médico. Mais raramente, o doente é visto pela primeira
vez devido à presença de nódulos metastáticos pal-
Atualmente, um marcador molecular específico para o câncer tireóideo, que permita um diagnóstico preciso de amostras obtidas pela PAAF, ainda não foi encontrado Avaliação de alterações genéticas no DNA ou RNA parecem ser promissoras, especialmente mutações pontuais do ras ou um rearranjo do PAX8-PPARγ para carcinoma folicular e metilação do TSH-R para câncer tireoideo bem diferenciado. No entanto, esses estudos estão evoluindo e estão sem nenhum resultado estabelecido.
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87 6 Câncer da tireoide
Galectina-3 A galectina-3 (GAL-3) é uma proteína de ligação betagalactosil, de interação célula-célula e célula-matriz. Pensava-se que as galectinas estavam associadas com a iniciação do crescimento celular e transformação maligna. Houve um entusiasmo com o uso da GAL-3 como marcador de malignidade na PAAF e amostras cirúrgicas; no entanto, pode aparecer, também, na tireoidite de Hashimoto. Se a tireoidite de Hashimoto for excluída, a GAL-3 pode ser um marcador importante de malignidade.
Rearranjo RET/PTC O cromosomo 10q11-2 é o locus do proto-oncogene RET. A ativação do RET foi documentada em células do CP, e logo ficou conhecida como RET/CP. Cinco variantes de RET/CP foram descritas. Um estudo recente relatou que três das mais comuns dessas variantes (RET/CP 1, 2, e 3) foram encontradas em amostras de BAF de CP sem resultados falso-positivos. A despeito do entusiamo dessa possibilidade de diagnóstico, outros relatos mostraram rearranjos de RET/CP também em tecidos benignos.
CD44 A família CD44 de glicoproteínas de membrana está associada a adesão, ativação de linfócitos e crescimento tumoral e metástases. Foi mostrado o aumento da expressão de isoformas variantes (CD44v), especialmente v6 até v10, no CP. Foi relatada a presença de CD44 em amostras aspiradas pela PAAF. No entanto, outros acharam CD44 em tecidos benignos. A detecção por PAAF da combinação de GAL-3 e variantes de CD44 no RNA é uma grande promessa para um diagnóstico pré-operatório mais acurado. Em função da já estabelecida excelente especificidade de amostras convencionais de PAAF no CP, o valor adicional do CD44v6 ou outras isoformas em tecidos oriundos da PAAF necessita ser estabelecidos futuramente.
Mutação BRAF A passagem de sinalização da proteína quinase de ativação mitogênica (MAPK) Ras/Raf é um constituinte importante do crescimento celular, proliferação, e divisão. De todas as isoformas dessa quinase RAF, o tipo B (BRAF) é aparentemente o mais importante estimulador de sinalização de MAPK. Parece que ativando mutações da BRAF ativa a passagem de MPAK e inicia uma transformação maligna. Muitos grupos relataram que mutações da BRAF são encontradas em 70% de amostras cirúrgicas. Cohen e co-
legas apontaram concordância em 98% na avaliação de amostras pré-operatórias de BAF com resultados pós-operatórios em casos documentados de CP. Xing e colaboradores descobriram que o gene BRAF estava associado ao aumento da probabilidade de recorrência tumoral pós-operatória. Ultrassonografia com Doppler colorido (avaliar a natureza da lesão, se cística ou sólida, e o padrão de vascularização. Veja capítulo 5.). Cintilografia com 131 I ou Tecnécio (distinguir nódulo “frio” e “quente”). Cerca de 20% dos nódulos frios, únicos ou dominantes, são malignos, ao passo somente 1% a 2% dos nódulos quentes o são. Avaliação hormonal (geralmente os pacientes são eutireoideos). A dosagem de calcitonina (CT) sérica está indicada em pacientes com nódulos tireoidianos que apresentam história familiar de carcinoma medular de tireoide (CMT) ou de MEN tipo 2, história pessoal de feocromocitoma, diarreia inexplicável ou rubor facial, bem como diante de citologia suspeita de CMT. Quando solicitada, valores basais de CT < 10 pg/mL são considerados normais, entre 10 e 100 pg/mL sugerem CMT, especialmente após exclusão de outras condições que determinam elevação de calcitonina. Na presença de linfonodos cervicais palpáveis ou calcitonina > 400 pg/mL, deve-se solicitar tomografia axial computadorizada (TAC) de tórax, pescoço e abdome, em função do alto risco para metástases. No pré-operatório, deve ser feita a dosagem de catecolaminas ou metanefrinas (excluir MEN2).
Cromogranina emolase (origem neuroendócrina) é também utilizada como marcador tumoral para o carcinoma medular.
Condições que podem cursar com calcitonina sérica elevada, além do CMT:
câncer de mama;
feocromocitoma;
carcinoma de pequenas células do pulmão;
Zollinger-Ellison.
Tireoglobulina, marcador tumoral para os cânceres diferenciados (papilífero e folicular). A tireoglobulina é uma glicoproteína produzida exclusivamente pelas células normais e neoplásicas, ainda diferenciadas, da tireoide. Devem ser dosados de forma concomitante aos anticorpos antitireoglobulina. Eles interferem tanto nos ensaios imunométricos (IMA) quanto em radioimunoensaio (RIA) da Tg, levando a resultados falso-negativos ou falso-positivos, respectivamente. Na avaliação da Tg, outro fator importante é a observação dos níveis de TSH. O TSH estimula a produção de Tg pelas células tireoidianas, não sendo possível comparar dosagens realizadas durante supressão do TSH
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88 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica com aquelas durante estímulo endógeno (hipotireoidismo) ou exógeno (TSH recombinante humano, rhTSH). O uso de rhTSH (Thyrogen®) ou a suspensão da L-T4 aumentam em 3-20 vezes o valor da Tg. Comparado à dosagem da Tg realizada durante o tratamento supressivo com L-T4; tais procedimentos melhoram a sensibilidade do ensaio para Tg. Uma Tg sérica < 10 ng/mL, por ocasião da ablação do tumor, geralmente indica prognóstico favorável. Valores elevados podem estar relacionados
à persistência da doença. Em estudo, foi observado que a presença de Tg > 70 ng/mL no pós-operatório, antes da dose terapêutica de ¹3¹I, indicava a presença de metástases em mais de 90% dos casos.
CEA possui pouca sensibilidade e nenhuma especificidade, estando associado ao carcinoma medular.
Causas de Tireoglobulina (Tg)Elevada e PCI Negativa Contaminação com iodo Níveis de TSH suficientes para induzir síntese de Tg, mas não suficientes para estimular captação do 131I Presença de tecido tireoidiano remanescente Elevação falso-positiva da Tg (anticorpos, efeito hook) Metástases difusas e muito pequenas para serem detectadas, porém capazes de produzir Tg Transformação para uma forma mais indiferenciada de câncer, levando à menor captação do 131I Tabela 6.7 PCI: cintilografia de corpo inteiro.
Tratamento do carcinoma diferenciado A tireoidectomia total, ou quase total, é o tratamento recomendado para todos os tipos de tumores tireoidianos. Entretanto, a American Thyroid Association, assim como a European Thyroid Cancer Task Force, admite apenas lobectomia para pacientes com tumores papilíferos menores que 1 cm, únicos e isolados, sem acometimento linfonodal e sem prévia irradiação sobre a cabeça e pescoço, considerados pacientes de muito baixo risco. Embora o risco aumente estatisticamente em tumores papilíferos acima de 1 cm e em foliculares acima de 4 cm, pequenos tumores também podem produzir metástases, e o risco atribuído a cada fator preditivo é relativamente pequeno quando considerado isoladamente. Acredita-se que a tireoidectomia total é, neste momento, a melhor opção para todos os
pacientes, independentemente do tamanho inicial do tumor, pois, atualmente, nenhum fator clínico, cirúrgico, anatomopatológico, laboratorial ou molecular é capaz de predizer com segurança o comportamento do tumor. Embora
o microcarcinoma papilífero tenha um excelente prognóstico (mortalidade ≈ 1%), a chance de metástases a distância alcança 2,5%, e a recorrência linfonodal, 5%. A tireoidectomia total no momento do diagnóstico elimina a necessidade de eventual reintervenção cirúrgica (para totalização) no caso de identificação de linfonodos comprometidos ou tipo histológico associado ao comportamento mais agressivo ao exame histológico. Além disso, a tireoidectomia total possibilita o seguimento do paciente por meio da dosagem sérica da Tg, como veremos adiante. Metástases linfonodais ao diagnóstico ocorrem em aproximadamente 20% a 90% dos pacientes com câncer papilífero, sendo ligeiramente menor nos outros tipos histológicos. Como na
maioria dos casos, o exame físico não revela anormalidades e deve ser solicitada a US cervical. Se a US sugerir acometimento linfonodal, o paciente deverá ser submetido à tireoidectomia total e à exploração linfonodal, mesmo que o tumor tenha menos de 1 cm de diâmetro, pois a ressecção total melhora o prognóstico. Em casos de carcinoma papilífero com evidência clínica de envolvimento de linfonodos centrais, ou de suspeita de carcinoma de Hurthle, a ressecção profilática/terapêutica de linfonodos do compartimento central (nível VI) é recomendada; linfonodos pré-laríngeos, pré-traqueais e peritraqueais deve ser considerada, pois eles são frequentemente acometidos. A ressecção profilática pode ser dispensada se não houver linfonodos suspeitos detectados na US, em casos de carcinoma papilífero de baixo risco (T1 ou T2, não invasivo); se ART estiver sendo planejada; e também na maioria dos tumores foliculares. Quando realizada em tumores de baixo risco, a ressecção profilática pode tornar a ART (ablação do remanescente tireoidiano) desnecessária. Recomenda-se a dissecção dos linfonodos laterais (II-IV) e do triângulo posterior em pacientes com metástases diagnosticadas por exame citológico, Tg detectável no aspirado, ou com alta suspeita na US. Os linfonodos do compartimento lateral (II–IV) e do triângulo posterior também podem ser sítios de metástases no câncer diferenciado de tireoide. A dissecção dos linfonodos laterais (II–IV) e do triângulo posterior é recomendada em pacientes com metástases diagnosticadas por exame citológico, Tg no aspirado ou com alta suspeita na ultrassonografia.
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89 6 Câncer da tireoide Parâmetros utilizados na classificação TNM para câncer da tireoide (cont.) Tx tamanho des- Nx linfonodos Mx não avaconhecido, sem não avaliados liado invasão extratireoidiana Tabela 6.8
Figura 6.7 Desenho representativo dos diferentes níveis e subníveis dos linfonodos cervicais.
Estadiamento dos pacientes após a cirurgia Atualmente, é consenso a necessidade de padronização do sistema de estadiamento e prognóstico, e o sistema TNM é o mais aceito e usado, ainda que pequenas adaptações possam ser feitas nas atuais diretrizes. Baseado no exame anatomopatológico e na descrição cirúrgica, recomenda-se a estratificação dos pacientes. O estadiamento do paciente deve ser de acordo com o sistema TNM. Parâmetros utilizados na classificação TNM para câncer da tireoide N (metástases M (metástaT (tumor) linfonodais) ses distantes) T1 ≤ 2 cm (T1a < N0 ausentes M0 ausentes 1 cm T1b 1-2 cm) T2 2-4 cm N1a metástases M1 metástases no nível VI distantes N1b metástases T3 > 4 cm limicervicais (laterais) tado à tireoide ou com invasão ou em mediastino extratireoidiana superior mínima T4a invasão de subcutâneo, laringe, traqueia, esôfago ou recorrente laríngeo T4b invasão de fáscia pré-vertebral ou envolvimento de carótida ou vasos mediastinais
Classificação TNM Câncer diferenciado (Papilífero e Folicular) Estágio I < 45 anos > 45 anos Estágio II Qualquer T, N, T1, N0, M0 Estágio III M0 T2 ou T3, N0, Qualquer T, N, M0 Estágio IV M1 T4, N0, M0 – Qualquer – T,N1,M0 Qualquer T, N,M1 Câncer Anaplásico Estágio IV Todos os casos são estágio IV Câncer Medular T1, N0, M0 Estágio I T2-T4, N0, M0 Estágio II Qualquer T, N1, M0 Estágio III Qualquer T, qualquer N, M1 Estágio IV Tabela 6.9 Estratificação de risco pós-operatório dos pacientes com carcinoma diferenciado da tireoide Risco / Fator Ressecção T N M prognóstico tumoral Muito baixo T1a ou T1b, N0 M0 Completa risco único Baixo risco T1 multifocal N0 M0 Completa ou T2 Alto risco T3 ou T4 N1 M1 Incompleta Tabela 6.10 Estratificação de risco pós-operatório dos pacientes com carcinoma diferenciado da tireoide, baseada na ressecção tumoral e nas características do tumor definidas pela classificação do TNM.
Terapia com 131I após a tireoidectomia total O Consenso Brasileiro recomenda a ART em todos os pacientes submetidos a TT, exceto nos casos de muito baixo risco (T1N0M0), com ressecção completa. Não há dúvida quanto à necessidade de ART em casos com ressecção tumoral incompleta, metástases clinicamente detectáveis, ou com alto risco de recidiva. É aceitável que pacientes com tumores < 2 cm, intratireoidianos, sem Tg elevada, sem metástases na US, ou com captação < 2% no leito tireoidiano
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90 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica (dose traçadora de 100 mcCi) não sejam submetidos à ART, ou recebam doses menores (30 mCi) de radioiodo. Para os demais pacientes de baixo risco, a
dose recomenada é de 100 mCi. Em pacientes de alto risco, 100 a 150 mCi são recomendados. Doses > 200 mCi raramente são indicadas, exceto para pacientes com metástases a distância.
Preparo para a terapia 131I Níveis de TSH > 30 mUI/L otimizam a captação do 131I pelas células tireoidianas normais e/ou tumorais diferenciadas, aumentando a chance de sucesso da ablação, e são geralmente obtidos após três a quatro semanas sem levotiroxina (L-T4) em pacientes tireoidectomizados. Em pacientes com baixo risco, ou seja, quando o objetivo é apenas a ablação tireoidiana, existe a opção do uso do TSH recombinante (rhTSH), que deve ser administrado seguindo o mesmo protocolo usado para testes diagnósticos (Tg e PCI). A utilização do rhTSH também deve ser considerada em pacientes com comorbidades, nas quais o hipotireoidismo prolongado pode agravar o quadro, como por exemplo doença arterial coronariana, insuficiência renal crônica, doenças cerebrais isquêmicas ou depressão severa, ou ainda nos indivíduos com hipopituitarismo e incapacidade de elevação suficiente do TSH endógeno. Fique atento às recomendações da tabela abaixo. Dieta pobre em iodo durante 7 a 14 dias é a regra. Alimentos permitidos e não permitidos na dieta pobre em iodo recomendada no preparo de pacientes que se submetem à terapia com 131I Não permitido Permitido Sal Sal iodado, salgadinho, Sal não iodado batata frita industrializada Peixes Peixes, frutos do mar, Peixes de água camarão, ostras, algas doce (ex: pintado, truta, salmão) Laticínios Leite, sorvete, queijo, Leite em pó requeijão, iogurte, lei- desnatado e margarina sem te de soja, tofu sal Carnes Carne defumada, car- Carnes frescas ne de sol, caldo de car- (de aves, porco ne, presunto, embuti- e boi), salsicha, chucrute dos, bacon Molhos, ovos Gema de ovo, maione- Clara de ovo, se, molho de soja temperos, óleo, azeite e vinagre
Alimentos permitidos e não permitidos na dieta pobre em iodo recomendada no preparo de pacientes que se submetem à terapia com 131I (cont.) Frutas Frutas enlatadas ou Frutas frescas em calda, frutas secas e sucos, frutas salgadas secas sem sal (amendoim, nozes, castanhas) Vegetais Enlatados (azeitonas, Alface, batata picles, cogumelos etc.), sem casca, beagrião, aipo, couve de terraba, brócobruxelas, feijão, batata lis, cenoura, cechips bola, cogumelo fresco, couve, ervilha, espinafre, nabo, pepino, tomate, repolho Pães, massas, Pães industrializaPão caseiro, cereais e grãos dos, pizza, cereais em pão francês, caixas (sucrilhos, corn bolacha inteflakes), feijão verme- gral ou cream cracker, macarlho, granola rão e massas simples, arroz, aveia, cevada, farinha, feijão, milho e trigo Doces Doces com gema de Açúcar, mel, ovo, chocolate e leite, geleia, balas sorvetes, pudim (exceto balas vermelhas) Bebidas Café instantâneo solú- Água, café de vel, bebidas lácteas, leite filtro, suco e em pó refrigerantes, vinho Tabela 6.11 Recomendações adicionais: não usar medicamentos e suplementos alimentares que contenham iodo; informar ao médico o uso de comprimidos, cápsulas ou remédios de cor vermelha; alimentos e bebidas com corante vermelho podem conter iodo (exemplo: balas, uísque); não usar cosméticos de coloração escura, batom, esmalte, tintura de cabelo etc.
Complicações de terapêutica 131I Efeitos agudos O iodo radioativo (131I) captado pela tireóide, por ação da proteína cotransportadora NIS (Natrium Iodine Symporter), apresenta um papel importante no tratamento do câncer diferenciado da tireoide. Tireoidite actínica com edema e desconforto pode ocorrer na ablação de grandes remanescentes, mas pode ser limitado com o uso de corticosteroides. En-
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91 6 Câncer da tireoide tretanto, como a proteína NIS é também expressa em outros tecidos como glândulas salivares, estômago e mama, o 131I também é captado nesses sítios após dose terapêutica, embora não seja organificado. Apesar de o tratamento com 131I ser relativamente seguro, existem riscos precoces e tardios que são dose-dependentes. O 131I captado e concentrado pelas glândulas salivares é secretado na saliva, e os danos ao parênquima salivar são dependentes da atividade do 131I utilizado. Usualmente, observam-se aumento de volume e dor envolvendo a parótida. Os sintomas podem se desenvolver imediatamente após a dose terapêutica de 131I e/ou meses mais tarde e progredir em intensidade com o tempo. Além da sialoadenite, outras complicações incluem xerostomia, alterações do gosto, obstrução dos ductos nasolacrimais, aumento nas cáries, estomatite e candidíase. Amifostina foi recentemente sugerida como uma opção para evitar os efeitos radioativos. Recomenda-se massagem glandular, agentes sialogogos, boa higiene oral e hidratação adequada. Outro estudo recente sugere que o uso de balas de limão deve ser evitado nas primeiras 24 horas após o uso do 131I, pois elas podem diminuir a incidência de sialoadenite, disfunções do gosto, boca seca e xerostomia se usadas nos 5 dias consecutivos ao 131I. Agentes colinérgicos podem ser úteis na prevenção ao dano às glândulas salivares e, eventualmente, nas complicações crônicas como boca seca e cáries dentárias.
Efeitos crônicos Os efeitos crônicos associados ao uso do 131I no tratamento do CDT (carcinoma diferenciado da tireoide) são difíceis de avaliar, uma vez que o número de pacientes com câncer diferenciado da tireoide tratados em cada centro é muito variável. Avaliações em longo prazo demonstram um risco pequeno de malignidades secundárias (osso, partes moles, câncer colorretal, rumores salivares e leucemia), aparentemente dose-relacionadas. Mulheres de raça branca com câncer de tireoide parecem ter risco maior de câncer de mama, principalmente na pré-menopausa. Como, o câncer de mama e de tireoide são muito frequentes em mulheres, não se pode excluir a possibilidade de algum viés de triagem ou outros fatores. Doses elevadas de 131I podem levar a alterações, normalmente transitórias, na contagem de hemácias e leucócitos. Embora amenorreia transitória ou irregularidades menstruais sejam frequentes em mulheres após dose terapêutica de 131I, o risco de dano permanente aos ovários ou anormalidades congênitas no feto é igual ao da população geral. Mulheres que re-
ceberam dose terapêutica de 131I devem evitar a gravidez nos 6 a 12 meses seguintes. Em adultos jovens com câncer diferenciado de tireoide tratados com 131 I, tem-se observado hipospermia transitória, embora usualmente não apresentem alterações permanentes ao epitélio germinativo e risco de infertilidade. Doses cumulativas de 131I, entre 500 e 800 mCi, podem ser acompanhadas de azoospermia. Nestes casos, aconselha-se o armazenamento de esperma em banco apropriado.
Avaliação laboratorial, pós-131I Seis meses após a terapia com 131I, recomenda-se a solicitação de dosagens séricas da Tg[T4], TgAc e US cervical nos pacientes com PCI pós-dose sem captação ectópica. A maioria dos pacientes apresenta Tg[T4] ≤ 1 ng/mL e US negativo. Nesses casos, deve-se obter uma Tg estimulada de 9 a 12 meses após a ablação. Aproximadamente 20% dos pacientes, aparentemente sem doença e com níveis séricos de Tg[T4] < 1 ng/mL, apresentam níveis positivos de Tg estimulada (> 2 ng/mL), sendo que em um terço desses indivíduos pode ser identificada a lesão responsável pela doença persistente por métodos de imagem. Em pacientes considerados de baixo risco com TgAc negativo, a PCI diagnóstica não é recomendada, ficando reservada àqueles com Tg[T4] ≤ 1 ng/mL com TgAc positivo ou de alto risco. A PCI deve ser realizada com 123I ou 2 mCi de 131I para evitar o stunning. Alguns autores sugerem que a dose traçadora de 5 mCi de 131I pode ser utilizada caso a terapia com 131I seja disponibilizada entre 3 e 5 dias.
Terapêutica com L-T4 A terapia supressiva com L-T4 está associada à menor chance de progressão da doença em pacientes de alto risco e uma meta-análise confirmou a redução do risco de eventos clínicos adversos com a supressão do TSH. Em pacientes de muito baixo risco, como não há indicação do 131I, a reposição de L-T4 deve ser iniciada imediatamente no pós-operatório. Para os demais, havendo a perspectiva desta terapia no prazo máximo de 4 a 6 semanas, o paciente pode ser mantido sem L-T4. No entanto, se a previsão superar este intervalo, a reposição de L-T4 deve ser iniciada após a cirurgia e posteriormente suspensa, para evitar o hipotireoidismo prolongado. Nos casos nos quais for utilizado o rhTSH, deve-se iniciar a reposição precocemente no pós-operatório.
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92 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica Tireoidectomia Ressecção completa e M0
Muito baixo risco (TSH 0.5-2 mUl/L)
131I
Ressecção incompleta e/ou M1 (TSH ≤ 0.1 mUl/L)
e PCI pós-dose
Negativa (TSH ≤ 0.1 mUl/L)
Metástase (TSH ≤ 0.1 mUl/L)
Avaliação de controle (após 6-12 meses)
Metástase e/ou Tg elevada (TSH ≤ 0.1 mUl/L)
Sem doença aparente e Tg indetectável
Baixo risco (TSH 0.1-0.5 mUl/L)
Alto risco/intermediário (TSH < 0.1 mUl/L)
Após 5 anos sem doença (TSH 0.3 - 2 mUl/L)
Figura 6.8 PCI: cintilografia de corpo inteiro; Tg: tireoglobulina. Algoritmo para administração de levotiroxina em pacientes submetidos à tireoidectomia por neoplasia tireoidiana de acordo com a avaliação de risco individual. Observe os valores de TSH desejáveis.
Conduta na doença metastática Doença metastática locorregional Entre 5% e 20% dos pacientes com carcinoma diferenciado de tireoide apresentam recorrências locais ou regionais, o que corresponde a cerca de duas vezes a frequência de metástases a distância. No entanto,
a importância da presença de metástases linfonodais no prognóstico é discutível. Metástases linfonodais detectadas no seguimento inicial devem ser interpretadas mais provavelmente como doença persistente. A combinação da US cervical e da Tg sérica tem um papel central na detecção da persistência ou recorrência cervical. O tratamento mais indicado para doença locorregional é a excisão cirúrgica, especialmente na ausência de metástases a distância, sendo que aproximadamente 30% a 50% dos pacientes ficam curados a curto prazo. A maioria dos cirurgiões recomenda a exploração ipsilateral completa do compartimento envolvido com persistência/recorrência do câncer, poupando as estruturas vitais, em função das metástases linfonodais serem comumente mais extensas que o sugerido pelas imagens. Pacientes com ausência de captação de 131I fora do leito tireoidiano na PCI pós-dose terapêutica e níveis da Tg estimulada indetectáveis apresentam um baixo risco de recorrência de linfonodos cervicais. Para tumores que invadem o trato aéreo e/ou digestivo superior, deve-se recomendar cirurgia agressiva, com retirada mais completa possível da lesão, procurando preservar a função. A cirurgia pode incluir ressecção traqueal com anastomose ou esofagofaringectomia.
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93 6 Câncer da tireoide
Metástases a distância Metástase pulmonar No caso de metástases pulmonares 131I-captantes, usualmente micronodulares, o tratamento consiste em doses empíricas de 100 a 150 mCi de 131I após suspensão de T4. A dose
terapêutica deve ser repetida a cada 6 a 12 meses pelo prazo de dois anos e depois anualmente, se as lesões continuarem 131I-captantes. As PCIs pós-dose terapêutica e os níveis séricos de Tg fornecem informações sobre a resposta ao tratamento. Nestas condições, as remissões costumam ocorrer com doses cumulativas de 600 mCi ou menos. Doses superiores a 600 mCi e evidências de baixa captação de 131I são fatores que devem ser questionados na avaliação dos benefícios da radioiodoterapia. O uso do lítio pode ser útil devido ao aumento da retenção do 131I nas lesões metastáticas. Em geral, as metástases pulmonares progridem lentamente, e os pacientes podem ser seguidos com dosagem sérica da Tg e TC, sendo mantidos sob supressão do TSH. Pneumonite actínica e fibrose são complicações muito raras. Os pacientes com macrometástases nodulares, que sejam iodocaptantes, devem ser tratados de forma semelhante. No entanto, como essas lesões frequentemente não captam o 131I, alternativas terapêuticas devem ser consideradas, como exérese da(s) metástase(s), radioterapia externa paliativa para lesões intratorácicas sintomáticas e drenagem pleural, ou pericárdica, em derrames sintomáticos, ou tentativa de rediferenciação do tumor. Em pacientes com Tg elevada ou com tendência de elevação, nos quais a PCI e outros métodos de imagem foram incapazes de localizar a doença metastática, o uso empírico de doses de 131I entre 100 e 150 mCi pode identificar e tratar focos metastáticos previamente não detectáveis em aproximadamente 50% dos casos. Em metástases não iodocaptantes, mesmo com uso de doses terapêuticas empíricas, a utilização do PET-FDG ou o sestamibi está indicada na tentativa de localização da lesão. O estímulo com TSH endógeno ou rhTSH pode aumentar sensibilidade e especificidade do PET-FDG. Estes pacientes não se beneficiam de radioiodoterapia, e doses adicionais devem ser evitadas. Em uma grande porcentagem de pacientes com micrometástases pulmonares, a evolução da doença é muito lenta, frequentemente sem alterações à TC. Esses pacientes podem ser mantidos sob observação, com TSH suprimido (< 0,1 mU/L). Quimioterapia tradicional não tem demonstrado utilidade nos pacientes com lesões não 131 I-captantes e não acessíveis cirurgicamente.
Metástase óssea Metástases ósseas podem ser a primeira manifestação do câncer diferenciado de tireoide. A sobrevida do paciente com metástase(s) óssea(s) é geralmente reduzida devido às dificuldades terapêuticas enfrentadas em função da localização e da extensão da(s) lesão(ões) que, frequentemente, não captam 131 I. Não é incomum o paciente desenvolver fraturas patológicas que, especialmente em vértebras, podem levar a quadros neurológicos graves, com dor incapacitante ou quadros de paraplegia. Quando a metástase óssea é isolada, a ressecção cirúrgica completa da lesão melhora significativamente o prognóstico de sobrevida. Do mesmo modo, a lesão óssea iodocaptante também está associada a uma sobrevida maior. A dose terapêutica empírica de 131I recomendada varia entre 150 e 300 mCi. Em lesões ósseas localizadas em regiões mais críticas, perto de estruturas nervosas, o edema decorrente da captação do 131I pode produzir compressão nervosa com dor ou incapacidade funcional importante. Nesses casos ou em lesões não iodocaptantes, a radioterapia externa com uso concomitante de corticosteroides deve ser considerada. Outros procedimentos locais, como embolização intra-arterial, infusões periódicas de pamidronato ou zoledronato ou injeções de cimento, podem ser úteis.
Metástase cerebral Metástases cerebrais são complicações raras no câncer diferenciado da tireoide, sendo mais frequentes em pacientes idosos com doença avançada.
Podem, no entanto, ser a primeira manifestação ou a primeira metástase no curso do câncer da tireoide. Exames de imagem como TC sem contraste ou, preferencialmente, RNM com gadolíneo de crânio, costumam revelar de forma clara a localização e a extensão da lesão. Frequentemente, uma biópsia é necessária para confirmar ser uma metástase do câncer da tireoide. O tratamento inicial deve ser cirúrgico, visando à ressecção completa da metástase, que se acompanha de maior sobrevida do paciente. As lesões usualmente não captam 131I, e o tratamento deve incluir a radioterapia externa. Qual é o papel da quimioterapia convencional no tratamento do câncer diferenciado da tireoide? Dados sobre possíveis efeitos da quimioterapia no câncer de tireoide metastático são limitados. Alguns estudos sugerem uma resposta parcial (doença estável) em cerca de 40% dos pacientes com a utilização de monoterapia com doxorrubicina. A utilização de mais de um agente parece não melhorar a resposta ao tratamento, com o inconveniente do aumento da toxicidade.
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94 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Pacientes de risco intermediário:
Terapêutica alvo em câncer avançado As terapias-alvo são geralmente citostáticas e não citotóxicas, o que pode ser um problema, uma vez que o câncer da tireoide requer tratamento prolongado. A terapia pode ser satisfatória se a droga apresentar baixa toxicidade e for bem tolerada. No entanto, sempre existe uma alta possibilidade de que as células neoplásicas residuais desenvolvam vias compensatórias, geralmente por apresentarem outras mutações que levam à progressão da doença. Os inibidores das tirosinaquinases como a tirosinaquinase do receptor do fator de crescimento epidérmico (EGFR), RAF kinase, receptor do fator de crescimento endotelial (VEGFR), receptor do fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGFR), tirosinaquinases do RET e outros agentes que têm como alvo a vascularização, parecem ter atividade no câncer de tireoide, resultando em remissão parcial em alguns pacientes e estabilidade da doença em aproximadamente 50% dos pacientes. Estudos clínicos no CMT têm incluído imatinibe, motesanibe, sorafenibe, vandetanibe e o XL184. Vandetanibe (ZD6474) é um ITQ oral que se mostra ativo em múltiplos alvos da sinalização celular, como as proteínas RET, EGFR (epidermal growth factor receptor - receptor do fator epidérmico de crescimento) e o VEGFR (vascular endotelial growth factor receptor - receptor do fator de crescimento do endotélio vascular). Células do CMT tratadas com vandetanibe perdem sua proliferação autônoma, conferida pela mutação RET/PTC3. Além disso, vandetanibe inibe a proliferação e sobrevida celular mediadas pelo EGFR, como também bloqueia a angiogênese mediada pelo VEGFR. Essa ação sobre vários alvos faz do vandetanibe um fármaco importante para a avaliação de várias neoplasias, como o CMT. A FDA aprovou o vandetanibe para o tratamento do CMT avançado.
Idade maior que 45 anos.
Carcinoma papilífero; carcinoma folicular que não de células de Hurthle.
Tamanho menor que 3 cm.
Tumor intraglandular.
Ausência de metástases a distância.
Idade menor que 45 anos.
Carcinoma de células de Hurthle.
Tamanho maior que 3 cm.
Tumor extraglandular.
Presença de metástases a distância.
Ou:
Pacientes de alto risco:
Idade maior que 45 anos.
Carcinoma de células de Hurthle
Tamanho maior que 3 cm.
Tumor extraglandular.
Presença de metástases a distância.
Dessa forma, o tratamento dos pacientes portadores de CBDT deve ser orientado pelo grupo de risco em que o paciente se enquadra.
Pacientes de baixo risco:
Lobectomia + istmectomia.
No caso de linfonodos cervicais positivos, esvaziamento cervical seletivo níveis II, III, IV e V e linfonodos do compartimento central (nível VI).
Pacientes de alto risco:
Tireoidectomia total.
Em casos de linfonodos cervicais metastáticos proceder ao esvaziamento cervical seletivo níveis II, III, IV e V e dos linfonodos do compartimento central (nível VI).
Alguns autores defendem a adoção de esvaziamento cervical profilático de rotina no compartimento central nos casos de alto risco ou em tumores T4.
INCA: Classificação de risco versus conduta terapêutica:
Pacientes de baixo risco:
Idade menor que 45 anos.
Complementação terapêutica cp, 131I.
Carcinoma papilífero; carcinoma folicular que não de células de Hurthle.
Tamanho menor que 3 cm.
Tumor intraglandular.
Ausência de metástases a distância.
Radioterapia externa para tumores não captantes de iodo, e o tratamento deve englobar as regiões cervical e mediastinal, sendo requerida dose de 70 Gy para controle local de doença microscópica. A dose na medula espinhal tem de ser limitada a 45 Gy.
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95 6 Câncer da tireoide
Metástases a distância: 131I em tumores captantes de iodo ou radioterapia externa em tumores não captantes.
Pacientes de risco intermediário:
Abordagem terapêutica individualizada.
Cada paciente deverá ser tratado de acordo com o grupo de risco a que mais se aproxime (baixo risco ou alto risco).
Tratamento do carcinoma medular Por tratar-se de tumor agressivo, multifocal, bilateral e que não responde a radioiodo, a recomendação é tireoidectomia total. Isto inclui os pacientes com a forma esporádica e familiar. A retirada de todo o tecido tireroidiano deve ser meticulosa, sem lesar as paratireoides. Além disso, recomenda-se a dissecção profilática dos linfonodos da região central do pescoço. Uma vez que o feocromocitoma é uma possibilidade naqueles pacientes com doença familiar (MEN2), deve-se afastá-lo antes de se decidir pela cirurgia. Como o iodo não é captado pelos tumores medulares, o seu emprego é inútil. A terapêutica supressiva também não é efetiva, em termos de diminuir ou retardar a evolução do tumor, mas deve ser empregada como terapêutica substitutiva. O seguimento deve ser feito por meio de dosagens periódicas de CEA e calcitonina (após 3 meses e, depois, a cada 6 meses). Se os níveis de CT forem indetectáveis, o paciente está em remissão bioquímica, e o seguimento será realizado com dosagens semestrais ou anuais de CT. Com CT < 150 pg/mL, recomenda-se US cervical e, se necessário, outros exames de imagem. Diante de valores de CT > 150 pg/ML, estão recomendadas US cervical e imagens adicionais, como TAC de tórax, pescoço e abdome, RNM de abdome, coluna e pelve, cintigrafia óssea e F-FDG PET. Sempre que a doença residual estiver localizada no pescoço, existe a orpotunidade e indicação de uma cirurgia cervical.
Carcinoma medular familiar (MEN 2A, 2B) Tem-se recomendado recentemente a indicação da tireoidectomia profilática baseada no diagnóstico genético, pois o códon mutado do RET correlaciona-se com a variante do MEN2, incluindo-se a agressividade do MTC. Assim, o códon mutado e os achados clínicos da família devem ser considerados na planificação da
conduta para os pacientes portadores de mutação. Na última reunião de consenso, estratificou-se o risco e uma série de decisões foi recomendado de acordo com as mutações conhecidas. A ATA (Associação Americana de Tireoide) criou um sistema de categorias de risco para a tireoidectomia profilática, com base na mutação identificada. O nível D inclui pacientes com mutação nos códons 883 e 918 do RET, cuja doença se manifesta em uma idade mais jovem, tem alto risco de metástases, e o seu fenótipo é a MEN-2B. Quando identificada de modo precoce, a indicação de tireoidectomia profilática deve ser feita no primeiro ano de vida. O nível C é um pouco menos agressivo e inclui a mutação mais frequente da MEN-2A, no códon 634. Nessa situação, a tireoidectomia profilática deve ser feita antes dos cinco anos de vida. O nível B inclui mutações com caráter menos agressivo, localizadas nos códons 609, 611, 618, 620 e 630. Para esses casos, deve-se considerar a cirurgia antes dos 5 anos, porém ela pode ser realizada algum tempo depois, conforme algumas condições, como uma CT estimulada anual normal, US anual normal, história familiar de doença menos agressiva e preferência familiar. O nível A é considerado a mutação de menor risco, o CMT se manifesta com níveis mais baixos de CT, estágios tumorais mais leves e taxas mais elevadas de cura após a tireoidectomia profilática.
Tratamento do carcinoma anaplásico A melhor perspectiva de cura para esses pacientes é o diagnóstico precoce e a ressecção completa da lesão. Entretanto, somente em uma minoria (< 10%) dos casos conseguem-se resultados satisfatórios, de modo que a sobrevida média não ultrapassa, na maioria das vezes, 4 a 6 meses do diagnóstico. Hoje em dia, o tratamento para o CAT é principalmente cirúrgico, combinado com quimioterapia e radioterapia. Em uma análise multivariada, não foi possível isolar nem a R x T e/ou Q x T como fatores que tenham influenciado a sobrevida dos pacientes. Em contrapartida, nesse estudo, sexo feminino, idade < 60 anos, tumor < 7 cm e tumor ainda restrito à tireoide foram fatores de bom prognóstico.
Tratamento do linfoma primário O uso do esquema CHOP (ciclofosfomida, doxorrubicina vincristina e prednisolona) tem levado a uma excelente taxa de sobrevida. O uso da ressecção cirúr-
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96 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica gica, incluindo a tireoidectomia quase total ou total, parece facilitar esses resultados, principalmente para linfomas MALT. Poderão ocorrer significativos edema e inchaço pericapsular, com perda dos planos de tecido normal. Os linfomas MALT são geralmente diagnosticados em um estádio precoce e têm curso indolente. Linfomas de células largas, difusas e mistas têm comportamento mais agressivo e frequentemente tem envolvimento disseminação. A taxa de sobrevida em cinco anos do linfoma MALT aproxima-se dos 100%, enquanto as taxas para linfomas de células largas e de células mistas são de 71% a 78%.
Carcinoma anaplásico
prognóstico bastante sombrio;
sobrevida média 6 a 8 meses.
Linfoma primário de tireoide
doença confinada à glândula – sobrevida entre 75% e 85%;
doença extratireoidiana cervical – sobrevida entre 35% e 40%;
doença disseminada – 5% de sobrevida.
Prognóstico Classificação do risco prognóstico em pacientes com cânceres bem diferenciados da tireoide (AMES ou AGES) Baixo risco Alto risco Idade < 40 anos > 40 anos Sexo Feminino Masculino Extensão Sem extensão local, Invasão escapular, intratideoide, extensão sem invasão escapular intratideoide Metástase Nenhuma Local ou distante Tamanho < 2 cm > 4 cm Grau Bem diferenciado Pouco diferenciado Tabela 6.12 AGES: idade, grau de diferenciação patológica do tumor, extensão e tamanho do tumor primário; AMES: idade, metástases a distância, extensão do tumor primário e tamanho do tumor primário.
Os 5 a 10% dos casos de CP que evoluem para morte são constituídos pelo grupo de pacientes com idade superior a 40 anos que apresentam lesões aderentes às estruturas adjacentes, com metástases invasivas cervicais ou a distância e que apresentam variantes histológicas mais agressivas, como a variante de células altas ou colunares ou com invasão vascular.
Figura 6.9 Carcinoma papilífero. A: nódulo hipoecoide relativamente bem definido, com vascularização periférica e central no estudo com Doppler colorido; B: padrão fluxométrico de alta resistividade (velocidade sistólica desproporcionalmente elevada em relação à velocidade diastólica).
Carcinoma medular
Prognóstico reservado.
As metástases não respondem a iodo radioativo e geralmente se fazem para:
– linfonodos regionais; pulmão; fígado; ossos. A forma esporádica é mais agressiva que a forma familiar (aqueles associados às síndromes endócrinas múltiplas).
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97 6 Câncer da tireoide
Figura 6.11 Carcinoma medular. A: nódulo sólido, hipoecogênico, sem margens definidas, com microcalcificações na margem anterior, hipervascularizado no estudo com Doppler colorido (B).
Figura 6.12 Radiografia panorâmica da bacia mostrando grande lesão lítica no osso ilíaco direito. Paciente portador de carcinoma folicular.
Figura 6.10 Metástase de carcinoma papilífero da tireoide. Avaliação do leito cirúrgico. A: PCI (8 horas) caracterizando hipercaptação no leito cirúrgico à esquerda e no mediastino; B-C: avaliação ecogáfrica. Note que as lesões nodulares têm características ecográficas sobrepostas àquelas descritas para o carcinoma papilífero; D-E: sequências de RM demonstrando as lesões mediastinal (D) e cervical (E).
Figura 6.13 Radiografia de tórax em PA mostrando lesões nodulares metastáticas nos campos pulmonares inferiores. Paciente portador de carcinoma folicular.
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CAPÍTULO
13
Doenças valvares
“Se eu me empenhasse, poderia fazer qualquer coisa”. Ellen Degeneres
Introdução Na área das doenças valvares, muitas coisas mudaram nas últimas décadas. Desde a melhora da monitorização não invasiva da função ventricular até a melhora das próteses disponíveis, passando por melhor definição nas condutas nas últimas diretrizes, tudo contribuiu para uma melhoria importante no prognóstico destes pacientes. Alguns aspectos epidemiológicos no Brasil diferem dos países desenvolvidos e precisam ser conhecidos. No Brasil, 70% das valvopatias tem etiologia reumática. Diferentemente dos Estados Unidos, onde a principal causa de insuficiência mitral é o prolapso de valva mitral (PVM), aqui a principal causa é a FR, ficando o PVM em segundo lugar. Todas as lesões valvares acabam por causar algum tipo de estresse hemodinâmico no VE ou VD, seja na forma de sobrecarga de volume, seja na forma de sobrecarga de pressão. Com a evolução do quadro, o paciente acaba desenvolvendo insuficiência cardíaca e, ocasionalmente, morte súbita. Logo, na avaliação de
um paciente valvopata, deve-se sempre responder a duas perguntas: a doença valvar é grave o suficiente para indicar intervenção cirúrgica nesta valva? Se a resposta for sim, qual o melhor momento para a realização da cirurgia e qual a terapêutica adequada até lá? A principal indicação de intervenção nas valvopatias é a presença de sintomas (principalmente, dispneia aos esforços); ao passo que pacientes assintomáticos em geral devem ser seguidos em tratamento clínico, ou seja, profilaxia de endocardite infecciosa (EI) e febre reumática (FR). Outrossim, a presença de frêmito é pouco sensível, porém muito específico para detectar valvopatia anatomicamente importante.
Estenose mitral (EM) A valva mitral separa o átrio esquerdo (AE) do ventrículo esquerdo. Ela se abre na diástole, permitindo o enchimento do VE. Durante a sístole, ela se fecha, evitando o retorno do sangue do VE para o AE. A área do orifício valvar é de 4-6 cm2.
167 13 Doenças valvares Anel anterior
Folheto anterior
Comissura anteromedial
Comissura posterolateral Folheto posterior (3 lobos)
Cordas tendíneas
Anel posterior
Músculo papilar medial
Músculo papilar lateral
Figura 13.1 Aparelho valvar mitral e suas partes.
Seu aparato valvar é constituído de 4 partes: 1. anel valvar mitral;
Patologia A EM reumática surge por lesão nas cúspides mitrais, por fusão das comissuras, por envolvimento das cordoalhas ou, mais frequentemente, por um processo combinado entre essas três partes do aparelho valvar. Por volta de 30% dos pacientes possuem fusão isolada das comissuras, 15% apresentam comprometimento isolado das cúspides e apenas 10% envolvem as cordoalhas isoladamente. Caracteristicamente, as cúspides se fundem em suas bordas, e a fusão das cordoalhas leva ao espessamento e encurtamento destas. Os folhetos apresentam espessamento fibroso e depósitos de cálcio. Insuficiência mitral conjugada pode ocorrer se houver comprometimento das cordoalhas tendíneas ou espessamento e rigidez importante dos folhetos, impedindo o fechamento da valva.
2. dois folhetos ou cúspides valvares;
Fisiopatologia
3. cordoalha tendínea; 4. músculos papilares. Por definição, EM (a lesão orovalvar mais específica de FR) é a restrição à abertura dos folhetos valvares, com redução da área valvar mitral levando à formação de gradiente de pressão entre o AE e o VE. Para que isso ocorra, é necessário que a área valvar seja menor do que 2,5 cm2. Aproximadamente 99% dos casos de EM estão associados à sequela de febre reumática. No entanto, uma história definida de febre reumática prévia é rara. Outras etiologias raras incluem carcinoide maligno, lúpus, artrite reumatoide, doença de Fabry e doença de Whipple. É mais frequente em mulheres. Como as outras etiologias são bastante raras, esta valvopatia tem se tornado rara em países desenvolvidos, onde a febre reumática já é rara. Em países como o Brasil, a EM ainda é bastante comum.
A área valvar mitral do adulto é de 4 a 6 cm2. Uma redução de área em até 2 cm2 é considerada uma estenose leve, na qual o enchimento ventricular se faz com um pequeno gradiente. Áreas menores do que 1 cm2 são consideradas estenoses importantes. A elevação de pressão atrial esquerda leva ao aumento da pressão venocapilar pulmonar, que produz dispneia aos esforços. Os primeiros surtos são deflagrados por exercícios, estresse emocional, atividade sexual, infecção, fibrilação atrial (FA) ou durante a gestação. A taquicardia encurta o tempo diastólico e o enchimento ventricular. Logo, eleva o gradiente AV e a pressão no AE, levando a uma súbita descompensação de um paciente previamente assintomático durante episódio de FA aguda com alta resposta ventricular. Também explica a melhora clínica após a redução da frequência cardíaca. Obstrução ao enchimento de VE
Aproximadamente 25% dos pacientes apresentam EM pura, enquanto 40% apresentam insuficiência mitral associada.
Classificação Gravidade
Área valvar (cm2)
Pré-carga
Pressão AE
Débito cardíaco
Pressão venosa pulmonar
Vasoconstrição reflexa
Gradiente de pressão (mmHg)
DISPNEIA
FADIGA
Pressão arterial pulmonar
Pós-carga
Hiper-resistência arterial pulmonar fixa
Leve
1,5-2,5
5-10
Moderada
1-1,5
10-15
Importante
<1
> 15
CIANOSE
Tabela 13.1 Quantificação da estenose mitral.
Pressão capilar pulmonar
Insuficiência cardíaca direita HEPATOMEGALIA EDEMA MMII
Figura 13.2 Esquema da fisiopatologia da estenose mitral.
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168 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Quadro clínico
Complicações
Os pacientes costumam apresentar sintomas congestivos típicos de insuficiência cardíaca (IC) esquerda: dispneia progressiva aos esforços, ortopneia e dispneia paroxística noturna. Sintomas mais raros incluem hemoptise e rouquidão. Quando o quadro está mais avançado, os pacientes podem apresentar sintomas de IC direita por desenvolvimento de hipertensão pulmonar. Os sintomas de EM ocorrem por aumento da pressão no AE e pela diminuição do débito cardíaco, causados pela obstrução do enchimento do VE. Apesar do quadro de IC esquerda, o VE costuma ser normal. Como o VD acaba sendo responsável por compensar esse aumento de pressão no AE, há desenvolvimento de hipertensão pulmonar e, eventualmente, disfunção de VD. Ao exame, a ausculta costuma evidenciar um sopro diastólico em ruflar no foco mitral, logo após um estalido de abertura da valva mitral. Há hiperfonese de B1. Nos casos em que há hipertensão pulmonar, a P2 pode ser hiperfonética e pode haver VD palpável, além de jugulares distendidas e ascite.
Fibrilação atrial (FA) Com o aumento progressivo do AE, há predisposição do átrio para desenvolver FA. Cerca de 30% a 50% dos pacientes acabam desenvolvendo FA na evolução da EM. Grande parte dos casos têm apresentação com alta resposta ventricular (acima de 120 bpm), levando à descompensação da EM, como vimos acima. Não é incomum, para esses pacientes, a apresentação clínica em edema agudo de pulmão.
Fenômenos tromboembólicos Por volta de 10%-20% dos pacientes com EM evoluem com complicações tromboembólicas, especialmente quando há FA associada. Apesar de menos comum, pacientes em ritmo sinusal com átrios muito grandes também podem apresentar essa complicação (possivelmente, apresentam episódios de FA paroxística). Pacientes com embolias prévias ou com FA têm indicação de anticoagulação oral com cumarínicos.
Endocardite infecciosa Sempre que há valvopatia e o fluxo sanguíneo deixa de ser laminar, há risco de que em qualquer episódio de bacteremia, a bactéria se aloje nesse local, levando à endocardite.
Aorta
Diagnóstico Eletrocardiograma
Átrio esquerdo
Ventrículo esquerdo
B1
(A2) B2
Há sobrecarga de AE quando em ritmo sinusal.
Pode haver sobrecarga de VD com desvio do eixo para a direita e sobrecarga de AD quando o paciente já apresenta hipertensão pulmonar.
B1
Estalido de abertura
Figura 13.3 Na parte superior da figura, observamos as curvas de pressão obtidas simultaneamente do átrio esquerdo (AE) e do ventrículo esquerdo (VE), assim como a existência de um gradiente de pressão AE-VE (em vermelho). A pressão do átrio esquerdo pode ser medida diretamente (cateter colocado no AE por punção trans-septal) ou indiretamente (pressão capilar pulmonar). Na parte inferior da figura, demonstramos um sopro atrioventricular diastólico em ruflar, estalido de abertura mitral, reforço pré-sistólico.
Figura 13.4 O eletrocardiograma revela ritmo sinusal; indícios de sobrecarga atrial esquerda, notando onda P em DII de mais de 100 ms de duração e Morris positivo em V1. Observamos, ainda, sobrecarga de VD com desvio de eixo para a direita e para a frente. ECG típico de estenose mitral.
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169 13 Doenças valvares
Radiografia de tórax
Há aumento de AE.
Quando a EM é grave, pode haver abaulamento da artéria pulmonar e aumento de VD e AD.
Inversão do padrão de circulação pulmonar com edema intersticial e linhas B de Kerley podem estar presentes em quadros graves.
“Sinal da Bailarina”, retificação do brônquio fonte esquerdo que pode determinar a Síndrome de Ortner: rouquidão por compressão recorrente do nervo laríngeo contra a aorta pelo brônquio fonte esquerdo.
Figura 13.6 Aumento do átrio esquerdo (observe na figura B rechaçamento do esôfago contrastado), ventrículo direito e da artéria pulmonar (observe o arco médio da silhueta cardíaca na figura A). Congestão venocapilar pulmonar.
Ecocardiograma É um exame útil na avaliação da EM. Não só confirma o diagnóstico como também permite avaliar o grau de estenose por planimetria da área valvar e pelo gradiente de pressão entre o AE e o VE. Também define a presença de hipertensão pulmonar e disfunção do VD. Pode demonstrar trombos atriais.
Figura 13.5 Radiografia de tórax em PA mostrando aumento atrial esquerdo com imagem de duplo contorno (seta curva).
Além disso, o ecocardiograma é essencial na definição da técnica de correção da valvopatia. Por meio do escore Wilkins, é possível definir se a valva tem anatomia favorável à valvoplastia mitral por cateter-balão (VMCB), ou se é mais propícia à intervenção cirúrgica.
Figura 13.7 Aspecto em “domo” da valva mitral. Corte paraesternal-longitudinal. VD: ventrículo direito. VE: ventrículo esquerdo. AD: valva aórtica. AE: átrio esquerdo. MI: valva mitral.
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170 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Tratamento “Em primeiro lugar, para melhor definição terapêutica de qualquer valvopatia, devemos conhecer bem a história natural da doença e a etiopatogenia. O objetivo é sempre manter a qualidade de vida e preservar a função ventricular. Devemos evitar indicação prematura de próteses valvares, assim como evitar intercorrências (como um novo surto de Febre reumática ou endocardite infecciosa).” Figura 13.8 Fusão comissural mitral ao modo unidimensional. O folheto posterior acompanha o movimento do folheto anterior.
O escore de Wilkins avalia a mobilidade valvar, o espessamento dos folhetos, a calcificação e o comprometimento do aparelho subvalvar. A cada um desses fatores são atribuídos entre um a quatro pontos. Assim, escore ≤ 8 sugere que a valvoplastia percutânea é factível, ao passo que escore ≥ 12 sugere maior comprometimento valvar, portanto maior benefício cirúrgico. Os escores 9, 10 e 11 devem ser avaliados individualmente. É importante ressaltar que o único fator que contraindica isoladamente a VMCB é o comprometimento do aparelho subvalvar (quando ≥ 3). Eco-escore de Block-Wilkins
1 Mobilidade Espessamento Calcificação Aparelho subvalvar
2
3
4
Valva móvel
Valva imóvel
Fino
Severamente espessada
Sem ecos brilhantes Cordoalhas finas
Múltiplas áreas com ecos brilhantes Cordoalhas espessas, fusionadas e retiniadas
8 Ideal para valvotomia com cateter-balão
Figura 13.9 Critérios ecocardiográficos para a realização do escore de Wilkins.
Cateterismo cardíaco O cateterismo cardíaco na estenose mitral e em toda valvopatia pode ser indicado em 3 situações:
Como avaliação pré-operatória para investigação de doença isquêmica;
Quando há discordância entre o quadro clínico e os achados ecocardiográficos;
Como alternativa terapêutica (valvoplastia mitral por balão, implante percutâneo de prótese aórtica etc.)
Todos os pacientes devem receber profilaxia secundária para febre reumática. Pacientes assintomáticos, em ritmo sinusal, necessitam apenas de profilaxia para endocardite infecciosa. Quando iniciam sintomas leves, deve-se iniciar diuréticos para redução da pressão atrial esquerda e controle dos sintomas. Controle da frequência cardíaca com ß-bloqueadores pode auxiliar no controle dos sintomas. Quando o paciente apresenta FA, o controle de frequência deve ser feito com ß-bloqueadores (de preferência), digoxina (principalmente em casos de disfunção ventricular por outra causa associada como, por exemplo, insuficiência mitral, estenose aórtica) ou bloqueadores dos canais de cálcio (se houver contraindicação aos ß-bloqueadores), pois o aumento de frequência diminui o tempo de enchimento ventricular e piora os sintomas de congestão. A anticoagulação está indicada caso tenha havido embolia prévia, fibrilação atrial ou presença de trombo em átrio esquerdo. A partir de 1984, a VMCB foi incorporada à prática diária no tratamento de portadores selecionados de estenose mitral, requerendo definição rigorosa de critérios morfofuncionais. A avaliação morfológica da valva mitral por meio do ecocardiograma transtorácico é de suma importância (escore de Wilkins). Há correlação inversa entre o escore e o grau de sucesso na VMCB, com valores inferiores a oito associados ao sucesso imediato superior a 91%, sendo os maiores que nove, 60%, aproximadamente. A VMCB é um método menos invasivo que a cirurgia valvar, apresentando resultados semelhantes. No estudo de Cardoso et al., no qual foram comparados 81 pacientes com estenose mitral entre tratamento com comissurotomia aberta e VMCB com seguimento médio de cinco anos, a taxa de sucesso da VMCB foi de 100%, com baixo índice de complicações. As complicações mais frequentes são: tamponamento cardíaco, AVC isquêmico e insuficiência mitral importante. Assim, de forma geral, pacientes com escore até 8 serão submetidos à valvoplastia por cateter-balão, e aqueles com escore maior que 8 são submetidos a cirurgia.
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171 13 Doenças valvares
Figura 13.10 Imagem de angiografia cardíaca. Dilatação do anel mitral com o balão de Inoue em projeção AP. Recomendações para valvuloplastia por cateter-balão na estenose mitral Classe de Indicação recomendação
Nível de evidência
Classe I
Pacientes com EM moderada a importante, sintomáticos (CF II, III ou IV), com anatomia valvar favorável, na ausência de trombo atrial esquerdo ou insuficiência mitral moderada a importante.
A
Classe I
Pacientes com EM moderada a importante, assintomáticos, com anatomia valvar favorável à intervenção percutânea e HP (PSAP > 50 mmHg em repouso ou > 60 mmHg com atividade física), na ausência de trombo atrial esquerdo ou insuficiência mitral moderada a importante.
C
Classe IIa
Pacientes com EM moderada a importante, sintomáticos (CF III ou IV), com morfologia não ideal à VMCB e de alto asco ou com contraindicação à intervenção cirúrgica.
C
Classe IIb
Pacientes com EM moderada a importante, assintomáticos, com anatomia valvar favorável à intervenção percutânea e fibrilação atrial de inicio recente, na ausência de trombo atrial esquerdo ou insuficiência mitral moderada a importante.
C
Classe III
Pacientes com EM discreta.
C
Classe III
Pacientes com EM moderada a importante na vigência de trombo atrial esquerdo ou insuficiência mitral moderada a importante.
C
Tabela 13.2
Recomendações para tratamento cirúrgico na estenose mitral Classe de Indicação recomendação
Nível de evidência
Classe I
Pacientes com EM moderada a importante, sintomáticos (CF III ou IV), com contraindicações à VMCB.
B
Classe I
Pacientes com EM moderada a importante, sintomáticos (CF III ou IV), em centros sem B equipe treinada para realização de VMCB.
Classe IIa
Pacientes com EM moderada a importante associada a eventos embólicos recorren- C tes, apesar de adequada anticoagulação.
Classe IIb
Tratamento cirúrgico combinado da fibrilação atrial em pacientes com EM mode- C rada a importante, sintomática (CF III ou IV), quando indicado tratamento cirúrgico da EM.
Classe III
Pacientes com EM importante, assintomáticos (CF I ou II), com HP grave (PSAP > 80 mmHg) não candidatos à VMCB.
C
Classe III
Pacientes com EM discreta.
C Tabela 13.3
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172 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica Estenose mitral moderada / importante Assintomático
Sintomático (CF II - IV)
Hipertensão pulmonar significativa? PSAP > 50 mmHg em repouso ou > 60 mmHg ao esforço Não
Paciente elegível para VMCB?
Sim
Não Wilkins > 8 Trombo permanente em átrio esquerdo Insuficiência mitral moderada / importante
Sim
Acompanhamento clínico Paciente elegível para VMCB? Não
CF III - IV
CF II Sim
Classe IIa (C)
Classe I (A)
Classe I (C)
Indicação cirúrgica se hipertensão pulmonar grave (PSAP > 80 mmHg)
VMCB
Classe I (B)
Classe IIa (C)
Indicação cirúrgica individualizada (por exemplo, se PSAP > 80 mmHg)
Cirurgia
Figura 13.11
Quando o escore de Wilkins for desfavorável, há indicação cirúrgica para correção da EM. No tratamento cirúrgico, sempre que possível, deve-se preservar a valva realizando uma comissurotomia. Nos casos em que isso não é possível, pode-se realizar a troca valvar por prótese biológica ou metálica.
Insuficiência mitral (IM)
Mecanismo
PVM (1/4 dos casos)
Rotura de cordoalhas
Traumatismos
Rotura de cordoalhas Perfuração das cúspides
PVM (1/4 dos casos)
Rotura de cordoalhas
Complicação de comissuroto- Rotura de cordoalhas mia ou valvoplastia Perfuração de cúspides Tabela 13.3 Causas comuns de IM aguda. PVM: prolapso de válvula mitral; MP: músculos papilares.
Definição Insuficiência mitral é a situação na qual há refluxo de sangue do ventrículo esquerdo para o átrio esquerdo durante a sístole ventricular, por incapacidade de fechamento da valva mitral.
Etiopatogenia Devemos considerar inicialmente a distinção entre IM aguda e crônica. A insuficiência mitral aguda pode ser resultado de alterações mecânicas, como ruptura de cordoalhas tendíneas, ruptura ou disfunção dos músculos papilares ou ainda perfuração das cúspides. Causas de IM aguda
Causas de IM aguda (Cont.)
Mecanismo
Isquemia miocárdica (metade dos casos)
Rotura de MP Disfunção de MP
Endocardite infecciosa (1/4 dos casos)
Rotura de cordoalhas Perfuração das cúspides
Causas de IM crônica Causas inflamatórias
Doença reumática (+ COMUM) LES Escleroderma
Degenerativas
PVM (2ª + COMUM) Síndrome de Marfan Síndrome de Ehler-Danlos Pseudoxantoma elástico Calcificação do anel mitral
Infecciosas
Endocardites
Isquêmicas
Cardiopatia isquêmica
Miocardiopatias dilatadas e hipertróficas Trauma Congênitas
Defeitos valvulares estruturais e dos coxins endocárdicos Válvula em paraquedas ou arcada Transposição corrigida
Tabela 13.4 Causas de IM crônica.
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173 13 Doenças valvares Durante muitos anos, a FR foi considerada a principal causa da regurgitação mitral crônica. Hoje, nos países mais desenvolvidos e de clima temperado, o prolapso da valva mitral (PVM) e a doença aterosclerótica coronariana (disfunção ou fibrose dos MPS, deficiência contrátil do VE, alteração da geometria do VE) têm se tornado causas predominantes de incompetência valvar mitral. Segundo a nova diretriz brasileira de valvopatias (2011), a FR ainda é a causa mais frequente de insuficiência mitral no Brasil, ficando o PVM em segundo lugar. Contrariamente à EM, a IM da FR acomete mais homens do que mulheres. A dilatação do VE de qualquer etiologia (cardiomiopatia dilatada, por exemplo) também é causa frequente de insuficiência mitral.
Classificação A IM (a segunda lesão orovalvar mais comum na febre reumática) pode ser graduada de acordo com a quantidade de sangue que retorna ao AE em cada sístole. Este valor recebe o nome de fração regurgitante (FR), e a gravidade é definida de acordo com a tabela abaixo: IM mínima IM leve IM moderada IM importante
FR < 20% FR 20%-40% FR 40%-60% FR > 60%
Tabela 13.5 Quantificação da insuficiência mitral de acordo com a fração regurgitante.
Fisiopatologia Na insuficiência mitral aguda, tanto a pressão sistólica quanto o raio do VE caem agudamente. Segundo a lei de Laplace, existe uma tendência inicial à queda acentuada da tensão da parede ventricular, o que permite que a velocidade de encurtamento das fibras miocárdicas aumente. Temos, assim, aumento do débito cardíaco total, já que o VE ejeta o volume regurgitante mais o volume sistêmico. Assim, temos uma sobrecarga de volume associada a uma menor tensão da parede ventricular no esvaziamento, tornando mais favorável a adaptação à sobrecarga. Contudo, apesar do VE, inicialmente, compensar adequadamente a IM, com o tempo, o volume diastólico final vai se elevando e a tensão na parede ventricular volta ao normal, podendo ultrapassar esse limite. Nessas condições, aumenta o volume ventricular, que pode dilatar o anel mitral e criar um ciclo vicioso no qual a insuficiência mitral se autoperpetua.
Nos pacientes com IM crônica, tanto o volume diastólico do VE quanto a massa ventricular são aumentados, causando a típica hipertrofia excêntrica da sobrecarga de volume. O grau de hipertrofia é adequado à dilatação, de modo que a relação massa/volume é normal. Já na IM aguda, inicialmente, o VE se dilata mais rapidamente do que se hipertrofia, o que reduz a relação massa/volume (e, portanto, o VE fica com as paredes mais finas). Pacientes com IM geralmente apresentam pequenos aumentos na fração de ejeção enquanto estão na fase compensada, em decorrência da redução da pós-carga. Com o tempo, esses índices vão retornando aos níveis normais, e os pacientes vão desenvolvendo os sintomas progressivamente. Com a persistência da regurgitação mitral, a baixa impedância à ejeção do VE é contraposta por uma deterioração progressiva da função miocárdica, decorrente da sobrecarga diastólica crônica. Mesmo quando a ICC é franca, os índices de ejeção geralmente são pouco rebaixados, de maneira que valores normais da FE, na verdade, refletem disfunção moderada e valores baixos refletem disfunção importante. A complacência do AE e do leito venoso pulmonar é um importante determinador das repercussões hemodinâmicas e clínicas da IM. Podemos notar três subgrupos: quando ela é normal ou reduzida, ocorre grande elevação da pressão média do AE, com pouca dilatação do átrio. Por outro lado, quando a complacência do AE é muito aumentada, grandes dilatações nele repercutem com pequenas elevações da sua pressão média. É o caso das IMs crônicas com longa evolução. A parede do AE fica praticamente sem fibras musculares, substituídas por grandes quantidades de tecido fibroso, e o átrio perde as suas características elétricas e contráteis. Em repouso, a pressão e a resistência vascular pulmonar são normais ou pouco elevadas. Fibrilação atrial e baixo DC estão quase sempre presentes. Contudo, a situação mais comum é a de uma complacência atrial esquerda intermediária, com graus variáveis de dilatação associados à elevação significativa da pressão média do AE.
História natural É muito variável e depende da combinação do volume regurgitante, do estado funcional do miocárdio e da causa básica da insuficiência mitral. Em casos leves, os pacientes podem permanecer assintomáticos por muitos anos, sendo o processo evolutivo usualmente estável, só atingindo graus severos de regurgitação em uma porcentagem pequena desses casos. A progressão tende a ser mais rápida em pacientes com doenças do tecido conjuntivo (como a síndrome de Marfan) do que naqueles com regurgitação crônica de origem reumática. Normalmente, os sintomas da regurgitação mitral crônica só aparecem quando a disfunção ventricular se desenvolve. Graças à chamada hipertrofia ex-
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174 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica cêntrica, esta sobrecarga de volume é bem manipulada por um longo período. Hoje é difícil predizer o curso da IM crônica tratada clinicamente apenas, uma vez que o tratamento cirúrgico alterou de forma drástica a história natural da regurgitação mitral severa. Contudo, dados prévios à era cirúrgica revelam que cerca de 80% dos pacientes com IM severa sobreviviam por cinco anos após o diagnóstico, e apenas 60% após dez anos. A associação entre insuficiência e estenose mitral piora o prognóstico. Para os pacientes tratados clinicamente, a diferença arteriovenosa de oxigênio e o volume diastólico final do VE foram tidos como preditores inversamente relacionados à sobrevida.
a esquerda; impulsões paraesternais são visíveis, refletindo o enchimento sistólico do AE e simulando dilatação do VD. Na ausculta, a primeira bulha é hipofonética e a segunda é desdobrada (A2 precoce devido ao encurtamento na ejeção do VE pela baixa resistência). O componente P2 > A2 sugere presença de hipertensão pulmonar. Uma terceira bulha de VE (que não aumenta com a inspiração) sugere disfunção ventricular. O sopro sistólico é o principal achado do exame físico. Usualmente, começa logo após a B1, é holossistólico e pode, inclusive, mascarar o componente A2 da segunda bulha. É constante em intensidade, com característica regurgitativa e alta frequência, mais audível no ápex e com irradiação pela axila e região infraescapular esquerda.
Quadro clínico
No caso de ruptura das cordoalhas tendíneas do folheto posterior, o jato regurgitante é dirigido anteriormente para o septo interatrial, vizinho da raiz aórtica, sendo melhor audível, portanto, na base. Quando as cordoalhas do folheto anterior se rompem, o jato regurgitante se dirige para a parede posterior do AE, e o sopro pode ser transmitido para o dorso.
A natureza e a gravidade da sintomatologia da IM crônica são variáveis, dependendo da severidade da regurgitação, da velocidade de progressão, do nível de pressão arterial pulmonar e da presença de associação com outras afecções valvares, miocárdicas ou coronarianas. Pacientes com IM leve podem ser completamente assintomáticos durante toda a vida. A maioria dos pacientes com insuficiência mitral reumática tem apenas disfunção leve a moderada, a não ser que o processo progrida em decorrência de atividade reumática crônica, de endocardite infecciosa ou de ruptura de cordoalhas tendíneas. O desenvolvimento de fibrilação atrial também afeta a evolução clínica, porém de maneira muito menos drástica que na EM. O curso da doença também é bem menos dramático que o da EM, com menor tendência aos episódios de EAP, hemoptise e embolização sistêmica. Contudo, isso pode ser um ponto negativo, uma vez que, em muitos casos, o aparecimento dos sintomas de baixo débito ou hipertensão pulmonar pode estar acompanhado de comprometimento avançado e, às vezes, irreversível da função miocárdica. Os sintomas de baixo débito, como fraqueza crônica e fadiga, são mais frequentes que na EM. Os sintomas decorrentes de congestão pulmonar dependem da complacência do AE: pacientes com IM severa e AE grande, de grande complacência, têm menos sintomas congestivos, e a evolução para hipertensão e hiper-resistência pulmonar não é muito significativa. Os sintomas de falência ventricular direita podem ser encontrados tanto na IM crônica como na aguda, acompanhados por hiper-resistência vascular pulmonar.
Aorta
Átrio esquerdo Ventrículo esquerdo
B1
(A2) B2 B3
Figura 13.11 Na parte superior da figura, observamos as curvas de VE e AE obtidas simultaneamente, sendo constatado o aumento da onda “V” que coincide com a sístole ventricular (em vermelho), chamada de onda “V” gigante, característica da insuficiência mitral quando observada na curva de pressão de AE (ou na curva da PCP, medida indireta da pressão de AE). Na parte inferior, observamos o sopro holosistólico regurgitativo típico da insuficiência mitral.
Diagnóstico
Exame físico
Eletrocardiograma
O pulso arterial geralmente tem ascenso suave e volume normal, podendo ser diminuído quando há ICC. O ictus cordis é hiperdinâmico e desviado para
Os achados mais frequentes da IM crônica são o aumento do AE e a fibrilação atrial. Evidências de sobrecarga de VE ocorrem em 1/3 dos casos de IM importante.
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175 13 Doenças valvares Nos casos em que há hipertensão pulmonar, pode-se encontrar sinais de hipertrofia de VD. A IM aguda usualmente não altera o ECG, a não ser que seja de etiologia isquêmica.
Figura 13.12 ECG: fibrilação atrial com sinais de SVE.
Figura 13.14 Radiografia de tórax em PA: grande aumento do átrio esquerdo, dilatação do VE com cardiomegalia generalizada e pequeno botão aórtico (A). Grande aumento do átrio esquerdo deslocando o esôfago contrastado (B).
Na IM aguda ocorre pouca dilatação ventricular, porém a congestão pulmonar e o edema intersticial podem ser mais evidentes. Figura 13.13 ECG: ritmo sinusal e sinais de SVE.
Radiografia de tórax A cardiomegalia é comum na IM crônica, principalmente devido ao aumento do VE e do AE. Eventualmente, uma valva reumática pode apresentar calcificações ao raio X. Sinais de congestão pulmonar, como as linhas B de Kerley, são frequentes.
Ecocardiograma Nas IMs crônicas, o ecocardiograma mostra aumento de AE, VE dilatado frequentemente, com sinais de sobrecarga de volume, podendo fornecer a causa da disfunção como, por exemplo, o PVM, a doença reumática, a endocardite etc. Nas IMs agudas, mostra-se habitualmente um AE de dimensões normais (VE está da mesma forma), mas hipercontrátil, mostrando a causa da regurgitação como, por exemplo, uma anomalia de folheto, uma corda rompida, uma vegetação da endocardite etc. Também é útil na avaliação da função ventricular. O Doppler facilita a detecção da regurgitação por identificar fluxo turbulento no AE durante a sístole, assim como quantifica a severidade da regurgitação em função da distância que o jato atinge além da valva.
Cateterismo Apesar de poder definir o diagnóstico definitivo e o volume sistólico final, seu uso está restrito apenas aos pacientes em que há dúvidas diagnósticas com o uso do ecocardiograma. Também pode ser indicado para descartar necessidade de intervenção coronária combinada.
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176 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica não tolerem vasodilatadores, devem receber inotrópicos como a dobutamina e deve-se utilizar balão intra-aórtico quando necessário. Nestes casos, assim que possível, deve-se indicar o tratamento cirúrgico.
Tratamento Medicamentoso O mais importante nesses pacientes é a profilaxia para endocardite infecciosa e febre reumática, se for o caso. O uso de digital é reservado para o controle de frequência cardíaca em paciente em fibrilação atrial ou mesmo em ritmo sinusal, porém tendendo à taquicardia. O uso de diurético em pacientes hipervolêmicos é interessante para o controle de sintomas. Os vasodilatadores, sobretudo os inibidores de enzima conversora de angiotensina, têm seu uso restrito aos pacientes candidatos à cirurgia ou portadores de hipertensão arterial associada. O uso desses medicamentos pode dificultar a indicação operatória por causa da redução nos sintomas. Outrossim, uma vez indicada a cirurgia, a administração de vasodilatadores pode ser indicada para controle de sintomas até a cirurgia.
Cirúrgico Devemos pensar em cirurgia para um paciente com insuficiência mitral importante quando (Diretriz Brasileira de Valvopatias 2011):
Insuficiência mitral aguda grave Nesses casos, os pacientes costumam apresentar instabilidade hemodinâmica com sintomas importantes de congestão. Eles devem ser internados em unidade de terapia intensiva e tratados com vasodilatadores endovenosos, como o nitroprussiato de sódio. Caso
Figura 13.15 Ecocardiograma bidimensional com Doppler mostrando refluxo mitral para dentro do átrio esquerdo.
Recomendações da ecocardiografia na insuficiência mitral Classe de Indicação recomendação
Nível de evidência
Classe I
ETT no diagnóstico e na avaliação da morfologia e gravidade da IM, seu mecanismo B etiológico e suas repercussões hemodinâmicas.
Classe I
ETT na avaliação periódica semestral ou anual da função ventricular esquerda em pacientes com IM moderada ou importante, assintomáticos.
C
Classe I
ETT na reavaliação de pacientes com mudanças de sinais e sintomas.
C
Classe I
ETT após intervenção cirúrgica da valva mitral, como nova avaliação de base.
C
Classe I
ETT na avaliação das alterações hemodinâmicas e adaptação ventricular durante a gravidez.
C
Classe I
ETE perioperatório ou intraoperatório em pacientes com indicação de correção cirúrgica da IM.
B
Classe I
ETE na avaliação de pacientes com IM nos quais o ETT seja inconclusivo.
B
Classe I
Ecocardiografia sob estresse em pacientes com IM importante, assintomáticos, para C avaliação da tolerância ao esforço e efeitos na pressão pulmonar.
Classe IIa
ETE em pacientes com IM importante, assintomáticos, sob análise para correção cirúrgica conservadora.
Classe III
ETT na avaliação periódica de rotina em pacientes com IM discreta, assintomáticos, C com dimensões e função sistólica do ventrículo esquerdo normais.
Classe III
ETE na avaliação periódica de rotina ou para investigação em pacientes com IM de valva nativa assintomáticos.
C
C
Tabela 13.6 ETT: ecocardiografia transtorácica; ETE: ecocardiografia transesofágica; IM: insuficiência mitral.
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177 13 Doenças valvares Estenose mitral moderada / importante
Assintomático
Sintomático (CF II - IV)
Hipertensão pulmonar significativa? PSAP > 50mmHg em repouso ou > 60mmHg ao esforço Não
Paciente elegível para VMCB?
Sim
Não Wilkins > 8 Trombo permanente em átrio esquerdo Insuficiência mitral moderada / importante
Sim
Acompanhamento clínico Paciente elegível para VMCB? Não
CF III - IV
CF II Sim
Classe IIa (C)
Classe I (A)
Classe I (C)
Indicação cirúrgica se hipertensão pulmonar grave (PSAP > 80mmHg)
Classe IIa (C)
Indicação cirúrgica individualizada (por exemplo, se PSAP > 80mmHg)
VMCB
Classe I (B) Cirurgia
Figura 13.17 CF: classe funcional; VMCB: valvuloplastia mitral por cateter-balão; PSAP: pressão sistólica da artéria pulmonar. Insuficiência mitral primária importante Não
Sintomas?
Sim
Função ventricular?
Função ventricular?
FE > 60% FE < 60% e/ou e DsVE < 40 mm DsVE > 40 mm
FE > 30% FE < 30% e/ou e/ou DsVE < 55 mm DsVE < 55 mm
Classe I Possibilidade de preservação do aparelho subvalvar?
HP significativa? FA de início recente?
Não
Sim Classe IIa
Plástica mitral (preferencial) ou Troca valvar
Sim Classe IIa
Possibilidade de plástica?
Não
Tratamento clínico
Sim Não Classe IIa (não-reumáticos) Classe IIb (reumáticos) Reavaliação clínico-ecocardiográfica a cada 6 meses
Plástica mitral
Figura 13.18 FE: fração de ejeção; DsVE: diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo; HP: hipertensão pulmonar; FA: fibrilação atrial.
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178 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Acompanhamento dos pacientes operados
ção do ventrículo esquerdo), o reparo percutâneo da valva mitral é mais usado para os casos de prolapso da cúspide posterior da mitral.
Após a cirurgia valvar mitral, o acompanhamento médico é necessário para detectar falha precoce ou tardia do tratamento cirúrgico e reavaliar a função ventricular. Para os portadores de prótese biológica, o desgaste ocorre mais precocemente, devendo ser diagnosticado em fases iniciais de disfunção. Para os portadores de próteses metálicas, a anticoagulação é um cuidado fundamental, devendo ser orientada pelo tempo de protrombina, mantendo-se um INR entre 2,5 e 3,5. Em algumas situações de alto risco para eventos tromboembólicos, a Aspirina® na dose de 80 a 100 mg pode ser associada ao esquema anticoagulante. Outro cuidado fundamental é a profilaxia para endocardite, realizada em todos os portadores de valvopatia mitral antes de procedimentos específicos.
A anuloplastia pode ser realizada de forma indireta através da cateterização do seio coronário, que envolve cerca de 2/3 da circunferência do anel mitral. Ao colocar-se um dispositivo de metal no seio coronário que “aperta” o anel mitral, consegue-se diminuir o diâmetro do mesmo, consequentemente diminuindo o grau de regurgitação mitral (figura 2.18).
Prognóstico Em pacientes com IM grave sintomático, o prognóstico é ruim. A mortalidade, em média, é de 5% ao ano. As causas de óbito são insuficiência cardíaca e arritmias fatais. Outras complicações incluem fibrilação atrial com eventos embólicos, acidente vascular cerebral isquêmico e endocardite. O prognóstico da IM, relacionado ao prolapso de valva mitral e doença reumática, depende do grau de regurgitação mitral. Na IM isquêmica, a evolução depende da doença coronária subjacente. Na IM secundária, à dilatação do anel valvar em associação com cardiomiopatia dilatada, a função ventricular é o parâmetro mais importante na definição do prognóstico.
Perspectivas no tratamento percutâneo da valvopatia mitral Atualmente, observa-se um avanço surpreendente nas intervenções percutâneas em valvulopatias. Em 2010, o PARTNER trial mostrou a relevância do implante percutâneo de prótese aórtica em pacientes com estenose aórtica crítica sem condições de realizar cirurgia cardíaca. Agora, o tratamento da insuficiência mitral através de cateter também vem ganhando espaço na literatura. Existem duas formas de se corrigir, ao menos parcialmente, a insuficiência mitral através do cateterismo. A primeira é através da anuloplastia do anel mitral, e a segunda através do reparo da cúspide. Enquanto a anuloplastia é usada basicamente para insuficiência mitral funcional (aquela secundária a dilata-
Figura 13.18 Anuloplastia mitral percutânea.
Por fim, a forma de se realizar reparo da cúspide de forma percutânea é através da colocação de um clip (Mitraclip) que liga as pontas das duas cúspides da valva mitral, formando uma nova estrutura com 2 orifícios ao invés de um.
Prolapso da valva mitral (síndrome de Barlow) O prolapso da valva mitral (PVM) é uma síndrome extremamente comum, acometendo entre 5% e 10% da população geral. Normalmente, os folhetos da valva mitral competente podem sofrer uma protrusão em direção ao AE durante a sístole ventricular. No PVM, ocorre uma exacerbação dessa protrusão, de maneira que as bordas dos folhetos podem, inclusive, não se coaptar, causando uma regurgitação mitral.
Etiologia A síndrome do PVM, dita primária, parece ter importante caráter hereditário, com transmissão autossômica dominante e penetrância variável. Na maioria dos casos, a degeneração mixomatosa (o achado histológico típico do PVM) é idiopática.
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179 13 Doenças valvares Pode, também, estar associada às doenças congênitas, como: síndrome de Marfan, Ehler-Danlos, Osteogenesis imperfecta, distrofia muscular de Duchenne, distrofia miotônica, síndrome de Wolf-Parkinson-White, pseudoxantoma elástico, síndrome de Turner, cardiopatias congênitas do tipo CIA, CIV ou PDA, anomalia de Ebstein, transposição corrigida, doença de Von Willebrand, síndrome da coluna reta, anomalias esqueléticas do tórax, síndrome do QT longo congênito, ceratocone e cardiomiopatia hipertrófica, entre outras.
Classificação do prolapso da valva mitral A- Prolapso primário
Doença arterial coronária Doença reumática Redução da cavidade ventricular esquerda (cardiomiopatia hipertrófica, comunicação interatrial, hipertensão pulmonar, anorexia nervosa, desidratação, tórax plano)
Os pacientes assintomáticos, sem evidências de arritmias, com segmentos ST normais e sem sinais de regurgitação mitral, têm excelente prognóstico. Os pacientes com IM, arritmias e fenômenos tromboembólicos têm pior prognóstico relacionado a essas complicações.
Diagnóstico
C- Variante normal
Em crianças, o prognóstico é excelente e, na grande maioria das vezes, o paciente fica assintomático, sem nenhuma manifestação clínica ou laboratorial por muitos anos. Em 10 a 15 anos, 15% dos pacientes desenvolvem regurgitação mitral progressiva e insidiosa. Em muitos casos, a ruptura de cordoalhas tendíneas ou o desenvolvimento de endocardite infecciosa são responsáveis pela piora da regurgitação mitral e exacerbação do quadro clínico. A evolução para IM severa é mais frequente em homens com mais de 50 anos; a incidência de endocardite é maior nos pacientes que apresentam sopro sistólico, sendo extremamente rara quando existe apenas o click mesossistólico (atenção!). O desenvolvimento de fenômenos embólicos cerebrais é encontrado nessa síndrome. A perda da continuidade endotelial valvar e a infiltração do endotélio subjacente por tecido mixomatoso podem iniciar o processo de agregação plaquetária, levando à formação de complexos fibrinoplaquetários.
Familiar Não familiar Síndrome de Marfan Outras colagenoses
B- Prolapso secundário
História natural
Ausculta imprecisa Falso prolapso ecocardiográfico Tabela 13.7
Patologia O PVM é mais comumente associado à degeneração mixomatosa, de maneira que a camada mediana do folheto valvar torna-se rica em tecido mixomatoso frouxo e mucopolissacarídeos ácidos.
Fisiopatologia Os folhetos valvares, ao prolapsarem para dentro do AE, podem não se coaptar adequadamente durante a sístole ventricular e promover uma regurgitação do sangue do VE para o AE, caracterizando uma insuficiência valvar com todos os fenômenos já descritos para a IM crônica. O PVM pode cursar, também, com o desenvolvimento de regurgitação mitral aguda, que geralmente decorre de ruptura de cordoalhas tendíneas.
Já foram propostos critérios diagnósticos para a síndrome de PVM; no entanto, ainda há muita discussão e esses critérios nem sempre são aceitos. Apesar da grande controvérsia, alguns sinais e sintomas foram associados ao PVM: ansiedade, palpitações, dor precordial, inversão de onda T nas derivações DII, III, aVF no eletrocardiograma, escoliose, pectus escavatum, hipomastia. Como exemplo, podemos citar a associação de transtorno do pânico e/ou ansiedade com o PVM. O mais provável é que pacientes ansiosos e/ ou com síndrome do pânico sejam mais investigados que a população em geral, e por isso seja feito mais frequentemente o diagnóstico de PVM. O diagnóstico é clínico/ecocardiográfico. A ausculta cardíaca revela, em geral, click protomesossitólico móvel, com ou sem sopro mesotelessistólico ou sopro ”piado”. A manobra de valssalva diminui o tamanho dos ventrículos e afasta de B1 o click do PVM. Só pacientes com achados propedêuticos compatíveis devem ser submetidos ao ecocardiograma, para avaliar a morfologia da valva e eventual regurgitação mitral associada. O Ecocardiografia bidimensional típico revela: deslocamento superior sistólico importante de ambos os folhetos mitrais para o AE com coaptação das bordas acima do plano do anel valvar; ruptura de cordoalhas, regurgitação ao Doppler ou dilatação do anel valvar.
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180 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Tratamento A grande maioria dos pacientes permanece assintomática e requer apenas observação clínica periódica. Aqueles sem sopro ou refluxo ao ecocardiograma, assintomáticos e sem arritmias ao eletrocardiograma, devem ser tranquilizados e encorajados a levar uma vida normal devido ao excelente prognóstico e à natureza usualmente benigna da evolução da síndrome. Pacientes oligossintomáticos, cujas principais queixas são de natureza psiquiátrica (ansiedade, transtorno do pânico) ou disautonômica, ou que exibem algum tipo de arritmia não complexa (extrassístole supraventricular/ventricular simples, infrequente e isolada, sem fenômenos repetitivos), demonstram boa resposta à administração de β-bloqueadores e apresentam excelente prognóstico. Esse grupo de medicamentos favorece não só a melhora das palpitações como, também, a redução da intensidade e da frequência do desconforto torácico ou da dor torácica atípica. Não há tratamento farmacológico definido para a insuficiência mitral crônica assintomática. Embora exista racional fisiopatológico para o uso de vasodilatadores, a evidência científica atual não demonstra benefícios clínicos. Pequenos estudos não comprovaram melhora significativa dos volumes ventriculares e do grau de regurgitação mitral com o uso de Inibidores da Enzima de Conversão da Angiotensina (Ieca). Além disso, essa terapia pode mascarar a evolução clínica desses pacientes por abrandar o surgimento de sintomas, acarretando atraso na indicação do tratamento cirúrgico. O uso de vasodilatadores e diuréticos é recomendado na insuficiência mitral crônica sintomática, objetivando, exclusivamente, a melhora de classe funcional, enquanto o paciente aguarda o procedimento cirúrgico, sem demonstração de benefícios na mortalidade. Medidas preventivas em relação à endocardite infecciosa são fundamentais para evitar complicações catastróficas, que podem mudar radicalmente o panorama de uma doença benigna, porém potencialmente sujeita a complicações graves, a exemplo da ruptura de cordoalha e insuficiência mitral aguda. A antibioticoterapia profilática no PVM está diretamente relacionada à existência ou não de refluxo valvar clinicamente detectável. A ausência de sopro audível deve ser interpretada com cautela na exclusão de refluxo, dado o caráter dinâmico da insuficiência mitral no PVM, que pode ser intermitente. Pacientes com refluxo leve pelo estudo ecocardiográfico não deverão mais fazer profilaxia antimicrobiana antes de procedimentos de risco (manipulações dentárias etc.), recomendando-se, somente, acompanhamento clinicoecocardiográfico regular (a cada 2 anos). Já aqueles com refluxo mo-
derado ou importante, além da profilaxia para endocardite, deverão ser submetidos à reavaliação clínica e ecocardiográfica mais frequente, de preferência anual, até que se considere a possibilidade de indicação cirúrgica. É importante ressaltar que as mais novas diretrizes americanas e europeias não consideram mais o PVM como uma indicação para profilaxia de EI; no entanto, a diretriz brasileira e interamericana de valvopatias 2011 ainda manteve a indicação de profilaxia nos pacientes com PVM com insuficiência. Atenção especial deve ser dada ao controle rigoroso dos níveis de pressão arterial sistêmica desses pacientes, evitando-se o aumento dos níveis tensionais que possam agravar o grau de refluxo do tipo funcional, ou contribuir para ocorrência de ruptura de cordoalha por causa do aumento da tensão intracavitária. Para pacientes com episódios isquêmicos cerebrais transitórios embólicos relacionados ao PVM, recomenda-se uso, a longo prazo, da Aspirina® (50 a 365 mg/dia), desde que não haja fibrilação atrial ou trombos em átrio esquerdo/apêndice atrial esquerdo ou forame oval patente, detectados através do ecocardiograma transesofágico. Anticoagulante oral se reserva apenas quando há recorrência de eventos neurológicos transitórios apesar do uso de Aspirina®, ou após acidente vascular cerebral embólico (sobretudo em vigência de fibrilação atrial sustentada) em pacientes idosos (> 65 anos), ou em presença de hipertensão arterial ou insuficiência cardíaca. Alguns autores sugerem ainda o uso profilático de Aspirina® em baixas doses para eventos embólicos em indivíduos com PVM assintomático, com espessamento/redundância valvar ao ecocardiograma. A indicação cirúrgica deve ser considerada nos casos com insuficiência mitral crônica acentuada, cuja decisão segue os mesmos parâmetros clínicos e de exames complementares que norteiam as outras etiologias de insuficiência mitral, incluindo sintomas de insuficiência cardíaca congestiva ou evidências de disfunção ventricular esquerda progressiva. O desenvolvimento de hipertensão pulmonar em repouso ou induzida pelo esforço pode pesar na decisão cirúrgica. A necessidade de intervenção cirúrgica ocorre em fases avançadas da doença, quando já existe intensa degeneração da estrutura valvar, ou em estágios excepcionalmente precoces, quando há complicações, como a ruptura de corda tendínea (flail) ou endocardite infecciosa refratária à antibioticoterapia. Devido à grande taxa de sucesso da plastia mitral, a possibilidade de intervenção precoce vem sendo cada vez mais considerada. A opção pode ser pela plastia com reconstrução da anatomia da valva, ou pela substituição por prótese mecânica ou biológica. Sempre que possível, a depender da anatomia valvar e da experiência da equipe cirúrgica envolvida, deve-se optar pela tentativa de pre-
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181 13 Doenças valvares servação da estrutura valvar, uma vez que ela oferece menor mortalidade cirúrgica e melhor conservação da função ventricular. Além disso, previne complicações precoces e tardias associadas às próteses valvares, diminui a necessidade de anticoagulante oral e melhora a sobrevida a longo prazo. Segundo a nova diretriz brasileira de valvopatia (2011) é recomendação IIa: plástica da valva mitral em pacientes com IM crônica por prolapso, importante, assintomáticos, com FE ≥ 60% e DsVE < 40 mm, desde que realizada em centros experientes, nos quais a taxa de sucesso estimada da plástica é maior que 90%. A possibilidade de transmissão familiar pode ser investigada naqueles pacientes com PVM e alto risco de complicações, justificando o rastreamento nos parentes de primeiro grau pelos exames clínico e ecocardiográfico.
Estenose aórtica (EA) A valva aórtica localiza-se entre o VE e a aorta (Ao). Ela se abre na sístole, permitindo a ejeção ventricular pela saída de sangue do VE para a Ao. Na diástole, ela se fecha, impedindo que o sangue retorne da Ao para o VE. A valva aórtica é composta de um anel fibroso e por três folhetos ou cúspides: o folheto esquerdo, o folheto direito e o folheto posterior. Por definição, a EA é uma condição em que há restrição à abertura dos folhetos valvares, com redução de sua abertura e formação de gradiente entre o VE e a Ao. Normalmente, a área valvar aórtica está entre 2,5 a 3,5 cm2.
Existem três principais etiologias para a EA A EA é a doença valvar aórtica adquirida mais frequente e tem distribuição bimodal, um primeiro pico em pacientes jovens com valva aórtica bicúspide ou com valvopatia reumática e um segundo pico em pacientes idosos com EA degenerativa (aterosclerótica). Com o envelhecimento populacional, deverá aumentar em incidência e importância nas próximas décadas. 1. valva aórtica bicúspide, que acomete 1%2% da população. Costuma ser a causa mais comum em crianças e adolescentes. Por sua anatomia alterada, evolui mais precocemente com calcificação e degeneração. 2. secundária à doença reumática. Está invariavelmente associada à valvopatia mitral, e apesar da diminuição de sua incidência nos países desenvolvidos, continua frequente no Brasil e demais países da América Latina, levando ao acometimento de pacientes mais jovens. Ocorre acometimento preferencial das bordas dos folhetos. 3. aterosclerótica. É a causa mais comum em idosos (está presente em 4,5% da população acima de 75 anos) e nos pacientes de países desenvolvidos. Apesar de ter causa desconhecida, fatores de risco para aterosclerose, como o diabetes e as dislipidemias, também predispõem à degeneração crônica da valva aórtica. Sua apresentação associada à coronariopatia é comum.
Valva aórtica normal, tricúspide
Figura 13.20 Estenose aórtica de etiologia aterosclerótica. A seta indica calcificações.
Valva aórtica tricúspide com folhetos espessados Valva aórtica bicúspide com folhetos espessados
Figura 13.19 Esquema mostrando a forma anatômica da valva aórtica normal, da valva aórtica com folhetos espessados e da valva aórtica bicúspide.
Classificação A EA pode ser classificada quanto à gravidade, de acordo com a área valvar e o gradiente de pressão transvalvar medidos pelo ecocardiograma ou por cateterismo.
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182 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica Gravidade
Área valvar (cm2)
Discreta Moderada Importante
>1,5 0.8-1,5 < 0,8 (<0,6 cm2/m2)
Gradiente médio VE-Ao (mmHg) <25 25 - 40 > 40
Velocidade do jato de ejeção aórtico (m/s) < 3,0 3,0 – 4,0 > 4,0
PD2VE/PCP (mmHg) NL NL > 15-20
Tabela 13.8 Quantificação da estenose valvar aórtica. PD2VE: Pressão diastólica final do VE; PCP: Pressão capilar pulmonar.
A EA leva a um grande aumento da pós-carga do coração. Caso não houvesse mecanismos compensatórios, isso levaria à queda importante do débito cardíaco. No entanto, como sua instalação é lenta, o ventrículo desenvolve uma hipertrofia compensatória, levando a um aumento da contratilidade miocárdica, que atua compensando o aumento da pós-carga. Por esses motivos, a EA tem um longo período em que o paciente é assintomático. Este mecanismo compensatório leva à formação de um gradiente de pressão entre o VE e a raiz da aorta durante a sístole. Quanto maior o grau da estenose, maior deverá ser o gradiente para manutenção do débito. Além disso, para um mesmo grau de estenose, quanto maior o débito, maior será o gradiente. Vale lembrar que, quando o paciente já tem disfunção ventricular, o débito estará reduzido, da mesma forma que o gradiente. Nesses casos, faz-se necessário o cálculo da área valvar para não subestimarmos o grau da estenose. Com a evolução clínica deste estado de compensação, desenvolve-se um processo lento de apoptose miocárdica, fibrose intersticial e de desproporção oferta x demanda de oxigênio, levando à isquemia miocárdica. A partir de um certo ponto, esse mecanismo compensatório não é mais suficiente, e o paciente começa a apresentar sintomas. Esses sintomas decorrem de três consequências da descompensação: desenvolvimento de insuficiência cardíaca, isquemia miocárdica e incapacidade de aumentar o débito cardíaco. 1. Insuficiência cardíaca: pela lesão miocárdica, há diminuição da complacência ventricular. Com isso, há aumento da pressão diastólica final do VE, aumento da pressão de átrio esquerdo, congestão pulmonar e dispneia. Normalmente, esse quadro se desenvolve da mesma forma que os quadros de insuficiência cardíaca diastólica. 2. Isquemia miocárdica: há isquemia por desproporção na oferta x demanda de oxigênio devido à hipertrofia ventricular. Há piora do quadro aos esforços, quando há maior demanda.
3. Incapacidade de aumentar o débito cardíaco: esses pacientes podem estar assintomáticos em repouso. No entanto, tipicamente apresentam síncope aos esforços, uma vez que não são capazes de aumentar o débito cardíaco devido à EA. Além disso, há diminuição da resistência vascular periférica aos esforços por vasodilatação nos territórios musculares. Com isso, há queda da pressão arterial e hipoperfusão cerebral.
História clínica Os pacientes costumam ser assintomáticos até que a área valvar diminua em até 0,8 cm2. Nos pacientes com EA por calcificação, isso costuma ocorrer após a sexta década de vida. Classicamente, os pacientes começam a apresentar angina aos esforços de forma progressiva, dispneia aos esforços e episódios de síncope. A angina do peito assemelha-se à observada nos coronariopatas, ou seja, uma dor constritiva ou em peso sobre o precórdio com duração média de minutos, podendo irradiar-se para a região lateral esquerda do pescoço ou para o braço esquerdo, piorando com o esforço físico e melhorando com o repouso. A síncope, geralmente ortostática, ocorre comumente pela perfusão cerebral reduzida durante o exercício. A insuficiência cardíaca congestiva acontece nos estágios avançados da doença, quando ocorre grave comprometimento da função contrátil do miocárdio, aparecendo os sintomas e sinais característicos da insuficiência cardíaca congestiva, ou seja, dispneia aos esforços, ortopneia e dispneia paroxística noturna. 100 Sobrevida (%)
Fisiopatologia
80
Início de sintomas importantes Angina Síncope Insuficiência cardíaca
Periodo latente
60
0
40
Média de idade quando do óbito
20 0
2 4 6 Sobrevida média (anos)
40
50
60
70
80
Idade (anos)
Figura 13.21 História natural da evolução na EA.
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183 13 Doenças valvares Ao contrário da estenose mitral, que acarreta sintomas quase imediatamente após o seu desenvolvimento, pacientes com estenose aórtica grave podem ser assintomáticos por muitos anos, apesar da presença de obstrução importante. Todavia, uma vez que os pacientes com estenose aórtica tornam-se sintomáticos, com angina ou síncope, a sobrevida média é de dois a três anos, enquanto que na insuficiência cardíaca é de um ano e meio. O tratamento cirúrgico com troca da valva reverte a evolução dessa doença.
Para o pescoço
B4 B1
P2 A2
Clique de ejeção
A
Exame físico O pulso arterial periférico é inicialmente normal. Porém, à medida que a estenose torna-se importante, adquire característica peculiar, com aparecimento lento, sustentado e de baixa amplitude (pulsus parvus et tardus). O exame do precórdio revela um ictus cupuliforme, com frêmitos sistólicos nas regiões do foco aórtico e aórtico acessório. Na ausculta cardíaca, observa-se que a 1ª bulha é praticamente normal ou abafada e precedida da 4ª bulha. A 4ª bulha ocorre em função da contração vigorosa do átrio esquerdo. A 2ª bulha é desdobrada, mas pode ser única quando há calcificação que imobiliza a valva ou quando o prolongamento da sístole ventricular faz com que A2 e P2 sejam simultâneas. O sopro de ejeção é o dado mais característico e constante da estenose aórtica, com alta frequência vibratória, melhor audível no segundo espaço intercostal esquerdo, mesossistólico, irradiando para a fúrcula e ambas as carótidas. O sopro, por apresentar alta frequência sonora, pode irradiar para o ápice, dando a falsa impressão de dois sopros distintos – esse achado auscultatório recebe o nome de fenômeno de Gallavardin. Nos casos graves de disfunção ventricular, o sopro sistólico pode diminuir ou mesmo desaparecer.
Para a axila
B1
B
B2
B3
Figura 13.23 Comparação entre o sopro sistólico da estenose aórtica (A) e o sopro sistólico da insuficiência mitral (B). Note que o sopro termina após a B2 e a presença de uma B3.
Aorta
Átrio esquerdo Ventrículo esquerdo
B1
A
(A2) B2
Clique de ejeção
B
Figura 13.22 A: traçado do pulso carotídeo de um indivíduo normal. B: traçado de um pulso carotídeo de um paciente com estenose aórtica. Observe o atraso na onda ascendente e a linha tracejada característica.
Figura 13.24 Na parte superior da figura, observamos as curvas de pressão aórtica (AO) e ventricular (VE) obtidas simultaneamente em um paciente com estenose aórtica. Assim, obtemos um gradiente de pressão sistólica VE-Ao (área em vermelho) onde a pressão ventricular é maior que a pressão na aorta. Na parte inferior da figura, temos a representação do Sopro sistólico ejetivo da estenose aórtica.
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184 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Ecocardiograma
Diagnóstico Eletrocardiograma Mais de 85% dos casos de AE grave apresentam sinais de sobrecarga ventricular esquerda. Além do aumento de amplitude do QRS, podem estar presentes inversão de onda T e depressões de segmento ST em derivações, tendo complexo QRS positivo e alterações acentuadas da repolarização ventricular (onda T negativa profunda e com variável tendência à simetria).
É um exame importante para pacientes com EA. É extremamente útil para calcular o gradiente pressórico transvalvar e a área valvar aórtica, além de avaliar a anatomia valvar, identificando calcificações e valva aórtica bicúspide. Também é utilizado para avaliar o grau de hipertrofia ventricular esquerda e a função do VE.
Figura 13.25 ECG mostrando sobrecarga ventricular esquerda. Observe ondas R importantes e S profundas em derivações V1 e V2, onda R ampla em V5 e alterações importantes da repolarização ventricular.
Radiografia de tórax Os sinais radiológicos de aumento do VE não são frequentes até que a EAo se torne importante, uma vez que a hipertrofia é tipicamente concêntrica. Pode-se encontrar calcificação da valva aórtica em alguns casos. A dilatação da aorta ascendente e o alongamento e dilatação do arco são as alterações radiológicas frequentes.
Figura 13.26 Radiografia de tórax demonstrando aumento da área cardíaca e dilatação aórtica pós-estenótica (setas).
Figura 13.27 Imagens de ecocardiograma transeso fágico de um paciente com valva aórtica bicúspide. A: enquadramento sistólico mostrando dois folhetos de valva aórtica (VA) com abertura ovoide (seta). B: enquadramento diastólico mostrando uma linha de coaptação (seta).
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185 13 Doenças valvares
Cateterismo cardíaco Deve ser indicado à maioria dos pacientes. A maior exceção compreende jovens com estenose congênita. A forma mais comum de EA, aquela por aterosclerose, costuma acometer idosos e coronariopatas (é associada à coronariopatia em até 30% dos casos). Por este motivo, esses pacientes devem realizar cateterismo para avaliação de coronárias nos casos em que há indicação de troca valvar. No cateterismo, é importante a avaliação do gradiente de pressão VE-Ao, da pressão diastólica final de VE (PD2VE), da pressão capilar pulmonar (PcP) e da pressão sistólica do VE (PSVE).
Indicações de cineangiocoronariografia antes de operar qualquer valvopatia
sistêmica ou pulmonar, devendo ser usados cautelosamente, pois podem precipitar sinais de baixo débito e hipotensão ortostática pela hipovolemia. No tratamento da hipertensão arterial sistêmica, cuidado especial deve ser tomado na administração de vasodilatadores. Adultos com indicação cirúrgica para EAo devem ser submetidos à coronariografia para diagnóstico de DAC associada. Menos de 10% dos pacientes com EAo desenvolvem FA ou flutter, já que o aumento do átrio esquerdo só ocorre de forma tardia na história natural da EAo. A taquicardia e a perda da contração atrial levam à rápida deterioração hemodinâmica, à hipotensão e angina. O tratamento deve ser imediato, com cardioversão elétrica.
Homem > 40 anos Mulher na pós-menopausa ou com 2 ou mais fatores de risco para doença cardiovascular Sintomas sugestivos de Doença arterial coronária Tabela 13.9 Diretriz Brasileira e Interamericana de Valvopatias (2011)
Tratamento clínico Orientar o paciente para evitar esforços físicos vigorosos – essa orientação não é válida para portadores de estenoses leves assintomáticas. Observação ecocardiográfica: na estenose leve, deve ser feita a cada dois anos; na estenose moderada à importante assintomática, deve ser feita no mínimo anualmente, ou até semestralmente, para avaliar a função de VE. Teste de esforço é contraindicado aos pacientes sintomáticos, mas pode ser realizado em pacientes assintomáticos para avaliação da capacidade máxima de esforço. O tratamento farmacológico na EA é voltado ao alívio de sintomas em pacientes não candidatos a tratamento cirúrgico ou como ponte para o tratamento cirúrgico; ao tratamento de doenças associadas à estenose aórtica e à profilaxia de Endocardite Infecciosa. No paciente com sintomas decorrentes da EA, o tratamento é eminentemente cirúrgico. Não há evidências suficientes que embasem o uso de alguma medicação com o objetivo de retardar a evolução da EAo, como as estatinas. O digital está indicado apenas em pacientes com disfunção ventricular. Os diuréticos devem ser usados apenas quando ocorrer sinais de congestão
Tratamento cirúrgico Crianças com aorta bicúspide Comissurotomia aórtica (por balão, quando possível) está indicada mesmo em assintomáticos, quando for severa. Como a valva não retorna a uma condição absolutamente normal, é esperado que, com o passar dos anos, ocorra calcificação. Após 10 a 20 anos, é esperada reestenose, podendo ser, então, necessária a substituição por prótese valvar.
Adultos A Cirurgia Valvar Aórtica ainda é a única terapêutica efetiva a longo prazo no alívio da sobrecarga ventricular esquerda em pacientes com EAo importante. Entretanto, em decorrência do risco operatório e das complicações imediatas e tardias das próteses valvares, o momento ideal para a indicacão cirúrgica é muitas vezes controverso. A plastia valvar não possui bom resultado e a substituição por prótese é a indicação de eleição. Em pacientes sintomáticos e com EA importante, a cirurgia valvar aórtica está indicada, sendo um procedimento que promove melhora dos sintomas e aumento da sobrevida. Em pacientes assintomáticos, fica o dilema: manter observação clínica ou indicar cirurgia profilática? É uma decisão difícil, uma vez que o paciente tem um risco de morte de 3-4% relacionado à cirurgia e de 1% ao ano devido à presença da prótese. Em primeiro lugar, devemos investigar os pacientes com EAo importante, nos quais há dúvidas a respeito da real ausência de sintomas, indicando realização de teste de esforço no sentido de se assegurar que eles realmente permanecem assintomáticos e que o comportamento da pressão arterial seja normal durante o exame (não ocorre hi-
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186 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica potensão ou síncope). Outrossim, devemos procurar indentificar os pacientes com EAo importante assintomáticos de maior risco, e que, portanto, se beneficiam da cirurgia, evitando a morte súbita e/ou o dano irreversível ao miocárdio. A disfunção ventricular (FE < 50%) e a presença de sintomas durante teste ergométrico são indicações de cirurgia no paciente assintomático já bem estabelecidas e devem ser lembradas. Outros fatores de maior risco que devem ser levados em consideração na decisão cirúrgica são:
Teste de esforço com sintomas evidentes ou hipotensão ao esforço;
Área valvar aórtica menor ou igual a 0,7 cm2 ou área valvar indexada menor ou igual a 0,4 cm2/ m2; velocidade de jato ≥ 5 m/s;
Calcificação valvar aórtica moderada a intensa se associada com rápido aumento da velocidade de fluxo transvalvar aórtico;
Hipertrofia ventricular acentuada (≥ 15 mm);
Doença coronariana associada;
Disfunção ventricular sistólica;
Elevação do BNP.
De acordo com a nossa diretriz (2011), em caso de necessidade de outra cirurgia cardíaca (revascularização miocárdica, outra troca valvar) ou da aorta torácica, está indicada troca valvar aórtica em caso de estenose moderada ou importante. O prognóstico operatório é bom naqueles com função ventricular preservada, com risco global menor que 5% (e menor que 1% nos pacientes com menos de 70 anos). Aumentam o risco a disfunção ventricular, a idade avançada, a classe funcional alta e a presença de coronariopatia associada. A sobrevida de 10 anos após a cirurgia chega a 85%.
Perspectivas no tratamento percutâneo da estenose aórtica A estenose aórtica apresenta comprometimento insidioso e, quando sintomático, evolui com até 50% de mortalidade em 2 anos, sinalizando, assim, a necessidade de tratamento cirúrgico. No entanto, em até 30% dos pacientes, o tratamento cirúrgico não é uma opção devido à idade muita avançada, à disfunção ventricular ou múltiplas comorbidades, restando apenas
o tratamento clínico e/ou valvuloplastia aórtica. Neste contexto, surgiu o PARTNER Trial – coorte B, publicado em outubro de 2010 no NEJM, que avaliou o implante de valva aórtica percutânea (Sapien – Edward Lifesciences) para estenose aórtica em pacientes não candidatos à cirurgia cardíaca. Edwards SAPIEN THV
Tri-leafted bovine pericardial tissue Balloon expandable stainless stell treated with ThermaFix Process stent for sutureless implantation
Figura 13.28
O estudo foi multicêntrico e utilizou como critérios de inclusão pacientes com estenose aórtica importante sintomática (área < 0,8 cm2 / gradiente VE-Ao: > 40 mmHg / Velocidade do Jato > 4 mm/s) com os todos pacientes em classe funcional (NYHA) maior que II e com risco cirúrgico proibitivo pelos escores tradicionais (mortalidade em 30 dias estimada em > 50%). Os dados da coorte B revelaram que o implante percutâneo de valva aórtica é superior ao tratamento clínico associado à valvuloplastia por balão em pacientes não candidatos à cirurgia, reduzindo a mortalidade por qualquer causa em 46% (NNT = 5, desfecho primário), desfecho combinado de óbito e re-hospitalização em 54% (NNT = 3,4, desfecho primário), e, como desfecho secundário, melhora dos sintomas e teste da caminhada de 6 minutos. Como complicação principal, foi evidenciado aumento do risco de AVC (relacionado ao procedimento) que, futuramente, pode ser controlado com dispositivos de implante percutâneo menos calibrosos e devices de proteção cerebral. O objetivo de avaliar a superioridade do implante percutâneo nesta população foi alcançado e com NNT baixos, evidenciando o benefício e novo panorama no tratamento desta patologia. Mais recentemente, foram apresentados os dados da Coorte A do PARTNER Trial no congresso da American College of Cardiology (ACC 2011) que mostraram não haver diferença de mortalidade estatisticamente significante entre os pacientes com estenose aórtica importante de alto risco cirúrgico submetidos à cirurgia convencional x implante percutâneo de prótese aórtica. O grupo percutâneo apresentou mais AVC e complicações vasculares relacionadas ao acesso via artéria femoral, ao passo que o grupo cirúrgico apresentou mais fibrilação atrial e sangramentos maiores.
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187 13 Doenças valvares Estenose aórtica
Causas de regurgitação aórtica Anormalidades da cúspide aórtica
Importante
Disfunção ventricular com gradiente baixo e com reserva contrátil?
Moderada Assintomático
Programação de RM, cirurgia de Ao torácica ou de outras valvas concomitantes?
Sintomático (CF II, III, IV, dor torácica, síncope)
FE < 50% e/ou programação de RM, cirurgia da Ao torácica ou de outras valvas concomitante?
Não
Não Classe I Classe IIb
Sim Sim
Acompanhamento clínico
Sim
FE < 50% e/ou hipotensão no TE Sim e/ou indicadores de pior prognóstico, com baixo risco cirúrgico?
Sim
Não
Alto risco de progressão da valvopatia e/ou arritmias ventriculares complexas no TE e/ou HVE importante (> 15 mm)?
Infecciosa: endocardite bacteriana, febre reumática Congênita: valva aórtica bicúspide, síndrome de Marfan Inflamatória: lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, síndrome de Behçet Degenerativa: valva mixomatosa (frouxa), valva aórtica calcificada Traumatismo Valvuloplastia pós-aórtica Valvuloplastia causada por fármacos usados para emagrecimento Anormalidades da raiz aórtica Dilatação da raiz aórtica: síndrome de Marfan, sífilis, espondilite ancilosante, policondrite recidivante, aortite idiopática, ectasia do anel aórtico, medionecrose aórtica cística, síndrome de Ehlers-Danlos Perda do suporte da comissura: dissecção aórtica, traumatismo, defeito do septo ventricular5 Aumento da pós-carga Hipertensão sistêmica Estenose aórtica supravalvar Tabela 13.11
Não
Classe IIa
Classe I Classe IIa
Classe IIb
Acompanhamento clínico
Tratamento cirúrgico da valva aórtica
Tabela 13.10 CF: classe funcional; FE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; RM: cirurgia de revascularização do miocárdio; Ao: aorta; TE: teste de esforço; HVE: hipertrofia de ventrículo esquerdo.
Insuficiência aórtica (IAo) A IAo é definida pela presença de fluxo sanguíneo regurgitante da aorta em direção ao VE durante a diástole.
Etiologia A insuficiência aórtica pode ser causada por doença primária dos folhetos da valva aórtica, da parede da aorta ascendente ou de ambas, conforme mostra a tabela a seguir:
A lesão reumática aórtica é a causa mais comum de insuficiência aórtica em nosso meio. Após os processos inflamatórios agudos, as lacínias tornam-se infiltradas difusamente por tecido fibroso, causando retração das bordas livres. Frequentemente, pode haver fusão associada das comissuras, podendo restringir a abertura da valva, resultando numa dupla lesão aórtica. A valvulite aórtica reumática vem habitualmente acompanhada de estenose/insuficiência mitral. A endocardite infecciosa é uma causa frequente de insuficiência aórtica. Ela leva a lesões necroinflamatórias com ulceração do endocárdio, formação de trombos sépticos sobre a ulceração, má coaptação das válvulas e/ou sua perfuração. A valvopatia aórtica sifilítica é secundária a uma lesão produzida pelo Treponema pallidum e se caracteriza por ser uma lesão dos componentes do óstio fibroso da valva. As lesões inflamatórias do anel aórtico causam a sua dilatação, produzindo uma desproporção ostiovalvar, cuja expressão morfológica é a separação das inserções dos vértices comissurais, nunca ocorrendo a fusão das bordas comissurais das válvulas; por isso, não há estenose associada. A dissecção da aorta proximal pode levar à insuficiência aórtica em aproximadamente 50% dos casos. Há três mecanismos propostos: 1. a dissecção pode dilatar a aorta ascendente, ampliando o anel de tal forma a impedir a coaptação das valvas na diástole;
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188 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica 2. em resposta a uma dissecção assimétrica, a pressão do hematoma desaba numa lacínia (geralmente não coronariana), para baixo da linha de fechamento das outras; 3. o suporte anular das válvulas pode se rasgar, o que torna a valva incompetente. Por fim, uma variedade de doenças produz insuficiência aórtica decorrente de uma acentuada dilatação da aorta ascendente, tais como a ectasia anuloaórtica, síndrome de Marfan, espondilite anquilosante e Ehler-Danlos.
aguda o sangue regurgitado enche o VE de tamanho normal, que não pode acomodar a soma do volume regurgitante e do volume advindo do átrio esquerdo. Temos uma diminuição do volume sistólico efetivo e elevação rápida da pressão diastólica do VE. Essa aumento abrupto de pressão ventricular durante a diástole fecha precocemente a valva mitral, conferindo certo grau de proteção ao território pulmonar. O refluxo aórtico fica, de certo modo, limitado pela alta pressão diastólica do VE, não aparecendo, portanto, o pulso alargado típico da regurgitação aórtica crônica.
Fisiopatologia
Quadro clínico
Na insuficiência aórtica ocorre uma sobrecarga de volume e pressão. O volume regurgitante tem de ser devolvido a uma área de alta pressão; isso leva ao aumento da câmara e da massa do ventrículo esquerdo. A dilatação ventricular permite acomodar grandes quantidades de sangue com pressão diastólica baixa, permitindo, assim, o esvaziamento do átrio esquerdo sem aumentar a pressão retrogradamente para o território venocapilar e arterial pulmonar.
História natural
Uma regurgitação aórtica intensa pode ocorrer com volume sistólico anterógrado normal e uma fração de ejeção normal, às custas de uma pré-carga elevada com volume, pressão e estresse diastólicos finais altos. Esse aumento de volume promove um aumento da tensão para promover uma sístole adequada. O aumento de tensão diastólica na parede provoca uma hipertrofia excêntrica com espessamento da parede, suficiente para normalizar a tensão da parede no fim da diástole e a relação espessura parietal/raio da cavidade (e/r). Na regurgitação aórtica, a massa ventricular se eleva muito, às vezes mais que na estenose aórtica isolada. A regurgitação aórtica grave causa um grande volume diastólico final, resultando num coração denominado cor bovinum ou cor bovis. No entanto, um aumento da complacência ventricular faz com que as pressões diastólicas finais nem sempre estejam elevadas. Com a dilatação progressiva do VE, o volume diastólico final também se eleva sem aumento da fração regurgitante: cai a fração de ejeção, a relação e/r diminui e aumenta a tensão na parede. O volume sistólico final se eleva. Nos casos mais graves, o aumento da pressão diastólica final, com consequente aumento da pressão em átrio esquerdo, se transmite ao território pulmonar, VD e AD, aparecendo sinais de congestão pulmonar. A regurgitação aórtica aguda ocorre, habitualmente, como consequência de endocardite infecciosa, dissecção da aorta e trauma. Ao contrário dos eventos fisiopatológicos descritos da insuficiência aórtica crônica, em que o ventrículo teve a oportunidade de se adaptar à carga aumentada, na insuficiência aórtica
Apresenta evolução clínica variável, dependendo da velocidade de instalação do quadro, da complacência aórtica e ventricular e da gravidade da lesão valvar. Quadros secundários à insuficiência aórtica crônica são, geralmente, bem tolerados por vários anos, ao contrário dos observados nas lesões agudas, em que há rápida deterioração clínica em virtude de sobrecarga aguda de volume em VE de tamanho normal, sem tempo suficiente para acomodação, manifestando-se por congestão pulmonar e sinais de baixo débito cardíaco. Pacientes com IAo podem permanecer assintomáticos por longos períodos, e mesmo IAo crônica grave ou moderada associa-se a um prognóstico, em geral, favorável por muitos anos. Aproximadamente 75% dos pacientes sobrevivem por cinco anos, e 50%, por dez anos. Após o diagnóstico, todavia, uma vez que o paciente torna-se sintomático, a condição, com frequência, se deteriora rapidamente, podendo ocorrer morte súbita. Sem tratamento cirúrgico, a morte, em geral, ocorre dentro de quatro anos após o desenvolvimento da angina e dentro de dois anos após o início da insuficiência cardíaca. Mesmo durante o período assintomático pode ocorrer a deterioração gradual da função do VE, sendo conveniente intervir cirurgicamente antes que essas mudanças se tornem irreversíveis. Normalmente, o paciente permanece assintomático por longos períodos, até que haja perda na capacidade de compensação. Por volta da 4ª e 5ª décadas, ocorre uma diminuição da reserva cardíaca decorrente de uma considerável cardiomegalia e de disfunção ventricular, levando ao aparecimento de sintomas, como a dispneia aos esforços, ortopneia e dispneia paroxística noturna. A síncope e a dor torácica são raras. Já em casos de insuficiência aórtica aguda, os pacientes desenvolvem manifestações clínicas súbitas de colapso cardiovascular, como fraqueza, dispneia importante e hipotensão. A angina é incomum.
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189 13 Doenças valvares
Exame físico Alterações periféricas importantes ocorrem na presença de insuficiência aórtica crônica grave devido a um quadro hipercinético decorrente de três fatores: débito sistólico elevado, compartimento arterial vazio e leito vascular dilatado. Dessa forma, inúmeras representações clínicas deste fenômeno foram descritas, e a IA é uma das doenças que mais incluem epônimos na sua descrição. Citamos aqui apenas os mais clássicos: Descrição Movimentos bruscos da cabeça para a frente a cada batimento cardíaco Sinal de Müller Pulsações sistólicas na úvula Sinal de Quincke Pulso capilar perceptível nos leitos ungueais das mãos Pulso em Pulso amplo de ascenso rápido, “martelo d’água” queda brusca (mais bem evidenciada na palpação da artéria radial com o braço elevado) “Dança das Ao exame dos vasos arteriais do artérias” pescoço, observam-se batimentos amplos e hipercinéticos, ocasionando a impressão visual de franca mobilidade Sinal de Traube Sons sistólico e diastólico audíveis sobre a artéria femoral Sinal de Durozier Sopro sistólico audível sobre a artéria femoral, quando é comprimida proximalmente, e no sopro diastólico, quando é comprimida distalmente Sinal de Hill Pressão de manguito poplíteo ≥ 60 mmHg do que a pressão braqueal
B
Figura 13.29 A: pulso carotídeo normal. B: pulso em martelo-d’água na insuficiência aórtica.
Sinal Sinal de Musset
Tabela 13.12 Sinais periféricos de regurgitação aórtica.
A pressão arterial tem pulso de pressão amplo. Quanto mais grave a IA, maior a PA sistólica e maior a pressão de pulso (PA sistólica – PA diastólica). O íctus é difuso, hiperdinâmico, com deslocamento lateral e inferior. Na ausculta cardíaca, evidencia-se um sopro diastólico, ouvido imediatamente após o A2 suave, aspirativo, decrescendo, mais audível em área aórtica e aórtica acessória, diminuindo de intensidade na ponta. A gravidade da insuficiência correlaciona-se mais com a duração que com a intensidade do sopro. O sopro de Austin-Flint caracteriza-se por ser um ruflar semelhante à estenose mitral, sem acometimento desta valva.
B1
A B1
B2
B Figura 13.30 Diagnóstico diferencial entre os sopros diastólicos. A: sopro diastólico da estenose mitral. Note a intensidade da B1 e a acentuação do sopro diastólico ao da diástole. B: sopro diastólico da regurgitação aórtica. Note a diminuição de intensidade ao final da diástole e a presença de um pequeno sopro sistólico de hiperfluxo.
Aorta
Átrio esquerdo Ventrículo esquerdo
B1
A
B2 Estalido de abertura
(A2) B2
B1
Figura 13.31 Sopro semilunar diastólico, como aquele que ocorre na regurgitação aórtica. Note o sopro sistólico de ejeção relacionado ao volume e ao fluxo aumentados.
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190 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Diagnóstico Eletrocardiograma O eletrocardiograma é normal nos casos de insuficiência aórtica aguda. Na insuficiência aórtica crônica, o eixo desvia para a esquerda e há padrão de sobrecarga diastólica de volume do ventrículo esquerdo, com ondas R entre ampla amplitude de V4 a V6 e onda S profunda entre V1 a V3. Figura 13.33 Radiografia de tórax de paciente com IAo mostrando cardiomegalia importante.
Ecocardiograma É um exame essencial na avaliação da IAo: ajuda na definição diagnóstica da gravidade e na etiologia. Permite avaliar a função ventricular, o grau de regurgitação aórtica, o aspecto dos folhetos valvares e o diâmetro da raiz da aorta.
É utilizado apenas em candidatos à cirurgia, em casos nos quais persistem dúvidas diagnósticas relevantes quanto à causa da insuficiência aórtica.
Ecocardiograma: visão paraesternal longitudinal
Pode-se avaliar a pressão diastólica final do VE, que costuma estar aumentada na IAo. Pode-se avaliar a raiz da aorta na investigação de dilatação. Com a injeção de contraste na aorta, pode-se quantificar a IAo.
VD Ao
septo VE mitral
valva aórtica
AE VD
Figura 13.32 Ecocardiograma mostrando jato de IA, em azul.
A coronariografia deve completar o estudo radiológico aórtico em portadores de insuficiência aórtica com mais de 40 anos de idade.
Tratamento átrio esquerdo
ventrículo esquerdo
Cateterismo
valva mitral
bidimensional
Radiografia de tórax Na IA aguda, a área cardíaca é normal ou com discreta cardiomegalia, com sinais de congestão pulmonar. Na IAo crônica, a área cardíaca lembra uma bota de grandes dimensões, consequência do crescimento isolado do ventrículo esquerdo associado à dilatação da aorta ascendente, do arco e do segmento descendente da aorta.
Clínico O racional para o uso de vasodilatadores em IAo crônica baseia-se na possibilidade de redução da pós carga do VE, com consequente aumento do volume sistólico e diminuição do volume regurgitante. No entanto, não há, atualmente, evidências definitivas que suportem a indicação de vasodilatadores cronicamente, de rotina, para pacientes assintomáticos com IAo crônica, a menos que esses pacientes sejam hipertensos. Para o tratamento da hipertensão arterial sistêmica associada a IAo os vasodilatadores são uma excelente opção. Podem e devem ser usados como terapêutica de curto prazo, como ponte para a cirurgia e para alívio dos sintomas quando existem contraindicações ao tratamento cirúrgico.
Cirúrgico O aparecimento de sintomas e a redução da função sistólica do VE são os principais fatores de pior prognóstico. O tratamento cirúrgico da IAo, mesmo em pacientes com acentuada redução da função ventricular esquerda, leva a um aumento da FE e da so-
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191 13 Doenças valvares brevida da maioria dos pacientes, sem progressão da insuficiência cardíaca. Constitui o procedimento de escolha para tratamento da IAo importante em pacientes sintomáticos ou com disfunção ventricular. Assim como para a IM, os sintomas podem estar ausentes até que a disfunção ventricular esteja avançada. Devemos memorizar 3 dados em relação ao pacientes assintomático: deve-se indicar cirurgia quando a fração de ejeção for menor do que 50 mm, quando o diâmetro sistólico final do VE for maior do que 55 mm, ou quando o diâmetro diastólico final do VE for maior do que 75 mm. Em caso de necessidade de cirurgia de revascularização miocárdica ou cirurgias da aorta torácica ou de outras valvas concomitantes, está indicada a troca valvar aórtica associada em pacientes com insuficiência aórtica moderada/importante. Quando indicada a cirurgia, o procedimento mais comumente realizado é a troca valvar por prótese biológica ou metálica, respeitando-se a indicação de anticoagulação oral, como foi descrito anteriormente nas valvopatias mitrais. Estenose aórtica
Importante
Disfunção ventricular com gradiente baixo e com reserva contrátil?
Moderada
IAo aguda A lesão valvar aguda é causada, principalmente, por endocardite infecciosa, dissecção de aorta e trauma torácico. Outras etiologias menos frequentes incluem laceração da aorta e complicações de procedimentos invasivos, como valvoplastia aórtica e dilatação percutânea por balão em casos de coarctação de aorta. Sua frequência é inferior às das lesões crônicas, porém apresenta-se com mortalidade maior, particularmente quando associada à insuficiência cardíaca (IC) aguda. Nas endocardites infecciosas de valva nativa, a insuficiência cardíaca ocorre mais frequentemente em infecções que acometem a valva aórtica (29%), seguida por envolvimentos mitral (20%) e tricúspide (8%), sendo a IC a complicação associada ao pior prognóstico na evolução da endocardite infecciosa. A IC aguda pode ser decorrente de perfuração de folheto, ruptura de corda tendínea infectada, obstrução valvar por vegetações ou comunicações intracardíacas agudas por fístulas ou deiscências de próteses. Preconiza-se intervenção cirúrgica imediata nos casos de IAo agudizada, com utilização de vasodilatadores intravenosos até a realização do procedimento. Nos casos secundários à endocardite infecciosa, a instabilidade hemodinâmica está presente em 10%, com mortalidade operatória de 8%.
Assintomático
Programação de RM, cirurgia de Ao torácica ou de outras valvas concomitantes?
Sintomático (CF II, III, IV, dor torácica, síncope)
FE < 50% e/ou programação de RM, cirurgia da Ao torácica ou de outras valvas concomitante?
Não
Sim Acompanhamento clínico
Estenose tricúspide
Não Classe I Classe IIb
Sim Sim
Sim
FE < 50% e/ou hipotensão no TE e/ou indicadores de pior prognóstico, com baixo risco cirúrgico?
Sim
Não
A valva tricúspide tem três folhetos de tamanhos diferentes (anterior > septal > posterior). Como a valva mitral, os folhetos, o anel, as cordoalhas, os músculos papilares e o miocárdio contíguo contribuem individualmente para a função normal da valva e podem ser alterados pelo processo fisiopatológico.
Alto risco de progressão da valvopatia e/ou arritmias ventriculares complexas no TE e/ou HVE importante (> 15 mm)? Não
Classe IIa
Classe I Classe IIa
Classe IIb
Acompanhamento clínico
Tratamento cirúrgico da valva aórtica
Figura 13.13 CF: classe funcional; FE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; RM: cirurgia de revascularização do miocárdio; Ao: aorta; DdVE: diâmetro diastólico final do ventrículo esquerdo; DsVE: diâmetro sistólico final do ventrículo esquerdo.
Figura 13.35 Válvula tricúspide normal. Os três folhetos são mostrados, embora o posterior seja observado incompletamente por causa da técnica de dissecção. S: folheto septal. P: folheto posterior. A: folheto
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192 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica anterior. As cordas em forma de leque (F) definem as comissuras entre os folhetos. Notar que existem vários grandes músculos papilares, cada um deles fornecendo cordas para mais de um folheto. As cordas também emanam de músculos papilares menores.
piração profunda e infusão de líquidos podem aumentar o gradiente diastólico em decorrência do maior fluxo transvalvar, enquanto que, durante a expiração, o gradiente é reduzido ou mesmo abolido. O débito cardíaco em repouso apresenta-se usualmente reduzido e, em geral, não aumenta durante o esforço.
Etiologia
História clínica
A Estenose Tricúspide (ET) é uma valvopatia rara, tendo como principal etiologia a doença reumática e usualmente associa-se ao envolvimento das valvas mitral e/ou aórtica; a maioria dos casos de valvopatia tricúspide de origem reumática manifesta-se por insuficiência ou combinação de estenose e insuficiência, sendo incomum a estenose isolada. A estenose tricúspide é encontrada em necropsia em aproximadamente 15% dos casos de doença reumática e tem significado clínico em cerca de 5%.
Os pacientes frequentemente se queixam de fadiga em razão do débito cardíaco reduzido e do desconforto abdominal relacionado à hepatomegalia, ascite ou anasarca. A ascite pode ser acentuada, contrastando com pouco ou nenhum edema periférico. Há, ainda, relatos de sensação de batimento no pescoço, associado à onda “a” gigante no pulso venoso, que corresponde à pressão atrial direita contra uma resistência aumentada. Os pacientes apresentam pouca dispneia ao esforço ou decúbito, mesmo na presença de estenose mitral, uma vez que a estenose tricúspide impede o acúmulo de sangue no leito vascular pulmonar. Aliás, a ausência de sintomas de congestão pulmonar num paciente com estenose mitral evidente deve sugerir a possibilidade de estenose tricúspide.
Outras causas de estenose tricúspide são raras e incluem estenose tricúspide congênita, fibroelastose, endomiocardiofibrose, lúpus eritematoso sistêmico, síndrome carcinoide, endocardite infecciosa com obstrução do fluxo de entrada do ventrículo direito e uso crônico de ergotamina. Tumores extracardíacos, massas localizadas no átrio direito e eletrodos de marca-passo são causas não valvares de obstrução do orifício tricúspide. Causas de estenose tricúspide Reumática Cardiopatia carcinoide Tumores Congênita (por exemplo: anomalia de Ebstein) Tamponamento cardíaco regional Lúpus eritematoso sistêmico Doença de Whipple Doença de Fabry Endocardite infecciosa Fibrose endomiocárdica Fibroelastose endocárdica Terapia com metissergida Síndrome de anticorpo antifosfolipídeo Tabela 13.11
Exame físico A onda “a”, proeminente no pulso venoso, e a onda “y”, com descenso lento indicativo de ausência do enchimento rápido normal, podem ser apreciadas à inspeção. Habitualmente, não há abaulamento sistólico visível no epigástrio e na borda esternal esquerda, podendo, inclusive, haver retração. Pode-se evidenciar frêmito diastólico no foco tricúspide e imediações. Palpa-se o frêmito usualmente na base do apêndice xifoide. É recomendada a verificação do ictus cordis pela inspeção ou verificação do pulso radial ao mesmo tempo em que se palpa o frêmito para adequada localização deste no ciclo cardíaco. O frêmito será percebido depois do aparecimento do ictus, ou seja, no período diastólico ventricular. À ausculta, nota-se sopro proto ou holodiastólico e hiperfonese da primeira bulha no foco tricúspide.
Fisiopatologia Existe um gradiente diastólico de pressão entre o átrio e o ventrículo direitos, sendo considerado suficiente para o diagnóstico um gradiente médio de apenas 2 mmHg.
Diagnóstico
Quando esse gradiente ultrapassa 5 mmHg, a pressão atrial média apresenta-se elevada a ponto de ocasionar congestão venosa sistêmica e, consequentemente, estase jugular, ascite e edema. Exercícios, ins-
Há evidência de dilatação do átrio direito desproporcional à hipertrofia ventricular direita. A amplitude da onda P nas derivações II e V1 excede 0,25 mV. Como a maioria dos pacientes portadores
Eletrocardiograma
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193 13 Doenças valvares de estenose tricúspide também apresenta valvopatia mitral, os sinais de sobrecarga biatrial são achados comuns. A amplitude do complexo QRS na derivação V1 pode estar diminuída em decorrência da dilatação do átrio direito.
Radiografia do tórax Campos pulmonares sem sinais de congestão com cardiomegalia à custa de dilatação do átrio direito – proeminência da borda cardíaca direita, que se estende até as veias cavas superior e ázigos dilatadas, mas sem dilatação visível da artéria pulmonar – são os achados típicos. Observa-se a diminuição do volume do ventrículo direito e o aumento do átrio direito em oblíqua anterior direita tanto na radioscopia como na radiografia.
Figura 13.37 Ecocardiograma bidimensional de um paciente com lesão valvar reumática, mostrando valva tricúspide espessada e em forma de cúpula (setas).
Terapêutica Ecocardiograma Os achados na estenose tricúspide de etiologia reumática assemelham-se aos encontrados na estenose mitral: aumento da espessura com restrição do movimento das cúspides, principalmente das bordas, e redução no diâmetro do orifício da valva. A avaliação da gravidade da lesão é baseada nos dados fornecidos pelo estudo com Doppler do fluxo diastólico transvalvar, cuja velocidade e, consequentemente, gradientes encontram-se aumentados, e pela estimativa da área valvar. Indiretamente, o ecocardiograma bidimensional pode sugerir a gravidade pela dilatação do átrio direito e da veia cava inferior, achados, entretanto, não específicos.
Restrição de sódio e de água e uso de diuréticos são importantes para o alívio dos sintomas de congestão periférica. O tratamento cirúrgico da estenose tricúspide é normalmente recomendado por ocasião da cirurgia da valva mitral nos pacientes com gradiente diastólico médio de pressão superior a 5 mmHg e área do orifício tricúspide inferior a 2 cm2. Entretanto, a decisão final é tomada durante o ato operatório. A simples comissurotomia digital não é recomendada, já que, com frequência, a insuficiência valvar coexiste e pode ser agravada com tal procedimento. A valvotomia aberta é, então, o método recomendado. Caso esta técnica não restaure a função valvar, a substituição por prótese pode ser necessária, dando-se preferência às próteses biológicas devido ao elevado risco de trombose associado às próteses mecânicas nessa posição. Tem-se demonstrado a possibilidade de valvoplastia tricúspide por balão; o desenvolvimento de insuficiência, contudo, é frequente e está associado ao pior prognóstico. A indicação de cirurgia na estenose isolada é restrita aos pacientes com obstrução grave e persistência de sintomas e sinais de congestão venosa sistêmica, apesar do tratamento adequado.
Insuficiência tricúspide Figura 13.36 Ecocardiograma bidimensional ilustrando espessamento dos folhetos tricúspides em um paciente com síndrome carcinoide. VT: valva tricúspide. AD: átrio direito. VD: ventrículo direito.
Etiologia Pode ser primária ou, com maior frequência, secundária. A causa mais comum de insuficiência tricúspide secundária é a dilatação do anel, que pode ser de-
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194 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica corrente de insuficiência ventricular direita de qualquer origem, como as doenças da valva mitral com hipertensão pulmonar, o infarto do ventrículo direito ou da parede septal, cardiomiopatias, cardiopatia isquêmica crônica, hipertensão pulmonar primária e cor pulmonale. A pressão sistólica ventricular direita acima de 55 mmHg pode causar insuficiência tricúspide funcional. Algumas doenças primárias da valva tricúspide, congênitas ou adquiridas, podem causar insuficiência; entre as doenças congênitas que podem cursar com insuficiência tricúspide estão: anomalia de Ebstein, displasia da valva tricúspide e defeito do septo atrioventricular. Na transposição corrigida dos grandes vasos pode haver comprometimento primário (degeneração), ou a insuficiência pode dever-se à disfunção do ventrículo direito sistêmico. Estudos de necropsia em pacientes com transposição corrigida das grandes artérias revelam que a valva tricúspide pode estar acometida em aproximadamente 91%, sendo que o aspecto mais comum é semelhante à anomalia de Ebstein. Refluxo significativo tem sido descrito em 20% a 50% dos casos. Entre as doenças adquiridas, a doença reumática pode comprometer diretamente a valva, causando fibrose e retração das cúspides e/ou da cordoalha, ocasionando insuficiência pura e eventualmente combinada com estenose. Há relatos de insuficiência tricúspide em doença de Whipple (lipodistrofia funcional) e uso de metisergida (derivado de ergotamina usado em pacientes com cefaleia vascular). A síndrome carcinoide é outra possibilidade e caracteriza-se por depósito focal ou difuso de material fibroso sobre o endocárdio das cúspides valvares e câmaras cardíacas e sobre a íntima de grandes veias e do seio coronário. Essas lesões são mais extensas do lado direito do coração e se depositam na superfície ventricular da valva tricúspide que pode estar aderida à parede do ventrículo direito subjacente, com restrição da mobilidade e produzindo insuficiência tricúspide ou dupla disfunção. O prolapso da valva tricúspide, causado por alterações mixomatosas das cúspides, pode ocorrer de forma isolada ou associada ao prolapso da valva mitral (em aproximadamente um terço dos pacientes) e está associado a graus variados de incompetência valvar. Regurgitação tricúspide pós-traumática é condição pouco frequente após trauma torácico fechado, com cerca de pouco mais de uma centena de casos descritos na literatura. Pode haver ruptura de cordoalha e/ ou músculo papilar e laceração de cúspide. A endocardite infecciosa, particularmente por Staphylococcus aureus em usuários de drogas, é outra condição que pode causar insuficiência tricúspide e ocorrer em pacientes com ou sem lesões predisponentes.
Outras causas incomuns de insuficiência tricúspide incluem tumores cardíacos (mixoma ou hemangioma de átrio direito), cabos de marca-passos, biópsia endomiocárdica de repetição em pacientes após transplante cardíaco, fibrose endomiocárdica, doença valvar induzida por metisergida ou fenfluramina-fentermina (drogas inibidoras do apetite já retiradas do mercado), lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide e exposição à radiação ionizante. Causas de regurgitação tricúspide Funcional (valva tricúspide estruturalmente normal) Reumática Endocardite infecciosa Congênita (por exemplo: prolapso de valva tricúspide, anomalia de Ebstein) Cardiopatia carcinoide Lúpus eritematoso sistêmico Induzida por cateter Traumatismo Tumores Transplante cardíaco ortotópico Fibrose endomiocárdica Síndrome de anticorpo antifosfolipídeo Tabela 13.12
Fisiopatologia É habitualmente bem tolerada na ausência de hipertensão pulmonar. Quando ambas coexistem, há redução do débito cardíaco e as manifestações de insuficiência cardíaca direita se intensificam. Os sintomas são, portanto, decorrentes do débito cardíaco comprometido e da congestão venosa sistêmica. As formas orgânicas de insuficiência tricúspide são menos frequentes e o diagnóstico diferencial é difícil. Sua presença é presumida quando suas manifestações acentuadas não são acompanhadas de sinais de hipertensão pulmonar. À medida em que progride a hipertensão pulmonar, o ventrículo direito dilata-se e há diminuição da complacência ventricular direita, o que dificulta o esvaziamento atrial direito, determinando aumento de volume e hipertensão atrial direita. A dilatação ventricular afasta os músculos papilares, dificultando o fechamento valvar, que causa mais insuficiência tricúspide.
História clínica Perda de peso, caquexia, cianose e icterícia são frequentemente encontradas na inspeção de pacientes com insuficiência tricúspide grave. Pulsação da veia cava superior e do fígado pode estar presente quando a insuficiência for grave.
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195 13 Doenças valvares A ausculta revela sopro sistólico mais audível na borda esternal esquerda baixa (foco tricúspide), acentuado pela inspiração. Terceira bulha (B3) originando-se do ventrículo direito também pode ser auscultada nas insuficiências graves. Quando a insuficiência tricúspide associa-se a hipertensão pulmonar, a segunda bulha é hiperfonética.
ECG I
II FCG
A C
OR
Manifestações extracardíacas da severa regurgitação tricúspide Oscilação da cabeça
ECG
II
Proptose Movimento anterior dos olhos
FCG
Ingurgitamento do pescoço
I
A C
Hepatomegalia
OR
H
Fígado pulsátil Esplenomegalia Ascite Edema periférico Leve icterícia Acrocianose Caquexia – perda de peso e de massa muscular Tabela 13.13
Figura 13.39 Pulsação hepática na regurgitação tricúspide. Esta figura mostra registros dos pulsos venoso jugular (J) e hepático (H) em um paciente de idade mediana com cardiomiopatia alcoólica, insuficiência cardíaca e regurgitação tricúspide. Notar a proeminente onda regurgitante (OR), a ausência do colapso X e o íngreme colapso Y (não rotulado). A: onda A; C: onda C. Os traçados hepático e venoso jugular são quase idênticos em contorno. V
Severa V A Leve
A
Y
C X C
Y
V
Normal X
1
Figura 13.38 Pulsações do lóbulo da orelha na regurgitação tricúspide. Na regurgitação severa, a pressão venosa jugular é acentuadamente elevada e as grandes ondas V podem ser de difícil identificação. A cuidadosa inspeção do lóbulo da orelha com o paciente na posição de 30 a 60 graus pode revelar sutis pulsações laterais de grandes ondas V sistólicas no átrio direito através do sistema venoso proximal.
Y
2
3
Figura 13.40 Pulso venoso jugular na regurgitação tricúspide. As alterações do contorno venoso na regurgitação tricúspide leve estão mostradas no traçado do meio. A onda V está aumentada e o colapso Y mais acentuado; o colapso X encontra-se muito acentuado. Com a severa regurgitação tricúspide (traçado superior) há uma onda CV regurgitante sistólica em platô que, em parte, representa a ventricularização dos pulsos atrial direito e venoso jugular. Notar a B3 ventricular direita coincidente com o nadir do colapso Y. Um pulso venoso normal é mostrado no traçado inferior.
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196 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Diagnóstico
Tratamento
Eletrocardiograma Pode haver sinais de sobrecarga de átrio e/ou ventrículo direitos, taquicardia paroxística ou fibrilação atrial e bloqueio incompleto do ramo direito. O exame deve ser realizado a cada consulta.
Radiografia de tórax O aumento da área cardíaca, secundário à dilatação das cavidades direitas, é o achado mais frequente nos pacientes com insuficiência tricúspide significativa. O átrio direito aumentado pode ser identificado pelo abaulamento da silhueta cardíaca direita inferior. Durante o seguimento clínico do paciente, o exame deve ser repetido quando necessário.
Ecocardiograma Assim como para as outras valvopatias, o ecocardiograma é o método de escolha para o diagnóstico e a quantificação da lesão. O objetivo é detectar o mecanismo, estimar a gravidade do refluxo e avaliar a pressão arterial pulmonar mediante o estudo Doppler, além de avaliar a função ventricular direita e o acometimento de outras valvas ou estruturas. Normalmente, o mecanismo do refluxo consiste na falha de coaptação entre as cúspides em razão de dilatação do anel e/ou retração do tecido valvar. Nos refluxos importantes geralmente há dilatação das cavidades direitas, movimentação anômala do septo interventricular e a veia cava inferior pode estar dilatada, apresentando expansão sistólica em decorrência do jato de regurgitação. Tal fato pode ser demonstrado também nas veias hepáticas. Nos pacientes com insuficiência primária ou secundária da valva tricúspide, a pressão pulmonar pode ser estimada pelo método do refluxo tricúspide, que consiste em estimar o gradiente máximo de pressão entre o ventrículo e o átrio direitos em sístole, acrescendo-se um valor estimado da pressão atrial direita com base no grau de dilatação da veia cava inferior. Se o orifício de refluxo é amplo, a pressão pulmonar pode ser subestimada por esse método. Deve-se lembrar que refluxo tricúspide de grau mínimo ou discreto pode ser detectado no ecocardiograma Doppler com frequência em indivíduos sadios (sem anomalias estruturais da valva) e, nesses casos, é considerado fisiológico e sem significado clínico; entretanto, é útil para estimar a pressão sistólica pulmonar.
Os pacientes com insuficiência tricúspide importante isolada, sem sintomas ou sinais de congestão venosa sistêmica, podem permanecer sem medicação por longo tempo, principalmente se não houver hipertensão pulmonar. Entretanto, quando há sintomas ou sinais periféricos de insuficiência cardíaca, o uso de diuréticos pode ser benéfico. Pacientes com refluxo tricúspide importante de qualquer etiologia têm prognóstico reservado devido à falência do ventrículo direito e/ou à congestão venosa sistêmica. A cirurgia da valva tricúspide é indicada em pacientes com insuficiência tricúspide importante e que tenham doença da valva mitral com hipertensão pulmonar e necessidade de tratamento cirúrgico. Ainda teriam indicação cirúrgica os pacientes com insuficiência tricúspide primária importante, com sintomas de difícil tratamento clínico e pressão pulmonar menor que 60 mmHg. As técnicas mais recomendadas são as que conservam o aparelho valvar tricúspide (como a reconstrução valvar para as insuficiências secundárias ao trauma, endocardite e prolapso), a anuloplastia (usualmente durante a cirurgia de valva mitral) e a técnica de Alfieri. Muitas vezes, entretanto, a cirurgia conservadora não é possível, e a substituição por prótese valvar deve ser realizada. O risco de trombose de prótese é considerado maior na posição tricúspide devido à baixa velocidade de fluxo, e, por isso, as próteses biológicas são as mais recomendadas. Vale lembrar que essas próteses, na posição tricúspide, têm taxa de deterioração mecânica menor do que nas posições mitral ou aórtica.
Estenose pulmonar Etiologia A etiologia mais comum é a congênita e compreende cerca de 10% de todas as malformações congênitas em pacientes adultos. O acometimento reumático é incomum. Na etiologia congênita, a forma mais frequente tem graus variados de fusão e espessamento das comissuras, causa redução da mobilidade das cúspides e abertura em cúpula da valva. Com menor frequência, a valva é espessada e displásica, o que impede a abertura, achado mais comum na síndrome de Noonan (síndrome de Turner masculina – nesta forma, o retardo mental está frequentemente presente). A alteração hemodinâmica fundamental caracteriza-se pelo aumento de pressão no ventrículo direito, com gradiente de pressão entre esta câmara e a artéria pulmonar.
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197 13 Doenças valvares
História clínica
Radiografia de tórax
A história natural relaciona-se à gravidade da obstrução. Raramente a estenose pulmonar em crianças e adultos jovens é sintomática (mesmo em pacientes com obstrução significativa), sendo, muitas vezes, surpreendida em exame de rotina. Entretanto, adultos com estenose grave de longa evolução podem apresentar dispneia e fadiga decorrentes da incapacidade de elevar o débito cardíaco sob esforço. Síncope relacionada ao esforço e tontura raramente podem ser vistas; a morte súbita é extremamente incomum.
A área cardíaca geralmente é normal ou pouco aumentada. A silhueta cardíaca é característica, com dilatação do arco médio e trama vascular diminuída nas estenoses mais graves. Ocorre aumento de átrio e ventrículo direitos.
Pode haver cianose decorrente da redução do débito pulmonar nos casos de obstrução crítica, insuficiência cardíaca direita e arritmia. Geralmente, não existe abaulamento do precórdio; entretanto, nas estenoses mais graves, encontram-se impulsões sistólicas na borda esquerda do esterno e no epigástrio, em decorrência da sobrecarga do ventrículo direito. Essa situação hemodinâmica é corroborada por uma onda “a” expressiva no pulso venoso. O choque da ponta só é deslocado e impulsivo quando há dilatação acentuada do ventrículo direito. No foco tricúspide, pode-se encontrar a primeira bulha hiperfonética, o que significa hipertensão da câmara ventricular direita.
Figura 13.41 Radiografia de tórax em PA mostrando dilatação do arco médio e diminuição da trama vascular.
No foco pulmonar, a intensidade da segunda bulha é normal ou discretamente diminuída nos casos de obstruções leves ou moderadas, e mais diminuída nos pacientes com estenoses mais graves. Estalido ou click sistólico indica dilatação pós-estenótica de tronco da artéria pulmonar. O sopro sistólico, que habitualmente se acompanha de frêmito, é granuloso e em crescendo e decrescendo, com reforço precoce ou tardio.
Diagnóstico Eletrocardiograma Pode ser normal em estenoses discretas, sobretudo em crianças. As obstruções moderadas mostram sobrecarga ventricular direita com ou sem alterações da onda T. Quando a pressão nas câmaras direitas for igual ou superior à das esquerdas, o quadro de sobrecarga de ambas as câmaras será evidente e caracterizado por ondas P aumentadas, complexos ventriculares amplos nas derivações direitas, alteração da repolarização ventricular com ST infradesnivelado e onda T negativa.
Figura 13.42 A: imagem ecocardiográfica mostrando a valva pulmonar com aumento da espessura e da ecogenicidade em paciente adulto com estenose valvar pulmonar. B: curva de velocidade de fluxo pela valva pulmonar do mesmo paciente, utilizada para estimar o gradiente de pressão máximo, que foi de 82 mmHg.
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198 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica
Ecocardiograma É possível visualizar a valva pulmonar por meio de ecocardiograma transtorácico. A quantificação da gravidade da lesão é analisada pela estimativa do gradiente de pressão transvalvar (ventrículo direito – artéria pulmonar) pelo Doppler contínuo; é considerada discreta se o gradiente for < 30 mmHg; moderada quando ficar entre 30 e 50 mmHg; e grave quando for > 50 mmHg.
Tratamento A valvotomia percutânea com cateter-balão é a mais indicada para os pacientes com fusão e abertura em cúpula da valva, em razão dos bons resultados a curto e médio prazos (até dez anos); a cirurgia ficou reservada aos casos em que a valva é displásica. Alguns pacientes com estenose grave podem desenvolver hipertrofia infundibular, e essa pode causar obstrução secundária após realização de valvoplastia por balão. Habitualmente, é reversível sem tratamento. A intervenção na estenose valvar pulmonar é recomendada nos pacientes sintomáticos (dispneia, angina, síncope ou pré-síncope aos esforços) ou nos assintomáticos com gradiente de pressão sistólica máximo superior a 50 mmHg.
principais sintomas são fadiga e dispneia. Tonturas e síncope são eventuais. Ao exame físico podem ser observados sinais de insuficiência cardíaca direita, pulsações sistólicas palpáveis na região paraesternal esquerda, ausculta de sopro de ejeção mesossistólico e/ou sopro diastólico aspirativo no segundo espaço intercostal esquerdo; hiperfonese da segunda bulha em pacientes com hipertensão pulmonar pode ser audível. Quando secundário à hipertensão pulmonar, o sopro diastólico é denominado sopro de Graham-Steel.
Diagnóstico Eletrocardiograma A insuficiência pulmonar secundária à hipertensão pulmonar, ou de grau significativo de outra etiologia, pode associar-se aos sinais eletrocardiográficos de hipertrofia ventricular direita.
Radiografia de tórax O ventrículo direito e a artéria pulmonar estão geralmente dilatados, mas são sinais inespecíficos.
Insuficiência pulmonar Etiologia
Ecocardiograma
É doença incomum em adultos. As causas mais frequentes são dilatação do anel valvar secundária à hipertensão pulmonar, associada à dilatação idiopática da artéria pulmonar, consequente a doenças do tecido conjuntivo, como a síndrome de Marfan; a ausência congênita da valva pulmonar, após valvotomia cirúrgica ou com cateter-balão, após cirurgia da tetralogia de Fallot; e a endocardite infecciosa. Outras causas menos frequentes são as malformações congênitas da valva, como cúspides supernumerárias, ausentes, malformadas ou fenestradas, trauma, síndrome carcinoide, comprometimento reumático, lesão produzida por cateter alocado na artéria pulmonar e sífilis.
O ecocardiograma com Doppler é o método não invasivo que permite confirmar o refluxo e estimar a gravidade da lesão. Fluxo turbulento com velocidade elevada é detectado no ventrículo direito, próximo à valva, durante a diástole.
História clínica
Tratamento
A insuficiência pulmonar causa sobrecarga de volume ventricular direito, podendo ser tolerada por muitos anos sem dificuldade, a menos que evolua com hipertensão pulmonar. Nas insuficiências graves de longa duração, como em adultos, os
Os sintomas podem ser aliviados com uso de diuréticos e/ou digitálicos. O tratamento cirúrgico deve ser indicado aos pacientes sintomáticos que não tiveram melhora com tratamento clínico, e, usualmente, envolve a substituição por prótese biológica.
Nos pacientes com lesões significativas, pode haver dilatação do ventrículo direito e movimentação anormal do septo interventricular. Em pacientes com hipertensão pulmonar, as alterações decorrentes desta são visualizadas, e a curva de velocidade do refluxo pulmonar ao Doppler contínuo pode ser útil para estimar a pressão diastólica da artéria pulmonar.
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199 13 Doenças valvares
Próteses valvares A busca pela “prótese ideal” ainda persiste, uma vez que todos os dispositivos atualmente implantados mostram limitações; as próteses mecânicas implicam em anticoagulação, cuja inadequação pode resultar em episódio embólico ou hemorrágico, e as biopróteses têm maior possibilidade de deterioração estrutural. Os avanços na técnica de produção e na preparação de tecidos orgânicos, porém, tornaram a bioprótese de pericárdio bovino uma alternativa viável na terapêutica das valvulopatias.
Escolha das próteses valvulares Para a troca da válvula aórtica ou mitral, existem duas escolhas principais de próteses valvulares cardíacas: próteses mecânicas e biopróteses. As válvulas bioprotéticas são porcinas ou de pericárdio bovino. Os desempenhos hemodinâmicos das válvulas são similares. Os riscos cirúrgicos associados à troca valvular cardíaca não estão associados à escolha da prótese. A escolha da prótese valvular precisa ser específica para o paciente. Neste momento, o aluno deve retornar ao tratamento cirúrgico da Insuficiência Mitral, onde são feitas considerações relacionadas à escolha da prótese baseadas nas mais recentes diretrizes. As válvulas mecânicas apresentam excelente durabilidade e desempenharão indefinidamente, sem desintegração estrutural, mas em razão de serem trombogênicas, as válvulas mecânicas obrigam o paciente a uma anticoagulação durante toda a sua vida (warfarina sódica). Logo, os pacientes com uma válvula mecânica incorrem aos riscos da anticoagulação crônica. As válvulas bioprotéticas não precisam de anticoagulação, mas sofrerão uma desintegração estrutural. A durabilidade de uma válvula bioprotética é inversamente relacionada à idade do paciente no momento do seu implante. Se uma válvula bioprotética desintegrar-se estruturalmente, o paciente precisará de reoperação com troca valvar. É importante reconhecer que aproximadamente 80% de todas as trocas valvares aórticas e mitrais nos Estados Unidos são realizadas em pacientes com idade superior a 60 anos. A idade do paciente deve ser considerada, pois pode ser perigoso comprometer um paciente geriátrico à anticoagulação crônica. A sobrevida em dez anos para os pacientes após a troca valvular aórtica varia entre 40% a 70%, com média na literatura de 50%. O tipo de prótese não causa impacto na sobrevida, mas outros fatores específicos ao paciente, como a idade no momento da operação e a presença ou ausência de doença arterial coronariana, causam um impacto na
sobrevida após a troca valvular. Independentemente do tipo de prótese valvular implantado, cerca de um terço dos pacientes morrem por causas relacionadas à válvula. Logo, uma consideração importante na escolha da válvula para qualquer paciente é como ele pode ser afetado individualmente pela morbidade ou pela mortalidade relacionada à válvula. As principais causas de morte relacionada à válvula após o implante valvular incluem tromboembolismo, reoperação, sangramento e endocardite da prótese valvular, sendo a maior delas o tromboembolismo, em grande parte pela razão de as válvulas mecânicas serem trombogênicas, o que aumenta o seu risco. Após dez anos de troca valvular aórtica, o risco de tromboembolismo é de 20% para as válvulas mecânicas e de 9% para as válvulas bioprotéticas. O risco de endocardite das próteses valvulares não é diferente entre as válvulas mecânicas ou biológicas. É de cerca de 4% ao longo de toda a vida do paciente. No entanto, se ocorrer endocardite da prótese valvular, ela estará associada a uma taxa de mortalidade de 50%. A escolha da prótese valvular deve considerar os riscos da anticoagulação (válvula mecânica) e a probabilidade e os riscos de uma reoperação para a desintegração estrutural da válvula (bioprótese). O risco de complicações hemorrágicas pela anticoagulação crônica encontra-se entre 1% e 2% por ano. De fato, 4% das mortes relacionadas às válvulas resultam de sangramento. As válvulas bioprotéticas estão indicadas em pacientes com contraindicações à anticoagulação pela sua ocupação profissional ou pelas doenças clínicas coexistentes. Da mesma maneira, pacientes clinicamente não aderentes ou cujos níveis de anticoagulação não podem ser estritamente monitorizados não devem receber válvulas mecânicas. Dez por cento das mortes relacionadas às válvulas resultam da reoperação, o que afasta alguns pacientes e médicos das válvulas biológicas. No entanto, a incidência de reoperação é de menos de 15% para pacientes com idade superior a sessenta anos. Uma força-tarefa combinada da American Heart Association e do American College of Cardiology forneceu algumas recomendações para ajudar a equilibrar estes riscos. A força-tarefa recomendou que as válvulas biológicas fossem colocadas em posição aórtica em pacientes com idade superior a 65 anos e na posição mitral em pacientes com mais de 70 anos.
Indicações da terapia antitrombótica Os fenômenos tromboembólicos constituem uma das principais causas de morbimortalidade das cardiopatias, principalmente nas valvopatias. A tera-
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200 Cirurgia da cabeça e pescoço, cardíaca e torácica pia antitrombótica é fundamental para impedir a formação e a propagação dos trombos. A indicação é absoluta aos pacientes com próteses mecânicas cardíacas e relativas nas biopróteses, na prevenção e tratamento do tromboembolismo arterial e venoso, no infarto agudo do miocárdio, na fibrilação atrial e no acidente vascular cerebral cardioembólico. Próteses mecânica cardíacas – o número de próteses e a posição de implante determinam maior ou menor risco de trombogenicidade. Em posição mitral e tricúspide, devido à baixa pressão e ao baixo fluxo, ocorre maior risco de trombogenicidade que em posição aórtica. Portanto, devemos almejar INR entre 2,0 e 3,0 através do uso de cumarínicos (anticoagulante oral) para pacientes com prótese aórtica; e INR entre 2,5 e 3,5 para pacientes com prótese mecânica mitral.
Figura 13.44 Prótese valvar orgânica biológica.
Biopróteses – até 1983, empregava-se rotineiramente a terapia anticoagulante nos primeiros meses após a cirurgia, mesmo em pacientes sem fatores de risco para tromboembolismo. Entretanto, devido à baixa incidência de tromboembolismo nos pacientes com biopróteses que não faziam uso de anticoagulante nos primeiros meses após a cirurgia, o seu uso indiscriminado foi abolido, reservando-se apenas aos pacientes com fatores de risco associados, muitas vezes de forma definitiva. Fatores de risco para tromboembolismo Tromboembolismo prévio Átrio esquerdo > 55 mm Fibrilação atrial Trombo cavitário Miocardiopatia Aneurisma do ventrículo esquerdo Tabela 13.14 Figura 13.45 Prótese valvar orgânica biológica.
Figura 13.43 Prótese valvar orgânica biológica.
Figura 13.46 Prótese valvar mecânica.
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CAPÍTULO
10
Hérnias
Definição Consiste na protrusão anormal de um saco com revestimento peritoneal, através da cobertura musculoaponeurótica do abdome. A fraqueza da
parede abdominal, de origem congênita ou adquirida, resulta na incapacidade de manter o conteúdo visceral da cavidade abdominal em seus locais normais.
Pontos anatômicos de importância Anel inguinal externo – defeito medial no oblíquo
externo, acima do tubérculo pubiano que dá passagem do cordão espermático ao escroto.
Anel inguinal interno – defeito na fascia transversalis e aponeurose do TA, a meio caminho entre o púbis e a espinha ilíaca anterossuperior.
Ligamento de Cooper – é uma faixa fibrosa, resistente, que se estende lateralmente por cerca de 2,5 cm ao longo da linha iliopectínea, na face superior do ramo pubiano superior, tendo início na base lateral do ligamento lacunar. Ligamento inguinal (ligamento de Poupart) – porção mais grossa e inferior da aponeurose do oblíquo externo. Ligamento lacunar (Gimbernat) – possui cerca de 1,25 cm de comprimento e tem a forma triangular. A borda lateral aguda, semilunar, deste ligamento é a armadilha inflexível para o estrangulamento de uma hérnia femoral.
Ligamento de Henle – situado no nível da borda lateral do músculo reto do abdome, formando limite medial do anel femoral. Espaço pré-peritoneal – entre a fascia transversalis e o peritônio. Fascia transversalis – lâmina que recobre o músculo transverso do abdome e sua aponeurose. Separa a parede abdominal da gordura pré-peritoneal.
Trígono de Hesselbach – delimitado pela artéria epigástrica inferior, borda lateral do reto abdominal e ligamento inguinal.
Trato iliopúbico – banda aponeurótica dentro da lâmina do transverso do abdome, que faz uma ponte entre os vasos ileofemorais externos do arco iliopectíneo até o ramo superior do púbis. O trato iliopúbico é posterior ao ligamento inguinal. Ele passa por cima dos vasos femorais e compõe uma porção da bainha femoral. Variações no trato iliopúbico podem causar a formação da hérnia femoral.
Trígono de Hessert – delimitado pelo ligamento inguinal, vasos epigástricos e oblíquos internos.
Fáscia de Camper – localizada abaixo da pele é a fáscia superficial.
Tendão conjunto – fusão das fibras aponeuróticas do oblíquo interno e transverso. Ocorre em menos de 10% das dissecções.
156 Cirurgia geral e politrauma Fáscia de Scarpa – localizada abaixo da fáscia de Camper; é mais espessa e dirige-se à região escrotal, onde forma a fáscia de Dartos.
Triângulo de Doom (triângulo vascular) – delimitado pelo ducto deferente medialmente e os vasos espermáticos lateralmente contendo a veia e artéria ilíaca externa. Funículo espermático – contém: músculo cremáster, ducto deferente, veia plexo pampiniforme, ramo genital do nervo genitofemoral, artérias e veias testiculares, nervo ilioinguinal. Na mulher, não existe funículo espermático; o que se tem é o ligamento redondo. Estrutura herniária básica Orifício herniário Saco herniário Colo do saco herniário Conteúdo do saco herniário
1
5
2
6
3
7 8
4
Figura 10.1 Estrutura herniária básica. (1) Desenho esquemático mostrando a pele; (2) a parede do saco herniário; (3) a cavidade do saco herniário; (4) o conteúdo do saco herniário; (5) o colo do saco herniário e o orifício herniário; (6) o peritônio parietal; (7) a cavidade peritoneal; e (8) e o plano muscular. Colo é a parte mais estreita do saco herniário. Orifício herniário é o espaço que, originado no ponto fraco, permite a saída de estrutura intra-abdominal.
Músculo Reto Triângulo de Hesselbach (1814)
Triângulo de Hesselbach (hoje) Artéria epigástrica profunda
Ligamento inguinal Músculo iliopsoas
Artéria femoral Veia femoral Ligamento pectíneo (de Cooper) Ligamento lacunar
Figura 10.2 O triângulo de Hesselbach segundo a descrição original (à esquerda) e segundo a descrição atual.
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10 Músculo oblíquo externo
157 Hérnias
Músculo transverso abdominal Fascia transversalis (lâmina posterior) Artéria e veia epigástrica transversal Fascia transversalis (lâmina posterior) Anel inguinal secundário
Músculo oblíquo interno
Canal inguinal interno Anel abdominal interno
Canal inguinal
Artéria e veia ilíaca externa
Trato iliopúbico
Figura 10.3 Diagrama parassagital clássico de Nyhus da região médio-inguinal direita ilustrando as camadas musculoaponeuróticas separadas nas paredes anterior e posterior. A lâmina posterior da fascia transversalis foi adicionada, com os vasos epigástricos inferiores cursando através da parede abdominal medialmente ao canal inguinal interno.
Área de hérnia direta Área de hérnia indireta
Anel inguinal interno
Tubérculo púbico
V. E. I.
Borda do ligamento inguinal
T. I. P. Ligamento de Cooper
V. G.
Canal femoral V. I. E. D. D.
Figura 10.4 Anatomia das estruturas pré-peritoneais importantes no espaço inguinal direito. VEi: vasos epigástricos inferiores; TIP: trato iliopúbico; DD: ducto deferente; VG: vasos gonadais; e VIS: vasos ilíacos externos.
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158 Cirurgia geral e politrauma Na verdade, muito se escreveu da anatomia sobre a hérnia, mas foi somente a partir do fim da década de 1950 que, graças a Henry Fruchaud, entendeu-se o conceito de região inguinocrural, determinando uma área chamada orifício miopectíneo, limitada cranialmente pelos músculos transverso e oblíquo interno, medialmente pelo músculo reto do abdome, lateralmente pelo músculo iliopsoas, e caudalmente pelo ligamento pectíneo, que recobre o ramo superior do púbis.
Figura 10.5 Ponto fraco da parede abdominal. Em 1, a fosseta inguinal lateral, mostrando o funículo espermático, o qual se relaciona com o anel inguinal profundo; em 2, a fosseta inguinal média.
Figura 10.8 A musculatura posterior do trígono inguinal e a fáscia transversal. 1: Músculo reto do abdome; 2: músculo transverso; 3: trato iliopúbico; 4: músculo iliopsoas; 5: ligamento pectíneo; e 6: forame obturatório.
Figura 10.6 Ponto fraco da parede abdominal. Observa-se o triângulo ou quadrilátero de Grynfeltt (1), cuja nomenclatura oficial é trígono lombar superior, e um vaso local (2), que debilita mais ainda a região.
A hérnia inguinal do adulto, principalmente a partir da década de 1980, não é mais entendida como simples artefato mecânico, em que uma solução de continuidade ocorre na parede abdominal, mas é a patologia que ocorre à luz de conceitos de biologia celular e molecular com alterações moleculares do colágeno e das fibras elásticas integrantes da matriz extracelular, componente soberano da fáscia transversal. Esta concepção atual agora justifica a associação de hérnias com doenças como: tabagismo, sobrepeso, prostatismo, emagrecimento acentuado, aterosclerose, afecções que podem acompanhar a doença herniária inguinal.
Incidência e prevalência
Figura 10.7 Ponto fraco da parede abdominal. Notam-se: hérnia lombar superior (1, Grynfeltt), trígono lombar inferior (2) e hérnia lombar inferior (3, Petit).
Nomenclatura Incidência (%) Hérnias inguinofemorais 75 Hérnias umbilicais 10 Hérnias incisionais 10 Hérnias epigástricas 5 Hérnias de Spigel 5 Hérnias paraestomais 5 Tabela 10.1 Incidências das hérnias da parede abdominal.
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10 A distribuição epidemiológica aqui descrita se refere a doentes adultos, pois, se considerarmos toda a população, vale dizer, incluindo a faixa etária pediátrica, a hérnia inguinal atinge cifras de 83%. A hérnia inguinal representa 69% da doença herniária do adulto. A distribuição, segundo o sexo estabelece, 80% dos casos atingindo homens e 20% mulheres.
Quando analisamos a distribuição quanto à faixa etária, podemos afirmar que 35% das hérnias inguinais ocorrem entre os 20 e 40 anos e os 65% restantes estão distribuídos a partir dos 40 anos.
159 Hérnias
Indireta ou oblíqua externa – mais comum delas, principalmente em homens. Acontece pela persistência do conduto peritoniovaginal (CPV). Ocorre porque não há a obliteração do processo vaginal que é o caminho peritoneal que o testículo faz descendo até a bolsa escrotal. O saco herniário passa através do anel inguinal interno, em posição anteromedial dentro do funículo espermático, podendo estender-se ao longo do canal inguinal ou seguir para fora pelo anel inguinal externo. O saco herniário está lateral aos vasos epigástricos inferiores.
Quanto à topografia, em homens até os 40 anos, temos a predominância de hérnia inguinal à direita, com 65% dos casos, 28% à esquerda e 7% bilateral. Na mulher, nesta mesma faixa etária, 13% são bilaterais e as unilaterais são distribuídas homogeneamente à direita e à esquerda. Nos homens com idade superior a 40 anos, 40% são bilaterais e a distribuição unilateral, seja à direita ou à esquerda, se equivalem.
As hérnias crurais ou femorais (tipo V da classificação de Rodrigues Jr./Campanha Nacional do Mutirão de Hérnia Inguinal do Ministério da Saúde, 1999) são mais comuns na mulher do que no homem, na proporção de 4 para 1 e na faixa etária acima dos 40 anos. Ela também é duas vezes mais frequente à direita.
Quando analisamos pacientes portadores de hérnia inguinal com mais de 60 anos, representando cerca de 18% do total de doentes com hérnia inguinal, é mito não oferecer possibilidade de correção, pois a maioria apresenta indicação cirúrgica. Características das Hérnias Inguinais Diretas Indiretas Congênitas Adquiridas Homem jovem Homem mais idoso Aparece lentamente Aparece rapidamente Pode chegar à bolsa escrotal Raramente chega à bolsa escrotal Pode estrangular É muito raro estrangular Difícil a redução espontânea Redução espontânea Tabela 10.2 Características das hérnias inguinais, segundo fatores predisponentes. Atenção!
Classificação das hérnias Apesar de não existir consenso entre os cirurgiões sobre qual das classificações é a mais prática e acreditada, é aceito que as hérnias inguinais e crurais podem ser classificadas como uma única deficiência: o defeito da parede posterior.
Figura 10.9
Volumosa hérnia inguinoescrotal.
Direta ou oblíqua interna – resulta do enfra-
quecimento da parede posterior (fascia transversalis). Tem como local de menor resistência a fosseta peritoneal média. O saco herniário é medial aos vasos epigástricos inferiores, através do trígono de Hesselbach. Por isso, a hérnia direta é chamada hérnia do trígono de Hesselbach. O saco peritoneal se desenvolve perpendicularmente à parede abdominal. Qualquer condição que demande muito esforço muscular e/ou aumento de pressão abdominal pode resultar em hérnia direta: obesidade, ascite e atrofia dos músculos abdominais por velhice. Mista ou Pantaloon – coexiste hérnia direta e indireta. Femoral – saco herniário passa por trás do ligamento inguinal e insinua-se por meio do anel femoral, por dentro da bainha dos vasos femorais. Das hérnias estranguladas, a femoral é de grande frequência e, ainda, pode ocorrer com hérnia de Richter. Hérnia de deslizamento – parte da parede do
saco é a própria víscera (cólon, bexiga etc.). De acordo com a classificação proposta por Nyhus (1991) podemos dividir as hérnias da região inguinofemoral em quatro tipos (Tabela 10.3).
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160 Cirurgia geral e politrauma Classificação de Nyhus I – Hérnia indireta sem alargamento do anel interno (por exemplo, hérnia na criança). II – Hérnia indireta com alargamento do anel interno, mas parede posterior intacta e vasos epigástricos na posição anatômica esperada. III – Defeitos da parede posterior. IIIA – Hérnia direta. IIIB – Hérnia indireta – anel interno dilatado com destruição medial da fáscia transversalis. Por exemplo, inguinoescrotais, pantaloon, hérnias de deslizamento. IIIC – Hérnia femoral. IV – Hérnias recidivadas*. IVA – Direta. IVB – Indireta. IVC – Femoral. IVD – Combinação de A, B e C. Tabela 10.3 Atenção! *IV A: hérnia direta; IV B: Hérnia indireta; IV C: hérnia femoral; e IV D: hérnia mista.
Outra classificação utilizada na prática cirúrgica é a idealizada por Junqueira Rodrigues Jr. Classificação de Junqueira Rodrigues Jr. Tipo 1 Presença de saco herniário lateral aos vasos epigástricos profundos. Anel inguinal profundo < 1 cm. Assoalho do canal inguinal íntegro e resistente (hérnia do jovem). Tipo 2 Presença de saco herniário lateral aos vasos epigástricos profundos. Anel inguinal profundo “pátulo” > 2,5 cm. Assoalho do canal inguinal parcialmente alterado (hérnia do adulto/idoso). Tipo 3 Fraqueza do assoalho, em geral de natureza diverticular (hérnia do adulto/idoso). Tipo 4 Hérnia dupla ou “em pantalona” (hérnia do adulto/idoso). Tipo 5 Hérnia femoral. Pode ser redutível ou, em geral, encarcerada (ocorre com maior frequência em mulheres). Tabela 10.4 Classificação das hérnias inguinocrurais de Junqueira Rodrigues Jr. Classificação das hérnias externas Superiores Diafragmáticas Hérnia do hiato esofagiano. Anterior (Morgagni). Posterior (Bochdalech). Inferiores Perineais Isquiáticas. Posterio- Lombares Superior (Grynfeltt). res Inferior (Petit). Anteriores Epigástricas. Umbilicais. Inguinais. Femorais. Linha semilunar. Tabela 10.5 Classificação das hérnias externas.
De acordo com o tamanho do anel herniário, podem ser pequenos (< 1,5 cm), médias (1,5 a 3-4 cm) e grandes (> 3-4 cm ou duas polpas digitais).
Conforme o tamanho do saco herniário, as hérnias podem ser classificadas como restritas ao canal inguinal, situadas além do anel inguinal externo e, por último, na bolsa escrotal. As hérnias podem ser redutíveis ou irredutíveis (encarceradas). O estrangulamento é caracteri-
zado pela impossibilidade de redução associada à isquemia de seu conteúdo. Na hérnia de deslizamento, parte do saco herniário é constituída pela parede de alguma víscera intra-abdominal, mais frequentemente o cólon, seguido da bexiga.
Etiopatogenia Defeitos congênitos e adquiridos são responsáveis pela maioria das hérnias inguinais.
A persistência do processo vaginal é o fator primário que desencadeia o desenvolvimento de uma hérnia inguinal indireta. Prematuridade e baixo peso ao nascer são comprovadamente fatores de risco significativos. Anormalidades congênitas, como deformidades pélvicas ou extrofia da bexiga, podem causar
anormalidades do canal inguinal, resultando na formação de hérnias inguinais. Deformidades congênitas ou deficiências de colágeno podem proporcionar o aparecimento de hérnias
inguinais diretas. As hérnias diretas são atribuídas aos estresses e desgastes da vida. O esforço para urinar ou para defecar, tossir e levantar objetos pesados tem sido implicado como fator causal, provocando traumatismo e enfraquecimento do assoalho inguinal. Já se verificou que hérnias inguinais ocorrem mais amiúde em tabagistas do que em não tabagistas. Idade avançada e doenças crônicas são fatores de risco associados ao desenvolvimento de hérnias. Ati-
vidade física vigorosa e a prática de esportes também têm sido propostas como estresses crônicos que podem apresentar formação de hérnias.
Apresentação clínica e diagnóstica De modo geral, um paciente com hérnia inguinal queixa-se de um “caroço” na região inguinal. O paciente pode descrever dor discreta ou vago desconforto associado à protrusão abdominal. Às vezes, os pacientes queixam-se de parestesias relacionadas à irritação ou compressão de nervos inguinais pela hérnia.
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10 A área inguinal é examinada com o paciente de pé e de frente para o médico. A inspeção visual da virilha revela, com frequência, perda da simetria ou uma protrusão bem definida. Quando se pede ao paciente para tossir ou realizar a manobra de Valsalva, a protrusão acentua-se. A manobra de Landivar consiste na colocação da ponta dos dedos na parede abdominal sobre a região inguinal e pede-se ao paciente para repetir a manobra de Valsalva. A seguir, coloca-se a ponta de um dedo no canal inguinal, e a manobra de Valsalva é repetida. Uma protrusão que passa de uma posição lateral para uma medial contra a ponta do dedo é mais compatível com uma hérnia indireta. Já a protrusão que avança contra o dedo de uma posição profunda para uma superficial por meio do assoalho do canal é mais compatível com hérnia inguinal direta. A diferenciação entre hérnias diretas e indiretas, por ocasião do exame físico, não é essencial, porque os dois tipos podem ser reparados pela mesma abordagem. Uma protrusão abaixo do ligamento inguinal é compatível com uma hérnia femoral.
161 Hérnias
Hérnia irredutível ou encarcerada é a que se mantém em estado de protrusão crônica ou aquela que não pode ser reduzida mediante manipulação. Estrangulada é a hérnia encarcerada que apre-
senta comprometimento da vascularização do seu conteúdo, podendo evoluir para gangrena e perfuração. A ultrassonografia específica da parede abdominal na região inguinofemoral, com transdutores menores, tem sido cada vez mais utilizada para o diagnóstico de herniações, com sensibilidade de 90% e especificidade entre 82% e 86%. Para melhores resultados, o exame deve ser realizado com o paciente alternando situação de relaxamento muscular com manobra de Valsalva. A herniografia, realizada por injeção de contraste iodado na cavidade peritoneal, é pouco utilizada em nosso meio. Apesar de ser um exame simples e que pode evitar intervenções cirúrgicas desnecessárias em casos duvidosos, apresenta alguns inconvenientes, como dor abdominal após o contraste, risco de perfuração de vísceras e reações alérgicas. A tomografia computadorizada, por sua vez, é realizada para elucidação diagnóstica de massas, e o achado de hérnias acaba sendo incidental. Outra utilidade da tomografia é a mensuração do volume do conteúdo herniado nas grandes hérnias inguinoescrotais, bem como a identificação dos órgãos que possam estar herniados. A ressonância nuclear magnética, não constitui método habitual para diagnóstico de hérnias inguinais ou femorais. Apresenta, porém, sensibilidade e especificidade maiores que 95% para estabelecer o tipo de hérnia encontrado, se femoral ou inguinal.
Figura 10.10 Manobra de Landivar: Palpação para exame do orifício inguinal externo e avaliação da parede posterior.
A seguir, o paciente é examinado em decúbito dorsal, repetindo as etapas descritas para o exame em posição ortostática. Uma massa inguinal descrita pelo paciente, mas que não foi identificada no exame físico, pode tornar-se palpável ou visível após se fazer o paciente deambular ou ficar de pé por algum tempo. É incomum a necessidade de fazer o paciente retornar para um novo exame da região inguinal. A incapacidade de reduzir manualmente uma hérnia encarcerada exige intervenção cirúrgica imediata. A maioria das hérnias ocorre em homens. A hérnia mais comum em homens e mulheres é a hérnia inguinal indireta. Hérnia redutível é a hérnia cujo conteúdo regres-
sa espontaneamente ou mediante manipulação para a cavidade abdominal.
Tratamento cirúrgico das hérnias inguinais Indicação cirúrgica: após o diagnóstico Exceção: Paciente em estado terminal, imunossuprimido ou extremamente idoso estaria na categoria dos pacientes cuja correção cirúrgica pode ser postergada até a melhora das condições clínicas ou não ser operado.
A história natural da hérnia inguinal é de aumento progressivo e enfraquecimento, com o potencial de encarceramento e obstrução intestinal e subsequente comprometimento da irrigação vascular para o intestino (estrangulamento), resultando em infarto intestinal. As hérnias não desaparecem espontaneamente nem melhoram com o passar do tempo. A correção de uma hérnia inguinal pode ser planejada de maneira eletiva, a menos que exista encarceramento ou estrangulamento.
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162 Cirurgia geral e politrauma Fatores associados ao aumento da pressão intra-abdominal devem ser corrigidos ou atenuados, se possível, antes da herniorrafia eletiva, como prostatismo, tosse crônica ou constipação.
Antibioticoprofilaxia
do pênis e do escroto. O ramo genital do nervo genitofemoral inerva o grande lábio na mulher e a bolsa escrotal no homem.
Existem numerosas opções para reconstrução do assoalho inguinal; faremos uma descrição dos diversos procedimentos cirúrgicos. Resumem-se em três tempos fundamentais:
Apesar de a herniorrafia inguinal ser classificada como uma cirurgia limpa, vários estudos atestam a vantagem de antibioticoprofilaxia. O antibiótico de escolha é a cefazolina (dose única ou, no máximo, por 24 horas, se for usada prótese). O antibiótico deve ser administrado por via endovenosa na indução da anestesia.
cuidar dos elementos herniados, reconduzindo-os à cavidade de origem ou ressecando-os, quando necessário (caso haja necrose);
dissecção cuidadosa do saco herniário, seguida de ligadura e secção do mesmo;
correção do defeito anatômico que permitiu a formação herniária.
Anestesia As herniorrafias inguinais podem ser realizadas com anestesia local, espinhal (regional) ou geral. A seleção do tipo de anestesia depende de vários fatores, principalmente a idade e as condições gerais do paciente, a preferência do cirurgião e a técnica de herniorragia utilizada. Os agentes anestésicos mais utilizados para a anestesia local são a lidocaína e a bupivacaína, associadas ou não a vasoconstritores. A lidocaína
inicia sua ação mais rapidamente e sua duração habitualmente não excede duas horas, apresentando ações tóxicas com níveis séricos acima de 5 mg/L. A bupivacaína, por sua vez, inicia sua ação com um período de latência maior, sua duração é mais prolongada, alcançando até oito horas, e seu nível sérico limite é 1,6 mg/L. O uso de adrenalina diminui a absorção local dos anestésicos e permite que o seu tempo de ação seja prolongado. A concentração adequada de adre-
Figura 10.11 Hérnia inguinal indireta. Canal inguinal aberto evidenciando cordão espermático afastado medialmente e o saco peritoneal herniário indireto dissecado acima do nível do anel inguinal interno.
nalina para esse objetivo é de 1/200.000, acima da qual poderão aparecer efeitos colaterais. O desconforto referido durante a infiltração dos anestésicos locais pode ser reduzido com a adição de bicarbonato de sódio ou de solução salina isotônica à solução anestésica, visando à diminuição de sua acidez. Habitualmente com anestesia local, obtém-se 80 mL de solução de bupivacaína a 0,125% (dose total de 100 mg) e lidocaína a 0,5% (dose total de 400 mg) pela adição de 20 mL de bupivacaína 0,5% a 20 mL de lidocaína 2% e a 40 mL de soro fisiológico.
A correção da hérnia a céu aberto começa com uma incisão curvilínea a aproximadamente dois dedos transversos acima do ligamento inguinal. Deve-se ter cuidado para não lesar os nervos ilioinguinal e íleo-hipogástrico, que são responsáveis pela inervação da pele da porção inferior do abdome,
Figura 10.12 Hérnia inguinal direta. Canal inguinal aberto e o cordão espermático afastado para baixo e para fora para revelar a protuberância herniária por meio do assoalho do triângulo de Hesselbach.
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Técnicas de reconstrução da parede posterior do canal inguinal Técnica de Marcy Publicada por Henry Orlando Marcy, em 1871, no Boston Medical and Surgical Journal. Pode ser utilizada em hérnias inguinais indiretas isoladas ou associadas a hérnias diretas, com a técnica, neste caso, fazendo parte de um procedimento mais extenso. As indicações para o uso da técnica de Marcy são: lactentes e crianças com anéis internos dilatados (tipo II); pacientes jovens com PPCI (parede posterior do canal inguinal) preservada (tipo II); pacientes de meia-idade ou idosos com hérnias inguinais indiretas grandes ou com hérnia inguinal direta, nos quais o anel inguinal profundo está fechado, como parte de um procedimento mais extenso de reforço da PPCI (tipos IIIa e IIIb).
163 Hérnias
Correção de Shouldice (canadense) Após dissecção, a parede posterior da fascia transversalis é aberta e suturada “em jaquetão” por dois planos de sutura. A primeira sutura fixa a borda inferior da fáscia à face posterior do folheto superior, e a segunda fixa a borda inferior do folheto superior da fáscia ao ligamento inguinal. Um segundo reforço é feito pela aproximação do tendão conjunto, da borda inferior dos músculos oblíquo interno e transverso ao ligamento inguinal. Todos os planos são aproximados por suturas contínuas com fio monofilamentar; com esta técnica as recidivas herniárias ficam em torno de 1%. Desvantagens: elevado índice de recidiva, tensão excessiva na linha de sutura, aprendizado difícil. Atualmente, pouco utilizada no Brasil.
A técnica de Marcy pode ser realizada por via transabdominal, pré-peritoneal ou inguinal. Caracteriza-se pelo fechamento do anel inguinal profundo com estruturas pertencentes exclusivamente à PPCI, ou seja, o arco do músculo transverso do abdome e o trato iliopúbico. O resultado final desse procedimento preserva a mobilidade e a função protetora do anel profundo, ao contrário do que ocorre em técnicas nas quais o anel é fixado por pontos cirúrgicos ao ligamento inguinal, como nas técnicas de Bassini e de Zimmerman, por exemplo.
Técnica de Bassini (ligamento de Poupart) Originalmente consiste na aproximação do tendão conjunto e a borda dos músculos oblíquos internos e transversos ao ligamento inguinal de Poupart. A sutura se inicia no púbis e termina no anel interno. Corresponde ao método mais amplamente utilizado. O reparo de Halsted coloca o músculo oblíquo externo abaixo do cordão, mas de outra forma assemelha-se ao reparo de Bassini.
Figura 10.13 Técnica de Shouldice: exposição da parede posterior do canal inguinal e linha de incisão.
Como só 11% da população possui tendão conjunto, a técnica é também descrita da seguinte forma: aproximação do arco aponeurótico do transverso ao ligamento inguinal, com pontos separados de sutura inabsorvível. As principais indicações são: hérnias inguinais unilaterais ou bilaterais.
Desvantagens: elevado índice de recidiva, ao redor de 30%. Atualmente, praticamente abandonada, em função dos altos índices de recidiva.
Zimmerman (cinta iliopectínea) Sutura a fascia transversalis à cinta iliopectínea, iniciando-se no nível do púbis e terminando na borda do orifício interno, estreitando-o. Em desuso.
Figura 10.14 Técnica de Shouldice: abertura da parede posterior do canal inguinal, expondo o tecido adiposo pré-peritoneal, desde o anel inguinal profundo até o tubérculo púbico.
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164 Cirurgia geral e politrauma
Operação de Condon
Figura 10.15 Técnica de Shouldice: primeiro plano; sutura contínua iniciada no tubérculo púbico e terminando no anel inguinal profundo, unindo a borda livre do folheto inferolateral (IL) à face posterior do folheto superomedial.
Reparo anterior ao trato ileopectíneo. O reparo de Condon é feito mediante suturas separadas, a 5 a 7 mm de distância uma da outra, que unem a borda do transverso abdominal (tendão conjunto) ao trato iliopúbico. As suturas mais laterais ligam até o ânulo inguinal interno e logram seu fechamento medial; mas, além disso, o reparo total do ânulo efetua-se mediante a colocação de outras suturas laterais ao cordão espermático. Como em outros reparos, o ajuste do fechamento do ânulo é determinado pela ponta de uma pinça hemostática grande. Nesta técnica, é recomendada uma incisão de relaxamento no reparo das hérnias diretas.
Operação de McVay Esta técnica consiste na sutura do arco aponeurótico do transverso ao ligamento pectíneo (Cooper), com incisões relaxadoras na bainha do reto abdominal. Suas indicações são: hérnias inguinais unilaterais ou bilaterais e hérnias femorais. Este reparo é particularmente utilizado para as hérnias femorais estranguladas, porque proporciona obliteração do espaço femoral sem o uso de malha. Desvantagens: elevado índice de recidiva, tensão excessiva na linha de sutura e lesão da veia femoral.
Técnicas com utilização de prótese livre de tensão Figura 10.16 Técnica de Shouldice: segundo plano; sutura contínua unindo a borda livre do folheto superomedial ao ligamento inguinal, desde o anel inguinal profundo até o tubérculo púbico.
Figura 10.17 Técnica de Shouldice: terceiro plano; sutura contínua aproximando os músculos oblíquo interno e transverso do abdome ao ligamento inguinal desde o anel profundo até o tubérculo púbico.
Lichtenstein (livre de tensão) Lichtenstein enfatizou a falta de lógica de corrigir uma hérnia por meio da reunião de tecidos que são suturados sob tensão. Então, propôs que a “ausência total de tensão na linha de sutura é condição sine qua non para a correção (de hérnias)”. A rotina é realizar a cirurgia em esquema ambulatorial com anestesia local. Uma tela de Marlex® (polipropileno) é suturada ao tecido aponeurótico sobreposto ao osso púbico, com a continuação dessa sutura ao longo da borda do ligamento inguinal (de Poupart), até um ponto lateral do anel inguinal interno. A borda lateral da tela é cortada para permitir a passagem do cordão espermático. A borda cefálica da tela é suturada no tendão conjunto, com a borda do músculo oblíquo íntimo sobreposta em aproximadamente 2 cm. As duas pontas da face lateral da tela são suturadas. Atualmente, é a técnica mais utilizada para o tratamento das hérnias inguinais, no entanto, tem como desvantagens maior incidência de neurodinia associada à lesão de nervos periféricos e intensa fibroplasia local.
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Figura 10.21 aspecto final. Figura 10.18 Lichtenstein.
165 Hérnias
Técnica de Lichtenstein: tela suturada,
Herniorrafia inguinal pela técnica de
Stoppa Consiste no revestimento do peritônio pélvico com tela de polipropileno. A tela é fixada ao osso público em sua face posterior e mantida em posição pela pressão abdominal. Os elementos do cordão inguinal são parietalizados. As principais indicações são: hérnias inguinais bilaterais, hérnias inguinais grandes ou com destruição do ligamento inguinal, hérnias recidivadas, hérnias femorais. Desvantagens: dissecção grande, difícil aprendizado que exige o conhecimento da anatomia pré-peritoneal, intensa fibroplasia pré-peritoneal.
Figura 10.19 Secção longitudinal da tela, a partir de sua borda superior, até o anel inguinal profundo, o que permite ao cordão inguinal emergir pelo extremo inferior dessa secção, sendo criados dois folhetos na tela.
É a técnica mais radical para tratamento de hérnias inguinocrurais. Deve ser realizada por cirur-
giões experientes no tratamento de hérnias.
Técnica de Nyhus A incisão cutânea é horizontal, à direita e acima da sínfise pubiana. A dissecção é realizada até o espaço pré-peritoneal, após divulsão das fibras do músculo oblíquo interno e transverso. É realizada secção do espaço pré-peritoneal, com prolongamento da incisão medial, lateral e inferiormente. Dessa forma, os sacos herniários podem ser visualizados como divertículos peritoneais, os quais (sacos diretos ou indiretos) são separados dos elementos do cordão e reduzidos. O reparo da hérnia é realizado por meio de suturas com fio monofilamentar, aproximando o tendão conjunto ao trato iliopúbico. Mais recentemente, Nyhus prega a utilização de prótese, além das suturas, para correção das hérnias inguinais, principalmente as diretas.
Operação de Gilbert Figura 10.20 Técnica de Lichtenstein: posicionamento do folheto medial da tela sobre o folheto lateral.
Esta técnica de reparo das hérnias inguinais emprega uma prótese de polopropileno conhecida como Prolene Hérnia System (PHS) que combina três mecanis-
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166 Cirurgia geral e politrauma mos de ação. A tela de PHS é formada por uma malha interna, o componente pré-peritoneal que reforça o orifício miopectíneo. Também inclui um componente oval externo que é inserido sobre a fáscia transversal para reforçar o assoalho da região inguinal, como na técnica de Lichtenstein. Os componentes internos e externos da tela são acoplados por meio de um cilindro.
Operação de Trabucco Um cone de polipropileno oblitera o ânulo inguinal profundo e uma prótese do mesmo material, recortada segundo a área do trígono inguinal do paciente, é colocada sobre a fáscia transversal, envolvendo o funículo, sem fixação às estruturas adjacentes.
Operação de Rutkow e Robbins Um cone de polipropileno é introduzido no ânulo inguinal profundo e uma prótese pré-confeccionada, de tamanho padrão, é aplicada sem suturas sobre a fáscia transversal.
Uma variante é a técnica de Alexandre, que realiza uma dissecção mais ampla do espaço pré-peritoneal, com secção dos vasos epigástricos. A tela grande de 18 x 15 cm é deixada no espaço pré-peritoneal sem fixação. Um reparo de McVay é realizado anteriormente à prótese. As principais indicações são: hérnias inguinais
unilaterais ou bilaterais, hérnias inguinais recidivadas, hérnias femorais. Desvantagens: procedimento tecnicamente difícil que exige conhecimento da anatomia pré-peritonial, aprendizado difícil, intensa fibroplasia local. Os melhores resultados são observados nas hérnias recidivadas com destruição da parede posterior.
Técnica de PHS
Operação de Rives
O PHS (Prolene Hernia System) é uma tela tridimensional dupla com um conector no meio, que permite que a hérnia seja corrigida por meio de uma pequena incisão (em média de 3 a 5 cm), na região inguinal. O material pode ser utilizado em todos os tipos de hérnia e possui tamanhos diferentes, para vários tamanhos de hérnias.
Consiste na fixação de tela de polipropileno sob a fascia transversalis, no espaço pré-peritonial. A tela é suturada ao ligamento pectíneo e ao arco aponeurótico do transverso. Também é realizada uma abertura na porção lateral da tela, que permite a passagem do funículo espermático e a criação de um novo anel inguinal profundo.
Possibilita o tratamento das hérnias de maneira eficaz, com baixo índice de recidiva (1%). A técnica com PHS é considerada segura, em geral, realizada sob anestesia local. Permite que o paciente saia caminhando do centro cirúrgico, gerando assim menos gastos, pois não necessita de internação hospitalar.
Diferenças técnicas entre as operações de hernioplastia com prótese de polipropileno Autor Dimensões da prótese Posição da prótese Proteção do ânulo profundo Posição do funículo Lichtenstein 16 x 8 cm, recortada Sobre a fáscia transversal, fixa Cruzamento da prótese ao Abaixo da aponeurose no intraoperatório. nas estruturas adjacentes. redor do funículo. do MOE. Gilbert 8 x 4 cm, recortada Sobre a fáscia transversal, sem fi- “Guarda-chuva” no EPP. Abaixo da aponeurose no intraoperatório. xação nas estruturas adjacentes. do MOE. Rutkow e 8 x 4 cm, pré-cortada. Sobre a fáscia transversal, sem fi- Cone no EPP. Abaixo da aponeurose Robbins xação nas estruturas adjacentes. do MOE. Trabucco 8 x 4 cm, pré-cortada. Sobre a fáscia transversal, sem Cone no EPP. Acima da aponeurose fixação nas estruturas adjacentes. do MOE. EPP: Espaço pré-peritoneal; MOE: músculo oblíquo externo. Tabela 10.6
Hérnias femorais A hérnia femoral ocorre por meio de um espaço limitado superiormente pelo trato iliopúbico, inferiormente pelo ligamento de Cooper, lateralmente pela veia femoral e medialmente pela inserção do trato iliopúbico no ligamento de Cooper. No exame físico, encontra-se uma massa abaixo do ligamento inguinal. As hérnias femorais são mais comuns nas mulheres (4 a 5 vezes) do que nos homens.Em razão do seu pequeno e rígido orifício é a que mais facilmente estrangula.
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10
167 Hérnias
A cirurgia da hérnia femoral pode ser realizada através de vários acessos, cada um apresentando vantagens e inconvenientes: 1) via inguinal; 2) via femoral; 3) via combinada; e 4) via pré-peritoneal.
visceral constitui mais comumente a parede posterolateral do saco herniário. Essencial ao reparo de deslizamento é a redução de uma hérnia das vísceras para dentro da cavidade peritoneal e a ligadura do saco herniário.
A hérnia femoral pode ser corrigida usando-se uma técnica-padrão de reparo do ligamento de Cooper (de McVay) ou a técnica de Gilbert modificada, em que se usa um plug de Marlex (polipropileno) na região femoral. As abordagens pré-peritoneal e laparoscópica também proporcionam excelente visualização e acesso. A recorrência é semelhante àquela descrita para hérnia inguinal direta, de cerca de 5%-10%.
A chave para o reparo bem-sucedido de uma hérnia de deslizamento é o reconhecimento do componente visceral e a devolução segura das vísceras para a cavidade abdominal, com reconstrução meticulosa do canal inguinal.
Em serviços como a Unifesp, o plug femoral é considerado o padrão de excelência no tratamento de hérnias femorais.
Correção laparoscópica das hérnias O tratamento videocirúrgico das hérnias apresenta várias vantagens em relação à abordagem aberta, sendo as principais: redução acentuada da dor, retorno mais precoce ao trabalho e cicatriz mínima. A videocirurgia permite a inspeção das regiões inguinal e femoral bilateralmente, de forma que hérnias contralaterais não diagnosticadas, previamente, podem ser reparadas concomitantemente sem a necessidade de incisões adicionais.
Figura 10.22 HF típica – localizada medialmente à veia femoral e lateralmente à borda medial do anel femoral.
Hérnias de deslizamento Uma hérnia inguinal de deslizamento é definida como aquela na qual uma víscera forma uma porção da parede do saco herniário. Mais comumente, a víscera envolvida é um segmento do intestino ou da bexiga. O ceco é envolvido mais comumente nas hérnias inguinais à direita, enquanto o cólon sigmoide é o órgão mais frequentemente envolvido no lado esquerdo. As hérnias inguinais indiretas representam o tipo mais comum de hérnia de deslizamento, embora ocorram hérnias de deslizamento diretas e femorais. O perigo primário associado a uma hérnia de deslizamento é a incapacidade de detectar o componente visceral da hérnia, antes que ocorra lesão do intestino ou da bexiga. O saco herniário deve ser aber-
to em sua borda anteromedial, enquanto o componente
As principais desvantagens da herniorrafia videocirúrgica são a utilização de anestesia geral pela maioria dos cirurgiões e o custo mais elevado, quando se utilizam clampeadores e outros materiais descartáveis. Pacientes que não podem tolerar a anestesia geral ou que apresentam várias cirurgias prévias em abdome inferior não devem ser submetidos à herniorrafia laparoscópica. Apesar da maior dificuldade técnica, o procedimento laparoscópico totalmente extraperitoneal é a herniorrafia videocirúrgica (laparoscópica), mais utilizada, atualmente, em razão de seus menores índices de complicações e recorrência.
Técnica laparoscópica transabdominal préperitoneal (TAPP) Após a realização de pneumoperitônio, os trocartes são colocados dentro da cavidade abdominal. O peritônio é incisado superiormente ao assoalho inguinal, de modo a produzir um retalho de peritônio. A dissecção e a fixação da tela são realizadas no espaço pré-peritoneal. O saco herniário é dissecado e reduzido, como mencionado na técnica laparoscópica anterior. A tela é posicionada e fixada no ligamento de Cooper e ao lado interno do tendão conjunto, não colocando suturas lateralmente aos vasos epigástricos. Finalmente, o retalho do peritônio é colocado em sua posição inicial, de modo a cobrir totalmente a tela e evitar aderências e erosões da tela a alças intestinais. Relatos atuais demonstram bons resultados com baixas taxas de recidiva.
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168 Cirurgia geral e politrauma
Técnica laparoscópica totalmente extraperitoneal (TEP) Apesar da maior dificuldade técnica, a técnica totalmente extraperitoneal (TEP) é a herniorrafia videocirúrgica (laparoscópica) mais utilizada atualmente. Essa operação inicia-se com uma pequena
incisão na bainha anterior do músculo reto do abdome, na altura ou pouco abaixo do umbigo. Afastando-se o músculo reto do abdome, um trocarte rombo é introduzido na bainha do músculo, sobre a aponeurose posterior, paralelo à bainha, em direção ao púbis. A partir da linha arqueada de Douglas, o trocarte penetra diretamente no espaço pré-peritoneal, e a dissecção romba ou por meio de um balão dissector é efetivada. Posteriormente, o gás é insuflado nessa região pré-peritoneal dissecada, permitindo a introdução dos trocartes auxiliares e a identificação das estruturas do orifício miopectíneo. A colocação e a fixação da prótese podem ser semelhantes àquelas utilizadas pela técnica transabdominal. Comparação entre as técnicas laparoscópicas TAPP versus TEP Vantagens da TAPP Vantagens da TEP Permite o rápido e fácil Não viola a cavidade peritodiagnóstico de “hérnia neal. contralateral” (não diagnosticada no pré-operatório). Mais fácil reconhecimen- Menor risco de lesões visto dos elementos anatôcerais. micos. Menor risco de conversão. Menor risco de obstrução intestinal e de hérnias nas incisões dos trocartes. Menor risco de lesões Realização mais suscetívasculares. vel quando realizada com anestesia locorregional . Na maioria dos casos não precisa fixar a prótese. Tabela 10.7
Complicações cirúrgicas para correção das hérnias inguinais Testículos: orquite isquêmica e atrofia testicular são as duas possíveis complicações que acometem o testículo, após herniorrafias inguinais. Apresentam-se como dor, edema e endurecimento do testículo associado a febre baixa. Essa condição pode progredir para atrofia testicular.
A fisiopatologia da orquite isquêmica, provavelmente, tem início com a congestão venosa intensa dentro do testículo, secundária à trombose das
veias do cordão espermático (veias pampiniformes).
Vaso deferente: trauma no vaso deferente pode ser por transecção ou obstrução. A transecção, geralmente, ocorre em reparos abertos, principalmente nas hérnias recidivadas. A obstrução pode ocorrer pelo pinçamento excessivo causando fibrose de intensidade variada no lúmen do vaso. Hidrocele: é uma complicação pouco comum das operações para correção de hérnias inguinais. Provavelmente, está relacionada à esqueletização do cordão espermático e dissecção excessiva do saco herniário e do ânulo inguinal interno. Além disso, a persistência da parte proximal do saco herniário indireto pode ser um fator predisponente. Seromas: na região inguinal são raramente de relevância clínica. Entretanto, com a introdução das próteses, há uma tendência maior à formação de seromas. Vasculares: lesões da veia femoral podem ser causadas por suturas próximas à parede anterior da veia, ou por compressão da veia femoral por uma sutura colocada muito lateralmente, próxima ao ligamento de Cooper. A lesão da artéria femoral pode acontecer durante a reconstrução da parede posterior, próximo ao anel inguinal profundo; neste local a artéria femoral se situa 1 a 1,5 cm abaixo da fáscia transversal. Bexiga: a bexiga é posterior e medial à parede inguinal posterior e pode estar aderida ou “deslizar” em uma hérnia direta ou femoral. Além disso, retenção urinária, principalmente, após anestesias locorregionais, é uma complicação comum das herniorrafias inguinais. Intestinos: nos casos de encarceramento ou estrangulamento da hérnia há envolvimento direto do intestino, necessitando de inspeção rigorosa e, até mesmo, ressecção de alças em alguns casos. Indiretamente, pode haver laceração ou até ruptura de uma alça na presença de hérnia deslizante. Infecção: pode complicar todos os tipos de cirurgia. As mulheres têm maior índice de infecção que os homens. Hérnias encarceradas, recorrentes, umbilicais e femorais também apresentam maiores taxas de infecção, respectivamente 7,8%, 10,8%, 5,3% e 7,7%. A presença de prótese também aumenta os índices de infecção.
A presença de infecção não exige necessariamente a retirada da prótese, a não ser que esta se encontre mergulhada em um abscesso ou banhada por secreção purulenta. Infecções tardias também podem acontecer quando houver próteses, até meses ou anos, após o implante. Lesões de nervo: são infrequentes. Os nervos mais atingidos durante o reparo aberto da hérnia são o ilioinguinal, ramo genital e genitofemoral e íleohipogástrico. No reparo laparoscópico, os nervos cutâneo femoral lateral e genitofemoral são afetados com mais frequência.
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10 A dor inguinal crônica ou inguinodinia pode ser neurálgica ou neuropática. A neuralgia é caracterizada por hiperestesia sobre o dermátomo, com dor intensa sobre um neuroma ou nervo que foi incluído em uma sutura ou sob a tela. Se não houver resposta ao tratamento clínico, deve ser realizada a exploração cirúrgica com secção dos três nervos da região inguinal. A dor neuropática é caracterizada por um período inicial de anestesia e posterior hiperestesia da região e dor paroxística. Recidiva: permanece como a complicação mais comum da cirurgia para hérnias inguinais. A recidiva é elevada para as técnicas que não usam prótese, variando de 2,3% a 20% para hérnias inguinais e de 11,8% a 75% para hérnias femorais. A recidiva é bem menor com os procedimentos que usam tela (técnica sem tensão na sutura), de 1% a 2%.
Complicações da correção laparoscópica As complicações encontradas na herniorrafia laparoscópica abdominal são semelhantes às encontradas na experiência com cirurgia a céu aberto, a saber, infecção de ferida e formação de seroma. É comum o achado de enduração no orifício de entrada dos trocartes e foi observado em todos os pacientes em um estudo. Em geral, esta enduração cede completamente no prazo de 6 a 8 semanas. As infecções de ferida são muito raras, com incidência aproximada de 3%. Os seromas pós-operatórios foram raros, com incidência aproximada de 6%. Esta incidência pode ser mais minimizada se o saco herniário não for excisado. No entanto, se surgir um seroma, devemos evitar a tentativa de aspirar, pois este procedimento aumenta o risco de infecção e não acelera a resolução. Também há relatos de lesão intestinal acidental que ocorrem durante a retirada de aderências ou como consequência de uma lesão térmica da transmissão da corrente do eletrocautério. Consequentemente, devemos dar ênfase ao uso limitado do eletrocautério durante a dissecção e a lise das aderências.
169 Hérnias
Comparação entre correção laparoscópica e a céu aberto A comparação entre a herniorrafia laparoscópica e os controles realizados a céu aberto demonstrou que a abordagem laparoscópica é pelo menos tão eficaz quanto à abordagem a céu aberto no que diz respeito à infecção de ferida (12% vs. 3%), formação de seroma (14% vs. 6%) e taxa de recorrência (10% vs. 3%).
Materiais protéticos para herniorrafia Apesar das preocupações iniciais sobre possível rejeição e infecção resultantes do uso de próteses, a evidência de que hernioplastias “livres de tensão” usando um biomaterial têm uma taxa reduzida de recidivas e menores taxas de complicações, tornou esta conduta, atualmente, uma decisão sem conflitos.Telas simples e duplas de diferentes materiais passaram a ser uma preocupação do cirurgião. Materiais como: prolene, polipropileno, politetrafluoretileno, poliéster trançado, passaram a fazer parte dos materiais a serem incluídos na síntese cirúrgica.
Figura 10.23 Eletromicrografia de malha de polipropileno trançada monofilamentar (Marlex).
Taxa de recorrência da correção laparoscópica Aproximadamente 3%. No entanto, assim como na correção das cirurgias a céu aberto, a real incidência da recorrência só será evidente depois que dispusermos de um acompanhamento a longo tempo.
Figura 10.24
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Eletromicrografia da malha de Surgipro.
170 Cirurgia geral e politrauma
Figura 10.25
Figura 10.26
Eletromicrografia da malha de Trelex.
Figura 10.29 Visão macroscópica de placa de Gore Tex de politetrafluoroetileno expandida.
Eletromicrografia da malha Atrium.
Figura 10.30 Eletromicrografia da malha de poliéster trançada (Mersilene).
Critérios para biomateriais Biomateriais usados no reparo de hérnia não só têm de satisfazer estes critérios na maior extensão possível, como também devem ser fáceis de manusear. Estudos de próteses usadas em reparos de parede abdominal, geralmente, focalizaram-se no desenvolvimento de aderências, hérnia recorrente, infecção, formação de seroma, crescimento interno de tecido associado a seu uso, à força dos materiais e às várias técnicas para implantá-los. Figura 10.27
Eletromicrografia da malha de Prolene.
Tela de polipropileno (PPM) A malha de polipropileno tem sido usada em reparos abertos convencionais de hérnia há mais de 30 anos, com resultados geralmente bons. O material satisfaz muitos dos critérios de Cumberland e Scales e é fácil de manusear. As taxas relatadas de recidiva depois da implantação de PPM foram inferiores àquelas após o fechamento primário, porém, a PPM foi associada a várias complicações sérias, especialmente quando usada em reparos ventrais. Estes incluíram sepse de ferida, fístula intestinal, erosão em órgãos intra-abdominais e exteriorização da tela. Figura 10.28 Visão macroscópica da malha de Composix. Note as duas superfícies de materiais diferentes.
Muitas destas complicações se desenvolveram porque a PPM tende a evocar uma reação intensa, inflamatória, de corpo estranho, que no final das contas resulta no intestino ficando densamente aderido ao mate-
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10 rial. Estas aderências são irregulares e desorganizadas, tornando o PPM especialmente difícil de remover, caso seja necessário. Vários investigadores aconselham que a PPM não seja usada em reparos de hérnia nos quais o material protético deva ser colocado diretamente sobre as vísceras, o que pode ser frequentemente necessário na hernioplastia ventral. A víscera também é um local exigido no reparo intraperitoneal laparoscópico com malha de hérnia inguinal ou de hérnia ventral. Um relato avaliando Marlex, Dexon (Davis & Geck, Wayne, NJ) e Gore-Tex defendeu o uso deste último material no fechamento temporário da parede abdominal no paciente traumatizado. Nesse estudo, três dos quatro pacientes com um implante de Marlex desenvolveram uma fístula intestinal. Outros estudos não encontraram nenhuma diferença estatística na formação de aderência entre Prolene, E-PTFE ou Marlex em modelos suínos. Critérios para biocompatibilidade de material protético O biomaterial ideal deve ter as seguintes características: Quimicamente inerte. Não carcinogênico. Resistente a tensões mecânicas. Capaz de ser fabricado na forma necessária. Capaz de ser esterilizado. O biomaterial ideal não deve: Provocar uma reação inflamatória ou de corpo estranho. Produzir alergia ou hipersensibilidade. Ser modificado fisicamente por líquidos teciduais. Tabela 10.8 Atuais produtos de malha de polipropileno Marlex Trelex Atrium Surgipro Prolene Composix Tabela 10.9
O uso de polipropileno como prótese no reparo da parede abdominal tem ampla base científica. Na realidade, atualmente, é o tipo de material mais utilizado mundialmente. O reparo livre de tensão, aberto, provou ser um excelente material para reparo de hérnias. O desenvolvimento de intensa formação de tecido cicatricial é um apelo para muitos cirurgiões. Isto levou ao reparo laparoscópico dos defeitos do abdome. Este material tem sido usado no reparo do assoalho inguinal, da superfície ventral do abdome e de vários outros locais por muitos anos, tanto com a abordagem aberta quanto com o método laparoscópico. Em ambas as técnicas, a taxa de recidivas é baixa e a taxa de complicações acei-
171 Hérnias
tável. O desenvolvimento de complicações severas pelo polipropileno é, felizmente, muito incomum. O desenvolvimento de uma infecção, embora infrequente, é tratado mais facilmente do que com E-PTFE e comumente não necessita da remoção do próprio material da malha. Foi sugerido que os seromas seriam menos prováveis depois de reparos com PPM do que aqueles em que foram utilizados outros materiais. Da mesma forma, há evidências de que o selamento da cavidade peritoneal acontece dentro de 12 horas, sendo usada ou não uma tela, e que nenhuma drenagem deve ser possível depois desse tempo.
Politetrafluoroetileno expandido (E-PTFE) As vantagens da E-PTFE em reparos de hérnia incluem sua inércia, força, baixa taxa de formação de aderências, características do crescimento interno de tecido, baixa taxa de infecção, e a suavidade e flexibilidade que muitos cirurgiões acreditam tornar mais fácil de controlar que outros biomateriais. Ao contrário de outros materiais, a E-PTFE não é macroporosa, portanto, permite a visualização de qualquer estrutura atrás dela. Estudos clínicos do uso de E-PTFE em enxerto vascular estabeleceram que o material seja inerte e biocompatível. A força material e a capacidade de reter uma sutura da E-PTFE foram avaliadas em testes mecânicos e estudos em animais e constatou-se ser maior ou igual ao de outros materiais protéticos usados no reparo de hérnia. Ao contrário da PPM, a E-PTFE produz apenas uma reação inflamatória mínima nos tecidos circunvizinhos, com pequena resposta de corpo estranho. Próteses de politetrafluoroetileno expandidas para reparos de hérnia estão agora disponíveis em seis formas. A placa de tecidos moles Gore-Tex é uma folha porosa lisa de E-PTFE. O biomaterial Gore-Tex Mycro-Mesh tem macroporos visíveis a olho nu, que são projetados para acelerar o crescimento interno de tecido. Este material também possui microporos com aproximadamente 22 µm de diâmetro para permitir a penetração celular e de colágeno. A adição do macroporos a este material não resulta em um aumento na resistência à tração do tecido cicatricial pós-implante sobre a PPM. Ela também não parece aumentar as aderências subsequentes que acontecem no processo de cicatrização. Uma forma de Gore-Tex MycroMesh com macroporos ainda maiores, facilita a visualização de tecidos e estruturas embaixo do material durante reparos inguinais laparoscópicos. O biomaterial Gore-Tex DualMesh tem duas superfícies: uma é muito lisa (microporos < 3 µm de diâmetro), e a outra é semelhante à placa de tecidos moles de Gore-Tex (microporos aproximadamente iguais a 22 µm). O DualMesh é projetado para ser implantado com a superfície lisa contra o tecido ou vísceras às quais uma mínima aderência tecidual é desejada, e a outra contra a superfície onde a in-
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172 Cirurgia geral e politrauma corporação de tecido é desejada. Há duas escolhas estruturais do produto Gore-Tex DualMesh. Um é uma folha sólida e o outro é perfurado para permitir maior incorporação de tecido. Uma recente inovação nos produtos supracitados foi a incorporação de prata e clorexidine ao E-PTFE. A adição destes agentes resulta em uma cor marrom-clara em lugar do branco do E-PTFE. Os dois produtos têm ação antimicrobiana que objetiva reduzir o risco de infecção quando estes produtos forem usados. Estudos clínicos não encontraram qualquer evidência de efeito colateral pelo uso destes biomateriais saturados com antimicrobiano. Dados clínicos, em longo prazo, não estão disponíveis para avaliar qualquer benefício percebido na adição de um agente antimicrobiano a estes produtos. Produtos de PTFE expandido atuais Placa de tecidos moles MycroMesh MycroMesh Plus
mentais de uma tela impregnada por gelatina fluoropassivada, a TMS 2, uma estrutura de metano policarbonato coberta em um lado com elastômero de silicone e um composto de PPM impregnado com folhas de silastic vulcanizadas.
Malhas em tampão e em placa Durante os últimos anos, a proliferação do reparo em tampão e em placa de hérnias inguinais e ventrais foi proeminente. Em cada um destes tipos de reparo o biomaterial é uma textura de polipropileno. Este material é configurado em várias formas pelo fabricante (Perfix, C.R. Bard) ou modelado pelo defeito, enquanto o material é inserido (Atrium). Cada reparo confia no conceito livre de tensão porque um material de placa é usado em frente (Perfix, Atrium) ou atrás (Kugel, Surgical Sense, Arlington, TX) da musculatura da parede abdominal. O Prolene Hernia System coloca uma placa na frente e atrás da parede muscular.
DualMesh DualMesh Plus DualMesh com orifícios Tabela 10.10
PTFE, politetrafluoroetileno.
Produtos de malha em tampão/placa Tampão Prefix Placa Kugal Prolene Hernia System Tampão e Placa de malha de Atrium Tabela 10.11
Tela de fibra de poliéster A tela de fibra de poliéster trançada é usada, principalmente, na França em hernioplastias incisionais abertas, nas quais uma grande prótese é inserida entre os músculos abdominais e o peritônio (cirurgia de Stoppa). A prótese estende-se além das bordas do defeito e é mantida em posição, inicialmente, pela pressão intra-abdominal e depois por meio de crescimento interno fibroso. Cirurgiões que executam frequentemente estes procedimentos preferem uma prótese de poliéster em razão da sua flexibilidade, que permite moldar-se livremente ao saco visceral, sua textura granulada que permite agarrar-se ao peritônio e sua capacidade para induzir uma resposta fibroblástica rápida para assegurar sua fixação. Como o biomaterial perfeito ainda está por ser descoberto, os esforços continuam para desenvolver uma prótese que satisfaça as metas do cirurgião e do paciente. Este material asseguraria uma incorporação de tecido significativa, contudo limitaria o desenvolvimento de respostas teciduais anormais como aderências. A nova tela Composix representa a última tentativa de atingir essa meta. Recentes relatos comentam os primeiros resultados experi-
Figura 10.31 Visão macroscópica do sistema de tampão e placa Prefix.
Figura 10.32
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Placas de hérnia Kugel.
10
173 Hérnias
Alguns relatos de acompanhamento têm mostrado bons resultados em curto prazo. Os resultados em longo prazo destes procedimentos relativamente novos são desconhecidos, particularmente os procedimentos que são executados em grande número pelo grupo maior de cirurgiões menos experientes. Adicionalmente, complicações em longo prazo, como erosão, fistulização ou encolhimento do material, que se sabe ocorrer com o polipropileno, podem tornar-se evidentes no futuro.
Telas absorvíveis Figura 10.33 Prolene Hernia System. Esta é uma tela de polipropileno em camada dupla interconectada por uma peça de material.
Embora as telas absorvíveis não sejam úteis como próteses permanentes no reparo de hérnias de parede abdominal, elas têm um papel para proporcionar o fechamento temporário de grandes defeitos, contaminados.
HÉRNIA INGUINAL Estrangulada Cirurgia de emergência Reparo tecidual de risco de infecção ↑ Unilateral primária
Sintomática
Assintomática/Oligossintomática
Cirurgia eletiva
Considerar observação
Bilateral primária
Reparo com tela: Lichtenstein ou endoscópico
Recorrente
Reparo com tela: endoscópico ou Lichtenstein
Após cirurgia por via anterior
Após cirurgia por via posterior
Reparo com tela: endocópico ou aberto via posterior
Reparo com tela: Lichtenstein
Em qualquer situação, considerar cirurgia endoscópica se há proficiência por parte do cirurgião Figura 10.34
É parte da cura o desejo de ser curado. Sêneca.
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CAPÍTULO
33
Doença de Crohn
“No Brasil, Berardinelli em 1943, publicou o primeiro caso de ileíte regional, 11 anos após o artigo de Crohn, Oppenheimer e Girzburg.” – Equipe SJT
Introdução A DC foi descrita em 1932 por Crohn, Ginsburg e Oppenheimer. Sua etiologia ainda é desconhecida, e acredita-se que o processo inflamatório seja resultante da combinação de predisposição genética e fatores ambientais.
Epidemiologia A incidência das DII (doença intestinal inflamatória) varia de maneira importante e depende de fatores étnicos e localização geográfica. Embora apresentem distribuição universal, registraram-se maiores incidências nos Estados Unidos (principalmente entre
brancos), na Grã-Bretanha e Escandinávia. Nos EUA, a prevalência da DC é menor que a relatada para a RCUI, estimando-se que atinja aproximadamente 90 em cada 100 mil habitantes, embora já tenha sido relatada relação inversa em outras regiões. A incidência da DC tem aumentado nas últimas décadas. No Brasil, também têm sido registrados índices cada vez maiores, particularmente na região Sudeste. Acomete igualmente ambos os sexos, predominando na população de nível cultural maior do que a população-controle. A doença é mais comum em fumantes (2 vezes mais), em parentes de primeiro grau de indivíduos acometidos e judeus asquenaze. Começa a se manifestar com maior frequência após os dez anos de idade e apresenta distribuição bimodal por faixa etária, atingindo picos entre 15 e 25 anos e 55 e 60 anos.
340 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado Dados Incidência (por 100.000 hab.) Prevalência (por 100.000 hab.) Idade Sexo (relação feminino:masculino) Raça Etnia População urbana versus rural Nível socioeconômico e ocupação
RCU
DC
0,5-24,5 0,1-16 35-100 10-100 Entre 20 e 40 anos; às vezes 2º pico entre 60-80 anos ≥1 < 1 ou > 1 Brancos > negros > asiáticos Mais frequente em judeus; Ashkenazi > Sefarditas Urbana > rural Atinge mais indivíduos com nível socioeconômico mais alto; mais frequente entre os que trabalham em ambientes fechados
Tabela 33.1 Principais dados epidemiológicos descritivos da doença inflamatória intestinal. Atenção!
Etiopatogenia Atualmente, a hipótese geral mais aceita a respeito da etiopatogenia das DII considera um mecanismo multifatorial envolvendo a atuação integrada de componentes genéticos de predisposição, elementos da microbiota intestinal, fatores ambientais, além da resposta imunitária. No que diz respeito à predisposição genética o polimorfismo do gene N0D2 (nucleotide-binding oligomerization domain-containing protein 2), também conhecido como CARD15 (caspase recruitment domain-containing protein 15) presente no cromossomo 16, foi a primeira entre muitas alterações genéticas documentadas na DC e que seguramente apontam para alterações funcionais de base imunológica ou relacionadas com respostas contra micro-organismos. Tem sido descrito como fator de risco para doença ileal e doença estenosante. Consequentemente associa-se a maior necessidade de cirurgia. Entre os muitos fatores ambientais potencialmente implicados, o tabagismo é o que oferece os dados mais concretos. Postula-se que componentes do fumo possam atuar diretamente sobre o sistema imunitário e sua resposta. Há relatos também de que o fumo provoca alterações no aporte de nutrientes à mucosa intestinal, na produção de muco e na permeabilidade da barreira epitelial. O tabagismo está associado também a maior agressividade da doença. O papel da microbiota é de perticular relevância nas DII, nas quais se postula que componentes da microbiota representem o alvo principal contra o qual uma resposta imunológica anormal estaria derecionada. No que diz respeito à resposta imunológica, nas DII, a lesão tecidual é observada em áreas onde há grande infiltração de linfócitos TCD4+, recrutados do sangue em função de produção aumentada de quiomicinas ou expressão de receptores quimiotáticos. Na DC, os Linfócitos T auxiliares apresentam tipicamente o fenótipo Th1 de resposta, com produção aumentada de IFN-gama.
Na mucosa intestinal dos pacientes com DC, os macrófagos que, juntamente com as células dendríticas, atuam como apresentadores de antígenos produzem grandes quantidades de citocinas indutoras, como, por exemplo, IL-12 e IL-18. Consequentemente, a ativação excessiva da resposta Th1 leva a produção de outras citocinas pró-inflamatórias, principalmente pelos próprios macrófagos, como TNF-alfa e IL-lbeta. O subgrupo de linfócitos Th17, recentemente descoberto, também aparece como provável responsável, juntamente com linfócitos Th1, pela orquestração da inflamação na DC. Os linfócitos T da mucosa intestinal de pacientes com DC, sendo induzidos por IL-23, produzem IL-17 em excesso, constituindo contribuição adicional à inflamação Th1. Outro fator importante para a persistência e a cronicidade da inflamação na DC é a longa permanência de linfócitos Th1 ativados na mucosa intestinal.
Patologia A lesão inicial é a hiperplasia dos folículos linfoides das placas de Peyer, com ulceração tardia da mucosa adjacente. Estas lesões aparecem como pontos hemorrágicos ou nitidamente como úlceras. Em um próximo estágio, delimitam-se áreas de mucosa edemaciada e fissuras profundas na parede da alça. Finalmente a lesão torna-se transmural (atinge todas as camadas), comprometendo toda a parede da alça. Pode evoluir para estenose, fistulização interna – entre alças intestinais, com as vias urinárias ou mesmo perfuração em peritônio livre (fistulização externa). O processo inflamatório na DC é caracteristicamente transmural, o que contrasta com a retocolite ulcerativa inespecífica (RCUI) e outras entidades inflamatórias. Esse comportamento produz ulcerações aftoides, puntiformes ou lineares, mais profundas que as erosões superficiais da RCUI e habitualmente dispostas no eixo longitudinal do intestino, representando uma das manifestações macroscópicas mais precoces da DC. O envolvimen-
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341 33 Doença de Crohn to de todas as camadas da parede intestinal pelo processo inflamatório, que pode estender-se até a gordura mesentérica e linfonodos regionais, é responsável pela instalação de fissuras, fístulas entre alças intestinais, órgãos vizinhos, parede abdominal e região perianal, abscessos, densas aderências entre alças intestinais e, finalmente, áreas de estenose intestinal. Devido à descontinuidade do processo inflamatório, as áreas lesadas são entremeadas por áreas de mucosa normal, comportamento que também distingue a DC da RCUI. Outro aspecto típico encontrado na mucosa intestinal acometida pela DC é denominado pedras de calçamento (cobblestone), que resulta da combinação de ulceração mucosa profunda e espessamento submucoso nodular. Do ponto de vista macroscópico, o segmento intestinal envolvido apresenta-se com hiperemia, espessado, com deposição de fibrina e aderências entre alças comprometidas. O mesentério torna-se espessado, fibrótico, com edema e grande quantidade de gordura, estendendo-se até a serosa do intestino, em direção à borda antimesentérica, como projeções digitiformes ou em chama de vela. Macroscopicamente, os seguintes achados caracterizam a DC, além da natureza transmural já mencionada: inflamação descontínua (focal), reação inflamatória mais intensa na submucosa, espessamento submucoso, fibrose, fissuras e a presença de granulomas. Os granulomas de células gigantes, característicos da DC, são detectados em 25 a 80% dos casos. As fissuras, por não serem encontradas em nenhum processo inflamatório do cólon, são indicadores confiáveis da DC. Mais importante para o diagnóstico da DC não é o encontro do granuloma, e sim a presença de inflamação em todas as camadas do intestino. A doença é segmentar, e caracteristicamente NÃO acomete o reto e ajuda a fazer diferenciação com retocolite ulcerativa. A doença de Crohn de longa duração tem aumento da incidência de câncer tanto do intestino delgado quanto do cólon.
Quadro clínico A DC é uma entidade heterogênea que requer abordagens diagnósticas e terapêuticas individuais. Caracteriza-se por inflamação transmural em qualquer parte do trato digestivo, apresentando períodos de exacerbações e remissões, muitas vezes acompanhados de manifestações extraintestinais. Os segmentos mais atingidos são o intes-
tino delgado (27%), o delgado e cólon (30%), o cólon (40%), o estômago e duodeno (5%) e a região perianal isolada (3%). Da cavidade oral ao reto pode-se documentar a doença de Crohn. A apresentação clínica é extremamente variável, e os sintomas diferem conforme a localização predominante das lesões e a extensão da doença. O acometimento esofágico é raro e se manifesta por disfagia, odinofagia, pirose ou dor torácica. A doença gástrica pode ser assintomática, restringindo-se à presença de úlceras aftoides. Quando mais avançada, há dor, vômitos e perda ponderal. No trato digestivo superior descreveram-se também fístulas esofagobrônquicas ou gastrocólicas. O acometimento duodenal é mais comum que o gástrico, embora seja raro. Pode haver espessamento de pregas, calcetamento, úlceras, estenose e fístulas. A forma jejunoileal da DC caracteriza-se por cólicas, diarreia, emagrecimento e distensão abdominal. Na doença ileocólica ocorrem diarreia, dor em fossa ilíaca direita e quadros evolutivos de suboclusão. A colite de Crohn desencadeia surtos agudos de diarreia, dor em baixo-ventre, sangramento nas fezes, mucorreia, constipação e febre. Já a forma perianal pode se manifestar por fístulas, abscessos, fissuras, úlceras e plicomas. A doença perianal ocorre em 25% dos pacientes com doença de Crohn, 41% com ileocolite e em 48% com doença colônica isolada. Pode ser a única apresentação clínica da doença de Crohn (5% dos casos). Estenoses inflamatórias ou associadas à fibrose intensa determinam estreitamento da parede intestinal, principalmente no íleo, desencadeando quadros de suboclusão. Fístulas podem se originar de qualquer segmento intestinal e envolver órgãos ou estruturas adjacentes, como a pele (enterocutâneas), bexiga (enterovesicais), vagina (retovaginais) e alças intestinais (enteroentéricas ou enterocólicas). Fístulas perianais são uma manifestação frequente da DC, podendo resultar em morbidade significativa, como sepse, incontinência e necessidade de tratamento cirúrgico. Uma das complicações mais sérias é a colite fulminante, que representa uma inflamação aguda e grave do cólon associada a toxemia, com febre, taquicardia, hipotensão, leucocitose e peritonite. Quando esse quadro se acompanha de grande dilatação cólica, configura-se o megacólon tóxico, que apresenta grande possibilidade de perfuração do cólon. As DII estão associadas a maior risco de desenvolvimento de câncer no intestino delgado e colorretal. Na DC, esse risco é cerca de 20 vezes maior que na população geral, ocorre em grupo etário mais jovem, desenvolvendo carcinomas infiltrativos (coloide ou mucinoso) em segmentos excluídos ou em coto retal doente. Essa possibilidade deve ser cogitada quando ocorrer recorrência dos sintomas em doença quiescente por tempo prolongado.
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342 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado Emergências nas doenças inflamatórias intestinais idiopáticas Colite fulminante Ocorre na retocolite ulcerativa e na doença de Crohn do cólon Diarreia > 6 evacuações ao dia, com ou sem sangramento retal Taquicardia, febre, palidez cutaneomucosa, anemia, desidratação, hipotensão arterial Leucocitose (com desvio à esquerda), elevação da velocidade de hemossedimentação e do título de proteína C reativa Megacólon tóxico Evidências radiográficas de distensão colônica (> 6 cm) Pelo menos três dos seguintes critérios: Febre > 38ºC Frequência cardíaca > 120 bpm/min. Leucocitose com neutrofilia > 10.500/mm³ Anemia Além dos critérios acima, pelo menos um dos seguintes: Desidratação Alteração do nível de consciência Distúrbios eletrolíticos Hipotensão arterial Tabela 33.2 IA inflamatória na DC Estado geral (ótimo = 0; bom = 1; regular = 2; mau = 3; péssimo = 4) Dor abdominal (ausente = 0; leve = 1; moderada = 2; grave = 3) Número de evacuações líquidas/dia Massa abdominal (ausente = 0; leve = 1; moderada = 2; grave = 3) Complicações: artralgia/artrite, uveíte/ irite, eritema nodoso, aftas orais, pioderma gangrenoso, fissura anal, fístulas, abscesso etc. < 7 = Inativa/Leve 8 a 10 = Leve/Moderada > 10 = Moderada/Grave
Pontuação 0a4 0a3
IA inflamatória na DC
Multiplicado por
Estado geral (ótimo = 0; bom = 1; regular = 2; mau = 3; péssimo = 4). Considerar a 7 soma total dos dados individuais da última semana Número de sintomas/sinais associados (alistar por categorias): 1) artralgia/ 20 valor artrite; 2) irite/uveíte; 3) eritema anal, máximo = fístula ou abscesso; 5) outras fístulas; 120 6) febre Consumo de antidiarreico (Não = 0; Sim = 1)
30
Massa abdominal (ausente = 0; duvido10 sa = 2; bem definida = 5) Déficit de hematócrito: homens 47-Ht; mulheres 42-Ht (diminuir em vez de somar 6 no caso do Ht do paciente ser maior do que o padrão) Peso-porcentagem abaixo do esperado (diminuir em vez de somar se o peso do 1 paciente for maior que o esperado) Soma total (IA da doença de Crohn) < 150 = Remissão 150-250 = Leve 250-350 = Moderada > 350 = Grave Tabela 33.4 Índice de atividade (IA) inflamatória na doença de Crohn de acordo com Best et al. (conhecido como CDAI: Crohn’s Disease Activity Index).
nº/dia 0a3 1 ponto cada
Tabela 33.3 Índice de atividade (IA) inflamatória na doença de Crohn de acordo com Harvey & Bradshaw, 1980.
Multiplicado por Número de evacuações líquidas na últi- 2 ma semana Dor abdominal (ausente = 0; leve = 1; 5 moderada = 2; grave = 3). Considerar a soma total dos dados individuais da última semana
Do ponto de vista clínico, a doença de Crohn é frequentemente classificada com base na idade de início, comportamento e lcoal de origem (classificação de Viena), como exposto na tabela abaixo:
Classificação de Viena da Doença de Crohn Idade no diagnóstico (anos)
A1: < 40 A2: ≥ 40
Comportamento
B1: sem estenose, não penetrante B2: estenosante B3: penetrante L1: íleo terminal L2: cólon L3: ileocólon L4: trato gastrointestinal superior
IA inflamatória na DC
Localização
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Tabela 33.5
343 33 Doença de Crohn Dados clínicos obtidos por meio da anamnese e do exame físico também permitem classificar a DC e servem para orientar a propedêutica armada (exames laboratoriais, radiológicos, endoscópicos e histopatológicos) e o tratamento. Pode-se dividir clinicamente a DC em:
DC leve a moderada: pacientes ambulatoriais, capazes de tolerar alimentação por via oral, sem manifestações de desidratação, toxicidade, desconforto abdominal, massa dolorosa, obstrução ou perda maior que 10% do peso;
DC moderada a grave: pacientes que falharam em responder ao tratamento ou aqueles com sintomas mais proeminentes de febre, perda de peso, dor abdominal, náuseas ou vômitos intermitentes (sem achados de obstrução intestinal) ou anemia significativa;
DC grave a fulminante: pacientes com sintomas persistentes a despeito da introdução de corticosteroides e/ou terapia biológica ou indivíduos que se apresentam com febre, vômitos persistentes, evidências de obstrução intestinal, sinais de irritação peritoneal, caqueixa ou evidências de abscesso.
Manifestações extraintestinais A DC pode comprometer praticamente todos os sistemas e órgãos, seja por efeito local ou sistêmico e, até mesmo, em decorrência de seu tratamento. As manifestações extraintestinais podem preceder, acompanhar ou surgir após o início das alterações intestinais. Os pacientes que apresentam uma das manifestações extraintestinais têm maior risco de apresentar outras. A explicação para tais ocorrências parece ser de ordem imunológica, pelo achado de complexos imunológicos circulantes no soro desses pacientes. Entretanto, nem todo doente com esses achados apresenta manifestações extraintestinais. Algumas alterações metabólicas secundárias à DC também podem levar a manifestações extraintestinais, principalmente por má absorção intestinal, como na colelitíase, litíase renal e hidronefrose. Pode haver comprometimento de vários órgãos, mas os chamados órgãos-alvo costumam ser as articulações, pele e mucosas, olhos, fígado e rins.
Manifestações osteoarticulares Uma forma periférica de acometimento inclui a “sinovite enteropática” ou “artrite colítica”. Os joelhos,
tornozelos e cintura escapular são as articulações mais envolvidas. Apresenta-se como monoartrite ou como poliartrite migratória. É mais comum na colite ou ileocolite da DC. Evolui paralelamente à doença intestinal. Por não ser destrutiva, não costuma deixar sequelas. Uma forma axial, manifestando-se como espondilite anquilosante ou sacroileíte, é mais rara na DC, porém mais comum nos pacientes HLA-B27 positivos. A espondilite pode apresentar um curso evolutivo completamente distinto da doença subjacente, e mesmo havendo remissão da doença intestinal o quadro articular pode ter um curso até anquilosante. Como cerca de 50% dos pacientes com artrite também apresentam manifestações oculares, deve-se proceder a cuidadoso exame oftalmológico como rotina nestes casos. As descrições de manifestações articulares na DC incluem artralgias, artrites, espondilite anquilosante, sacroileíte, sinovite granulomatosa e osteoartropatia hipertrófica. Baqueteamento digital é observado em 30% dos casos; é de aparecimento tardio, reversível e de causa desconhecida. Diminuição da densidade óssea é descrita ao diagnóstico e durante o curso da afecção. Os fatores implicados são: dieta insuficiente no conteúdo calórico-proteico, inadequada ingestão ou má absorção de cálcio, deficiência de vitamina D, excessiva produção de citocinas pelo intestino inflamado, interferindo no metabolismo ósseo, e a inibição dos corticosteroides na absorção do cálcio e ação direta sobre a formação do osso. Como consequência, podem-se verificar osteopenia, osteoporose, osteomalacia ou osteonecrose.
Manifestações cutâneomucosas O eritema nodoso é a manifestação mais comum e, geralmente, reflete inflamação intestinal ativa. Cerca de 75% dos pacientes com essa manifestação também têm artrite. O pioderma gangrenoso é mais raro na DC. Outras descrições incluem acne, alopecia, celulite escrotal, DC na vulva, DC metastática na pele, eritema multiforme, vasculite cutânea, poliarterite nodosa, pelagra, psoríase, epidermólise bolbosa. Na boca são observadas estomatite aftoide, glossite, queilite, pioestomatite vegetante e tonsilite granulomatosa.
Manifestações oculares Os pacientes com comprometimento colônico são mais suscetíveis a desenvolver uveíte, esclerite ou epiesclerite. A administração crônica de altas doses de corticosteroides pode aumentar a pressão ocular e desencadear cataratas. Outras alterações compreendem úlceras de córnea, blefarite, conjuntivite, queratite, infiltrado do plexo coroide.
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344 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado
Manifestações hepatobiliares Cerca de 15% dos pacientes podem apresentar elevação dos níveis de aminotransferases no curso da DC. São frequentemente associadas com surtos da doença, ao uso de drogas (6- mercaptopurina, sulfassalazina), nutrição parenteral total, esteatose (corticosteroides, má nutrição ou ganho maciço de peso). Hepatite crônica ativa e colangite esclerosante primária (mais comum com RCUI) são mais graves e ocorrem em 1% das crianças com DC, podendo chegar à cirrose e à insuficiência hepática. Foram descritos ainda colelitíase, hepatite granulomatosa, abscesso hepático, síndrome de Budd-Chiari, amiloidose e trombose da veia porta. Figura 33.1 Pioderma gangrenoso em paciente com DC.
Manifestações nefrológicas Hidronefrose à direita pode ocorrer quando o ureter direito é envolvido por massa inflamatória ileocólica. Nefrolitíase, fístula enterovesical, infecção do trato urinário, glomerulonefrite por complexo imune, abscesso perinefrítico, amiloidose e hipertensão também já foram descritos na DC. Os cálculos renais são de oxalato de cálcio e resulta da má absorção intestinal, ou seja, da hiperoxalúria. O cálcio alimentar em condições normais se liga ao exalato na luz intestinal, sendo eliminado pelas fezes. Na presença de má absorção, grande parte do cálcio se liga a ácidos graxos, deixando o oxalato livre para ser absorvido, ocorrendo assim a hiperoxalemia e secundariamente hiperoxalúria e nefrolitíase.
Manifestações hematológicas Anemia por deficiência de ferro, folato ou vitamina B12, anemia hemolítica autoimune, neutropenia, trombocitose e trombopenia são dados referidos por diversos autores.
Figura 33.2 DC com grave acometimento perianal, levando à destruição do aparelho esfincteriano.
Manifestações extraintestinais
Manifestações vasculares Tromboflebites, vasculites, poliarterite nodosa, arterite de Takayasu, vasculite pulmonar, arterite de células gigantes. Redução dos níveis de proteína S e antitrombina III, assim como aumento dos níveis de fator VIII, V e I são aspectos que podem justificar o risco de hipercoagulabilidade e trombose na DC.
Manifestações pancreáticas Pancreatite aguda ou crônica, insuficiência pancreática. Manifestações pulmonares Vasculite pulmonar, alveolite fibrosante, pneumonia eosinofílica, pneumomediastino Manifestações cardíacas Miocardite, pericardite
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345 33 Doença de Crohn Manifestações extraintestinais (cont.) Manifestações musculoesqueléticas Miosite granulomatosa, dermatomiosite, miosite vasculítica, miopatia induzida por corticosteroides Manifestações neurológicas Neuropatia periférica, perineurite, abscesso epidural espinhal, convulsões Articulares Artrite, sacroileíte, espondilite anquilosante Hepatobiliares Pericolangite, colangite esclerosante, dilatação sinusoidal, abscesso hepático, infiltração gordurosa, cirrose, colelitíase Urológicas Metabólicas (cálculos, amiloidose) e inflamatórias (abscesso retroperitoneal, fibrose, obstrução ureteral) Dermatológicas Eritema nodoso, pioderma gangrenoso, vasculites Oftalmológicas Conjutivite, uveíte, episclerite, celulite orbitária Geral Amiloidose Tabela 33.6
Figura 33.4 DC com grave doença perianal.
Diagnóstico O diagnóstico da DC baseia-se na análise conjunta de dados clínicos, endoscópicos, radiológicos e histológicos. O diagnóstico presuntivo de DII deve ser contemplado em paciente com idade entre 15 e 25 ou 50 e 65 anos que apresente queixa de diarreia crônica, acompanhada ou não de sangue, dor abdominal, perda de peso, febre e manifestações extraintestinais. Eventualmente o diagnóstico só é firmado na vigência de complicações que requeiram tratamento cirúrgico. Os achados ao exame físico variam conforme o grau de atividade da doença. Alterações gerais importantes são representadas por anemia, desnutrição e febre. Dor constante, picos febris e leucocitose sugerem abscessos e fistulização. Deve-se pesquisar também a presença de manifestações extraintestinais. Ao exame físico abdominal podem ser constatados dor, tumor inflamatório palpável e fístulas cutâneas. Às vezes as alterações perianais podem ser a primeira manifestação da doença. Pregas perianais edemaciadas, fissuras (únicas ou múltiplas, geralmente sem hipertonia esfincteriana), fístulas únicas ou múltiplas, abscessos, lesões aftoides, calcetamento da mucosa e úlceras longitudinais podem ser encontrados durante o exame proctológico.
Achados laboratoriais
Figura 33.3 DC e eritema nodoso.
Inespecíficos e dependem do local e da extensão do processo. São comuns: anemia, hipoalbuminemia, esteatorreia, absorção anormal de D-xilose, sugerindo doença extensa ou fístula; níveis altos de lisozima, indicando o grau de atividade da doença.
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Velocidade de Hemossedimentação (VHS) Como marcador inflamatório nas DII, a VHS tende a se elevar mais tardiamente bem como reduzir mais lentamente em comparação com a Proteína C reativa. Embora inespecífica, correlaciona-se bem à atividade clínica e endoscópica da doença. Vale ressaltar que a VHS é menos sensível para os pacientes com DC localizada em íleo terminal.
Proteína C reativ,a (PCR) Proteína da fase aguda da inflamação é estimulada principalmente pela interleucina-6 (IL-6), pela interleucina-1 (IL-1) e pelo fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa). Possui maior sensibilidade e especificidade, assim com precocidade, em relação à VHS. Níveis de PCR > 53 mg/l na DC com ileíte regional são preditores de risco aumentado para ressecções intestinais.
É também preditor de resposta ao tratamento. Pacientes com PCR acima de 5 mg/L apresentam melhor resposta terapêutica ao infliximabe. Níveis mais alto de PCR podem indicar melhor resposta à estratégica top-down de tratamento da DII.
Biomarcadores fecais A mucosa intestinal inflamada contém um grande número de neutrófilos e proteínas fecais derivadas dessas células como a lactoferrina, a calprotectina e a elastase fecal, que se expressam como marcadores do processo inflamatório intestinal. Destes biomarcadores, a calprotectina fecal (proteína ligada ao cálcio) é atualmente o mais utilizado, sendo considerado um “ótimo biomarcador”. A concentração fecal é seis vezes maior que a plasmática, mantendo-se estável à temperatura ambiente por sete dias. A respeito deste biomarcador, destaca-se:
a elevação deste biomarcador pode revelar doença ativa em pacientes ainda clinicamente assintomáticos
correlação significativa entre os níveis fecais e os índices endoscópicos de atividade
valor preditivo de recorrência pós-operatória e no diagnóstico de bolsite
marcador de rastreamento de DII em familiares de indivíduos com DC
VN: 25 mg/kg Níveis > 50 mg/kg é considerado para atividade inflamatória
A S100A12 é uma proteína similar à calprotectina e que parece ser mais sensível na avaliação da atividade endoscópica nas DII, porém necessita de mais estudos para ser validada.
Calprotectina sérica Proteína proveniente de granulócitos, com meia vida de cerca de 5h. Na DC, sua elevação apresenta boa correlação com a atividade inflamatória clínica, com o nível de PCR, não havendo associação com o grau de atividade inflamatória endoscópica. (Atenção!).
Testes sorológicos (ASCA/pANCA) Perinuclear antineutrophil cytoplasmic autoantibodies (pANCA) tem sido reconhecido como bom marcador de RCUI. Anticorpos para epítopos oligomanosídicos do fungo Saccharomyces cerevisiae (Sc) (ASCA) são marcadores para DC. Ambos estão implicados no diagnóstico diferencial entre as duas entidades. A combinação de ambos pode ajudar nesta diferenciação. Ambos são feitos por técnicas padronizadas de imunofluorescência indireta e ELISA. A presença de ASCA em pacientes com DC está associada a comprometimento do intestino delgado. Níveis elevados mostrou associação com curso mais agressivo da doença. Um grande estudo de coorte relatou uma especialidade de 92% para a doença de Crohn em pacientes que eram ASCA positivos/ANCAp negativos e 98% para colite ulcerativa em pacientes que eram ASCA negativos/ANCAp positivos. Recentemente vários estudos buscaram correlacionar a presença de anticorpos ao diagnóstico da DII, o risco de aparecimento de complicações, resposta terapêutica e necessidade de cirurgia, mas até o momento observou-se pouca acurácia e aplicabilidade clínica.
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347 33 Doença de Crohn Painel sorológico e sua associação a complicações Anticorpo Doença de delgado Estenose Penetrante Cirurgia Doença perianal pANCA Não associado Não associado ASCA + +++ ++++ + Não associado Anti-l2 + + Não associado + Não associado OmpC Não associado +/+ + Não associado Anti-CBir1 Não associado ++ +/Não associado Não associado AMCA ++ ++ ++++ ALCA ++ ++ ++ ACCA ++ ++ ++ Anti-C + + ++++ Anti-L ++++ ++++ ++++ Anti-I2 (proteína da Pseudomonas fluorescens relacionada com DC). CDbir1: anticorpo contra a flagelina, antígeno imunodominante contra o qual há forte resposta de células B e linfócitos TCD4+. OmpC: anticorpos contra a porina C da membrana externa da E. coli. AMCA: antimanobiosídio. ALCA: antilaminaribiosídio. ACCA: anticitobiosídio. Tabela 33.7
O teste ASCA positivo em familiares de pacientes com DC sugere que este teste seja um marcador subclínico da afecção. Mas se ele reflete fatores ambientais ou genéticos, ou a combinação de ambos, ainda não se sabe.
Radiologia Os sinais radiológicos, em trânsito intestinal e enema opaco, podem estar ausentes na doença inicial. Os mais comuns são: relevo mucoso com serrilhamento; falhas de enchimento; sinal do “cordel”, ou de Kantor (área de estenose segmentar no íleo terminal e fístulas internas). Outro sinal é a imagem em paralelepípedo “cobblestone”.
Figura 33.5 Trânsito delgado mostrando acometimento do íleo terminal por doença de Crohn. Observe o aspecto do ceco que se encontra retraído.
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348 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado
Figura 33.6 Trânsito delgado mostrando várias úlceras intestinais (setas) em doença de Crohn.
Figura 33.9 Megacólon tóxico: observe a grande dilatação do cólon transverso.
Na fase aguda da doença, o exame radiológico simples pode trazer informações importantes, como distensão de alças com gás e níveis hidroaéreos na obstrução. Ocasionalmente esse exame poderá sugerir complicação grave como o megacólon tóxico, caracterizado por grande dilatação do cólon transverso e perda das haustrações. Mais raramente, a ocorrência de perfuração intestinal será atestada pelo achado de pneumoperitônio.
Figura 33.7 Doença de Crohn do intestino delgado mostrando múltiplas áreas de estreitamento com o clássico aspecto em calceamento.
Figura 33.8 TC do abdome em doença de Crohn. Observe a formação de abscesso do psoas à esquerda por complicação da doença de Crohn da mesma forma que envolvimento do mesentério e linfadenopatia retroperitoneal.
O exame radiológico contrastado poderá revelar a alternância de áreas sadias e doentes, além de caracterizar complicações como estenose e fístula. Não deve ser realizado na suspeita de megacólon tóxico ou perfuração. No trânsito intestinal, são achados comuns o calcetamento, diminuição do lúmen, dilatação proximal a áreas estenóticas, distorção dos contornos e deslocamento de alças adjacentes por massa inflamatória na fossa ilíaca direita. A cápsula endoscópica reconhece lesões que não seriam vistas em outros exames de imagem. Ela é mais sensível que as modalidades convencionais, é fácil de ser realizada e é bem tolerada pelos pacientes. O exame da cápsula endoscópica é especialmente empregado para diagnóstico de sangramento oculto, mas também é muito útil na avaliação do intestino delgado em pacientes com DC. No entanto, está contraindicado nos casos de suspeita de obstrução gastrointestinal, estenoses ou fístulas, marca-passo ou outros dispositivos eletrônicos implantados e distúrbios da deglutição. Por ser ainda um exame caro, não está disponível de forma mais abrangente. O exame de duplo contraste do cólon exibe características semelhantes aos achados na RCUI, embora o envolvimento preponderante do íleo terminal e cólon
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349 33 Doença de Crohn direito, a presença de lesões salteadas, calcetamento, fístulas, estenoses e ausência de comprometimento retal sejam características mais marcantes da DC. A realização de colonoscopia visa o diagnóstico e a avaliação da extensão da doença colônica. Nesse exame, lesões aftoides, fissuras e úlceras longitudinais, calcetamento da mucosa, pseudopólipos, fístulas e estenoses poderão ser observados. A ultrassonografia poderá revelar espessamento de alças intestinais, caracterizado por imagem em alvo. Esse exame também é útil no diagnóstico de abscessos associados à doença. A tomografia computadorizada permite observar aumento da espessura da parede intestinal, alterações na gordura mesentérica, retroperitoneal e do grande omento, presença de linfonodomegalia regional, abscessos, fístulas e massas inflamatórias. Na presença de fístulas enterocutâneas, a realização de fistulografia com contraste hidrossolúvel poderá ser útil para esclarecer o trajeto das fístulas e identificação das alças envolvidas. Principais diferenças macroscópicas entre RCU e DC Achados macroscópicos RCU Crohn Predomínio de envolvimento do: Cólon distal Comum Incomum Cólon proximal Incomum Comum Reto poupado Raro Comum Lesões segmentares (salteadas) Não Sim Úlceras aftosas Não Sim Úlceras profundas Incomuns Comuns Aspecto pavimentoso ou em Raro Comum mosaico (cobblestone) Pseudopólipos Comuns Incomuns Mucosa atrófica Comum Incomum Tabela 33.8 Principais diferenças microscópicas entre RCU e DC Achados RCU Crohn microscópicos Inflamação Difusa, mucosa Segmentar, focal, transmural Abscessos de criptas Frequentes Ocasionais Distorção de criptas Leve a intensa Leve Atrofia de mucosa Comum Rara Depleção de células Pronunciada Discreta caliciformes Granulomas epiteAusentes Presentes em lioides e/ou células 30 a 60% dos gigantes de Lancasos: valor gerhans diagnóstico
Principais diferenças microscópicas entre RCU e DC (cont.) Típicas Ulcerações com pou- Só nos casos ca inflamação adja- fulminantes cente Metaplasia pilóríca Ausente Típica no íleo Metaplasia de célula Comum Rara de Paneth Tabela 33.9
Tratamento clínico Como não há cura definitiva para a DC, os objetivos terapêuticos são induzir e manter a remissão da doença e suas complicações, de preferência com o mínimo de efeitos colaterais e com o menor custo para o paciente e/ou o sistema de saúde. A primeira linha de tratamento é baseada em combinações que incluem aminossalicilatos e derivados, glicocorticoides, terapia nutricional e antimetabólitos. Mais recentemente, novas opções terapêuticas têm sido lançadas no mercado, proporcionando novas estratégias que visam lançar os compostos ativos diretamente no local acometido, reduzir a flora intestinal e modular a resposta inflamatória e imunológica. A sulfassalazina é composta pela sulfapiridina e ácido 5-aminossalicílico (5-ASA), sendo absorvida pelo intestino delgado (25%), captada pelo fígado e excretada na bile. O restante é clivado no cólon e libera o 5-ASA, que é pouco absorvido. Este inibe a ciclo-oxigenase (e consequentemente a produção de prostaglandinas), a produção de imunoglobulinas por células mononucleares intestinais, e tem atividade supressora sobre radicais livres. É ineficaz na DC do delgado, mas benéfica na forma colônica. Pode ser responsável por efeitos colaterais dose-dependentes (cefaleia, náuseas, vômitos) e por reações de hipersensibilidade. É utilizada nas doses de 2 a 4 gramas por dia. As preparações farmacêuticas do 5-ASA (comprimidos, enemas e supositórios) evitam os efeitos adversos da sulfapiridina, propiciam maior concentração no nível das lesões e maior atividade terapêutica no intestino delgado. Têm maior custo e são utilizadas em doses de 2 a 5 gramas por dia. São representadas pela olsalazina (Dipentum®), mesalazina (Asacol®, Pentasa®, Asalite®, Rowasa®). São eficazes no tratamento das formas leve e moderada da DC, especialmente na colite, embora com resultados menos pronunciados que na colite ulcerativa. Os preparados orais têm sido avaliados nas exacerbações agudas da DC, demonstrando vantagens terapêuticas sobre placebo, mas resultados inferiores aos corticoides. Os glicocorticoides (prednisona e metilprednisolona) constituem a base do tratamento clínico da DC ativa, induzindo remissão dos sintomas em alta porcentagem de pacientes em 12 a 16 semanas
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350 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado (cerca de 70 a 90%). Inibem a produção de leucotrienos e têm atividade moduladora sobre a IL-1, TNF-alfa e outros. Geralmente inicia-se o tratamento com 40 a 60 mg de prednisona por dia, reduzindo-se a dose a 5 mg/ semana quando houver resposta terapêutica favorável. Doentes com colites graves necessitam de hospitalização e emprego da via venosa (hidrocortisona 100 mg três vezes ao dia ou prednisolona 30 mg 12/12 horas). Devido a seus potenciais efeitos colaterais (Cushing, osteoporose, diabete, sangramento digestivo), novos derivados glicocorticoides têm sido introduzidos no mercado. A budesonida e a beclometasona apresentam maior atividade tópica e pouca atividade sistêmica. A revisão de estudos controlados com budesonida utilizada em doses de 9 mg/dia mostra eficácia comparável à da prednisona em doses de 40 mg/dia na DC do íleo distal e cólon direito, não havendo benefícios relevantes na terapia de manutenção. Uma vez obtida a remissão bem sucedida com glicocorticoides, seu uso no tratamento contínuo em doses baixas é ineficaz na prevenção da recidiva; além disso, aproximadamente 35% dos pacientes desenvolvem dependência dessas drogas. Nesses casos, o controle efetivo do processo inflamatório é mandatório para evitar o desenvolvimento de complicações. Nesse contexto, os imunossupressores (azatioprina, 6-mercaptopurina, metotrexato, ciclosporina) são habitualmente indicados para induzir remissão em doença refratária ou dependente de glicocorticoides, e também como terapia de manutenção. Azatioprina na dose de 50 mg/dia é a primeira alternativa. Nos casos de intolerância ou alergia, usa-se o metotrexato 25 mg por semana por via intramuscular por 6 semanas, reduzindo-se para 10 a 15 mg/semana na manutenção. Análogos da purina (AZA ou 6-MP) também podem ser empregados em fístulas abdominais/entéricas ou perianais, com índices de sucesso de 80 e 56%, respectivamente. Entretanto, têm a desvantagem de apresentar resposta tardia à terapêutica (3 a 9 meses) e estão associados a efeitos adversos em 9 a 15% dos pacientes, como depressão medular, infecção, pancreatite, hepatite tóxica e linfoma. A ciclosporina age por bloqueio seletivo da ativação de linfócitos T-helper e citotóxicos. Apesar de ser um agente útil na conduta inicial de fístulas refratárias da DC, ocorre recidiva com a diminuição dos níveis séricos da droga. Além disso, os efeitos da ciclosporina na manutenção da remissão são desapontadores, razão pela qual tem sido cada vez menos indicada. O emprego de antibióticos (metronidazol, ciprofloxacina) baseia-se na suposição de que a flora bacteriana tenha um papel na patogênese das lesões da DC. Podem ser usados na manutenção da remissão clínica, na doença refratária e na presença de fístulas. O metronidazol é ativo contra a flora anaeróbica, e tem sido especialmente indicado no tratamento da doença perianal ou quando o cólon está envolvido. A ciprofloxacina é uma quinolona com atividade sobre E. coli e enterobactérias, que pode ser usada isoladamente ou associada ao metronidazol.
Terapêutica biológica O fator de necrose tumoral alta (TNF-alfa) é uma potente citocina, com uma série de efeitos proinflamatórios em pacientes com DII. O infliximabe (1998), adalimumabe (2007) e o certolizumabe (2008) são as principais drogas antiTNF-α. O golimumabe é o mais recente anti-TNF-α. O etanercept não se mostrou eficaz em pacientes com DC. Qual é o melhor? A experiência mais consistente é com o infliximabe. Na prática o infliximabe deve ser a escolha inicial, principalmente nos pacientes que necessitam de uma rápida indução de resposta clínica ou que possam ter problemas de adesão à autoinjeção. Indicações: DC moderada a grave, doença fistulizante, DC refratária e doença metastática. Dose do infliximabe: 5 mg/kg (meia vida de 7-12 dias), infusão venosa, a intervalos de 0,2 e 6 semanas, seguindo-se doses de manutenção a cada oito semanas. Em pacientes que não obtiveram mais respostas a 5mg/kg com dose de manutenção, há evidência de que venham a responder novamente com uma dose de 10 mg/kg. Efeitos adversos: reação de hipersensibilidade, lúpus-like, tuberculose, linfoma e doença desmielinizante do SNC. A realização de PPD e radiografia de tórax é obrigatória. Pacientes com PPD reator (≥ 5 mm)e sem sinais de tuberculose ativa, fazer infliximabe associado com isoniazida (300 mg/dia por 6 meses). Cocidioidomicose e histoplasmose são outras infecções documentadas nos pacientes em uso de infliximabe. Terapias anti-TNF usadas na doença de Crohn Via de adProtocolo Protocolo Agente ministrade manude indução ção tenção 5 mg/kg nas 5 mg/kg a Infliximabe Intravenosa semanas 0, cada 8 se2, 6 manas 160 mg na semana O 40 mg a 80 mg na seAdalimuSubcutânea cada 2 semabe mana 2 manas 40 mg na semana 4 400 mg nas 400 mg a CertolizuSubcutânea semanas 0, cada 4 semabe 2, 4 manas Tabela 33.10
Drogas anti-integrinas Os anticorpos anti-integrinas (natalizumabe e vedolizumabe) têm como alvo as moléculas integrinas, que são fundamentais na migração de leucócitos para
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351 33 Doença de Crohn os locais de inflamação. O natalizumabe foi aprovado pelo FDA em 2008. Em relação ao perfil de segurança a maior preocupação tem sido o desenvolvimento de encefalopatia multifocal progressiva, causada pelo vírus JC. A dose recomendada é de 400mg uma vez a cada quatro semanas e sem dose de indução, em infusão endovenosa. A indicação fica por enquanto aos pacientes não respondedores às drogas anti-TNF-α. Terapias anti-integrina usadas na doença de Crohn Via de adProtocolo Protocolo Agente ministrade manude indução ção tenção 300 mg a Natalizu300 mg na Intravenosa cada 4 semabe semana O manas 300 mg nas 300 mg a VedolizuIntravenosa semanas 0, cada 8 semabe 2, 6 manas
Requisitos de triagem infecciosa previamente ao início da terapia* Agente
Tuberculose
Hepatite B
Vírus JC
Infliximabe
+
+
–
Adalimumabe
+
+
–
Certolizumabe
+
+
–
Natalizumabe
–
–
+
Vedolizumabe
–
–
–
Tabela 33.13 (*) Recomendações gerais: é possível que pacientes individuais requeiram investigação para infecções, com base em estado clínico, história de infecção, suspeita de infecção e/ou localização geográfica.
Tabela 33.11
Terapia nutricional (TN)
Outros tratamentos A oxigenoterapia hiperbárica tem sido utilizada para elevar a tensão relativa de oxigênio tecidual, a fim de controlar infecção por anaeróbios, melhorar a atividade bactericida de leucócitos e a proliferação de fibroblastos. Sua administração normalmente requer várias sessões semanais de oxigênio a 100% em pressão de 2,5 atmosferas, com resultados iniciais bons em doença perianal refratária. O tratamento com probióticos, constituído pela administração de altas concentrações de bactérias não patogênicas (Lactobacillus, Bifidobacterium, Saccharomyces boulardii, Streptococcus salivarius) que modificam a flora intestinal, substituindo as cepas mais agressivas e reduzindo a agressão antigênica oriunda das bactérias patogênicas, mais agressivas (exemplo: Salmonella, Listeria, Clostridium etc.), tem obtido resultados animadores, tanto em pacientes com RCU como em portadores da doença de Crohn prolongando o tempo de remissão da doença.
A TN pelas vias oral, enteral ou parenteral pode ser necessária em várias fases evolutivas das DII. Os principais objetivos da TN são manter e/ou recuperar as condições nutricionais, obter uma eventual remissão da atividade da doença, reduzir as indicações cirúrgicas e as complicações operatórias. De maneira geral, prefere-se a via enteral em virtude de gerar menos complicações e ter custo menor, reservando-se a via parenteral para quando houver contraindicação ou intolerância à via enteral. Contraindicações ao uso da nutrição enteral (NE) incluem hemorragia maciça, perfuração ou obstrução intestinal, fístulas de alto débito, megacólon tóxico e alguns casos de síndrome do intestino curto. DII
Novos biológicos em andamento Novos produtos biológicos sob investigação para DII Fármaco Alvo molecular Anrukinzumabe IL-13 Etrolizumabe Integrinas Tralokinumabe IL-13 Ustekinumabe IL-12/23 Vatelizumabe VLA-2 IL: interleucina; VLA: antígeno de ativação muito tardia. Tabela 33.12
Consegue atingir 60% das necessidades por via oral? Sim Dietas poliméricas por via oral
Não Nutrição parenteral nos casos em que a nutrição enteral não é possível
Nutrição enteral (sonda nasogástrica, enteral, gastrostomia, jejunostomia) • Poliméricas • Oligoméricas • Monoméricas
Figura 33.10 Algoritmo para indicação da terapia nutricional na doença inflamatória intestinal (DII)
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352 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado
Indicações cirúrgicas O tratamento cirúrgico de uma complicação deve ser limitado ao do segmento envolvido e nenhuma tentativa deve ser feita para ressecar mais intestino, mesmo que uma doença macroscopicamente evidente possa ser aparente.
zão pela qual os antibióticos devem ser administrados antes que ocorra a contaminação bacteriana, visando a bactérias Gram-negativas e anaeróbicas. Nas DII, a antibioticoterapia deve ser terapêutica, porque esses doentes apresentam alterações imunológicas que podem favorecer a instalação de infecções secundárias.
Técnicas cirúrgicas
As indicações cirúrgicas para tratamento das DII devem resultar de um consenso entre cirurgião e o paciente conhecedor das características de sua doença, das perspectivas do ato operatório e suas consequências. O tratamento cirúrgico possibilita melhora da qualidade de vida deteriorada em parcela significativa dos pacientes.
Estima-se que o tratamento cirúrgico seja necessário em aproximadamente 50% dos pacientes após 5 anos de doença e entre 74 a 96% após 10-20 anos de seguimento. A ressecção completa dos segmentos macroscopicamente envolvidos era considerada essencial, mas demonstrou-se que a incidência de recidiva não depende de doença residual microscópica nas margens de ressecção.
A intratabilidade clínica e a obstrução intestinal são as mais comuns indicações cirúrgicas.
Como princípios básicos, recomenda-se realizar incisão mediana para preservar os quadrantes inferiores do abdome, reconhecer a extensão da doença para o correto planejamento operatório, proceder a ressecções econômicas e evitar anastomoses na presença de contaminação cavitária.
Vários autores destacam a intratabilidade clínica como a indicação mais comum, no entanto o tratado do Sabiston, 19a edição destaca a obstrução intestinal como a causa mais comum. Principais indicações cirúrgicas na doença de Crohn (DC) Intratabilidade clínica Dificuldade no controle dos sintomas com doses máximas de medicação Efeitos colaterais importantes do tratamento clínico Dificuldade de manutenção do tratamento pela presença de crises de agudização Complicações agudas Abscessos anais Abscessos abdominais Perfuração livre Oclusão intestinal Megacólon tóxico Hemorragia maciça Complicações crônicas Fístulas internas Fístulas enterocutâneas e colocutâneas Manifestações extraintestinais Retardo no crescimento Neoplasi Tabela 33.14
Preparo pré-operatório O preparo mecânico do cólon é fundamental. Preparos anterógrados com manitol, polietileno glicol ou picossulfato sódico devem ser realizados cuidadosamente, uma vez que muitos desses doentes podem ser portadores de estenose ou fístulas. O preparo reduz a quantidade de fezes e bactérias, mas não as elimina, ra-
Para preservar a maior extensão possível do intestino, empregam-se ressecções econômicas ou enteroplastias no tratamento das lesões múltiplas do intestino delgado. Ressecções parciais ou múltiplas, retirando as áreas mais intensamente atingidas, podem ser benéficas para diminuir os sintomas e evitar desnutrição.
Doença ileal ou ileocecal Na doença ileal os quadros obstrutivos são, geralmente, parciais e passíveis de resolução com tratamento conservador. Quando associadas a fibrose extensa, abscessos e fístulas associadas, a ressecção do segmento acometido torna-se imperativa, e a reconstrução do trânsito pode ser feita por anastomose laterolateral mecânica ou terminoterminal manual, reconhecendo-se, hoje, que a primeira está associada a menor índice de complicações e recidiva. A ressecção com margem mínima de segurança deve se acompanhar de cuidados técnicos adicionais na dissecção do mesentério inflamado e espessado, a fim de manter o segmento remanescente bem vascularizado. Linfadenectomias empregadas no passado são desnecessárias. Excepcionalmente, quando as condições técnicas impedirem a ressecção intestinal, pode-se realizar derivações internas ou externas. Em pacientes já submetidos a operações prévias, a combinação de ressecção limitada e técnicas conservadoras pode ser a melhor alternativa. A ressecção ileal interfere com a absorção de vitamina B12 e dos sais biliares, podendo determinar alterações funcionais, desenvolvimento de litíase biliar e cálculos renais de oxalato. Desnutrição grave ocorre quando é excisado mais que 75% do intestino delgado.
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353 33 Doença de Crohn
Jejunoileíte Forma clínica grave com acometimento de segmentos longos e/ou múltiplos no intestino delgado, levando, com maior frequência, a quadros de estenoses curtas. O tipo mais popular de enteroplastia é a técnica de Heineke-Mikulicz, originalmente proposta para tratamento da hipertrofia pilórica. Geralmente usada em estenoses menores que 7 cm, essa técnica consiste em abrir longitudinalmente o intestino na borda antimesentérica, fechando essa brecha no sentido transverso de maneira a aumentar a luz intestinal e corrigir a estenose. Já a técnica de Finney é mais bem indicada em estenoses entre 7 e 15 cm (geralmente > 10 cm), arqueando o segmento afetado em forma de U. Por esse detalhe técnico, seu uso não é indicado para longos segmentos intestinais pela dificuldade de dobrá-lo sobre si mesmo. Embora a técnica de Heineke-Mikulicz seja a mais comumente usada, a análise evolutiva dos pacientes sugere que a técnica de Finney pode reduzir os índices de reoperações em pacientes selecionados. Variações das técnicas de enteroplastia têm sido idealizadas. Fazio et al. descreveram um método que combina elementos desses dois tipos de plástica, utilizada nas estenoses de até 20 centímetros. Michelassi sugeriu a realização de enteroplastia isoperistáltica com anastomose laterolateral para tratamento de estenoses longas. Em 1997, Taschieri et al. descreveram uma enteroplastia alternativa, indicada seletivamente para os casos em que o íleo terminal está muito inflamado e há estreitamento da válvula ileocecal. A seleção dos locais para realização da enteroplastia é importante. Estenoses fibróticas segmentares (curtas) são consideradas as mais apropriadas, seja no jejuno íleo, duodeno ou em anastomoses ileocolônicas ou ileorretais após ressecção intestinal. As enteroplastias têm sido especialmente indicadas em pacientes com jejunoileíte difusa (especialmente com ressecções prévias) e nas estenoses longas, com bons resultados. Eventualmente, são associadas a ressecções parciais. Perfuração intestinal, fístulas e abscessos são considerados contraindicações para sua realização.
Doença colônica As principais indicações cirúrgicas são intratabilidade clínica, fístulas e estenoses. A realização de derivações intestinais isoladas para prover “repouso” ao intestino inflamado não oferece benefícios aos pacientes, sendo esta indicação abandonada em favor da instituição de terapia nutricional parenteral no pré-operatório. Assim, a doença colônica deve ser tratada por técnicas de ressecção que irão variar conforme as características de cada paciente. A conduta operatória irá depender da localização preferencial do processo inflamatório e da pre-
sença de lesão perianal. Ressecções econômicas segmentares do cólon direito ou do cólon esquerdo com anastomose primária podem ser realizadas em doenças limitadas a esses segmentos. Mesmo sendo elevada a incidência de recidiva, o paciente se beneficia pela ausência do estoma e pelo controle dos sintomas durante algum tempo. A maioria dos doentes com colite de Crohn apresenta acometimento extenso, poupando o reto em até 25% dos casos. Colectomia total com ileorretoanastomose pode ser realizada em pacientes em que o reto tenha boa complacência, não esteja muito comprometido pelo processo inflamatório ou por displasia, comprovando-se que há boa função esfincteriana. Do ponto de vista técnico, é procedimento mais simples, com baixo índice de complicações pós-operatórias e sem consequências na esfera urogenital. Nos casos em que o cirurgião não esteja convicto da viabilidade do reto ou na presença de sepse perineal, pode-se preservar o reto e realizar colectomia subtotal e ileostomia, postergando a ressecção definitiva do reto. Nesses casos, o paciente deve ser submetido a exames rotineiros do reto em vista da possibilidade de malignização. O acometimento perianal importante torna necessária a realização de proctocolectomia total com ileostomia definitiva.
Cirurgia de emergência O tratamento cirúrgico emergencial é realizado para o controle das hemorragias, tratamento da obstrução aguda, do megacólon tóxico, da ileíte aguda e da perfuração, que são complicações pouco frequentes.
Fístula Fístulos podem se originar de qualquer segmento intestinal e envolver órgãos ou estruturas adjacentes, como a pele (enterocutâneas), bexiga (enterovesicais), vagina (retovaginais) e alças intestinais (enteroentéricas ou enterocólicas). Fístulas perianais são frequentes. Deficiências nutricionais, como anemia e hipoalbuminemia, são comuns. As fístulas enterocutâneas devem ser tratadas pela excisão do trajeto fistuloso ao longo do segmento lesado do intestino e realizando-se uma reanastomose primária. Se a fístula formar-se entre duas ou mais alças adjacentes de intestino lesado, os segmentos envolvidos devem ser excisados. A presença de uma fístula enteroenteral radiologicamente demonstrável sem nenhum sinal de sepse ou de outras complicações não é, em si mesma, uma indicação cirúrgica.
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354 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado Caso haja indicação cirúrgica, a recomendação é ressecção econômica com anastomose primária. Nas fístulas ileossigmoideanas, geralmente, a ressecção fica restrita ao segmento do íleo acometido, já que o sigmoide, na grande totalidade dos casos, está sadio. Caso se evidencie doença nesse segmento colônico, o sigmoide deve ser ressecado em conjunto com o íleo.
O tratamento deve ser individualizado. Combinações terapêuticas envolvendo antibióticos, azatioprina/6-MP com ou sem infliximab, associadas à cirurgia conservadora (incisão, drenagem e colocação de seton) podem facilitar a cicatrização de fístulas em muitos pacientes. Em casos de sepse perianal, o emprego de oxigenoterapia hiperbárica pode melhorar as condições locais, e o uso de drogas biológicas (anti-TNF-alfa) podem ser benéficas.
Megacólon tóxico O megacólon tóxico constitui complicação grave caracterizada por dilatação do cólon (> 6 cm) e quadro séptico, de etiologia ainda mal definida. A inflamação transmural resulta em paralisia da musculatura lisa do cólon, que se dilata passivamente e perde as contrações propulsivas. A peritonite localizada permite absorção de toxinas, desencadeando quadro séptico com febre, taquicardia, leucocitose e choque. Muitos pacientes não respondem à terapia clínica e requerem intervenção cirúrgica precoce. Constituem indicações para cirurgia imediata a presença de perfuração livre ou sinais de peritonite, dor abdominal intensa e localizada (indicando perfuração iminente), sinais de choque séptico, hemorragia maciça associada ou deterioração das condições gerais em período de 24 horas. A restauração da continuidade do trânsito intestinal não deve ser tentada em condições emergenciais, como a colite fulminante e megacólon tóxico. Nessas circunstâncias, o procedimento mais indicado é a colectomia subtotal com ileostomia e sepultamento do reto remanescente, ou sua exteriorização como fístula mucosa.
Doença perianal As manifestações perianais da DC ocorrem em proporção variável entre 20 a 80% dos pacientes, e a meta do tratamento é a resolução da sintomatologia. Embora o tratamento local possa ser efetivo em pacientes selecionados, todos os esforços devem ser dirigidos para a resolução da doença intestinal, cujo controle ajuda na cicatrização perianal. Os critérios para avaliação da atividade da doença incluem a presença de dor abdominal, diarreia e complicações sistêmicas. A realização de colostomia não promove cicatrização, e a presença de lesões extensas pode motivar a indicação de amputação do reto, sendo essa situação pouco comum. Quando associada à incontinência fecal, outra opção é a proctocolectomia total, que evita a realização de grandes feridas que podem ter cicatrização lenta e difícil. O abscesso anal se constitui em indicação óbvia de tratamento cirúrgico local.
Videocirurgia na doença de Crohn Virtualmente, todas as operações realizadas por via convencional em pacientes com DC podem ser feitas por VL, incluindo procedimentos laparoscópicos de complexidade variável, como laparoscopia diagnóstica, derivação intestinal para controle de sepse perineal ou fístulas complexas, ressecção intestinal segmentar, ileocolectomia, enteroplastia, colectomia segmentar ou total (com ou sem anastomose). Essas técnicas variam na extensão em que os sucessivos tempos operatórios (desvascularização, secção intestinal e anastomose) são realizados dentro ou fora da cavidade abdominal. A colocação dos portais deve ser cuidadosamente planejada, tendo em mente que ao longo da evolução podem ser necessárias reoperações ou a confecção de estoma de derivação (doença perianal grave, ileostomia permanente, quadro fulminante). As ressecções segmentares e enteroplastias devem ser feitas segundo os mesmos princípios da cirurgia convencional. Recomenda-se reconhecer a extensão da doença pela inspeção sequencial retrógrada (do íleo terminal ao ângulo de Treitz), à procura de lesões não detectadas radiologicamente. Os segmentos doentes podem ser marcados e exteriorizados para ressecção ou enteroplastia. As ressecções ileocolônicas são realizadas de maneira “assistida”. O segmento é mobilizado por via laparoscópica, após o que é exteriorizado por pequena incisão auxiliar (ou facilitadora), desvascularizado, ressecado e anastomosado fora da cavidade abdominal. Em seguida, as alças são reintroduzidas e se restabelece o pneumoperitônio. A desvascularização também pode ser intracorpórea, facilitando a exteriorização do cólon. Na DC, é necessário evitar a apreensão e tração da alça inflamada, progredindo-se a dissecção da área intestinal normal em direção ao segmento doente, a fim de evitar enterotomias. A inflamação transmural resulta em mesentério espessado, friável e com aderências, tornando sua manipulação difícil e com maior risco de sangramento. Além disso, a mobilização de alças infla-
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355 33 Doença de Crohn madas através de uma pequena incisão pode causar estiramento e sangramento do mesentério, além de poder acarretar íleo pós-operatório prolongado. Apesar disso, a mobilização laparoscópica seguida de ligaduras vasculares extracorpóreas pode ser mais segura, rápida e barata quando o mesentério for espessado, permitindo, inclusive, a confecção de anastomose fora da cavidade. Há que se considerar também que a aplicação de clipes requer maiores cuidados técnicos em mesentério espesso. Nesse sentido, uma opção bastante atraente consiste em utilizar dispositivos especiais como o Ligasure Lap (Valleylab), que permite selar vasos com mínimo chamuscamento e disseminação de energia térmica, mas a experiência atual é ainda pequena. Recomenda-se que as incisões auxiliares sejam medianas trans-umbilicais, ou transversais suprapúbicas tipo Pfannenstiel. Além do efeito cosmético, essas incisões preservam os flancos do abdome para a eventual realização de estomas intestinais. Uma vantagem adicional da incisão mediana é possibilitar reintervenções pós-operatórias e futuras ressecções laparoscópicas nas recidivas. Aqueles que defendem a incisão de Pfannenstiel acreditam que ela também proporciona menos dor e complicações (infecção e hérnia) em comparação às incisões medianas ou transversais.
Figura 33.12 Estrituroplastia. A: os estreitamentos curtos podem ser alargados por uma incisão longitudial e um fechamento transversal (análogo à piloroplastia de HeinekeMikulicz); B: os estreitamentos mais extensos são abertos por uma incisão longitudinal e realiza-se um longo fechamento laterolateral (análogo à piloroplasia de Finney).
Após a ressecção com margem mínima de segurança, pode-se fazer anastomose laterolateral mecânica ou terminoterminal manual, sabendo-se, hoje, que a primeira está associada a menores índices de complicações e recidivas.
Figura 33.11 Ressecção ileocolônica típica para enterite regional. A: a margem de ressecção ileal fica imediatamente acima (proximal) da doença macroscópica. O ceco (e a válvula ileocecal) deve ser removido de forma que toda doença seja retirada, porém o cólon direito é preservado seccionando-o logo abaixo (distal) de qualquer acometimento colônico. O mesentério pode ser seccionado relativamente próximo ao intestino, a fim de preservar o suprimento sanguíneo (linha interrompida), pois os gânglios linfáticos aumentados não precisam ser removidos; B: uma anastomose terminoterminal é sempre exequível, apesar de qualquer discrepância de tamanho entre o íleo e o cólon.
Figura 33.13 Técnica de enteroplastia de Finney.
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356 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado
Prognóstico Os pacientes com pior diagnóstico são aqueles que manifestam a doença antes dos 40 anos ou naqueles que têm doença por mais de 13 anos. A taxa de mortalidade é duas a três vezes maiores do que na população geral. A chance de desenvolvimento de câncer é de 3-20 vezes maior do que na população em geral.
Ao diagnóstico
Qualquer momento
Resumo dos fatores preditores de mau prognóstico na DII Risco aumentado < 40 anos de idade Doença perianal Necessidade de corticosteroide no primeiro surto Envolvimento do trato digestivo superior Acometimento extenso do delgado (> 100 cm) Perda de peso > 5 kg 2 a 3 dos itens anteriores conferem > 90% de chance Manifestações extraintestinais Tabagismo Envolvimento ileal Ulcerações profundas na colonoscopia Falta de cicatrização mucosa após indução Tabela 33.15
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CAPÍTULO
6
Atresia de duodeno
“Sucesso autêntico é saber que se deixasse o mundo hoje, partiria sem arrependimentos.” – Autor desconhecido
Definição Atresia corresponde à obstrução completa do lúmen duodenal quase sempre no nível da ampola de Vater. Estenose: obstrução parcial geralmente no
Aproximadamente 50% possuem anomalias congênitas associadas (veja a seguir);
Pâncreas anular é encontrado associado à atresia duodenal com cotos separados em 20 a 30% dos casos, embora não seja considerado causa primária de obstrução.
nível da ampola de Vater, com pequeno orifício comunicando os dois segmentos comprometidos.
Epidemiologia
Prevalência: 1:5.000 a 10.000 nascidos vivos;
Leve predisposição ao sexo feminino;
Aproximadamente 50% pesam menos do que 2.500 g (prematuros e/ou pequenos para a idade gestacional - PIG) e, destes, 20% pesam menos do que 2.000 g;
Em 80% dos casos a atresia é distal à ampola de Vater e em 20% proximal;
Anomalias congênitas associadas
Trissomia 21: 25 a 30%;
Gastrointestinais: 30% (atresia de esôfago 7%; má rotação intestinal 20%; anomalia anorretal 3%; atresia jejunoileal e divertículo de Meckel);
Cardiovasculares: 20%;
Genitourinárias: 8%.
53 5 Atresia de duodeno
Classificação Estenose e atresia de duodeno estão limitadas, quase totalmente, à primeira e segunda porções duodenais. Pâncreas anular pode estar associado e quase sempre não é causa da obstrução.
Poli-hidrâmnio: 50 a 60%, em atresias e 10 a 15%, em estenoses;
Constipação ou eliminação de mecônio anormal;
Prematuridade ou PIG: 45 a 50%.
Tipo I (86%): são constituídas por um diafragma ou membrana formada por mucosa e submucosa. São divididas em:
– Membrana completa. – Membrana com pequeno orifício central. – Membrana do tipo “biruta” (windsock). Esse tipo de membrana alongada surge por influência direta da peristalse. O local de origem dessa membrana pode estar muitos centímetros proximais ao nível da obstrução.
Tipo II (2%): fundos cegos são conectados por curto cordão fibroso e têm mesentério intacto.
Tipo III (12%): não há cordão fibroso conectando os cotos, que são separados por alguma distância. O mesentério está ausente em defeito com forma de V.
Quadro clínico
Vômitos biliosos nas primeiras 24 h em atresias e entre 24 e 48 h, em estenoses, com resíduo gástrico: > 30 mL;
Distensão do epigástrio e restante do abdome escavado;
Presença de icterícia: 50%. Normalmente, os recém-nascidos, principalmente prematuros ou pequenos para a idade gestacional, apresentam icterícia por hiperbilirrubinemia indireta. Isso se deve ao aumento da produção de bilirrubina, meia-vida mais curta dos eritrócitos, maior formação de bilirrubinas de origem não hemoglobínica do heme, diminuição da concentração da albumina sérica resultando em menor capacidade de ligação e maior ciclo enteroepático. O mecônio do recém-nascido contém bilirrubina e betaglicuronidase, uma enzima que hidrolisa a bilirrubina conjugada à forma não conjugada. Pode ser reabsorvida e voltar ao fígado pelo ciclo enteroepático, que costuma estar aumentado nos recém-nascidos. Em obstruções intestinais congênitas, principalmente do duodeno, a alimentação retardada e a motilidade intestinal diminuída favorecem maior atividade da betaglicuronidase.
A
B
D
C
E
Figura 6.1 Representação esquemática dos tipos anatômicos mais frequentes de atresias e estenoses duodenais. A: atresia membranosa. B: membrana perfurada. C: membrana tipo “biruta”. D: atresia com cotos conectados por cordão fibroso. E: atresia com cotos separados.
Atenção: enquanto a atresia duodenal é uma situação diagnosticada nos primeiros dias de vida, a estenose duodenal pode ter quadro clínico muito menos aparente, com icterícia neonatal prolongada e déficit no crescimento. Os vômitos biliosos estão usualmente presentes desde o nascimento. Como a obstrução é somente parcial, há eliminação de mecônio e “fezes de transição”. A radiografia do abdome e mesmo o estudo contrastado do esôfago, estômago e duodeno são usualmente inconclusivos e a endoscopia digestiva alta é necessária para confirmar o diagnóstico.
Abordagem diagnóstica
História e exame físico;
Radiografia de abdome;
- Atresias: visualização de dupla bolha (estômago e bulbo duodenal); - Estenoses: dilatação do estômago, duodeno proximal e pouco gás visível abaixo da obstrução; Trânsito intestinal e/ou enema opaco: para afastar má rotação intestinal, que deve ser considerada emergência.
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54 Cirurgia pediátrica, urológica e vascular
Tratamento Avaliação e cuidados pré-operatórios
Reequilíbrio hidroeletrolítico e sonda nasogástrica n° 8-10;
Solicitar hemograma com plaquetas, prova de coagulação, glicose, bilirrubinas, ureia, creatinina, eletrólitos, cálcio, gasometria arterial e ecocardiografia.
Cirurgia Figura 6.2 Radiografia simples de abdome mostrando o sinal da dupla bolha. A bolha esquerda corresponde ao estômago (E) e a direita, ao duodeno obstruído (D).
Ultrassonografia prénatal Detecção pré-natal de atresia duodenal é uma indicação de análise cromossômica pré-natal pela alta associação com a síndrome de Down. Cerca de 15 a 20% das crianças com atresia de duodeno podem ter o diagnóstico sugerido por ultrassonografia pré-natal. Sinais ultrassonográficos:
Poli-hidrâmnio (a quantidade de fluido amniótico deglutido excede a capacidade absortiva do estômago e duodeno proximal);
Acesso: laparotomia transversa supraumbilical direita;
Liberação do ângulo hepático do cólon e manobra de Kocher;
Tratar bandas de Ladd ou outra forma de má rotação se houver;
Observar aspecto da vesícula biliar (associação com atresia de vias biliares é de 1 a 2%);
Certificar-se de que não existe veia porta pré-duodenal (4% dos casos);
A observação de continuidade preservada na parede do duodeno faz o diagnóstico de membrana. Colocar sonda de Foley por gastrotomia ou solicitar ao anestesista que introduza a sonda nasogástrica até o duodeno, guiada pelo cirurgião. Essa manobra pode diagnosticar membrana do tipo “biruta” ao distendê-la e provocar indentação proximal, definindo o ponto de sua inserção;
A permeabilidade do restante do duodeno e do jejunoíleo é comprovada pela injeção intraluminal de ar ou soro fisiológico. A coexistência de uma segunda membrana duodenal é de 1 a 3%.
Sinal da dupla bolha (estômago e duodeno preenchidos com líquido).
Tratamento da membrana
Figura 6.3 Ultrassonografia fetal: sinal da dupla bolha.
Duodenotomia longitudinal sobre a inserção da membrana;
Identificar a localização da ampola de Vater em relação à membrana. Comprimir a vesícula biliar para observar a saída de bile pela ampola. Usar magnificação óptica. Havendo orifício na membrana, a ampola quase sempre estará localizada na sua margem posteromedial;
Ressecar porções anteriores e laterais da membrana em forma de V (membranectomia parcial em forma de V). Deixar porção medial intacta;
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55 5 Atresia de duodeno
Realizar sutura fina contínua bem próxima das margens ressecadas para controlar sangramento, se necessário. Nunca usar cautério para isso;
Fechamento duodenal no sentido transversal;
No caso de diafragma ou membrana duodenal, também pode ser feita duodenoplastia do tipo Heinecke-Mikulicz, sem ressecção da membrana. Também é possível a ressecção da membrana por via endoscópica, por operadores experientes (riscos: perfuração duodenal, lesão da papila de Vater).
Tratamento da atresia sem continuidade ou pâncreas anular associado
Duodenojejunostomia laterolateral: pouco utilizada atualmente;
Duodenoduodenostomia laterolateral;
Duodenoduodenostomia laterolateral em forma de diamante (Diamond-shape), conforme descrição de Kimura: incisão transversa no coto proximal do duodeno e longitudinal no coto distal. A anastomose inicia-se aproximando as extremidades da incisão proximal à porção média da incisão distal. É a técnica mais utilizada atualmente;
Duodenoplastia redutora pode ser indicada primariamente durante o primeiro ato operatório, ou no pós-operatório tardio complicado por vômitos recorrentes, com radiografia demonstrando duodeno extremamente dilatado (megaduodeno) e atônico. Pouco usada; Gastrostomia: pouco usada atualmente.
A
B
Figura 6.4 A: anastomose de Kimura em forma de diamante. A extremidade proximal da incisão longitudinal (distal) deve ser aproximada ao ponto médio da borda inferior da incisão transversa (proximal). Os pontos médios da incisão longitudinal devem ser aproximados às extremidades da incisão proximal transversa. B: anastomose simples.
Pós-operatório
A maioria pode ser alimentada em sete a dez dias usando-se a técnica de Kimura. Porém, têm sido observadas até três semanas de obstrução funcional.
A realimentação, em geral, pode ser iniciada quando a drenagem da SNG tornar-se clara e < 30 a 35 mL/dia.
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CAPÍTULO
48
Doenças da aorta
“O poder da cooperação é o norte de uma equipe. Juntos seremos mais fortes”. – R.A.G.
Aneurismas aórticos Aneurisma arterial é definido como a dilatação focal de uma artéria, tendo pelo menos 50% do aumento de seu diâmetro quando comparada ao diâmetro normal da artéria em questão. O diâmetro normal da aorta abdominal em homens é de 20 mm, sendo normalmente 2 mm maior que nas mulheres. A importância do reconhecimento reside na prevenção da ruptura, visto que esse evento traz consigo índice de mortalidade superior a 50%.
5,5% 12%
2,5%
80%
Figura 48.1 Na aorta, os segmentos mais afetados, segundo Crawford são: ascendente em 5,5%, descendente em 12%, toracoabdominais descendentes em 12%, toracoabdominais em 2,5% e abdominais (infrarrenal) em 80%.
341 48 Doenças da aorta
Figura 48.2 Classificação dos aneurismas toracoabdominais segundo Crawford. Tipo I: distal à artéria subclávia esquerda e acima das artérias renais. Tipo II: distal à artéria subclávia esquerda e abaixo das artérias renais. Tipo III: a partir do 6º espaço intercostal e abaixo das artérias renais. Tipo IV: a partir do 12º espaço intercostal até a bifurcação ilíaca.
Epidemiologia O AAA (Aneurisma de Aorta Abdominal) é uma doença predominante dos homens brancos idosos. A frequência aumenta continuamente depois dos 50 anos, sendo 2-6 vezes mais comuns nos homens que nas mulheres e 2-3 vezes mais frequentes nos homens brancos que nos negros. A incidência (ou probabilidade de desenvolver um AAA) relatada variou de 3-117/100.000 habitantes-ano. Toda aorta abdominal com diâmetro transverso acima de 30 mm deve ser considerada aneurismática. Acredita-se que os aneurismas da aorta abdominal
(MA) sejam causados por lesão localizada da parede arterial, superimposta às alterações degenerativas causadas pela idade, fatores hemodinâmicos locais e fatores de risco sistêmicos, como a predisposição genética.
Etiologia e Patogênese Os fatores de risco associados aos AAA são idade acima de 65 anos, sexo masculino, hipertensão arterial, história familiar de aneurismas da aorta, tabagismo, doença pulmonar obstrutiva crônica, aterosclerose e doença arterial periférica. Pacientes portadores dessa afecção apresentam história familiar positiva em 15 a 20% dos casos. Os AAA são ocasionalmente associados a aneurismas em outros locais, principalmente nas artérias poplíteas e ilíacas. Aneurismas degenerativos – atualmente, quase todos os aneurismas da aorta são acompanhados de degeneração aterosclerótica dos grandes vasos, passando a ser chamados, na prática, de aneurismas ateroscleróticos (em contraposição aos de origem in-
flamatória, luética ou micótica, frequentes no passado). Tal associação entre aneurisma e aterosclerose leva-nos a
supor a existência de uma relação de causa e efeito entre essas condições, defendida por muitos. Recentemente, porém, descobriu-se a influência da elastase, enzima que participa da degradação das fibras elásticas e cuja atividade encontra-se aumentada na aorta desses pacientes. O aumento da elastase seria derivado, por sua vez, de deficiências na produção dos fatores teciduais inibidores das metaloproteinases, grupo do qual faz parte a elastase. A elevada incidência de aneurismas da aorta em irmãos de pacientes portadores dessa doença – chegando a 20% em algumas séries – sugere a interferência de um fator genético em tal deficiência. Por outro lado, a aterosclerose sabidamente provoca o alargamento das artérias que acometem todos os territórios e há autores que acreditam ser ela a causa dos aneurismas. Para eles, o aumento da atividade da elastase é apenas uma resposta tecidual a um remodelamento do vaso causado pela progressão das placas de ateroma. O fato é que a aterosclerose pode manifestar-se com estreitamento (estenose) ou dilatação (aneurisma) da luz do vaso. Provavelmente, os aneurismas da aorta são causados pela degeneração aterosclerótica, quando ela ocorre em indivíduos que, por constituição genética, carregam deficiência em inibir a atividade da elastase. Diversos estudos mostraram a associação de infecção crônica por Chlamydia pneumoniae e a sua relação com a expansão dos aneurismas aórticos. Aneurismas inflamatórios: cerca de 4 a 10% dos aneurismas da aorta abdominal apresentam parede espessa, constituída por uma camada fibrosa. Acredita-se que ocorra o envolvimento de mecanismos autoimunológicos em sua gênese. As fibras elásticas da camada média são substituídas por tecido fibroso, que tem pouco poder de sustentação. O que se considera como certo é que a destruição da elastina promove a liberação de mediadores das respostas inflamatórias, entre as quais a interleucina-1-b, que ocorre envolvendo a parede do aneurisma. Aneurismas infecciosos (micóticos): surgem da destruição da camada média. Êmbolos sépticos instalam-se neste local mediante a nutrição da camada média pela vasa vasorum. Também podem ocorrer pela contiguidade de processos infecciosos nos tecidos vizinhos. Reconhecem-se como mais frequentes os aneurismas micóticos que surgem em decorrência de endocardite infecciosa e septicemia por bacilos Gram-negativos. Até meados do século XX, a maior causa dos aneurismas infecciosos era a sífilis, por ação direta do Treponema pallidum sobre as fibras elásticas da camada média da aorta torácica, em geral na ascendente e no arco. Aneurismas congênitos: resultam de deformidade vascular originada durante a embriogênese. Mais comumente são de dimensões reduzidas e acometem ramos intracranianos e vasos viscerais, como a artéria esplênica e as artérias renais.
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342 Cirurgia vascular ilíacas e fornece outras informações importantes ao planejamento cirúrgico. A TC é particularmente útil
Figura 48.3 Representação de aneurismas de aorta: A: abdominal infrarrenal. B: toracoabdominal.
Diagnóstico A maioria dos AAA (Aneurismas de Aorta Abdominal) é assintomática, o que explica a dificuldade na detecção. Em alguns casos, os pacientes podem descrever uma “pulsação” no abdome ou palpar uma massa pulsátil. Ainda que a maioria dos AAA clinicamente significativos possa ser palpada durante o exame físico de rotina, a sensibilidade da técnica depende do tamanho do AAA, do grau de obesidade do paciente, da habilidade do examinador e do motivo principal do exame. Em 75% dos AAA de 5 cm ou mais o exame físico é capaz de detectá-lo. O valor preditivo positivo do exame físico para identificar AAA de 3,5 cm ou mais é de apenas 15%.
Existem várias modalidades de imageamento disponíveis para confirmar o diagnóstico dos AAA. A ultrassonografia abdominal em modo B é o exame menos dispendioso e invasivo e a técnica utilizada mais comumente, principalmente para a confirmação inicial da suspeita de um AAA, ou para o acompanhamento das lesões pequenas. As determinações ultrassonográficas do diâmetro mostram variabilidade interobservador < 5 mm em 84% dos estudos e são mais exatas na incidência anteroposterior que na lateral. A visibilização da aorta suprarrenal e das artérias ilíacas pode ser obscurecida pelos gases intestinais ou difícil nos pacientes obesos. A ultrassonografia não consegue determinar com precisão a existência de ruptura e, em geral, também não consegue avaliar precisamente a extensão proximal de um AAA. A tomografia computadorizada (TC) é mais dispendiosa que a ultrassonografia, expõe o paciente à radiação e requer contraste intravenoso, mas possibilita a determinação mais exata do diâmetro, pois 91% dos exames mostram variabilidade interobservador <5 mm. A precisão pode aumentar com o uso de técnicas padronizadas, compassos eletrônicos e amplificação. A TC define com precisão os limites proximais e distais do AAA, gera imagens mais nítidas das artérias
na exclusão da ruptura de AAA em pacientes sintomáticos e estáveis; à definição do limite proximal de um AAA; e à demonstração de outras patologias até então insuspeitas, como um aneurisma inflamatório ou outras anomalias intra-abdominais na ausência de um AAA. A TC helicoidal é um método novo e mais rápido de imageamento, que proporciona resolução excelente até mesmo dos ramos aórticos viscerais, caso sejam realizados “cortes” finos. Entre os avanços da TC helicoidal esta a reconstrução tridimensional, que fornece imagens mais esclarecedoras ao examinador e facilita a determinação exata dos diâmetros dos enxertos endovasculares. A ressonância magnética (RM) tem a mesma precisão da TC para avaliar e determinar as dimensões do AAA, e evita a exposição à radiação. Entretanto, a técnica é mais dispendiosa, não está tão disponível e é menos tolerada pelos pacientes claustrofóbicos que a TC. A RM é particularmente valiosa quando há contraindicação ao uso de contrastes intravenosos, como ocorre nos pacientes com insuficiência renal. Contudo, o refinamento da resolução espacial da TC helicoidal (angio TC-3D), combinado com a técnica mais rápida, praticamente relegou a RM a um papel secundário na investigação diagnóstica dos AAA. A arteriografia não é uma técnica sensível para confirmar o diagnóstico do AAA ou medir seu diâmetro com precisão, já que os trombos presentes dentro do aneurisma comumente diminuem o diâmetro da luz preenchido pelo contraste. Já a ar-
teriografia é utilizada na avaliação pré-operatória de alguns pacientes com AAA para definir a patologia das artérias adjacentes, que poderia afetar a reparação do aneurisma principal.
Quadro clínico As razões mais comuns para o desenvolvimento de sintomas nos pacientes com AAA são rupturas e expansão rápida. Os pacientes com ruptura de AAA relatam dor abdominal ou lombar de início súbito, que pode irradiar-se para o flanco ou para a virilha. A maioria dos AAA rotos é palpável, desde que a detecção não seja impedida pela obesidade ou distensão abdominal; em geral, as lesões também são dolorosas à palpação. Quando há ruptura, o extravasamento do sangue ocorre pela parede aórtica rompida. O volume da hemorragia e a compensação cardiovascular determinam a gravidade da hipotensão e do choque associados à ruptura; em geral, isso depende do local específico da ruptura, que em 20% dos casos está na superfície anterior da aorta e extravasa para a cavidade peritoneal. Ali, pode-se esperar pouco tamponamento e as hemorragias subsequentes são profusas. Oitenta por cento
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343 48 Doenças da aorta das rupturas ocorrem na superfície posterior da aorta e o sangue extravasa para o espaço retroperitoneal, onde o hematoma fica contido nos estágios iniciais, o que aumenta as chances de sobrevivência.
A maioria dos pacientes com rupturas de AAA tem no mínimo hipotensão transitória, que evolui para choque ao longo de algumas horas. Em alguns casos, a ruptura é contida tão eficazmente dentro do retroperitônio que os sintomas podem persistir por dias ou semanas, embora o paciente não tenha hipotensão. Os pacientes com “rupturas contidas” crônicas podem ser difíceis de diagnosticar, porque seus sintomas comumente simulam distúrbio inflamatório agudo. Embora a apresentação clássica da ruptura de AAA inclua dor abdominal ou lombar, hipotensão e massa abdominal pulsátil, as três manifestações clínicas são evidenciadas em apenas 26% dos pacientes com rupturas comprovadas. Perda temporária da consciência é sinal potencialmente importante de ruptura de AAA, porque ocorre em combinação com dor em 50% dos pacientes e é o único sintoma em 17% dos casos de ruptura de AAA.
Figura 48.5 Massa abdominal pulsátil (mesogástrio) em paciente magro – aneurisma de aorta infrarrenal. O sinal de Debakey: positivo quando, à palpação constata-se que a dilatação atinge o nível do gradeado costal (comprometimento dos ramos viscerais).
Com muito mais frequência, os AAA podem causar sinais e sintomas não relacionados com a ruptura. Em casos raros, AAA volumosos causam sintomas atribuídos à compressão local, como saciedade precoce, náuseas ou vômitos causados pela compressão do duodeno; sintomas urinários secundários à hidronefro-
se por compressão dos ureteres; ou trombose venosa por compressão das veias cava e ilíacas. A erosão posterior dos AAA para dentro das vértebras adjacentes pode causar dor lombar. Mesmo que não haja envolvimento ósseo, os AAA podem causar dor lombar ou abdominal crônica difusa e mal definida. Os sintomas isquêmicos agudos podem ser atribuídos à embolização distal dos detritos trombóticos contidos no AAA, o que parece ser mais comum aos AAA menores, principalmente se os trombos intraluminares forem irregulares ou estiverem fissurados. A trombose aguda dos AAA é rara, mas causa isquemia catastrófica comparável a qualquer obstrução aórtica aguda. A embolia é mais comum que a trombose aguda dos AAA, mas as duas combinadas ocorrem em menos de 2-5% dos pacientes com AAA.
Figura 48.6 Tomografia computadorizada de abdome com contraste: aneurisma de aorta abdominal infrarrenal (seta). Veia mesentérica superior (origem da veia porta)
Parede abdominal anterior
Piloro
Pâncreas Veia esplênica
Fígado
Tronco celíaco Aorta abdominal
Disco intervertebral
Artéria mesentérica superior
Veia renal esquerda
Lobo hepático esquerdo Fissura do ligamento redondo
Estômago
Pâncreas (corpo) Cólon transverso (próximo da flexura esplênica)
Lobo quadrado do fígado Vesícula Lobo hepático direito
Veia esplênica
Processo uncinado do pâcreas
Cólon descendente Jejuno Glândula adrenal esquerda Baço
Porção descendente do duodeno (2ª) Corpo vertebral
Artéria mesentérica superior
Veia cava inferior
Aorta
Glândula adrenal direita Pilar diafragmático direito Veia renal esquerda
Figura 48.4 USG abdominal evidenciando aorta (corte longitudinal).
Pilar diafragmático esquerdo Musculatura paravertebral
Figura 48.7 Tomografia computadorizada de abdome – exame normal.
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344 Cirurgia vascular
Figura 48.8 A: aneurisma da aorta torácica demonstrado pela reconstrução 3D com exibição simultânea de um corte sagital da TC para gerar contexto. O artefato de movimento é muito maior ao redor do coração e da aorta ascendente proximal. As bolhas focais evidentes no modelo foram confirmadas por ocasião da cirurgia. B: as artérias intercostais estão marcadas nos cortes da TC e demonstradas no modelo 3D por meio de um software interativo (marcas azuis). As marcas vermelhas foram colocadas para assinalar o topo da 8ª vértebra torácica (T8) e a parte inferior da 12ª vértebra torácica. A artéria intercostal calibrosa situada perto do topo de T8 foi identificada e preservada durante a cirurgia.
Figura 48.9 A e B: aortografias nas incidências anteroposterior (A) e lateral (B) do que parecia ser um AAA infrarrenal. A artéria renal direita está obstruída e a artéria renal esquerda tem uma estenose discreta. C e D: as reconstruções 3D nas projeções anteroposterior e lateral apenas do fluxo sanguíneo acentuado pelo contraste mostram a mesma coisa. E: a reconstrução 3D de objetos múltiplos torna visível a placa calcificada (branco) e o trombo (amarelo) e demonstra que o AAA na verdade afeta a aorta suprarrenal, inclusive a origem da artéria mesentérica superior. Isso foi confirmado na cirurgia. Essa imagem da reconstrução foi útil para a escolha de um local apropriado para a colocação do clampe aórtico transversal (antes da artéria celíaca) e para determinar que uma anastomose biselada poderia ser realizada ao longo da aorta relativamente normal. A artéria renal esquerda foi reimplantada sobre um remendo aórtico depois da endarterectomia da placa na origem da artéria renal. F: a estenose da artéria celíaca está evidente na reconstrução 3D ampliada e rodada, tornando visível apenas o fluxo sanguíneo. A lesão foi confirmada à cirurgia. A estenose da artéria celíaca passou despercebida na angiografia porque estava superposta à artéria mesentérica superior na incidência lateral.
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345 48 Doenças da aorta
História natural Os aneurismas da aorta abdominal (AAA) tendem a crescer até se romper. A velocidade de crescimento não é, porém, linear, e varia de um paciente para outro. Além disso, essa velocidade é progressiva, ou seja, quanto maior o aneurisma, mais rapidamente ele cresce. O dado preditivo mais importante de ruptura é o diâmetro da aorta, medido no ponto de maior dilatação. É muito rara a ocorrência de ruptura até o diâmetro atingir 5 cm. A partir daí, o risco de ruptura aumenta progressivamente (alto risco, diâmetro > 6 cm). Outros eventos menos frequentes podem ocorrer durante a evolução natural: a embolização a partir dos trombos murais, com isquemia de membros inferiores, ou a corrosão de corpos vertebrais.
taxa de expansão e o risco de ruptura. A interrupção do tabagismo é crucial e a hipertensão deve ser controlada rigorosamente, bem como otimizar o tratamento da dislipidemia. Betabloqueadores: diminuem a DP/DT, com consequente diminuição da velocidade de crescimento do aneurisma. O alvo deve ser a pressão arterial sistólica de 105 a 120 mmHg. Devem ser utilizados mesmo após a correção cirúrgica dos aneurismas. Doxiciclina (inibe a ação das metaloproteinases) parece ser promissora em reduzir a velocidade de crescimento dos aneurismas. Como a determinação do diâmetro pela TC é mais precisa do que pela ultrassonografia, alguns autores sugeriram que os AAA devam ser acompanhados pela TC de seis em seis meses.
Indicação cirúrgica
Risco de ruptura A influência do tamanho dos aneurismas no risco de ruptura ficou firmemente estabelecida e ofereceu bases seguras para recomendar o reparo eletivo dos AAA grandes, especialmente porque esses dois estudos revelaram aumento expressivo da sobrevida depois do reparo cirúrgico (Tabela 48.1).
Fatores de risco para ruptura de aneurisma aórtico abdominal Fator de Baixo risco Risco médio Alto risco risco Diâmetro < 5 cm 5-6 cm > 6 cm Expansão < 0,3 cm/ 0,3-0,6 cm/ > 0,6 cm/ ano ano ano Tabagismo, Nenhum, Moderado Intenso/ DPOC leve esteroides História Sem Um parente Vários familiar parentes parentes Hipertensão Pressão Controlado Mal arterial controlado normal Forma Fusiforme Sacular Muito excêntrico Sexo Masculino Feminino Tabela 48.1 Sabiston, 19ª edição.
Tratamento clínico Para os pacientes com AAA de baixo risco (diâmetro pequeno sem outros fatores de risco para ruptura) acompanhados pelas determinações periódicas do diâmetro, devem-se realizar esforços para reduzir a
Como vimos, a ruptura de aneurismas menores do que 5 cm (baixo risco) é tão rara que sua probabilidade de ocorrência é menor do que a mortalidade operatória (Tabela 48.2), mesmo em centros com grande experiência e em pacientes com bom estado geral. Fatores de risco independentes para mortalidade cirúrgica depois do reparo eletivo dos aneurismas da aorta abdominal Razão de IC de Fator de risco probabilidades* 95% Creatinina > 1,8 mg/dL 3,3 1,5-7,5 Insuficiência cardíaca 2,3 1,1-5,2 congestiva Isquemia no ECG 2,2 1-5,1 Disfunção pulmonar 1,9 1-3,8 Idade avançada (por dé1,5 1,2-1,8 cada) Sexo feminino 1.5 0,7-3 Tabela 48.2 (*) Razão de probabilidades indica o risco relativo comparado com pacientes sem esse fator de risco. IC: intervalo de confiança.
Tratamento cirúrgico Os pacientes com indicação de correção cirúrgica devem passar por avaliação clínica cuidadosa antes do ato operatório. Quase sempre são pacientes idosos e portadores de aterosclerose disseminada. Em 50% dos casos, existe doença arterial coronariana e muitos pacientes apresentam doença pulmonar obstrutiva crônica. A hipertensão e o diabetes mellitus também aparecem como fatores associados com bastante frequência.
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346 Cirurgia vascular
Indicações:
sintomáticos: intervenção independentemente do tamanho;
assintomáticos: diâmetro no homem > 5,5 cm, na mulher > 5,0 cm;
velocidade de crescimento maior que 0,5 cm em 6 meses.
O ponto mais importante para a redução de riscos de tratamento operatório é a otimização cardíaca pré-operatória, uma vez que as complicações cardíacas são a causa mais comum de morbidade e mortalidade perioperatória. Se o paciente apresentar sopro na carótida ou história anterior de ataque isquêmico transitório ou derrame, executa-se o exame duplex da carótida. Pacientes com alto grau de estenose da artéria carótida interna (70 a 99%) são considerados para endarterectomia da carótida antes do tratamento do AAA.
Estabilização perioperatória Os antibióticos intravenosos pré-operatórios (geralmente cefalosporina) são administrados para reduzir o risco de infecção do enxerto artificial. Como rotina, recomenda-se um acesso intravenoso amplo, a monitoração da pressão intra-arterial e a monitoração do débito urinário por um cateter de Foley. Para os pacientes com doença cardíaca significativa, monitorização hemodinâmica mais agressiva. Como o volume de sangue perdido durante a reparação dos AAA geralmente requer reposição sanguínea, a autotransfusão intraoperatória e a doação autóloga pré-operatória têm adquirido popularidade, principalmente porque evitam o risco de infecção associada às transfusões alogênicas. Entretanto, os estudos da relação custo-benefício desses procedimentos questionaram sua utilização rotineira. Um estudo demonstrou que os hematócritos pós-operatórios < 28% estavam associados à morbidade cardíaca significativa entre os pacientes de cirurgia vascular. A conservação da temperatura corporal normal durante a cirurgia aórtica é importante para evitar coagulopatia, permitir a extubação e manter a função metabólica normal. Para evitar hipotermia,
passe pelo tubo e não mais exerça pressão sobre as paredes enfraquecidas da aorta. Esse tubo pode ser introduzido por laparotomia ou por cateterismo (correção intraluminal).
Correção por laparotomia Nesse procedimento, a aorta é dissecada logo abaixo do cruzamento da veia renal esquerda, assim como as artérias ilíacas. A aorta e as ilíacas são pinçadas e o aneurisma é aberto. Os óstios dos ramos lombares e da artéria mesentérica inferior são suturados por dentro do aneurisma aberto, de forma a conseguir hemostasia completa. O tubo sintético é suturado ao colo proximal e, em seguida, ao colo distal. Quando o aneurisma atinge a bifurcação da aorta ou se estende até as ilíacas comuns, coloca-se um tubo bifurcado com sutura em cada uma dessas artérias. A liberação das pinças deve ser feita com cuidados especiais de manutenção das funções vitais, uma vez que sempre ocorre queda da pressão arterial, em maior ou menor grau, em decorrência da expansão do leito vascular que esteve reduzido durante o tempo de interrupção da aorta. A cirurgia do aneurisma da aorta apresenta mortalidade de 5 a 15%, dependendo da seleção de pacientes e do centro onde é realizada. As possíveis
complicações incluem isquemia de membro inferior (que pode levar à amputação), insuficiência renal, isquemia mesentérica e infarto do miocárdio. A paraplegia por isquemia medular é rara nos aneurismas infrarrenais, mas pode ocorrer devido à necessidade de ligadura das artérias lombares e sacrais durante o procedimento cirúrgico.
Indicações de tratamento cirúrgico para AAT (aorta torácica) Sintomáticos: indicação de intervenção indepen-
dentemente do maior diâmetro transversal do vaso. Assintomáticos:
deve-se colocar uma manta com recirculação forçada de ar quente em contato com o paciente e os líquidos intravenosos (inclusive o sangue devolvido pela máquina de autotransfusão) devem ser aquecidos antes da infusão.
O tratamento cirúrgico do aneurisma da aorta abdominal consiste, basicamente, em implantar um tubo sintético (de poliéster ou PTFE) dentro do aneurisma, de forma a fazer com que o sangue
aneurisma da aorta ascendente: maior diâmetro > 5,5 cm; aneurisma do arco aórtico: maior diâmetro > 6,0 cm; aneurisma da aorta descendente: maior diâmetro > 6,5 cm; aneurisma toracoabdominal: maior diâmetro > 6,5 cm; velocidade de crescimento maior que 0,5 cm em 6 meses.
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Correção dos aneurismas toracoabdominais da aorta Nessa situação, a via de acesso é por toracofrenolaparotomia, devendo-se considerar várias peculiaridades. A anastomose proximal pode ser transversal ou em forma de bisel, abrangendo a parede posterior da aorta para reconstrução das artérias intercostais, a fim de evitar sequelas neurológicas (paraplegia por neuropatia isquêmica). As artérias viscerais são englobadas em apenas uma ou duas aberturas laterais na prótese. A anastomose distal é feita de forma convencional. É importante que o tempo de pinçamento seja o mais breve possível. As principais complicações são isquemia medular, com paraplegia (que ocorre em cerca de 15% dos casos), insuficiência renal por isquemia prolongada, insuficiência hepática e necrose intestinal.
Figura 48.11 Correção de aneurisma toracoabdominal: note confecção de bisel na prótese de dacron para preservação dos óstios das artérias intercostais e renais.
Correção intraluminal
Figura 48.10 A: correção de aneurisma de aorta abdominal infrarrenal por laparotomia. B: clampeamento abaixo das artérias renais, abertura da parede do aneurisma. C: interposição de prótese de dacron. D: fechamento da parede do aneurisma (capa).
Nesse tipo de operação, usam-se tubos de poliéster ou PTFE. Introduzido pela artéria femoral, o tubo é comprimido dentro de uma bainha. Sua progressão é acompanhada por fluoroscopia. Retira-se então a bainha, permitindo que o tubo se expanda e se encaixe dentro do aneurisma. Esses tubos são construídos sobre stents, grades metálicas que podem ser comprimidas e depois expandidas no momento certo. Os stents fixam o tubo à artéria, sem necessidade de sutura. Conforme o tipo de stent utilizado, sua expansão pode ser feita de duas formas diferentes: uma delas exige que um balão de angioplastia seja inflado no interior
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348 Cirurgia vascular da grade para que o tubo se expanda; outra utiliza a própria elasticidade do tubo, quando liberado da bainha. Neste último grupo, os stents de nitinol são os mais usados, pois têm como característica sua memória térmica - o nitinol é bastante elástico quando mantido em temperatura baixa e torna-se rígido quando exposto à temperatura do corpo. Os tubos usados para esse tipo de operação (fixados por stents) são chamados de endopróteses. As endopróteses podem também ser bifurcadas para implante desde a aorta até as duas ilíacas comuns. Nesse caso, são necessários acessos pelas duas artérias femorais. Um segmento, constituído pelo tronco e por um dos ramos, é introduzido por um lado. O outro ramo é adicionado a partir da artéria femoral contralateral. Para possibilitar o acoplamento do segundo ramo ao tronco, este último tem um coto com marcas radiopacas. Não são todos os aneurismas da aorta abdominal que podem ser corrigidos por via intraluminal. Como os stents ocupam uma extensão de cerca de 15 mm na parede arterial para se fixar, é necessário que o colo proximal tenha no mínimo esse comprimento, desde as artérias renais até o início da dilatação. Aneurismas justarrenais, portanto, não são passíveis de correção por essa técnica. Exige-se também que haja um segmento não dilatado de cada ilíaca comum para a implantação distal. Não se recomenda a implantação nas ilíacas externas, o que implica oclusão das ilíacas internas, pelo risco de complicações associadas com essa oclusão (isquemia intestinal). Como a prótese é introduzida pela artéria femoral, contida em uma bainha de maleabilidade limitada, a tortuosidade exagerada do trajeto arterial pode inviabilizar o método. Assim, deve-se evitar os casos em que as ilíacas comuns são muito sinuosas. Em decorrência da necessidade de injeções repetidas de contraste iodado na aorta durante o procedimento, os pacientes com função renal limítrofe também não devem ser operados por via intraluminal. Na literatura, os índices de conversão variam entre 5 e 29%, dependendo da seleção de casos e da experiência do cirurgião.
Condições anatômicas necessárias para o implante com sucesso das endopróteses de aorta abdominal Comprimento do colo proximal ≥ 15 mm Angulação do colo proximal < 60º Diâmetro da artéria ilíaca externa ≥ 7 mm Ausência das artérias renais acessórias Ausência de trombos ou de calcificação extensa no colo proximal Tabela 48.3
Figura 48.12 Implante de endoprótese de aorta abdominal por técnica endoluminal por meio das artérias femorais direita e esquerda.
Complicações do reparo dos aneurismas da aorta abdominal Apesar da melhora significativa dos resultados do reparo eletivo dos AAA, ainda ocorrem complicações importantes que devem ser tratadas adequadamente ou evitadas para manter a mortalidade baixa necessária para justificar o reparo profilático dessas lesões. Infarto agudo do miocárdio é a principal causa isolada de mortes imediatas e tardias entre os pacientes submetidos a reparo dos AAA e deve ser avaliado e tratado cuidadosamente para reduzir a mortalidade. Complicações imediatas (30 dias) depois do reparo eletivo dos aneurismas da aorta abdominal estimadas com base nas séries cirúrgicas Complicação Morte Todas as causas cardíacas lnfarto do miocárdio Todas as causas pulmonares Pneumonia Insuficiência renal Dependente de diálise Trombose venosa profunda Sangramento Lesão ureteral AVE Isquemia do membro inferior Isquemia do intestino grosso Isquemia da medula espinhal Infecção da ferida Infecção do enxerto Trombose do enxerto Tabela 48.4
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Frequência (%) <5 15 2-8 8-12 5 5-12 1-6 8 2-5 <1 1 1-4 1-2 <1 <5 <1 <1
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Complicações cardíacas A maioria dos episódios de isquemia cardíaca ocorre nos primeiros 2 dias depois da cirurgia e, durante esse intervalo, a monitoração intensiva é apropriada aos pacientes de alto risco. As interven-
ções importantes para evitar isquemia miocárdica no pós-operatório são maximizar a função miocárdica pela manutenção da pré-carga adequada, controlar o consumo de oxigênio por meio da redução do produto frequência cardíaca X pressão arterial, assegurar a oxigenação apropriada e administrar analgesia eficaz. Os pacientes com disfunção cardíaca têm riscos mais elevados de IAM quando o hematócrito pós-operatório é < 28%, mesmo que o nível seja bem tolerado pelos indivíduos normais. Além de proporcionar controle excelente da dor, a analgesia epidural pós-operatória pode reduzir as complicações miocárdicas porque atenua a resposta das catecolaminas ao estresse.
Hemorragia Em geral, as hemorragias intraoperatórias ou pós-operatórias resultam das dificuldades encontradas durante a realização da anastomose aórtica proximal ou das lesões venosas iatrogênicas. O sangramento venoso geralmente resulta da lesão da veia ilíaca ou renal esquerda durante a exposição inicial. Em geral, o aneurisma aórtico distal ou os aneurismas da artéria ilíaca comum estão firmemente aderidos à veia ilíaca correspondente, o que dificulta a dissecção arterial circunferencial. Nesses casos, os clampes vasculares quase sempre podem ser aplicados com sucesso, mesmo sem a dissecção completa da parede posterior da artéria ilíaca, ou o controle vascular pode ser assegurado por cateteres de oclusão com balões. A veia renal esquerda posterior ou uma veia lombar calibrosa pode gerar riscos semelhantes durante a dissecção proximal. Se não forem detectadas pela TC pré-operatória, essas anomalias acarretam risco elevado de lesão venosa. O reparo cuidadoso por sutura das lesões venosas é necessário e, em alguns casos, facilitado pela secção temporária da artéria sobrejacente. O sangramento difuso depois de uma hemorragia intraoperatória substancial geralmente deve-se ao esgotamento dos fatores da coagulação e das plaquetas, agravado pela hipotermia. O reaquecimento rigoroso e a reposição de plaquetas e fatores da coagulação são necessários para reverter essa complicação.
Complicações hemodinâmicas O clampeamento aórtico (principalmente se supracelíaco) causa aumento súbito da pós-carga cardíaca, que se evidencia por hipertensão e pode causar isquemia miocárdica. Para evitar o problema, o clampe deve ser aplicado gradativamente e o procedimen-
to coordenado cuidadosamente com a administração do anestésico e dos fármacos vasoativos. Já a liberação repentina do clampe aórtico está associada a hipotensão significativa, causada pela superposição de redução da pós-carga cardíaca; “recirculação” do potássio, dos metabólitos ácidos e dos fatores depressores miocárdicos depois da reperfusão dos membros isquêmicos; e redução da pré-carga secundária ao aumento da capacitância venosa das pernas. A liberação gradativa do clampe com reposição adequada de líquidos e sangue é crucial para evitar tal complicação. A monitoração intraoperatória cuidadosa, inclusive por registro da pressão capilar pulmonar em cunha e por ecocardiograma transesofágico, pode facilitar a administração de líquidos, anestésicos e fármacos vasoativos aos pacientes com risco cardíaco bem definido.
Lesões iatrogênicas A lesão de algum órgão adjacente é possível durante o reparo dos AAA. A lesão do ureter é rara durante as operações eletivas, a menos que o trajeto do ureter tenha sido distorcido por um AAA volumoso, fibrose ou inflamação. Se houver lesão ureteral, deve ser reparada imediatamente. Um stent em duplo J é inserido pela área lesada para interligar a pelve renal e a bexiga urinaria. O ureter é fechado com a aplicação de suturas interrompidas com fios finos. Já o omento pode ser mobilizado com um pedículo vascular e enrolado ao redor do local da lesão. Depois da irrigação copiosa, o reparo do aneurisma pode prosseguir, supondo que a urina não esteja infectada. Depois do reparo, é recomendável fazer uma TC pós-operatória imediata para detectar a possível formação de urinoma, complicação que não é provável se o stent estiver funcionando adequadamente, mas que, quando presente, deve servir de indicação para a drenagem fechada percutânea sob orientação da TC ou ultrassonografia. Se a lesão ureteral não for diagnosticada, o paciente pode desenvolver hidronefrose ou urinoma, que requer a reexploração e reparo mais complexo. A identificação cuidadosa do ureter, especialmente durante a dissecção pélvica, evita essa complicação. A lesão esplênica causada pela retração excessiva pode resultar em hemorragia, que deve ser controlada pela esplenectomia porque a hemorragia tardia não é bem tolerada, caso a tentativa de reparo da lesão do baço seja infrutífera. A enterotomia acidental antes da colocação do enxerto deve justificar a interrupção imediata da cirurgia, com reparo eletivo subsequente do AAA para evitar infecção do enxerto. Pancreatite é uma complicação incomum do reparo dos AAA e é atribuída à retração do órgão na base do mesocolo transverso. Ela deve ser considerada causa do íleo pós-operatório persistente, principalmente quando a exposição da aorta proximal tiver sido difícil.
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Insuficiência renal A insuficiência renal é rara, atualmente, graças à reposição adequada do volume e a manutenção do débito cardíaco e do fluxo sanguíneo renal normais.
Entretanto, ainda são necessárias precauções para reduzir o risco dessa complicação. Em razão da toxicidade renal dos contrastes intravenosos, é recomendável postergar o reparo dos AAA depois da arteriografia ou da TC contrastada, para se ter certeza de que o exame não causou disfunção renal. Uma causa mais provável de insuficiência renal depois do reparo dos AAA infrarrenais é a embolização dos detritos ateromatosos da aorta para as artérias renais durante o clampeamento transversal da aorta proximal. A TC pré-operatória pode demonstrar placas ateromatosas ou trombos pararrenais, que devem indicar o clampeamento transversal supracelíaco temporário até que a aorta infrarrenal seja aberta. Nesse ponto, esse material pode ser removido e o clampe transferido para sua localização infrarrenal habitual. Durante a manipulação, as artérias renais devem ser temporariamente clampeadas e seus orifícios cuidadosamente irrigados antes da restauração do fluxo sanguíneo. Como a disfunção renal pré-operatória é o melhor previsor de insuficiência renal pós-operatória, precauções especiais são apropriadas para esses pacientes. Evidências sugerem um efeito benéfico com manitol intravenoso (cerca de 25 g) administrado antes do clampeamento transversal da aorta. Embora alguns autores tenham recomendado a manutenção do volume urinário alto por meio da furosemida, sua eficácia não foi comprovada e ela pode dificultar a avaliação do balanço hídrico por aumentar artificialmente o débito urinário. Como a insuficiência renal é mais provável nos pacientes que necessitam de clampeamento suprarrenal prolongado, são aconselháveis medidas especiais como o resfriamento renal.
Complicações gastrointestinais Depois de qualquer cirurgia abdominal, sempre há algum grau de disfunção intestinal. Entretanto, o íleo paralítico que ocorre depois da evisceração e da dissecção da base do mesentério durante o reparo transperitoneal dos AAA geralmente é mais persistente que o íleo que se desenvolve depois de outras cirurgias. Por essa razão, deve-se ter cautela ao reiniciar a alimentação oral depois da cirurgia. Anorexia, constipação transitória ou diarreia comumente ocorre nas primeiras semanas depois do reparo dos aneurismas. A isquemia do intestino grosso é uma complicação incomum e geralmente fatal, que pode ser atribuída à interrupção da irrigação sanguínea do colo sigmoide durante o reparo do AAA. Para evitá-la, é
importante entender a irrigação sanguínea do colo sigmoide e da pelve. A artéria mesentérica sinuosa é a comunicação mais importante entre a AMS e a AMI, interligando o ramo esquerdo da artéria cólica média com a artéria cólica esquerda ou a AMI. A artéria marginal de Drummond tem menos importância hemodinâmica, mas pode fornecer colaterais importantes se a artéria mesentérica sinuosa for lesada ou não estiver presente. O colo sigmoide também pode receber circulação colateral expressiva da artéria ilíaca interna por meio da artéria retal superior e até mesmo dos ramos femorais circunflexos da artéria femoral profunda, caso a artéria ilíaca interna seja obstruída. A circulação colateral ipsolateral proveniente das artérias ilíaca externa e femoral é mais importante que a circulação colateral pélvica contralateral, caso haja obstrução da artéria ilíaca interna. O reparo dos AAA (ou a reconstrução aortoilíaca por doença obstrutiva) pode colocar em risco a irrigação sanguínea do colo sigmoide depois da ligadura de uma AMI ou artéria ilíaca interna patente; por embolização dos detritos ateromatosos para dentro dessas artérias; por hipotensão prolongada, principalmente durante o reparo dos AAA rotos; e pela lesão por retração dos ramos colaterais importantes. Entretanto, em virtude da profusão dessa circulação colateral, o infarto intestinal não é comum.
Embolização distal A isquemia dos membros inferiores pode ocorrer depois do reparo de um AAA, geralmente por embolização dos detritos aneurismáticos durante a mobilização do aneurisma ou o clampeamento da aorta. Em geral, esses êmbolos são pequenos (conhecidos como microêmbolos), não podem ser removidos cirurgicamente e causam áreas dispersas de escurecimento transitório da pele, ou “dedos azulados”. O problema pode gerar dor persistente ou perda da pele, em alguns casos com necessidade de amputação. Segundo alguns autores, é recomendável o tratamento com dextrano de baixo peso molecular ou até mesmo a simpatectomia para essas lesões microembólicas, mas a conduta é basicamente expectante. Ocasionalmente, êmbolos maiores ou retalhos da íntima distal, principalmente das artérias anormais, podem exigir cirurgias. Por essa razão, as pernas devem ser cuidadosamente inspecionadas durante o procedimento para detectar isquemia depois do reparo dos AAA, enquanto a incisão ainda está aberta e o acesso às artérias pode ser conseguido facilmente, caso necessário.
Paraplegia A paraplegia resultante da isquemia da medula espinal é rara depois do reparo dos AAA infrarrenais, mas pode ocorrer quando a circula-
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351 48 Doenças da aorta ção colateral predominante das artérias espinais provém das artérias ilíacas internas, ou a origem anormalmente baixa da artéria espinal acessória (artéria radicular magna, ou artéria de Adamkiewicz)
é obstruída ou embolizada durante o reparo do AAA. Como a artéria espinal acessória normalmente se origina da parte descendente da aorta torácica ou da aorta abdominal alta, essa complicação é muito mais comum depois do reparo dos aneurismas toracoabdominais. Para evitá-la, alguns estudos enfatizaram a importância de preservar a perfusão das artérias colaterais espinais importantes pelas artérias ilíacas internas normais. Combinada com a hipotensão grave, a doença obstrutiva das artérias colaterais espinhais também pode causar paraplegia, o que explica a frequência mais alta da complicação durante os reparos dos AAA rotos. A paraplegia também foi descrita como sintoma inicial dos AAA infrarrenais, o que sugere que a circulação colateral pelas artérias espinais importantes, que se origina da aorta distal, possa ser obstruída pelo trombo mural alojado dentro do aneurisma, ou por sua trombose propriamente dita.
Disfunção sexual A impotência ou a ejaculação retrógrada pode ocorrer depois do reparo dos AAA como consequência da lesão dos nervos autonômicos durante a dissecção para-aórtica. É difícil calcular a incidência,
tendo em vista as diversas causas de impotência nessa faixa etária e a subnotificação frequente. Outra causa possível da impotência pós-operatória é a redução da irrigação sanguínea da pelve em virtude da obstrução ou embolização da artéria ilíaca interna.
Tromboembolia venosa Embolia pulmonar e trombose venosa profunda são menos comuns depois do reparo dos AAA que depois de outras cirurgias abdominais, talvez porque se utilize anticoagulação intraoperatória. Entretanto, a trombose venosa profunda subclínica pode ocorrer em 18% dos pacientes não tratados.
Complicações tardias As complicações tardias depois do reparo bem-sucedido de um AAA ou aneurisma ilíaco não são frequentes. Em um estudo populacional, apenas 7% dos pacientes tiveram essas complicações nos 5 anos subsequentes ao reparo dos AAA. A ruptura da anastomose, geralmente secundária à degeneração da artéria, pode resultar na formação de um pseudoaneurisma (um hematoma contido localmente pelos tecidos conjuntivos circundantes). Um estudo demonstrou incidência dos pseudoaneurismas aórticos de apenas 1% depois de 8 anos, mas de 20% depois de 15 anos. Quando são detecta-
dos, os pseudoaneurismas aórticos e ilíacos devem ser reparados, tendo em vista a probabilidade alta de morte depois da ruptura.
A infecção do enxerto depois do reparo dos AAA também é rara, a menos que seja necessária uma anastomose femoral. Com os enxertos aortoilíacos, a probabilidade de infecção é de 0,5% e geralmente ocorre 3-4 anos depois da implantação. A apresentação precoce é possível e mais provável se houver uma anastomose femoral. O desenvolvimento de fístulas aortoentéricas secundárias ao reparo também não é comum (0,9%), embora muito mais frequente que as fístulas aortoentéricas primárias associadas a um AAA.
Em geral, as fístulas aortoentéricas desenvolvem-se cerca de 5 anos depois do reparo do AAA, quase sempre envolvem o duodeno na linha de sutura proximal e comumente se evidenciam por hemorragia gastrointestinal. Em casos menos comuns, as fístulas aortoentéricas podem envolver a porção central do enxerto e causar infecção, em vez de hemorragia. Menos de 10% dos pacientes desenvolvem complicações tardias do reparo dos AAA ao longo de suas vidas. Entretanto, a maioria é grave e comumente fatal.
Complicações específicas do tratamento endovascular A síndrome pós-implante, caracterizada por febre e dor lombar (não acompanhada de leucocitose), pode ocorrer em até 50% dos pacientes. Acredita-se que seja causada pela trombose do saco aneurismático e tem evolução benigna. A região inguinal, onde é feito o acesso, também pode ser sítio de complicações como hematomas, pseudoaneurismas, linfocele, linforreia e infecção. Uma das razões principais para a falha da endoprótese é a presença de vazamento (endoleak), definido como um fluxo de sangue persistente para fora do enxerto e dentro da bolsa aneurismática. Há quatro tipos de vazamento. Tipos e tratamentos de vazamento após reparo endovascular de aneurisma aórtico Tipo de vazamento
Tipo I
Opções de tratamento Dilatação por Selamento inadequado balão da extremidade proxi- Colocação de mal ou distal da endo- stents ou módulos prótese adicionais Conversão aberta
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Causas do vazamento
352 Cirurgia vascular Tipos e tratamentos de vazamento após reparo endovascular de aneurisma aórtico (cont.) Fluxo proveniente das Observação artérias com sangraEmbolização com mento retrógrado espiral ou cola Tipo II Artérias lombar, sacral Ligadura laparosmédia, mesentérica incópica ferior, hipogástrica e reConversão aberta nal acessória patentes Colocação de Rompimento ou lacerastents ou módulos ção do tecido da endoadicionais Tipo III prótese Endoprótese secunDesconexão do módária dulo Conversão aberta Fluxo proveniente da Tipo IV porosidade do tecido Observação da endoprótese Tabela 48.5
Uma outra complicação do procedimento endovascular é a migração do dispositivo. Isso é definido como um aumento superior a 5 mm na distância entre a artéria renal inferior e a extremidade craniana do dispositivo. A migração responde pela maioria dos vazamentos do tipo I e representa um fator significativo para a ruptura posterior. Essa migração pode ocorrer em caso de fratura dos ganchos na endoprótese ou se houver uma fratura do sistema de fixação ao fixar ou penetrar na parede aórtica. Além disso, a remodelação e a dilatação do colo aórtico após o procedimento EVAR que altera a zona de selamento do dispositivo já foram sugeridas como outra causa potencial da migração do enxerto. A migração do dispositivo está associada a um risco três vezes maior para vazamentos do tipo I e ao grau de sobreposição existente entre o dispositivo e a aorta infrarrenal (menos sobreposição envolve risco mais alto de migração). Essa migração também depende do comprimento do colo da aorta e da extensão da dilatação do colo proximal.
Dissecção aórtica Define-se dissecção da aorta como a delaminação das suas paredes produzidas pela infiltração de uma coluna de sangue que percorre um espaço virtual (luz falsa) entre a adventícia e a íntima.
Epidemiologia Os homens são acometidos com maior frequência e muitos estudos registraram uma proporção de 5:1 comparando homens e mulheres. O pico de incidência para a dissecção do tipo A ocorre entre 50-60 anos
de idade e para o tipo B entre os 60-70 anos. A hipertensão arterial encontra-se presente em 70-80% dos casos e as dissecções do tipo A representam aproxi-
madamente 60% dos casos. A dissecção aórtica aguda apresenta um padrão cronobiológico circadiano e sazonal. De forma semelhante ao que ocorre no infarto do miocárdio, na morte súbita e nos acidentes vasculares encefálicos, a dissecção se inicia com maior frequência pela manhã, entre 6-10 h, e é mais comuns nas estações mais frias (outono, inverno e primavera) que no verão. Com relação às doenças aórticas, a presença de
valva aórtica bicúspide acompanhada de dilatação da raiz dessa artéria é um fator de risco bem estabelecido para a ocorrência de dissecção no segmento ascendente, tendo sido documentada em 7-14% de
todas as dissecções aórticas. Outras doenças aórticas, como coarctação, ectasia do anel aórtico, anormalidades cromossômicas (síndrome de Turner e síndrome de Noonan), hipoplasia do arco aórtico, arterite e doenças hereditárias (síndrome de Marfan e síndrome de Ehlers-Danlos) são fatores de risco reconhecidos para o desenvolvimento de dissecção aórtica aguda. A síndrome de Marfan é responsável pela maioria dos casos de dissecção aórtica que ocorre em pacientes com menos de 40 anos de idade. Em mulheres com menos de 40 anos, 50% das dissecções aórticas ocorrem durante a gestação. Em geral,
a hipertensão arterial, como parte de um quadro de pré-eclâmpsia, pode ser um fator complicador em 25-50% de todas as gestações em que ocorram dissecção aórtica. Em alguns casos, o diagnóstico de síndrome de Marfan é feito quando a mulher se apresenta com uma dissecção aguda no periparto. Nas mulheres com diagnóstico de síndrome de Marfan, a presença de uma raiz aórtica dilatada (> 4 cm) as coloca em uma posição de certo risco para a ocorrência de dissecção aguda no período próximo ao parto. A aorta ascendente é o local em que é mais frequente a ocorrência de dissecção aórtica associada à gestação. Em 75% dos casos a ruptura da íntima ocorre no espaço de 2 cm a partir da valva aórtica. A ruptura da aorta pode ocorrer sem qualquer aviso durante o 3º trimestre ou durante o trabalho de parto. O consumo de cocaína é uma causa rara de dissecção aórtica aguda em indivíduos até então saudáveis. O paciente prototípico é jovem, negro e com
história de hipertensão arterial. Acredita-se que o mecanismo envolvido se relacione com um defeito subjacente existente na camada média da artéria em razão de hipertensão arterial sem controle e com a atividade simpática intensa provocada pela ingestão de cocaína, ocasionando um aumento dramático e agudo na força de contração ventricular (dP/dT) sobre a parede da aorta. A ruptura da íntima ocorre com maior frequência no ligamento arterial, local onde a aorta está relativamente presa e incapaz de suportar a carga advinda da intensa taquicardia e da elevação na pressão arterial.
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Fatores predisponentes A hipertensão arterial e os distúrbios do tecido conjuntivo (em particular a síndrome de Marfan) podem predispor os pacientes à dissecção. A causa da laceração inicial ainda não é conhecida, mas a histologia da parede aórtica exibe tipicamente degeneração medial.
Classificação Duração: aguda (até 2 semanas) e crônica (> 2
semanas).
Localização DeBakey Tipo I: origina-se na aorta ascendente, propagan-
do-se para o arco aórtico (e geralmente distalmente). Tipo II: origina-se e permanece restrito na aorta
ascendente. Tipo III: origina-se na aorta descendente e pro-
paga-se distalmente (é raro seguir proximalmente).
Stanford Tipo A: localização na aorta ascendente (tipos I e II). Tipo B: encontra-se na aorta descendente (tipo III).
A dissecção proximal (tipo A ou tipos I e II) é a mais comum, ocorrendo em 2/3 dos casos. Essa classificação tem sido usada preferencialmente por encerrar aspectos de prognósticos e conduta de uma maneira muito objetiva. Cumpre ressaltar, todavia, que essas classificações não enquadram todas as dissecções retrógradas. São, no entanto, importantes, pois permitem uniformidade na descrição e entendimento dos trabalhos científicos.
Figura 48.13 Classificação de DeBakey/Stanford das dissecções de aorta.
Anatomia patológica da dissecção aórtica aguda A ruptura das camadas íntima e média é o evento inicial na maioria dos casos de dissecção aórtica. A
violação da túnica íntima resulta na formação de um plano de clivagem pela camada média externa e sua subsequente propagação a uma distância variável, que tanto pode ser no sentido retrógrado quanto no anterógrado. O preenchimento com sangue do espaço criado entre as camadas da parede aórtica forma a falsa luz. A partir do ponto de entrada, a coluna de sangue pode causar dissecção no sentido proximal ou no distal como consequência do gradiente hidrodinâmico entre as luzes falsa e verdadeira. Além disso, a falsa luz pode aumentar no sentido longitudinal ou circunferencial em razão da clivagem produzida pelo fluxo de sangue nas camadas da parede aórtica. A pressão hemodinâmica contínua pode causar lesões adicionais na túnica íntima, pontos de entrada suscetíveis a novas dissecções ou de saída para a coluna de sangue que corre pela falsa luz. Essas janelas ou fenestrações espontâneas ocorrem com frequência nos óstios dos ramos da aorta, como a artéria renal esquerda. A presença de um “flap na íntima”, que representa o septo íntimo-medial entre as luzes falsa e verdadeira, é o achado patológico mais característico na dissecção aórtica aguda. A ruptura flap na íntima localiza-se no segmento ascendente da aorta em 65% dos pacientes, na aorta descendente em 25%, e no arco e no segmento abdominal da aorta em 5-10%. A ruptura típica é transversal e não atinge toda a circunferência da artéria. Na aorta descendente, a ruptura na íntima se origina tipicamente a poucos centímetros da artéria subclávia esquerda. No padrão habitual da dissecção na aorta torácica descendente (DeBakey I ou III, Stanford B), o plano de clivagem progride com uma topografia característica na medida em que a falsa luz evolui descendo pela face posterolateral da aorta; as artérias celíaca, mesentérica superior e renal direita emergem tipicamente da luz verdadeira, e a artéria renal esquerda da falsa luz. Entretanto, são frequentes as variações encontradas para esse padrão. A aterosclerose não é considerada um fator etiológico importante para a dissecção aórtica aguda;
entretanto, Jex e colaboradores notaram a presença de ateromas macroscópicos ou microscópicos em 83% dos pacientes em suas revisões. Placas ateromatosas podem ser protetoras na medida em que servem para interromper o processo de dissecção uma vez que a natureza inflamatória transmural da aterosclerose é capaz de fusionar as camadas aórticas. A ocorrência de um aneurisma aterosclerótico em concomitância a uma dissecção aórtica é incomum, estando presente em apenas 2-12% das dissecções. A coexistência incomum de uma dissecção aórtica com um aneurisma aterosclerótico preexistente parece mudar substancialmente a história natural de cada uma dessas patologias. Nesse cenário, a ruptura do aneurisma preexistente é a evolução mais provável.
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354 Cirurgia vascular
Quadro clínico A dor torácica é o sintoma mais comum. Frequentemente é súbita e intensa (“dilacerante”) desde o início, irradiando-se para a região interescapular e, tipicamente, migra com a propagação da dissecção. Em até 10% das dissecções não há relato de dor. Hipertensão: mais frequente na dissecção distal. Hipotensão: mais comum na dissecção proximal, pois geralmente causa ruptura para o pericárdio (tamponamento) ou insuficiência aórtica grave.
Sinais de insuficiência aórtica: ocorrem em mais de 50% dos casos de dissecção proximal. A síncope pode complicar a apresentação clínica da dissecção aórtica aguda em 5-10% dos pacientes, e sua presença com frequência indica o desenvolvimento de tamponamento cardíaco ou o envolvimento de vasos braquiocefálicos. Como um
sintoma isolado, sem nenhuma queixa de dor torácica anterior ou posterior, a síncope ocorreu em menos de 3% de todos os pacientes no estudo IRAD. A isquemia na medula espinal em razão da interrupção do fluxo nos vasos intercostais é evidentemente mais comum nos pacientes com dissecção aórtica do tipo B, podendo ocorrer em 2-10% de todos os casos. A compressão direta de qualquer nervo
periférico raramente ocorre, mas quando acontece resulta em parestesia (plexopatia lombar), rouquidão da voz (compressão do nervo laríngeo recorrente) ou síndrome de Horner (compressão do gânglio simpático). Ao exame físico inicial, a hipertensão arterial sistêmica está presente em 70% das dissecções do tipo B, mas apenas em 25-35% das dissecções do tipo A. A presença de hipotensão complicando uma dissec-
ção do tipo B é rara (menos de 5% dos pacientes). Em contraste, a hipotensão pode estar presente em 25% dos casos de dissecção envolvendo a aorta ascendente, potencialmente como resultado de regurgitação aórtica ou de ruptura intrapericárdica. A perfusão inadequada dos vasos braquiocefálicos causada pela dissecção pode ocasionar níveis pressóricos falsamente baixos quando a medição é feita com o manguito sobre a artéria braquial. É comum a ocorrência de hipertensão arterial refratária durante o tratamento clínico para as dissecções aórticas do tipo B, ocorrendo em 64% dos pacientes com envolvimento da aorta descendente. Entretanto, essa hipertensão refratária não está associada a comprometimento da artéria renal ou dilatação aórtica, estando indicada a manutenção da terapêutica clínica. Déficits no pulso são comuns e ocorrem em 3050% dos pacientes com envolvimento do arco aórtico, do segmento toracoabdominal ou de ambos. O
exame da população do estudo IRAD apontou envolvimento do tronco braquiocefálico em 14,5% dos pacientes, da artéria carótida comum esquerda em 6%, da artéria subclávia esquerda em 14,5% e das artérias
femorais em 13-14%. Os pacientes que se apresentaram com alterações de pulso tiveram déficits neurológicos, coma e hipotensão com maior frequência. Déficits no pulso carotídeo estiveram fortemente correlacionados com AVE fatais, observação consistente com dados anteriores. O número de déficits de pulso foi associado ao aumento na mortalidade. Nas primeiras 24 h após a apresentação, 9,4% dos pacientes sem déficits de pulso morreram, contra 15,8% dos pacientes com 1 ou 2 déficits e 35,3% daqueles com 3 ou mais déficits. Com relação a deficiências de pulso apenas nos membros inferiores é incomum a mortalidade resultante de isquemia nessa localização ou de suas sequelas, tendo ocorrido em apenas 4 de 38 pacientes com isquemia clinicamente evidente dos membros inferiores associada à dissecção aguda. De qualquer forma, a isquemia na perna causada por dissecção aguda foi considerada um marcador da extensão do problema e pode ser acompanhada pelo comprometimento de outros territórios vasculares. A evolução clínica da isquemia periférica é variável; 1/3 desse grupo pode evoluir com resolução espontânea dos déficits de pulso. O exame rápido do pulso à beira do leito pode fornecer informações importantes para o diagnóstico da dissecção aórtica aguda e sobre os pacientes sob risco de complicações. Dada a elevada morbidade provocada pela ausência de diagnóstico nos casos de dissecção aórtica, a história e os sinais físicos podem aumentar a acurácia clínica. Em um modelo preditivo clínico, a presença isolada de dor do tipo aórtica (torácica ou interescapular de início súbito) foi associada a uma razão de probabilidade de 2,6. O acréscimo de alterações no pulso ou na pressão arterial à já mencionada dor aumentou a razão de probabilidade para 10,5. O acréscimo de sinais como aumento do mediastino ou da silhueta aórtica na radiografia do tórax aos indicadores anteriores elevou a razão de probabilidade para 66. Essa tríade diagnóstica foi encontrada em apenas 27% dos pacientes. Já a ausência de dor súbita, de alterações no pulso e de sinais radiográficos torna o diagnóstico de dissecção extremamente raro (4% dos pacientes). Dada a morbidade provocada pela ausência desse diagnóstico, mesmo uma razão de probabilidade tão baixa pode ser insuficiente para excluir a dissecção aórtica se houver qualquer suspeita clínica.
Exames complementares
ECG: exame que colabora no diagnóstico diferencial com isquemia miocárdica. Em contrapartida, pacientes com dissecção da aorta ascendente podem ter envolvimento da artéria coronária no flap, usualmente a coronária direita, com consequente alteração flagrada no ECG. Pode ocorrer, então, supra de ST de parede inferior.
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355 48 Doenças da aorta
Radiografia de tórax: alargamento mediastinal é visto em 63% das dissecções de aorta ascendente e 56% nos casos de dissecção distal. Outro achado que sugere dissecção é o “sinal do cálcio” (separação da calcificação intimal em relação à borda externa do tecido aórtico > 1 cm).
Aortografia: sensibilidade de 88% e especificidade de 94%. Os falsos-negativos ocorrem principalmente nos casos de trombose da luz falsa ou hematoma intramural. Tem sido substituída por métodos mais acurados e menos invasivos.
Ecocardiograma transesofágico: a dissecção é confirmada quando duas lâminas separadas por um flap intimal são visibilizadas. Sensibilidade e especificidade em torno de 98 e 95%, respectivamente. Pode ser realizado na sala de emergência; portanto, é o exame de escolha nos pacientes instáveis. Exame suficiente para encaminhar o paciente para cirurgia.
Angiotomografia: os principais estudos mostram sensibilidade de 83 a 98% e especificidade de 87 a 100%. O principal dado na dissecção é a demonstração do flap intimal separando a luz falsa da luz verdadeira. É melhor que o eco transesofágico para avaliação dos ramos aórticos. Importante para a equipe cirúrgica definir a tática operatória. Exame rápido que não resultará em retardo significativo da intervenção cirúrgica, desde que o paciente esteja estável. Angiorressonância: tem acurácia semelhante à TC, porém, em razão da inconveniência da demora e limitação do acesso ao paciente e monitorização durante o exame, fica reservada para os casos de dissecção crônica.
setas indicando o “intimal flap”, com dupla luz em toda a extensão do tórax e trombo mural da aorta descendente (cabeça de seta). Como o achado não era esperado e o último corte do tórax ainda mostrava dissecção, foi feita uma nova injeção com menos contraste para avaliação da extensão da lesão, que se prolongou pela ilíaca comum. E: nesta imagem, vemos a luz verdadeira (setas finas) e o tronco celíaco (setas grossas) contrastados. F: reformatação oblíqua. Exame realizado sem protocolo ideal por falta de suspeita clínica.
Tratamento Clínico
Nos casos de suspeita de dissecção da aorta, os pacientes na sala de emergência devem ser monitorizados, receber oxigênio suplementar e acesso venoso calibroso.
Analgesia: morfina IV.
Controle rigoroso da pressão arterial e da frequência cardíaca – manter PA sistólica entre 100 e 120 mmHg e FC < 60 bpm. Utilizar betabloqueador: propranolol, metoprolol, labetalol ou esmolol.
Se o paciente mantiver níveis tensionais acima dos indicados após a infusão de betabloqueador, utilizar nitroprussiato de sódio IV.
Reposição volêmica para os pacientes hipotensos.
Cirúrgico Ruptura aórtica é a causa mais comum de mortalidade em dissecção aórtica, seguida de dissecção e isquemia de órgãos-alvo (cérebro, rins, coronárias).
Objetivos do tratamento Parar as progressões proximal e distal da dissecção. Remover o local da ruptura de íntima e ressecar a aorta no local mais provável de ruptura.
Princípios gerais Os enxertos arteriais preferidos são aqueles mais impermeáveis:
Figura 48.14 Paciente com 73 anos, do sexo masculino, hipertenso e corretamente medicado fez radiografia de tórax para controle. A radiografia evidenciou uma silhueta cardíaca (A) que sugere aumento do ventrículo esquerdo e aorta alongada. Embora seja absolutamente assintomático, pediu-se tomografia de tórax (B a F). A sequência de cortes do tórax evidencia dissecção do tipo A de Stanford (que se inicia na aorta ascendente),
Enxertos impregnados com colágeno tipo Hemashield têm a desvantagem de ser muito caros (mais comuns devido a sua praticidade de uso). Enxertos Woven very soft pré-coagulados com albumina ou plasma em autoclave a 120 F por cinco minutos (pouco utilizados). Enxertos de pericárdio bovino, revestidos ou não por Dacron, são excelentes, mas não são aplicáveis no arco aórtico (atualmente em desuso).
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356 Cirurgia vascular
Dissecção tipo A A evolução natural com o tratamento clínico é muito desfavorável, ocorrendo o óbito precoce por rotura intrapericárdica da aorta, rotura distal, insuficiência aórtica ou oclusão de óstios das coronárias. Todos os casos de dissecção aórtica do tipo A devem ser considerados para a cirurgia de urgência independentemente da presença de complicações, pois poucos casos sobrevivem à fase aguda. Nessa
situação, apresentam-se para o tratamento cirúrgico mais tardiamente em decorrência de expansão da falsa luz ou de insuficiência aórtica. O ato cirúrgico é realizado com circulação extracorpórea associada à hipotermia profunda com parada circulatória total a 16°C, dispondo-se de um período de tempo bastante satisfatório para a inspeção da croça aórtica e sutura distal, das camadas aórticas ao tubo de Dacron ou de pericárdio bovino. Em seguida, se restabelece a circulação extracorpórea e realiza-se a sutura das camadas dissecadas apoiando com feltro de teflon e, a seguir, procede-se à sutura desse coto proximal reconstituído ao tubo de Dacron. A insuficiência da valva aórtica, na imensa maioria das vezes, dispensa a substituição valvar, pois o mecanismo da insuficiência é a perda de apoio das comissuras na íntima dissecada, sendo salva a valva aórtica normal. Com a reconstrução da parede aórtica dissecada, a suspensão das comissuras corrige o refluxo. Em casos pouco frequentes de laceração do óstio da coronária direita pode ser necessária uma ponte de safena para a restauração do fluxo comprometido. É excepcional o esgarçamento do óstio da coronária esquerda, uma vez que a face medial da aorta ascendente quase sempre é poupada pela dissecção. O risco operatório dessa intervenção é atualmente baixo para os pacientes não complicados, aumentando consideravelmente em função de complicações instaladas antes do procedimento cirúrgico como: parada cardíaca prévia, tamponamento com choque cardiogênico, insuficiência renal e isquemias viscerais e de membros inferiores.
vando-se a terapêutica cirúrgica para as dissecções complicadas em que temos expansão da falsa luz, hemotórax, insuficiência renal, isquemia visceral ou de membros inferiores.
Essa conduta conservadora deve-se ao fato de a história natural destas dissecções ser melhor do que a do tipo A e, fundamentalmente, pelo fato de o tratamento cirúrgico por meio da abordagem direta por toracotomia esquerda ser um procedimento trabalhoso e de alto risco, sendo particularmente temida a paraplegia. Por outro lado, operando-se somente pacientes complicados, o risco do tratamento cirúrgico é ainda maior. Esses fatos fazem com que se adote inicialmente o tratamento clínico para todos esses casos. Todavia, a observação dos resultados ao final do primeiro ano demonstra alta incidência de complicações tardias, a maioria delas decorrente da expansão da falsa luz ou isquemia de diferentes territórios com expectativa de vida de apenas 35% ao final de 5 anos. Dessa forma, nos incluímos entre os autores que têm indicado a reparação cirúrgica na fase inicial mesmo para os casos não complicados, parecendo não ter lógica a indicação cirúrgica apenas para pacientes de alto risco quando complicados.
Prognóstico Mortalidade no tipo A: 20%. Mortalidade no tipo B: 25%. Mortalidade Arco Aórtico: 50%. A mortalidade cirúrgica na dissecção crônica é maior que na dissecção aguda, pois invariavelmente há evolução para dilatação da aorta e dos ramos afetados pela dissecção (dissecção crônica dilatada). Dissecção aórtica aguda (< 14 dias depois do início)
Tipo A
Tipo B
Operação de emergência para reparo da aorta ascendente + válvula aórtica
Não complicado
Terapia medicamentosa “anti-hipertensiva”
Após a alta hospitalar, os pacientes devem ser acompanhados com avaliações semestrais por meio de tomografia, de ecocardiografia ou de ressonância magnética nuclear, à procura de dissecções residuais, reentradas ou expansão de falsa luz.
Dissecção aórtica crônica (>14 dias do início)
AATD/AATA > 5 cm
Se para as dissecções agudas do tipo A há um consenso a respeito da necessidade de tratamento cirúrgico precoce, nas dissecções do tipo B a maioria dos autores preconiza o tratamento clínico inicial, reser-
Intervensão cirúrgica, ou endoluminal (ex.: fenestração, endoprótese, substiruição da aorta por enxerto, interposição de enxerto)
Acompanhamento rigoroso e TC seriada (ou ARM) de tórax e abdome Sem alteração do diâmetro aórtico
Dissecção tipo B
Ruptura, isquemia de membro, má perfusão abdominal, dor persistente ou hipertensão incontrolável
1º ano - a cada 3 meses 2º ano - a cada 6 meses Então anualmente
Avaliação para cirurgia de interposição de enxerto
Figura 48.15 Algoritmo para tratamento da dissecção aórtica. TC: tomografia computadorizada; AATD: aneurisma aórtico torácico descendente; ARM: angiografia por ressonância magnética; AATA: aneurisma aórtico toracoabdominal.
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357 48 Doenças da aorta
Arterite de Takayasu (AT) Definição A arterite de Takayasu (AT) é uma doença inflamatória sistêmica, de etiologia desconhecida, que afeta a aorta e seus ramos principais. É classificada como uma vasculite de grandes artérias, que acomete principalmente mulheres jovens, e tem evolução crônica, causando grande morbidade.
Epidemiologia A AT é uma vasculite sistêmica rara, mais frequente em mulheres jovens e com distribuição universal, porém, com características demográficas diferentes em cada país. No Brasil, a média de idade ao diagnóstico de 73 pacientes com AT foi de 27 anos, com predomínio 5 vezes maior em mulheres, sendo 68% em raça branca. A incidência de AT nos EUA foi estimada em 1 a 3 casos por milhão.
Anatomia patológica As lesões se distribuem principalmente na aorta e nos seus ramos principais. São também
Etiopatogenia A etiopatogenia da AT ainda é pouco conhecida e, provavelmente, multifatorial. A infecção pelo Mycobacterium tuberculosis foi mais prevalente em algumas populações estudadas. Em trabalho realizado na Índia, Aggawarl A encontrou maior prevalência de anticorpos contra extratos de Mycobacterium tuberculosis em pacientes com AT quando comparados com controles. Estudos posteriores evidenciaram que os relatos de maior frequência de tuberculose e positividade à reação ao PPD em pacientes com arterite de Takayasu se dá nos países de alta prevalência de tuberculose. A ausência de Mycobacterium tuberculosis nas lesões arteriais e a falta de resposta ao tratamento tuberculostático vêm reforçar a hipótese de ser apenas uma provável reação de hipersensibilidade. As diferenças na distribuição étnica e geográfica e a agregação familiar sugerem possível predisposição genética. Os principais estudos encontraram associação com HLA classe I, como o HLA-B5 em indianos e os HLA-B52 e B39.2 em japoneses. Na população mexicana, foi descrita a presença do HLA B15 e dos resíduos 63 e 67 da molécula de HLA B. Entretanto, os estudos em pacientes ocidentais não confirmaram estes dados. As lesões inflamatórias na AT originam-se na vasa vasorum das artérias acometidas. O infiltrado inflamatório é constituído principalmente por células T, mas também por células dendríticas, monócitos e granulócitos, que se localizam preferencialmente na adventícia e na periferia da camada média. Neste estágio, o encontro de citocinas inflamatórias e de moléculas de adesão sugerem atividade quimiotática das células T e monócitos. A participação de interleucinas (IL) na etiopatogenia desta entidade parece ser marcante, já que estudos mostraram aumento no nível sérico de IL 6, 8 e 12 em pacientes com AT quando comparados com controles sadios.
envolvidas as artérias pulmonares, femorais, renais, mesentéricas, coronarianas e vertebrais. O processo inflamatório se caracteriza por um infiltrado linfomonocitário com formação de granulomas, e a presença esporádica de células gigantes. Em estágios mais avançados, a doença se torna obliterativa. Critérios para classificação da arterite de Takayasu Critério
Definição
Idade até instala- Desenvolvimento dos sintomas ou ção da doença in- achados relacionados à AT até a idaferior a 40 anos de de 40 anos Claudicação de extremidades
Desenvolvimento e piora da fadiga e desconforto em músculos de uma ou mais extremidades, quando em uso, especialmente de membros superiores
Diminuição do Diminuição da pulsação em uma ou pulso em artéria ambas artérias braquiais braquial Diferença de Diferença de pressão arterial sistópressão arterial > lica acima de 10 mmHg entre mem10 mmHg bros superiores Sopro sobre arté- Sopro audível à ausculta sobre uma ria subclávia ou ou ambas artérias subclávias ou aorta aorta abdominal Anomalidades arteriográficas
Estreitamento ou oclusão da aorta, seus ramos primários, ou das grandes artérias proximais das extremidades superiores ou inferiores, não devido à arteriosclerose, displasia fibromuscular ou causa similar; Alterações geralmente focais ou segmentares
Tabela 48.6 Três ou mais critérios presentes definem AT.
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358 Cirurgia vascular
Quadro clínico A clássica descrição bifásica da doença divide o quadro clínico em fases inflamatória-sistêmica e vascular. Esta classificação não tem grande utilidade clínica, pois muitos pacientes não seguem esta evolução. Na época do diagnóstico, 20% dos pacientes podem ser assintomáticos, e em 60 a 80% dos casos os sintomas sistêmicos estão ausentes. Na fase inflamatória, o paciente pode apresentar sinais e sintomas inespecíficos como febre, sudorese noturna, adinamia, perda de peso, artralgia, carotidínea e mialgia. Posteriormente, as manifestações vasculares são mais sugestivas da doença e caracterizam-se por diminuição ou ausência de pulsos (84 a 96%), claudicações de membros, sopros arteriais (80 a 94%), diferença de pressão arterial entre os membros e manifestações isquêmicas abdominais, cardíacas e neurológicas. O diagnóstico é muitas vezes realizado tardiamente, quando já ocorreram alterações vasculares estruturais. A hipertensão arterial pode ocorrer em até 93% dos casos. A tabela a seguir relaciona os principais achados clínicos na AT.
Comparação dos vários sistemas de classificação para arterite de Takayasu Tipo I
Classificação de Ueno Doença do arco aórtico e de seus ramos
Doença restrita à aorta torácica descendente e abdominal Tipo III Combinação dos tipos I e II Tipo II
Tipo IV Qualquer uma das características acima com acometimento da artéria pulmonar (modificação de Lupi-Herrera) Tipo I Tipo II
Classificação de Nasu Doença limitada aos vasos com origem no arco aórtico Acomete também a raiz aórtica e o arco
Tipo III Localizada na aorta subdiafragmática Tipo IV Toda a aorta e seus ramos acometidos Classificação da Conferência Internacional de Tóquio sobre Arterite de Takayasu* Apenas os ramos do arco aórtico Tipo I Tipo lIa Aorta ascendente, arco e ramos Tipo Ilb IIa mais aorta torácica descendente
Achados clínicos comuns na AT Sopros
80%
Claudicação
70%
Diminuição dos pulsos
60%
Artralgias
50%
Pressão arterial assimétrica
50%
Sintomas constitucionais
40%
Cefaleia
40%
Hipertensão
30%
Tonturas
30%
Pulmonares
25%
Cardíacos
10%
Eritema nodoso
8% Tabela 48.7
Classificação Para ser clinicamente útil, um sistema de classificação para AT deve levar em conta as áreas de atividade da doença. A classificação de Ueno, publicada originalmente em 1967, dividiu a AT em 3 tipos com base no acometimento arterial. Em 1994, na Conferência Internacional de Tóquio sobre Arterite de Takayasu, foi proposto um novo sistema de classificação, publicado a seguir naquele mesmo ano (Tabela 48.8).
Tipo III Aorta torácica descendente e aorta abdominal/ramos Tipo IV Aorta abdominal/ramos Tipo V
Toda a aorta e ramos
Tabela 48.8 (*) Modificação de qualquer um com C(+) para acometimento coronariano e P(+) para acometimento da artéria pulmonar, respectivamente. O tipo II é o mais comum.
Diagnóstico Clínico O passo inicial para o diagnóstico é o achado dos aspectos clínicos compatíveis anteriormente descritos (guarde a frequência dos achados clínicos comuns na AT). A avaliação da atividade da
doença na AT através de marcadores sorológicos é imprecisa. Na ausência de sinais e sintomas típicos de piora do quadro isquêmico, não há parâmetros objetivos capazes de detectar pacientes assintomáticos que continuem com a doença em progressão. O padrão-ouro para determinar a presença do processo inflamatório é o exame anatomopatológico, porém, a obtenção de amostras das artérias envolvidas é um procedimento invasivo e de alto risco. Portanto, em 1994, foram propostos pelo NIH nos EUA os seguintes critérios de atividade:
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359 48 Doenças da aorta
Início ou piora dos seguintes itens:
Sinais e sintomas sistêmicos (febre, astenia, perda de peso, sudorese, artralgia ou mialgia);
Aumento da VHS;
Características de isquemia vascular ou inflamação (claudicação, diminuição ou ausência de pulsos, sopro, carotidínea, diferença de PA em MMSS ou MMII);
Alterações características na angiografia.
Laboratorial (achados inespecíficos) Reagentes da fase aguda elevados VHS elevada, mas nem sempre segue o grau de inflamação ativa e pode estar normal em até 33% dos pacientes. Anemia normocrômica normocítica com trombocitose, achado comum nas condições inflamatórias diversas.
Figura 48.17 Arteriografia de aorta abdominal e artérias renais em paciente com AT: observe estreitamento da aorta abdominal (setas pretas) e estenose nas saídas das artérias renais (setas brancas).
Radiológico (padrão-ouro)
Tratamento
Arteriografia convencional (ou angiorressonância):
Os corticoides são medicamentos fundamentais no tratamento da AT. A droga de escolha é a prednisona (1 mg/kg/dia nas fases ativas da doença, com redução paulatina). Cerca de 50 a 60% dos pacientes respondem ao tratamento inicial. O regime de doses em dias alternados não apresenta sucesso. A prednisona é mantida em doses altas até que os sintomas e as evidências laboratoriais (VHS) de inflamação se normalizem. Chamamos a atenção para o fato de que a VHS nem sempre reflete o grau de inflamação observado quando comparado à biópsia.
Estenose vascular;
Circulação colateral;
Aneurismas nas áreas acometidas (são incomuns).
A RNM detecta espessamento e inflamação da parede dos vasos, bem como trombose mural. Pode também detectar envolvimento da artéria pulmonar, no entanto, falha em detectar algumas lesões, particularmente no arco aórtico proximal e nos ramos aórticos distais, que são mais bem detectados pela arteriografia.
Os imunossupressores (metotrexato, ciclofosfamida, azatioprina, ciclosporina A, com maior destaque para o metotrexato em baixas doses, 0,15 a 0,3 mg/kg semanais) estão indicados para aqueles pacientes que não respondem ao tratamento com corticoide. Mais recentemente, o micofenolato mofetil e os agentes anti-TNF (p. ex.: infliximab) têm sido usados em alguns relatos de casos refratários aos corticoides e/ou imunossupressores.
Figura 48.16 Arteriografia de arco aórtico em paciente com AT: observe a estenose bilateral da carótida comum e da artéria subclávia direita.
Cerca de 20 a 30% dos casos nunca terão remissão completa, e suas lesões progredirão apesar do tratamento. Em 50% dos casos, haverá necessidade de tratamento cirúrgico, sendo as principais indicações: hipertensão renovascular, grave comprometimento das artérias carótidas e vertebrais (mais de 70% de oclusão do lúmen arterial), isquemia de extremidades e lesão coronariana. A angioplastia transluminal é eficaz em 50% dos casos, porém, as reestenoses são frequentes e precoces. Alguns estudos mostraram que a sobrevida em 5 anos foi de 94%, evidenciando que,
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360 Cirurgia vascular apesar de alta morbidade, a doença não causa grande mortalidade. A mortalidade diretamente relacionada com a enfermidade é inferior a 10%.
cientes é de grande importância, por causa da provável incidência mais alta de ruptura anastomótica após o reparo de aneurisma na AT.
A intervenção cirúrgica aberta tem sido o suporte principal do tratamento por muitos anos, porém os procedimentos endovasculares estão tendo maior aplicação. O problema mais significativo com os últimos é a ausência de informação a longo prazo acerca dos resultados. Evidentemente, inúmeras condições clínicas podem resultar de AT, e a incidência dos vários problemas já foi abordada. Em um grau muito maior do que a aterosclerose, a arterite de Takayasu torna necessários ajustes da terapia para cada paciente. Além disso, a natureza sistêmica da doença deve ser considerada no tratamento. A experiência relatada sugere um risco mais alto de complicações cirúrgicas quando as cirurgias são realizadas durante a fase ativa da doença. Além disso, embora os pacientes com AT em geral sejam mais jovens que aqueles com aterosclerose, o risco cardíaco é acentuadamente mais alto para os pacientes com AT que para os controles de idade equivalente.
A intervenção poderá ser necessária também para uma ampla variedade de outras condições. A regurgitação aórtica clinicamente significativa pode ocorrer em até 44% dos pacientes com AT e o reparo da válvula aórtica ou sua substituição está sendo realizado mais comumente nesses casos. Poderá ser necessário realizar também uma revascularização coronariana convencional, porém na excelente revisão de 106 pacientes com AT que necessitaram de cirurgia, publicada por Miyata e colaboradores, nenhum deles necessitou de enxerto com bypass das artérias coronárias. A aorta ascendente é normalmente poupada, porém existem relatos de reparos aneurismáticos nessa localização. Outros procedimentos podem estar indicados e deve ser sempre levada em conta a apresentação de cada paciente individual.
O bypass continua sendo a abordagem cirúrgica padronizada para a maioria das lesões da AT. A endarterectomia constitui uma escolha inadequada, por causa da extensa inflamação e da natureza transmural do processo patológico. Uma das indicações primárias para a intervenção na AT é a doença vascular cerebral. O aci-
Outras terapêuticas incluem tratamento anti-hipertensivo (vasodilatadores devem ser evitados, a não ser que o paciente sofra de insuficiência cardíaca), terapêutica com antiagregante plaquetário para prevenir trombose, terapêutica com cálcio para prevenir osteoporose e controle de dislipidemia.
Prognóstico
dente vascular encefálico nessas circunstâncias em geral é considerado devido a um fluxo reduzido e não à embolia. Não existem dados que confirmem essa hipótese, apesar de alguns dados angiográficos em pacientes com AT e acidente vascular encefálico mostrarem a presença de lesões obstrutivas completas das artérias carótidas ou inominada. Assim, os pacientes com estenoses graves ou obstrução das artérias inominada ou carótida são considerados candidatos à reconstrução cirúrgica. Esse tratamento assume habitualmente a forma de um enxerto de bypass da aorta ascendente para um local-alvo distal sem acometimento. A aorta ascendente é escolhida por causa da relativa raridade com que é acometida pelo processo patológico. Uma prótese de 10 mm pode ser costurada após a colocação da pinça lateral e ramos adicionais poderão ser acrescentados se necessário para realizar um bypass com outros vasos.
Os índices de sobrevida a longo prazo são de 80 a 90%. A morte súbita pode ocorrer ocasionada por IAM, AVC, ruptura de aneurisma ou aneurisma dissecante, no entanto, os aneurismas geralmente são estáveis e raramente necessitam de tratamento cirúrgico. A mortalidade precoce e tardia varia de 10 a 20%.
As indicações para o reparo dos aneurismas na AT espelham provavelmente aquelas para os aneurismas de outra etiologia. A incidência de ruptura provavelmente é mais baixa para os aneurismas de AT, mas essas lesões também ocorrem em uma população de pacientes muito mais jovens, produzindo um risco especialmente mais alto de ruptura durante o tempo de vida. A vigilância a longo prazo desses pa-
Os aneurismas isolados da artéria ilíaca, sem um AAA associado, são raros, respondendo por menos de 2% de todos os aneurismas aortoilíacos. Como ocorre com os AAA, a frequência desses aneurismas aumenta com a idade e são raros antes de 60 anos. A localização profunda na pelve torna praticamente impossível a detecção ao exame físico, embora alguns aneurismas volumosos das artérias ilíacas sejam de-
Outros aneurismas arteriais Aneurismas isolados da artéria ilíaca
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361 48 Doenças da aorta tectados pelo toque retal. Por causa do aumento das técnicas de imageamento abdominal, hoje são detectados mais aneurismas ilíacos pequenos. A artéria ilíaca comum é afetada mais comumente (70-90%), seguida da artéria ilíaca interna (10-30%); por razões desconhecidas, a artéria ilíaca externa geralmente é preservada. Há nítido predo-
mínio no sexo masculino (relação masculino/feminino de 5:1-16:1) e, na maioria das séries cirúrgicas, os pacientes tinham entre 65-75 anos. Cerca de 50% são bilaterais.
Sinais e sintomas Embora os aneurismas das artérias ilíacas geralmente sejam assintomáticos até se romperem, podem causar sinais específicos secundários à compressão local das estruturas pélvicas adjacentes. Obstrução ureteral, hematúria, trombose da veia ilíaca, obstrução do intestino grosso e déficit neurológico do membro inferior podem ocorrer, mas são causados muito mais comumente por outras doenças, frequentemente confundido o diagnóstico inicial de aneurisma ilíaco. O tamanho médio dos aneurismas ilíacos no momento do diagnóstico é de 5,6 cm, com taxa de ruptura de 30%. O índice de mortalidade operatória em pacientes com aneurismas ilíacos rotos é de 40%.
Diagnóstico Antes da utilização generalizada da TC e da RM, a maioria dos aneurismas ilíacos isolados apresentava-se com ruptura, que acarretava taxa elevada de mortalidade. Entretanto, a história natural dos aneurismas ilíacos pequenos não está bem definida, porque as lesões são incomuns e geralmente não têm sido acompanhadas por exames de imageamento sequenciais. Na maioria das séries cirúrgicas, o diâmetro médio desses aneurismas é de 4-5 cm, enquanto o diâmetro médio dos aneurismas ilíacos rotos foi estimado em 6 cm. Depois do acompanhamento dos aneurismas ilíacos, os autores relataram índices variáveis de ruptura entre 10-70% depois de 5 anos. O acompanhamento dos aneurismas ilíacos volumosos (4-12 cm de diâmetro) indica que não haja relação direta entre ruptura e diâmetro nessa faixa. Santilli e colaboradores descreveram 189 pacientes com aneurismas ilíacos, nos quais não houve ruptura quando os diâmetros eram < 4 cm. A mortalidade associada à ruptura é elevada (25-57%), enquanto a causada pelo reparo eletivo é < 5%. Atualmente, a maioria dos cirurgiões recomenda reparo eletivo dos aneurismas ilíacos isolados a partir do diâmetro limítrofe de cerca de 3-4 cm, desde que o risco cirúrgico seja apropriado. Todas as questões relativas ao
processo de decisão frente aos pacientes com AAA também se aplicam aqui, principalmente quando se comparam os riscos de ruptura versus reparo eletivo.
Tratamento O tratamento aberto de aneurismas da artéria ilíaca é feito por colocação de enxerto através de uma incisão cirúrgica aberta. Uma vez que a artéria ilíaca externa raramente apresenta essa lesão, essa cirurgia pode ser geralmente confinada ao abdome. Aneurismas bilaterais da artéria ilíaca comum exigem reconstrução com um enxerto aortoilíaco bifurcado. Aneurismas da artéria hipogástrica podem ser tratados com endoaneurismorrafia. Essas lesões não são tratadas com uma simples ligadura do colo, pois permanecerão pressurizadas por meio de vasos colaterais, causando maior dilatação aneurismática. O advento das técnicas endovasculares expandiu as opções de tratamento para aneurismas ilíacos. Os aneurismas da artéria ilíaca comum são tratados percutaneamente com um stent revestido (endoprótese), excluindo assim a lesão, como ocorre no tratamento endovascular de AAA. Os aneurismas das ilíacas internas também são tratados comumente por oclusão com espirais endovasculares. Nesses casos, é importante colocar espirais nos ramos eferentes da artéria hipogástrica (semelhante à ligadura endoaneurismática) para evitar expansão progressiva e ruptura, que podem ocorrer se forem simplesmente colocados na artéria aneurismática.
Aneurismas da artéria poplítea O diâmetro normal da artéria poplítea é de 0,90 ± 0,20 cm. Outros autores relataram um diâmetro médio menor (0,52 ± 0,11 cm). Podemos considerar que estamos diante de um aneurisma poplíteo se o diâmetro for > 1,5 cm, ainda que o limite de 2 cm seja usado com frequência na clínica diária para essa localização.
Incidência Os aneurismas da artéria poplítea são raros. No entanto, são os mais comuns dentre aqueles que ocorrem em artérias periféricas, representando mais de 70% de todos os aneurismas periféricos. Predo-
minância no sexo masculino (>90%), acometimento bilateral é documentado em metade dos casos, e a associação com aneurisma de aorta abdominal é de 60% dos casos.
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362 Cirurgia vascular e colaboradores, que encontraram um infiltrado inflamatório, incluindo linfócitos T, na parede de aneurismas da artéria poplítea, associado a aumento na apoptose e na degradação da matriz extracelular. Os aneurismas poplíteos verdadeiros também podem ser resultado da síndrome de encarceramento da artéria poplítea. O mecanismo parece ser a ocorrência de traumatismos crônicos repetitivos, de forma semelhante ao que ocorre na dilatação da artéria subclávia no segmento distal a uma costela cervical. Falsos aneurismas da artéria poplítea podem ser causados por traumatismos crônicos provocados por tumores ósseos benignos, como os osteocondromas, na metáfise distal do fêmur. Traumatismos penetrantes também podem causar pseudoaneurismas da artéria poplítea.
Manifestações clínicas Figura 48.18 Angiografia de um aneurisma da artéria poplítea.
Aproximadamente 1/3 dos pacientes com aneurisma poplíteo é assintomático por ocasião do diagnóstico inicial. Em 43% dos casos assinto-
máticos, um ou ambos os pulsos podálicos estavam ausentes. É provável que esses aneurismas já tivessem produzido embolia distal, o que enfatiza o risco de obstrução progressiva das artérias poplíteas. Esses membros estão sob alto risco de evoluir com complicações. O risco de desenvolver complicações, incluindo trombose aguda, tromboembolia crônica e dor causada por compressão, é de 36% ao longo de 3 anos para os pacientes com pulsos podálicos normais, e de 86% em 3 anos para aqueles pacientes com ausência de pulsos.
Diagnóstico O exame físico isoladamente com frequência não é confiável e pode produzir resultados falsos-positivos e falsos-negativos. A ultrassonografia é um recurso preciso para o diagnóstico. Para o planejamento do tratamento, a angiografia, a TC tridimensional e a RM são úteis. Figura 48.19 Angiografia de um pseudoaneurisma da artéria poplítea causado por um tumor ósseo benigno. Observar o deslocamento e o encarceramento da artéria poplítea.
Patogenia A maioria dos aneurismas poplíteos é de natureza degenerativa. A causa é provavelmente uma
combinação de defeito genético e inflamação com aumento na produção local de enzimas que degradam a elastina e o colágeno. Isso foi confirmado por Jacob
Tratamento Apesar de alguns autores terem sugerido uma abordagem conservadora para o tratamento de aneurismas poplíteos assintomáticos, a maioria concorda que os resultados do reparo eletivo são excelentes, com baixas morbidade e mortalidade, e significativamente melhores do que o tratamento realizado em aneurisma com trombose com quadro clínico de isquemia. Os aneurismas pequenos, definidos como aqueles com menos de 2 cm de diâmetro, e assintomáticos podem ser acompanhados sem cirurgia reconstrutora.
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363 48 Doenças da aorta Pacientes assintomáticos com AAF de 2 cm ou mais, assintomáticos e com risco cirúrgico aceitável devem ser tratados cirurgicamente.
Tratamento eletivo A opção técnica mais comum e com melhores resultados é a ligadura proximal e distal do aneurisma, combinada com ponte de veia safena magna reversa, geralmente da poplítea proximal ao aneurisma até a poplítea distal. Alguns aneurismas mais extensos ou associados à doença oclusiva podem necessitar pontes mais longas, partindo da artéria femoral superficial ou femoral comum. As outras opções de enxerto autógeno são a veia safena parva, as veias de membros superiores e a veia femoral superficial. As próteses vasculares sintéticas de politetrafluoroetileno são utilizadas apenas em casos em que não há veia autógena disponível. Isso porque os resultados a longo prazo dos enxertos sintéticos são muito inferiores aos dos enxertos venosos implantados nessa posição. Após o procedimento cirúrgico, todos os pacientes devem ser acompanhados clinicamente e por exames complementares periódicos, para detectar sinais precoces de falha do enxerto e maximizar a patência de longo prazo. Em aneurismas particularmente grandes ou que estejam produzindo sintomas compressivos, pode ser recomendável a abordagem por via posterior, com abertura do saco aneurismático e sutura dos óstios das colaterais, o que visa evitar a manutenção de fluxo no saco aneurismático por colaterais. Em caso de trombose aguda do aneurisma com isquemia do membro, antes da revascularização é necessária a remoção dos trombos da circulação distal por trombólise ou por embolectomia por cateter balão, para permitir o restabelecimento adequado de fluxo. A trombólise apresenta resultados ligeiramente superiores aos da embolectomia nessas circunstâncias. A técnica endovascular com stents recobertos tem sido uma nova opção de tratamento dos AAP, mas os resultados são inferiores ao procedimento aberto convencional. As potenciais vantagens do procedimento são a rapidez e redução do estresse cirúrgico. Em virtude dos resultados discutíveis, a técnica endovascular tem sido considerada exceção, reservada a pacientes com risco operatório elevado e/ou ausência de enxerto autógeno disponível. As taxas de morbimortalidade do tratamento eletivo nos pacientes sem isquemia são mais baixas do que os casos que se apresentam como isquemia grave. A chance de salvamento do membro a longo prazo fica ao redor de 95% para os pacientes eletivos e cai para 70% nos pacientes operados em condições de urgência/ emergência. Os resultados a longo prazo das operações com veias autógenas são melhores do que com próteses sintéticas ou stents recobertos.
Tratamento de emergência Nos casos graves de isquemia aguda do membro, a tromboembolectomia ou trombólise intraoperatória combinadas com a reconstrução com bypass das artérias poplítea ou tibial é um tratamento efetivo para um aneurisma poplíteo associado a trombose. Entretanto, a instrumentação com cateteres para trombectomia deve ser realizada com a maior atenção, para que se evitem lesões irreversíveis nas artérias de pequeno calibre. A trombectomia é um procedimento de difícil realização via artéria poplítea, por não ser possível a cateterização cega seletiva das artérias tibiais anterior e posterior, e o cateter com balão geralmente acaba sendo introduzido na artéria fibular. A embolectomia da trifurcação é a 1ª alternativa. Uma das complicações da trombólise é a deterioração isquêmica do membro durante o procedimento, em razão da propagação do coágulo e de fragmentos do trombo com a restauração do fluxo sanguíneo. A deterioração grave e irreversível foi detectada em 2,3% dos casos, mas ocorrências mais leves foram observadas em 13% dos pacientes durante a trombólise de aneurismas poplíteos, sendo causadas, com frequência, por trombose pericateter, nos casos em que a heparinização não tenha sido adequada, por retrombose, ou por embolia distal. A deterioração leve geralmente é tratável man-
tendo-se a trombólise, enquanto os casos mais graves podem requerer uma intervenção cirúrgica imediata. Tais complicações ocorrem com frequência significativamente maior durante o tratamento de aneurismas poplíteos que tenham sofrido trombose do que durante o tratamento de êmbolos ou de artérias e enxertos ateromatosos trombóticos. O índice de amputações associadas a complicações de trombólises é alto, e a intervenção cirúrgica parece ter melhores resultados do que a manutenção desse procedimento.
Acompanhamento após a reconstrução Após a reconstrução de um aneurisma poplíteo, o acompanhamento deve se focalizar na vigilância de sua manutenção, em particular se tiver sido utilizado um enxerto autólogo usando veia. Essa vigilância implica a realização de ecodoppler em intervalos regulares, especialmente durante o 1º ano após a cirurgia. Uma degeneração aneurismática subsequente em localização imediatamente proximal ou distal a um bypass curto pode ocorrer em 5% ao longo de um período de 10 anos de acompanhamento, o que enfatiza a necessidade de acompanhamento regular por toda a vida do paciente. Além disso, o acompanhamento deve se concentrar na vigilância sobre o desenvolvimento de novos aneurismas, uma vez que tais pacientes têm incidên-
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364 Cirurgia vascular cias altas de aneurismas aórticos, femorais e poplíteos contralaterais. Em geral, um exame anual feito com ultrassonografia é suficiente para excluir ou confirmar a dilatação desses vasos na maioria dos pacientes. O intervalo entre os exames é arbitrário, mas em várias séries a indicação para reconstrução arterial ocorreu no período de 24 meses, mesmo nos casos de pequenos aneurismas assintomáticos. Podem ocorrer dilatação e formação de aneurisma em enxertos venosos usados para reconstrução de aneurismas poplíteos, fatos que devem ser detectados por meio da vigilância realizada com ecodoppler, uma vez que tais casos algumas vezes necessitam de reparo.
Aneurismas da artéria esplênica Incidência e etiologia A artéria esplênica é o vaso abdominal visceral (circulação esplâncnica) afetado mais comumente pela doença aneurismática. Os aneurismas dessa artéria representam 60% de todos os aneurismas da circulação esplâncnica. Mais de 1.800 pacientes com aneurismas das artérias esplênicas foram descritos nos estudos publicados até hoje. A incidência dessas lesões ainda não está bem definida e varia de 0,098% em quase 195.000 necrópsias até 10,4% em um estudo cuidadoso de necrópsias dos vasos esplâncnicos dos pacientes idosos. Os macroaneurismas da artéria esplênica geralmente são saculares, ocorrem mais comumente nas bifurcações e são múltiplos em cerca de 20% dos pacientes. Em contraste nítido com os aneurismas da aorta abdominal e das artérias do membro inferior, os da artéria esplênica mostram predileção incomum pelo sexo feminino, com relação de 4:1 entre os sexos. A propensão ao desenvolvimento dos aneurismas nas artérias esplênicas em vez de em qualquer outra artéria esplâncnica tem sido atribuída às anormalidades adquiridas da parede vascular, inclusive fragmentação das fibras elásticas, perda da musculatura lisa e ruptura da lâmina elástica interna. Três fenômenos independentes podem contribuir para essas alterações. O 1º fator contribuinte para a formação dos aneurismas das artérias esplênicas é a existência de fibrodisplasia arterial sistêmica. A desestruturação demonstrada da arquitetura da parede arterial por processos displásicos da média é um precursor lógico desses aneurismas. Os pacientes com fibrodisplasia da média da artéria renal desenvolvem aneurismas das artérias esplênicas com frequência 6 vezes maior do que a observada na população normal. O 2º fator contribuinte é a hipertensão porta
com esplenomegalia. Os aneurismas têm sido diag-
nosticados em 10-30% dos pacientes com hipertensão porta e esplenomegalia. Nesses casos, os aneurismas podem ser sequelas do processo hipercinético aparente que causa o aumento do diâmetro das artérias esplênicas dos pacientes com hipertensão porta. Qualquer que seja o fator responsável pela dilatação da artéria, um processo semelhante nas bifurcações das artérias poderia aumentar a suscetibilidade à formação dos aneurismas. Assim, o diâmetro dos aneurismas de pacientes com hipertensão porta foi correlacionado diretamente com o diâmetro da artéria esplênica. A maioria dos casos inclui aneurismas múltiplos, um tipo específico de aneurisma das artérias esplênicas diagnosticado comumente em pacientes com transplantes hepáticos ortotópicos. A triagem para aneurismas da artéria esplênica foi recomendada para todos que fizeram transplantes de fígado. O 3º fator contribuinte, importante para a evolução dos aneurismas das artérias esplênicas, são os efeitos vasculares das gestações repetidas. Em um estudo de grande porte, 40% das mulheres descritas sem causas evidentes para seus aneurismas tinham 6 ou mais gestações a termo. A importância da gravidez na patogenia dessas lesões também é confirmada pelo fato de que 45% das mulheres com aneurismas das artérias esplênicas descritos na literatura inglesa referem-se às décadas de 1960 e 1970, quando as gestações repetidas eram mais comuns. As alterações gestacionais da parede vascular causadas por fatores hormonais e locais podem ter uma relação causal com as anormalidades da média das artérias e a formação dos aneurismas. Os efeitos podem ser semelhantes às alterações responsáveis pelas complicações vasculares da gravidez associadas à síndrome de Marfan ou Ehlers-Danlos. A predileção desses aneurismas pelas artérias esplênicas em vez de outros vasos musculares com diâmetro semelhante pode refletir a ampliação do shunting arteriovenoso esplênico durante a gravidez com fluxo sanguíneo excessivo ou representar anormalidades estruturais preexistentes intrínsecas à artéria esplênica.
Alguns aneurismas das artérias esplênicas parecem ser atribuídos ao enfraquecimento arteriosclerótico da parede vascular. Entretanto, o local frequente das alterações arterioscleróticas calcificadas nos aneurismas, sem envolvimento da artéria adjacente, reforça a hipótese de que a arteriosclerose ocorra comumente como processo secundário, em vez de ser fator etiológico primário. Em alguns pacientes com dilatações aneurismáticas múltiplas, embora não em todos os casos, as alterações arterioscleróticas calcificadas reforçam ainda mais a hipótese. Os processos inflamatórios adjacentes à artéria esplênica, principalmente a pancreatite crônica com pseudocistos associados, também são causas comprovadas de aneurismas.
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365 48 Doenças da aorta Os pseudoaneurismas peripancreáticos ocorrem em mais de 10% dos pacientes com pancreatite crônica e muitos afetam a artéria esplênica. Do mesmo modo, os traumatismos fechados e perfurantes podem levar à formação de aneurismas. As lesões infectadas (micóticas) associadas comumente à endocardite bacteriana subaguda dos usuários de drogas intravenosas são diagnosticadas com frequência crescente. Os microaneurismas da circulação intraesplênica geralmente atribuem-se às doenças do tecido conjuntivo, dentre elas a periarterite nodosa, mas sua importância cirúrgica é muito menor do que a dos macroaneurismas causados por outros fatores. Figura 48.20 Aneurisma da artéria esplênica. As calcificações curvilíneas em forma de anel de sinete no quadrante superior esquerdo são típicas dos aneurismas da artéria esplênica.
Manifestações clínicas e diagnóstico Os aneurismas da artéria esplênica geralmente são denominados de assintomáticos. A ruptura do aneurisma com hemorragia intraperitoneal é responsável pela apresentação clínica mais dramática dos aneurismas das artérias esplênicas. Nas pacientes que não estão grávidas, a
ruptura geralmente se evidencia como uma catástrofe intra-abdominal aguda com colapso cardiovascular associado. Na maioria dos casos, o sangramento acumula-se inicialmente na região retrogástrica. A medida que o sangue escapa pelo forame de Winslow, o paciente pode relatar sintomas distantes do quadrante superior esquerdo e do epigástrio. A hemorragia sempre evolui para sangramento intraperitoneal grave, à medida que a contenção oferecida pelo omento menor é rompida. Esse “fenômeno de ruptura dupla” ocorre em quase 25% dos casos e geralmente oferece uma oportunidade de tratamento antes do início da hemorragia fatal. Nas gestantes, a ruptura do aneurisma pode simular outras emergências obstétricas como descolamento prematuro da placenta, embolização de líquido amniótico ou ruptura uterina. A incidência mais alta de ruptura foi relatada nas mulheres jovens grávidas, ou seja, mais de 95% dos aneurismas descritos durante a gravidez tinham rompido. Apesar dessa observação, é lógico
supor que muitos aneurismas das artérias esplênicas desenvolvam-se durante a gravidez e que a maioria não sofra ruptura ao longo da gestação. A existência de aneurisma da artéria esplênica pode ser considerada frente à demonstração radiográfica de calcificações curvilíneas semelhantes a um anel de sinete no quadrante superior esquerdo, sinal descrito em 70% dos casos. Esses aneurismas
são diagnosticados mais comumente por arteriografia convencional, ultrassonografia, TC ou RM em pacientes sem qualquer indício anterior da presença das lesões.
Figura 48.21 Aneurisma da artéria esplênica. Documentação arteriográfica de um aneurisma do terço médio da artéria esplênica, relacionado com pancreatite.
Indicações e técnica cirúrgica A embolização percutânea da artéria esplênica é o procedimento mais frequentemente aplicado. Raramente é necessária a esplenectomia cirúrgica aberta, mas a ligadura cirúrgica distal e a proximal com a cirurgia aberta ou com a laparoscopia são boas opções de tratamento. A ligadura aberta ou a embolização por cateterismo deverão ser consideradas para aneurismas sintomáticos, para aneurismas de 2 cm de diâmetro ou para qualquer aneurisma de artéria esplênica em uma mulher em idade reprodutiva. O infarto esplênico e a recanalização da artéria tratada com embolização são quadros preocupantes, e esses pacientes exigem acompanhamento regular com investigações por imagem. Mais recentemente, endopróteses têm sido usadas com sucesso para tratar aneurismas de artéria esplênica. Os aneurismas micóticos (principalmente secundários a endocardite infecciosa) podem exigir tratamento cirúrgico aberto com esplenectomia e pancreatectomia, frequentemente com prognóstico ruim.
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CAPÍTULO
10
Retocolite ulcerativa inespecífica (RCU)
“Não é suficiente ter uma boa mente: o principal é usá-la bem”. – RENÉ DESCARTES.
Definição Retocolite ulcerativa (RCU) é uma doença inflamatória, de etiologia desconhecida, provavelmente multifatorial, que acomete preferencialmente a mucosa do reto e do cólon esquerdo, mas, eventualmente, todo o cólon. Trata-se de uma doença crônica, com surtos de remissão e exacerbação,
caracterizada por diarreia e perda de sangue por via retal. Surge principalmente em pessoas jovens ou de meia-idade. Além das alterações locais, frequentemente apresenta complicações sistêmicas.
A doença acomete ambos os sexos, na mesma proporção, embora com tendência de ocorrer mais em mulheres. Há uma distribuição etária bimodal para os homens, com picos entre 15 e 35 anos e 60 e 70 anos. Por sua vez, nas mulheres, a faixa mais aco-
metida é dos 15 aos 35 anos. Classicamente se diz que a RCU afeta mais as pessoas brancas e jovens. Contudo, estudos recentes
demonstram um aumento na incidência entre negros, equiparando-se aos brancos. Em 10 a 15% dos pacientes, há uma história familiar positiva para a doença. Os fatores socioeconômicos e culturais, muito valorizados antigamente, parecem não influenciar na incidência. É interessante notar a alta frequência da doença entre não fumantes comparados a fumantes.
Epidemiologia A RCU é uma doença de ocorrência mundial, com uma incidência de 3-20 novos casos por ano para cada 100 mil habitantes. Aparentemente tem incidência maior na América do Norte e Europa; todavia, ao que tudo indica, o fato de outras partes do mundo registrarem baixa incidência não corresponde à realidade, mas sim a problemas técnicos e de estatística.
Etiopatogenia A hipótese geral mais aceita a respeito da etiopatogenia das DII considera um mecanismo multifatorial: componentes genéticos de predisposição, elementos da microbiota intestinal, fatores ambientais e resposta imunitária.
95 10 Retocolite ulcerativa inespecífica (RCU) Principais fatores de risco relacionados com a doença inflamatória intestinal (DII) Fatores de risco História familiar
RCU
DC
Pode estar presente em cerca de 10 a 20% dos casos
Antecipação genética
Pode estar presente
Pode estar presente
Sistema HLA
HLA-DR2
HLA-DR1/DQw5
HLA-DRB1*0103
HLA-DRB3*0301
HLA-DRB1*15
HLA-A2
Localização de genes de suscetibilidade
Loci nos cromossomos: 1, 2, 3, 4, 6, 7, 12
Loci nos cromossomos 1, 3, 4, 6, 7, 12, 14, 16; no cromossomo 16 foi identificada mutação no gene NOD2 em 15 a 20% dos pacientes
Concordância da DII em gêmeos monozigóticos
6 a 36% (= 20%)
20 a 84% (≅ 67%)
Concordância da DII em gêmeos dizigóticos
0 a 3%
4 a 18% (≅ 8%)
Efeito do fumo
Reduz risco
Aumenta risco
Consumo de anticoncepcionais
Aumenta o risco de DII (questionado por alguns autores)
Uso de anti-inflamatórios
Induz recaídas
Dieta
Alto consumo de açúcar refinado e baixa ingestão de frutas foram descritos na DII (especialmente DC)
Infecções
–
Possível associação com vírus do sarampo e Mycobacterium paratuberculosis
Aleitamento materno
Reduz risco
Reduz risco
Doenças na infância e no período pré-natal
Aumenta risco
Aumenta risco
Efeito da apendicectomia
Reduz risco (?)*1
Não parece conferir risco*2
Tabela 10.1 Outros fatores de risco mencionados: estresse, uso de creme dental, líquen plano, eczema, psoríase, canhoto, esclerose múltipla. *1 Em especial naqueles cuja apendicectomia foi realizada antes dos 20 anos de idade. *2 Amigdalectomia é mencionada por alguns autores como fator de risco para DC. Fique atento a esta tabela.
Patologia A RCU é uma doença restrita ao reto e cólons, acometendo de maneira contínua a superfície mucosa e eventualmente a submucosa. À microscopia óptica, a alteração histológica característica da RCUI são os abscessos de criptas. Estes são decorrentes do processo inflamatório polimorfonuclear que atinge a região das criptas de Lieberkuhn. Outras alterações incluem edema, congestão dos vasos da mucosa e submucosa, hemorragia, depleção de células caliciformes, infiltrado inflamatório misto com a presença de eosinófilos e metaplasia das células de Paneth. Nos casos de remissão da RCUI, é possível observar atrofia, ramificações das criptas e maior espaçamento entre as glândulas de Lieberkuhn. As características morfológicas que distinguem a RCUI da doença de Crohn são diversas: 1) as lesões na RCUI são contínuas, isto é, atingem o reto e progressivamente as regiões mais proximais do cólon, enquanto as lesões na DC são salteadas e não são restritas ao cólon; 2) na RCUI, invariavelmente, o reto é acometido; na doença de Crohn colônica é frequente o reto ser poupado e haver lesões perianais; 3) o processo ulcerativo na RCUI é confinado à superfície colônica, visto que atinge a mucosa/submucosa e poupa a muscular e a serosa, ao passo que na DC a lesão se caracteriza por atingir desde a mucosa até a serosa; 4) não existe a formação de granulomas não caseosos na RCUI; por outro lado, os pseudopólipos inflamatórios raramente são encontrados na doença de Crohn.
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96 Coloproctologia Aspectos histológicos na RCUI Macroscopia
Microscopia Infiltrado inflamatório agudo e crônico na mucosa, perda da arquitetura das criptas, abscessos, depleção de células calciformes, congestão, edema, hemorragias focais e ulcerações Casos graves: úlceras profundas, dilatação vascular Diminuição do infiltrado inflamatório, restauração das células caliciformes e do epitélio Perda do paralelismo, encurtamento e ramificações das criptas, atrofia da mucosa e espessamento da muscularis mucosae Tabela 10.2 (Guarde!)
Hiperemia, congestão, edema, fibrilidade, ulcerações, pseudopólipos, exsudato mucopurulento e de fibrina, sangramento
Normal a atrófica
RCUI ativa
RCUI em resolução RCUI quiescente
Classificação da RCU quanto à extensão anatômica – limites endoscópicos Proctite: inflamação da mucosa retal até 15 cm da linha denteada RCU distal (34 a 70%) Proctossigmoidite: inflamação da mucosa até 25 a 30 cm da linha denteada RCU hemicólon esquerdo (8 a Inflamação da mucosa até a flexura esplênica (eventualmente até o cólon trans40%) verso distal) RCU extensa (14 a 56%) Inflamação da mucosa estendendo-se até o cólon transverso proximal e adiante Tabela 10.3
Padrões da doença Existem três distribuições predominantes comuns à doença: 1. doença de todo o cólon; 2. colite localizada predominantemente no lado esquerdo; 3. doença envolvendo o cólon sigmoide e o reto.
Os pacientes com proctossigmoidite apresentam resolução completa dos sintomas em 75% dos casos, 15% apresentam exacerbações e remissões com sangramento retal intermitente por um longo período de tempo e 10% desenvolvem colite ulcerativa de todo o cólon.
Figura 10.1 Apresentação endoscópica ou radiológica de RCUI.
A classificação de Montreal (tabela a seguir) propõe como parâmetro a máxima extensão observada do envolvimento cólico em algum momento, considerando a flexibilidade de sua evolução. Essa divisão sugere uma importância biológica clara, particularmente na resposta dos pacientes às terapêuticas empregadas, tópicas e/ ou sistêmicas.
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97 10 Retocolite ulcerativa inespecífica (RCU) Classificação de Montreal - extensão da RCU Classificação Extensão Envolvimento limitado ao E1: proctite ulcerativa reto E2: colite ulcerativa E Envolvimento até (colite distal) a flexura esplênica E3: colite ulcerativa exEnvolvimento proximal tensa à flexura esplênica pancolite) Tabela 10.4
Quadro clínico A diarreia sanguinolenta de longa duração geralmente é o sintoma mais comum do paciente com colite ulcerativa. Os sintomas caracterizam-se por exacerbações e remissões. Durante os períodos de
remissão, as funções intestinais são normais; durante as exacerbações existem urgência e aumento da frequência intestinal, quando, então, pode ocorrer incontinência fecal intensa. A perda de apetite e de peso é comum durante os períodos de exacerbação e está associada à dor abdominal tipo cólica, que melhora com a evacuação; perda de peso e anemia contribuem para a fadiga;
pode ocorrer febrícula. A intensidade do sangramento pode variar com a extensão da doença, e pacientes portadores
de proctite ou proctossigmoidite podem apresentar apenas pequeno sangramento (inclusive pode não estar presente), sem qualquer outro sintoma constitucional. Esse tipo de apresentação pode erroneamente ser interpretado como hemorroidas. Nesse caso, a eliminação de muco com sangue torna o diagnóstico de hemorroidas pouco provável. Quando o processo inflamatório se estende acima do reto, o sangue é geralmente misturado nas fezes. Por vezes, o sangramento pode ser intenso. Classificação de Truelove e Witts: índice de gravidade clínica da colite ulcerativa Diarreia < 4 vezes ao dia Pequena quantidade de sangue nas fezes Sem febre Ataque Frequência de pulso normal leve Hemoglobina normal ou próxima do normal VHS < 30 mm/h Ataque Definido entre leve e grave moderado
Classificação de Truelove e Witts: índice de gravidade clínica da colite ulcerativa (cont.) Diarreia ≥ 6 vezes ao dia Sangue macroscópico nas fezes Temperatura ≥ 37,5ºC por 4 dias ou ≥ Ataque 37,8ºC em 2 de 4 dias consecutivos grave Pulso ≥ 90 batimentos por minuto Anemia (hemoglobina < 75% do normal) VHS ≥ 30 mm/h Tabela 10.5 Índice de atividade da Retocolite Ulcerativa** 0 = normal Frequência de 1 = 1-2 evacuações/dia evacuação/dia 2 = 3-4 evacuações/dia 3 = > 4 evacuações/dia 0 = ausente 1 = sangramento discreto Sangramento retal 2 = sangramento moderado 3 = sangramento intenso 0 = normal 1 = friabilidade discreta Aspecto da 2 = friabilidade moderada mucosa retal 3 = exsudação e sangramento espontâneo 0 = normal Avaliação do 1 = leve estado geral 2 = moderado 3 = grave 0 = normal Graduação clínica 1 = leve da atividade 2 = moderada 3 = grave Leve = 0 a 4 Pontuação da Moderada = 5 a 8 atividade Grave = 9 a 12 Tabela 10.6 **Modificado de Gordon PH, Nivatvongs S.
Os achados do exame físico da colite ulcerativa não são patognomônicos e podem ser dependentes da cronicidade e gravidade da doença, variando desde alterações mínimas até perda de peso acentuada, desidratação, anemia e sinais tóxicos nos pacientes extremamente enfermos. Febre (> 38ºC) e taquicardia (> 120 bpm) são indicativos de doença mais severa. Em casos leves, o exame abdominal pode ser normal, mas em casos com dilatação tóxica o abdome pode estar distendido, timpânico e doloroso. O exame retal pode ser bastante doloroso devido à diarreia que os pacientes apresentam; o exame endoscópico mostra a mucosa retal edemaciada, granular, sangrante ao toque do aparelho, com grande quantidade de secreção mucosanguinolenta na luz intestinal.
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98 Coloproctologia
Manifestações extraintestinais As manifestações extracolônicas sugerem que a colite ulcerativa seja uma doença sistêmica. Elas podem preceder, acompanhar ou se seguir à colite, sugerindo que essas manifestações foram iniciadas por um mecanismo patogênico subjacente. As manifestações extraintestinais primariamente envolvem a pele, articulações, olhos e boca. As manifestações articulares são as mais comuns. As principais manifestações cutâneas são o eritema nodoso e o pioderma gangrenoso. O pioderma gangrenoso classicamente é encontrado em 5% dos pacientes com colite ulcerativa e caracteriza-se por lesão que se inicia com o aspecto de um furúnculo e posteriormente se torna úlcera profunda escavada. O eritema nodoso é caracterizado
pela presença de nódulos elevados, vermelhos e dolorosos, localizados geralmente na face anterior das pernas; as manifestações articulares ocorrem em 25% dos pacientes e se apresentam como poliartrites, sendo a espondilite anquilosante (EA) um achado ocasional. A atividade da EA não está correlacionada necessariamente com a atividade da colite, podendo ter um curso até anquilose. As complicações oculares associadas com a colite ulcerativa consistem em conjuntivite, episclerite recorrente e uveíte; sua incidência é baixa, entretanto apenas um pequeno número de pacientes é submetido a um exame ocular completo para se determinar a verdadeira incidência desses problemas associados. As lesões orais ocorrem em aproximadamente 10% dos pacientes e incluem úlceras aftosas, pioesto-
matite vegetante, estomatite angular e irritação da língua e ocorrem em pacientes com doença intestinal ativa, embora estejam mais associadas à doença de Crohn. Sua presença está relacionada à gravidade do surto. As manifestações hepáticas são, em geral, assintomáticas, por isso a presença de fraqueza e debi-
lidade nos enfermos com RCU merece uma avaliação das condições do fígado. A infiltração gordurosa do parênquima está presente em até 50% dos pacientes portadores da enfermidade, podendo complicar com hepatite crônica ativa e cirrose em 3 a 4% dos casos. No entanto, suas mais graves manifestações são a colangite esclerosante primária, caracterizada pela obstrução fibrótica dos ductos biliares, e o colangiocarcinoma (Atenção!).
A suspeita diagnóstica é feita pela presença de icterícia. Laboratorialmente, há elevação dos níveis séricos das enzimas indicadoras de colestase (fosfatase alcalina). Sua confirmação é dada pela colangiografia endoscópica retrógrada, que revela as estenoses múl-
tiplas típicas e a estase com dilatação da árvore biliar intra e extra-hepáticas. É importante lembrar que a ressecção do reto e de todo o cólon não influencia no curso evolutivo das enfermidades hepáticas. Nos casos avançados, o tratamento de escolha é o transplante hepático. Manifestações extraintestinais da RCUI Musculoesquelético Dermatológica Eritema nodoso Pioderma gangrenoso Artrite periférica Ulceração oral Espondilite anquilosante Estomatite angular Sacroileíte Pioestomatite vegetante Osteoporose Psoríase Osteomalacia Síndrome de Sweet Osteonecrose (dermatose neutrofílica febril) Oftalmológica Hematológica Anemia ferropriva Anemia hemolítica autoimune Anemia de doença crôUveíte/irite nica Episclerite Leucocitose e tromboConjuntivite citose Doença vascular retiniana Leucopenia e trombocitopenia Hipercoagulabilidade Anormalidades da coagulação Hepatobiliar Esteatose Colangite esclerosante primária Pericolangite Colangiocarcinoma Hepatite autoimune Tabela 10.7
Tipos de artropatias periféricas associadas com Colite Ulcerativa Tipo I (Pau- Tipo II (PoliarCaracterísticas ciarticular) ticular) Frequência na 35% 24% RCU Número de arti<5 ≥5 culações afetadas Principalmente Principalmente Articulações afegrandes articu- pequenas articutadas lações lações Joelho > torMCP > joelho > nozelo > pulso Articulações afeIFP > pulso > tor> cotovelo > tadas nozelo > cotovelo MCF > quadril > ombro > ombro
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99 10 Retocolite ulcerativa inespecífica (RCU) Tipos de artropatias periféricas associadas com Colite Ulcerativa (cont.) < 10 semanas Duração dos Meses ou anos (média 5 ataques (média 3 anos) semanas) Associação com atividade da doParalelas Independentes ença intestinal Tabela 10.8 MCF: metacarpofalangeana. FP: interfalangeana proximal.
Complicações
Megacólon tóxico Evidência radiográfica de distensão colônica (> 6 cm) Associada a, pelo menos, três dos seguintes sinais febre > 38ºC frequência cardíaca > 120 bpm leucocitose neutrofílica > 105 x 10/L Anemia Em adição aos sinais acima, pelo menos um dos seguintes sinais desidratação alteração de consciência distúrbio eletrolítico hipotensão Tabela 10.9
As principais complicações intestinais da RCU são: megacólon tóxico; transformação maligna; ente-
rorragia maciça, estenose e perfuração.
Megacólon tóxico É o termo clínico para a complicação da forma grave da RCU, em que há importante dilatação cólica segmentar, em especial do cólon transverso (> 6 cm). Apresenta baixa incidência, com mortalidade entre 25 e 30%. Pode ocorrer tanto na RCUI quanto na doença de Crohn, sendo mais frequente na primeira.
Embora sua etiologia não esteja, até hoje, bem definida, atribui-se à presença de agressão inflamatória nos plexos mioentéricos do sistema nervoso enteral, bem como à ocorrência de hipopotassemia, provocada pelo quadro diarreico agudo, ou até mesmo à corticoterapia. O megacólon tóxico raramente ocorre na fase inicial das DII, mas como exacerbação da fase crônica. Na suspeita de megacólon tóxico, estão contraindicados o exame radiológico contrastado do cólon (enema opaco) e o endoscópico (colonoscopia), pois ambos podem levar à perfuração do cólon ou do reto. O exame padrão-ouro é a rotina de abdome agu-
do (figuras 10.8 e 10.9). O tratamento clínico, sempre com o paciente hospitalizado, resume-se na tentativa de recuperação deste quadro de exacerbação da RCUI, mediante suporte hidroeletrolítico adequado, reposição sanguínea, uso de antibióticos de amplo espectro, corticoides e cuidados gerais, como sondagem nasogástrica, venóclise e controle da diurese. Contudo, não havendo a resposta de melhora das suas condições clínicas com esse tratamento, ocorre um aumento progressivo da distensão abdominal (dilatação do cólon transverso), observada e medida pela radiografia simples de abdome. O agravamento do quadro tóxico aumenta a incidência de morbimortalidade, em especial nos casos sem resposta adequada ao tratamento conservador; e a indicação de cirurgia de urgência é fundamental tão logo o paciente apresente condições para tal.
Etiologia do megacólon tóxico Inflamatória Colite ulcerativa Doença de Crohn Infecciosas Bacteriana Colite pseudomembranosa – C. difficile Salmonella typhi e não typhi Shigella Campylobacter Yersinia Parasitária Entamoeba histolytica Cryptosporidium Viral Colite por Cytomegalovirus Colite autolimitada (cultura negativa) Outros Colite pseudomembranosa secundária à terapia com metrotrexate Sarcoma de Kaposi Tabela 10.10 Atenção!
Transformação maligna Durante sua evolução sempre há risco de transformação maligna. O carcinoma colorretal tem maior prevalência na RCU quando comparado a indivíduos da população em geral da mesma idade e aumenta de acordo com a extensão da lesão no cólon (pancolite) e do tempo de evolução da doença. Os pacientes com pancolite estão sob maior risco; aqueles com formas brandas de RCU restrita ao reto não têm risco aumentado. A lesão precursora é a displasia. A nomenclatura padronizada classifica as biópsias em:
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Biópsia negativa: identifica todas as lesões inflamatórias e regenerativas.
Biópsia indeterminada: refere-se a alterações epiteliais que parecem exceder os limites de regeneração ordinária, mas não são suficientes para um diagnóstico de displasia inequívoco.
Biópsia positiva: é dividida em displasia de alto grau (DAG) e displasia de baixo grau (DBG).
Quando começa a vigilância? Após oito anos de doença nos indivíduos com pancolite ou após 15 anos naqueles com colite limitada ao cólon esquerdo, realizando-se colonoscopia a cada um a dois anos. Uma abordagem prática útil fica assim definida: Pacientes que estão na 2ª década de doença: colonoscopia a cada três anos. Pacientes que estão na 3ª década de doença: colonoscopia a cada dois anos. Anualmente após esse período. O melhor momento para a realização da colonoscopia é no período de remissão, recomendando-se a biópsia nos quatro quadrantes a cada 10 cm do cólon com pelo menos 33 fragmentos. Aspectos macroscópicos que devem ser valorizados: espessamento da parede, estenoses, lessões polipoides ou massas, áreas de hiperemia e enduração e aspecto viloso da mucosa. Resultados e condutas: displasia indefinida: novo exame endoscópico 3-6 meses depois. Displasia de baixo grau: conduta controversa. Os mais radicais indicam cirurgia. Um estudo em 1.225 pacientes submetidos a colectomia imediata após confirmação de displasia de baixo grau, 19% dos pacientes, apresentavam câncer. Os mais conservadores (a maioria) recomendam acompanhamento endoscópico a cada 3 a 6 meses. Caso a displasia de baixo grau seja multifocal é melhor levar o paciente à colectomia profilática. Displasia de alto grau ou DALMS (lesões os massas associadas à displasia): colectomia. Localização do tumor e cirurgia recomendada Localização do tumor Cólon direito
Cirurgia Colectomia direita
Cólon transverso Cólon descendente
Colectomia direita ou esquerda ampliadas ou transversectomia Colectomia esquerda
Sigmoide
Retossigmoidectomia
Reto superior (= retossig- Retossigmoidectomia moide) Reto, terço médio (5 a Retossigmoidectomia com anas11 cm) tomose colorretal baixa ou anastomose coloanal Anastomose manual ou mecânica Cirurgia de abaixamento a Cutait ou Simonsen
Localização do tumor e cirurgia recomendada (cont.) Reto, terço inferior (< 5 cm)
Amputação abdominoperineal de reto Retossigmoidectomia com anastomose coloanal
Tabela 10.11
Enterorragia maciça Hemorragia maciça é rara, representando 1 a 4,5% de todas as suas complicações. Como ocasiona
rápido agravamento do quadro clínico, constitui-se na principal indicação para a cirurgia de emergência.
Estenose A estenose do lúmen intestinal é rara na RCU, diferentemente da doença de Crohn, onde ocorre
com certa frequência. Sua presença em pacientes com RCU de longa evolução é sugestiva de transformação maligna até que se prove o contrário. Seu diagnóstico é feito pela radiografia contrastada de cólon ou pela colonoscopia, tendo esta última a vantagem de possibilitar a realização de biópsias que podem comprovar a presença do carcinoma.
Perfuração É a mais grave complicação da RCU, apresentando alta morbimortalidade. Sua incidência é rara
(não é uma doença transmural), entre 1 e 2% de todas as complicações da doença. Embora possa ocorrer em qualquer localização do cólon, o local mais frequente é o transverso, relacionado com sua causa mais comum, o megacólon tóxico.
Diagnóstico Uma história clássica pode alertar para a possibilidade do diagnóstico de colite ulcerativa, mas os achados endoscópicos são os indicativos mais confiáveis para se estabelecer o diagnóstico. Eritema difuso com ausência do padrão vascular submucoso normal é a alteração mais precoce da colite ulcerativa. (veja tópico patologia).
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Exames laboratoriais Na prática clínica, a utilização das mais tradicionais provas de atividade inflamatória, VHS e PC-R são suficientes para a avaliação dos pacientes com DII. Mais recentemente a pesquisa de biomarcadores fecais tem ganho importância na prática clínica. A este respeito já fizemos uma abordagem objetiva no capítulo a respeito de DC, apostila de Intestino Delgado. Nesse sentido, destacamos que a VHS é menos sensível para os pacientes com acometimento distal (reto) da RCU. A PC-R pode elevar-se em 50% a 60% dos pacientes com RCU e seu nível sérico está relacionado com a gravidade da doença (clínica e endoscópica, não havendo relação com o grau do processo inflamatório no nível histológico). Os níveis de PC-R acima de 23 mg/ dL ao diagnóstico na RCU extensa foi considerado fator preditor de risco aumentado para ressecções cirúrgicas. Na RCU, níveis acima de 10 mg/dL mensurados um ano após o diagnóstico foram preditores de maior risco cirúrgico nos quatro anos seguintes ao diagnóstico. Uma outra finalidade do método é a sua utilização como preditor de resposta ao tratamento. Pacientes com PC-R > 5 mg/dL apresentam melhor resposta ao infliximabe. Os pacientes com RCU apresentam, com frequência, títulos elevados de anticorpos contra citoplasma de neutrófilo – ANCA – com sensibilidade (positividade) de 50 a 70%; e os com doença de Crohn, títulos de tão somente 5 a 10%. ASCA negativo p-ANCA positivo 97% especificidade 57% sensibilidade
=
RCUI
Exames radiográficos Pela disponibilidade e precisão da colonoscopia, o clister opaco é menos utilizado do que anteriormente para o diagnóstico da colite ulcerativa. O enema opaco com duplo contraste é um método seguro e efetivo de demonstrar alterações mucosas mínimas em pacientes com colite ulcerativa.
Se o megacólon tóxico ou dilatação tóxica estiver presente, os estudos contrastados estão absolutamente contraindicados. Em muitos casos, uma radiografia simples do abdome fornecerá dados a respeito da gravidade do processo, podendo-se observar a delimitação da mucosa de um segmento colônico pelo ar, que com frequência apresenta uma superfície irregular com ulcerações ou edema e projeções polipoides. A parede intestinal pode ser especialmente avaliada se existirem encurtamento e perda das haustrações do cólon.
O sinal mais precoce da alteração se traduz em uma aparência finamente granular que, na colite ulcerativa, tem distribuição uniforme. Frequentemente existem considerável espasmo e irrritabilidade do cólon durante esses procedimentos, particularmente quando da insuflação de ar.
A colite mais severa caracteriza-se por ulcerações intestinais; elas variam desde pequenas e rasas até úlceras profundamente penetrantes ou abscessos em “botão de colarinho”. Pseudopólipos associados com grandes áreas de ulcerações confluentes dão a aparência de múltiplos pólipos e pontes mucosas. Cronicamente, o cólon torna-se encurtado e rígido como um tubo. A inflamação crônica perirretal com deposição de gordura e fibrose causa um aumento do espaço pré-sacral na radiografia de incidência lateral; a distância normal entre a face anterior do sacro e o reto é de menos de 2 cm. A ileíte de “refluxo” pode ser vista em aproximadamente 20% dos pacientes; ela se manifesta
como alterações inflamatórias superficiais da mucosa do ileoterminal. Ela pode ser distinguida da doença de Crohn, pois na colite ulcerativa a válvula ileocecal é permeável e o intestino delgado envolvido está dilatado. Na doença de Crohn, o ileoterminal torna-se estenosado. Colonoscopia Retocolite ulcerativa Doença de Crohn Continuidade das lesões Lesões em salto Lesão c/ intensidade Lesão c/ intensidade prodistal ximal Uniformidade das lesões Heterogeneidade das lesões Lesões superficiais Lesões profundas Edema e enantema Úlceras e fissuras Separação no mesmo Coexistência no mesmo segsegmento entre área mento de áreas normais e lesadas afetada e normal Tabela 10.12
O processo patológico é geralmente mais evidente no cólon esquerdo do que no direito, mesmo em situações de acometimento de todo o cólon. Isso é útil na diferenciação entre colite ulcerativa e doença de Crohn que tem apresentação segmentar. Em situações crônicas em que existe a possibilidade de transformação maligna, a radiografia é de valor questionável, já que as imagens características de neoplasia são incomuns em pacientes com colite ulcerativa. As estenoses são visualizadas, mas elas são alongadas, com terminações em forma de cone, em vez de em prateleira, podendo ser confundidas com estenoses inflamatórias de configuração idêntica. Esse fato é importante quando se reconhecem clinicamente as alterações mucosas displásicas. As
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102 Coloproctologia lesões são pequenas, planas, com elevações vilosas ou nodulares, e o carcinoma tende a ser endofítico com considerável extensão submucosa, em vez de exofítico. A utilização de radiografias para o seguimento a longo prazo não é confiável, e o seguimento colonoscópico é melhor. Mesmo o seguimento colonoscópico pode ser limitado na presença de lesões malignas precoces.
Figura 10.3 Úlceras em botão de colarinho. O flagrante do cólon transverso de um paciente com colite ulcerativa mostra inúmeras úlceras em botão de colarinho (setas) como projeções cheias de bário, com cólons estreitos e bases largas. Vê-se uma mucosa granular (G) na porção mais proximal do cólon transverso.
Figura 10.4 Enema opaco com duplo contraste em paciente com RCUI extensa. Observe redução do calibre do cólon e perda das haustrações. A mucosa é finamente granular; o ileoterminal é normal.
Figura 10.2 Colite ulcerativa: estimativa da doença colônica na radiografia simples. A: A radiografia simples do abdome de um paciente com colite aguda mostra resíduo fecal (FR) no ceco, haustrações normais no cólon transverso proximal (setas curvas) e espessamento das haustrações no cólon distal (setas retas grossas). Estes achados sugerem doença do cólon esquerdo, com preservação do cólon proximal. Também é possível avaliar a espessura da parede do cólon (setas retas pequenas). B: O clister opaco corrobora os achados na radiografia simples, mostrando ulceração difusa e espessamento ou desaparecimento das haustrações na metade distal do cólon.
Figura 10.5 Enema opaco mostrando pólipos pós-inflamatórios na região do sigmoide e no cólon descendente em paciente com RCUI ativa.
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Figura 10.8 Megacólon tóxico. Radiografia do abdome em decúbito dorsal mostrando dilatação do cólon transverso, desaparecimento de haustrações normais, muitas ilhotas de mucosa proeminentes ou pseudopólipos (setas grandes) e ulcerações profundas (setas pequenas) neste paciente com colite ulcerativa fulminante.
Figura 10.6 Colite ulcerativa inicial: mucosa granular e alterações nas haustrações. A: o flagrante radiográfico do ângulo hepático revela uma transição nítida (setas) da mucosa normal e haustração do cólon ascendente para o cólon transverso doente que tem mucosa granular com perda das haustrações. B: a visão aproximada do cólon sigmoide mostra mucosa granular com borramento e adelgaçamento das haustrações.
Figura 10.9 Radiografia simples de abdome: RCUI com dilatação colônica compatível com megacólon tóxico. Clister opaco na DII RCUI Ausência das haustrações Granulosidade difusa em áreas contíguas Ulcerações superficiais Pseudopólipos Cólon tubular Estenoses
Figura 10.7 Colite ulcerativa na fase subaguda. O flagrante radiográfico do ângulo esplênico mostra múltiplas úlceras em forma de frasco com base larga (setas pequenas). Nota-se também uma irregularidade difusa da mucosa por causa de ulcerações maiores vistas ao longo das margens e de frente (setas curvas).
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DC Ulcerações assimétricas e focais Fístulas Preservação do reto Ileoterminal com envolvimento e refluxo de bário Estenoses
Tabela 10.13
104 Coloproctologia
Figura 10.10 RCUI em atividade: úlceras maiores.
Figura 10.13 RCUI fora de atividade: processo cicatricial da mucosa e pseudopólipos.
Tratamento clínico Medidas gerais A diarreia e o sangramento são os sintomas mais comuns na fase aguda. A diarreia persistente leva à desidratação, associada a distúrbios hidroeletrolíticos que necessitam de reposição adequada. A perda sanguínea pode ser severa e prolongada ou ser mais gradual e tornar o paciente anêmico. A perda sanguínea crônica pode ser tratada com suplementação de ferro, mas casos de hemorragia aguda necessitam de transfusão. Figura 10.11 RCUI em atividade: granularidade da mucosa.
Figura 10.12 RCUI fora de atividade: pseudopólipos + alteração vascular da submucosa.
Medicações antidiarreicas como loperamida e difenoxilato devem ser utilizadas judiciosamente, pois possuem potencial aditivo, muito embora este possa ser bastante lento. Ambas ajudam a controlar a diarreia do paciente, mas o tenesmo e a urgência podem persistir. O uso de enemas de cortisona ou beladona e de supositórios de ópio ajudam a aliviar alguns desses sintomas. No processo agudo intenso, o uso de medicações antidiarreicas e de narcóticos deve ser ainda mais judicioso, visto existirem evidências de que elas podem precipitar a dilatação tóxica do cólon. Se na colite ulcerativa as fezes continuarem líquidas, agentes formadores de massa, como o psyllium, ajudam o paciente a controlar melhor a evacuação. Nos casos de doença crônica com atividade contínua ou com exacerbação leve, o tratamento dietético do paciente é importante. Não existem evidências de que alergia alimentar seja responsável pela etiologia da colite ulcerativa. Entretanto, existe uma alta incidência de intolerância à lactose e a derivados do leite na fase aguda que, portanto, devem ser abolidos. Devem ser evitados outros alimentos que produzam alterações gastrointestinais. Em casos de períodos prolongados de anorexia e atividade da doença, pode ser necessária a utilização de nutrição enteral elementar e parenteral.
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Nutrição enteral elementar e parenteral No curso evolutivo da RCUI, há duas indicações principais para a utilização da nutrição enteral. A primeira delas é quando há a necessidade de um completo repouso intestinal, durante o tratamento clínico de uma fase de exacerbação da moléstia, pois a alimentação enteral mantém um aporte nutricional adequado. Com a administração correta de calorias e aminoácidos, há melhora acentuada no peso corporal, nos níveis de proteínas séricas e no balanço nitrogenado. Essa melhoria do estado nutricional não se correlaciona necessariamente com uma redução da atividade da doença. Outra indicação para o seu emprego é no preparo pré-operatório em paciente com mau estado geral. A nutrição parenteral é utilizada na RCUI quando há suboclusão crônica do intestino grosso, não passível de tratamento cirúrgico, e nos casos em que a alimentação enteral provoca diarreia incontrolável.
A nutrição parenteral é frequentemente malsucedida como tratamento de fístulas digestivas secundárias à doença inflamatória.
Nutrientes A ação que a betaoxidação de ácidos graxos de cadeia curta, realizada pela mucosa cólica, possa ter na patogênese da RCUI tem levado à utilização de enemas desses nutrientes no tratamento da colite distal, em especial no processo inflamatório que pode ocorrer nas bolsas intestinais utilizadas para a reconstrução do trânsito intestinal após a proctocolectomia total, denominadas de “bolsites”, do inglês pouchitis. Na doença resistente ao tratamento rotineiro, induz à melhora clínica, endoscópica e histológica. A glutamina, nutriente dos enterócitos, estimula a proliferação e a reparação celular e tem ação benéfica na recuperação da mucosa intestinal dos pacientes com RCUI. É também utilizada no tratamento das “bolsites”.
DII
Consegue atingir 60% das necessidades por via oral?
Sim
Dietas poliméricas por via oral
Não
Nutrição parenteral nos casos em que a nutrição enteral não é possível
Nutrição enteral (sonda nasogástrica, enteral, gastrostomia, jejunostomia) – poliméricas – oligoméricas – monoméricas
Figura 10.14 Sugestão de algoritmo para indicação da terapia nutricional na doença inflamatória intestinal (DII).
Indução da remissão Os corticosteroides são usados para induzir a remissão e tratar as complicações da colite ulcerativa, quando
então a dose deve ser reduzida (não são eficazes para manutenção). A dose de prednisona varia de acordo com a gravidade da doença, 40-60 mg a 60-80 mg/dia na dilatação tóxica. Na doença menos intensa, 20-40 mg são adequados. A dose total é fracionada para que se obtenha uma elevação mais prolongada dos níveis sanguíneos. Se houver apenas proctossigmoidite, o esteroide deve ser administrado sob a forma de enema de retenção. O uso de corticoides requer monitorização cuidadosa tanto na fase aguda quanto na crônica. Na doença aguda severa, deve-se fazer observação cuidadosa e considerar o tratamento cirúrgico se houver ausência de melhora ou ocorrer piora clínica.
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106 Coloproctologia Os efeitos da droga, consequentemente, são multifatoriais, e os corticoides suprimem reações imunológicas específicas e inespecíficas. Suas propriedades anti-inflamatórias são devidas, na maioria das vezes, aos efeitos inibidores, reduzindo a expressão e a meia-vida do RNA mensageiro específico (mRNA) responsável pela regulação da síntese e liberação de citocinas pelas células inflamatórias. Elas suprimem os eventos inflamatórios iniciais, como vasodilatação e permeabilidade vascular aumentada, portanto, reduzindo todos os mecanismos patogenéticos da inflamação da mucosa do sistema digestório. Seu mecanismo de ação específico na RCUI é complexo e envolve o estímulo à liberação de granulócitos da medula óssea, alterando a permeabilidade capilar e a quimiotaxia, reduzindo os linfócitos T e B, produzindo linfopenia e diminuindo o número de linfócitos nos sítios do processo inflamatório. Reduz também a produção de antígenos e imunoglobulinas específicas. Os glicocorticoides com atividade anti-inflamatória incluem a hidrocortisona, primariamente endógena, e as substâncias exógenas como a prednisona, prednisolona e metilprednisolona. São as drogas mais eficazes para o tratamento da fase ativa, em especial a forma grave da RCUI, independentemente da localização das lesões no cólon. A beclometasona e o metassulfabenzoato de prednisolona, quando usados na forma de enema de retenção, são efetivos no tratamento da colite distal ativa, e têm a vantagem de apresentar menos efeitos colaterais sistêmicos. Na doença ativa de pequena a média gravidade pode se utilizar a sulfassalazina ou aminosalicilato. Devem ser inicialmente prescritos na dose de 500 mg de 12/12 horas até uma dose máxima de 4 a 6 g/dia até obtenção de resposta Terapêutica de indução da remissão na RCUI de acordo com a severidade da doença Doença leve Doença moderada Doença grave 5-aminosalicilato tópico (colite distal) 5-aminosalicilato tópico Oral (distal/colite extensa) Glicocorticoide IV (colite distal) Combinação glicocorticoide tópico Ciclosporina IV Oral (colite extensa) (distal) oral (distal/extensa)* Infliximabe IV Combinação tópico e oral Combinação azatioprina ou 6-mercaptopurina Tabela 10.14 (*) A associação de corticosteroide pelas vias oral e tópica mostra maior eficacia do que sua ação isolada.
Depois que a remissão da fase aguda é obtida, inicia-se a redução dos corticoides. Frequentemente, muitos pacientes são controlados com doses diárias de 10 a 15 mg, porém reduções adicionais podem resultar em novo surto dos sintomas. Com relação àqueles pacientes para os quais a dose pode ser reduzida ainda mais, como 10 mg/dia ou menos, é questionável se os esteroides são benéficos. Se o paciente suportar a retirada total dos esteroides, essa conduta é preferível. A sulfassalazina consiste de um salicilato e de uma sulfa, a sulfapiridina, que é metabolizada no intestino grosso. O salicilato (5-ASA) tem ação anti-inflamatória e é importante na manutenção da remissão, tendo sido postulado que ele também possui um efeito antiprostaglandínico. A sulfapiridina não tem nenhum efeito sobre a doença, sendo usada apenas como meio de transporte do salicilato. HOOC N=N
HO
SO2 NH
Sulfassalazina (SSZ)
N
HOOC HO
NH2
H2N
SO2 NH N
5-aminosalicílico (5-ASA)
Sulfapiridina (SP)
Figura 10.15 Sulfassalazina e seus derivados.
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107 10 Retocolite ulcerativa inespecífica (RCU) A dose de ataque é de 3-4 g/dia fracionada em 3 - 4 g/dia fracionada em três a quatro tomadas. Na fase de manutenção, dose igual ou inferior a 2 g/dia. Deve ser administrada sempre com ácido folímico. Na manutenção geralmente o uso se faz po 3-4 anos. Efeitos adversos (20-30% dos casos): componente sulfamídio da molécula é responsável por errupção cutânea, cefaleia, intolerância gástrica, náuseas, hepatotoxicidade,hemólise (deficiência de GGPD), agraculocitose, azospernia e deficiência de folato. O 5-ASA (ácido 5-aminossalicílico ou mesalazina) é a parte ativa da sulfassalazina. A mesalazina
é o nome genérico da 5-ASA, que apresenta revestimento ou liberação lenta, de modo que grande parte do produto é liberada no cólon. Como a maioria dos efeitos colaterais da sulfassalazina deve-se à sulfa, foram fabricadas preparações de 5-ASA puro na forma de enema de retenção, supositórios ou comprimidos de liberação lenta. 5-ASA em cápsulas de Eudragit-S® uma resina acólica que se dissolve a um pH de 7 ou mais é recomandada para ileocólite de Crohn e obviamente RCU. A dose ideal é de 4,8 g/dia de mesclazina de liberação retardada em paciente com atividade moderada de RCU. A dose de manutenção é de 1,6 g/dia. A balsalazida e a olsalazina são outros fármacos da mesma família, sendo que a olsalazina só é recomendada para manutenção. Formas leves de RCU bom padrão de proctite ou proctosignoridite são bem tratadas com mesalazina tópiza, por via retal (supositórios e espumas, duas a três aplicações/dia). A associação mesalazina oral e tópica fica reservada para pacientes com grande número de evacuações. Terapêutica de manutenção Droga Uso Tópico (distal) 5-aminosalicílico oral (distal/extensivo) Azatioprina ou 6-mercaptoOral purina Tabela 10.15 Classificação dos aminosalicilatos pH dependen- Mesacol (Asacol); Asalit; Mesasal; Clates versal; Salofalk; Rowasa Microesferas Pentasa Sulfassalazina; Olsalazina; Balsalazina; Pró-drogas lplaazina Ácido N-acetil-5-aminosalicílico Outros Ácido 4-aminosalicílico Tabela 10.16
Principais mecanismos de ação da mesalazina 1. Inibição da produção de prostaglandinas e leucotrienos. 2. Bloqueio dos metabólitos do ácido araquidônico. 3. Neutralização de radicais livres de oxigênio. 4. Inibição da formação de fatores de ativação plaquetária e de necrose tumoral. 5. Bloqueio da quimiotaxia das leucócitos, impedindo a ativação de enzimas lisossômicas. 6. Bloqueio da produção de anticorpos pelas células mononucleares intestinais e sanguíneas. Tabela 10.17
A ciclosporina (CyA) endovenosa mostra-se uma alternativa no tratamento de colite ulcerativa grave que não tenha apresentado resposta aos corticosteroides pela via parenteral, incluídos os candidatos à colectomia por intratabilidade ou megacólon tóxico. Sua eficácia na DC é limitada. Seu principal mecanismo de ação é a redução na produção de interleucina-2 (IL-2) pelas células T auxiliadoras (T-helper). A dose diária recomendada é de 4 a 7 mg/kg de peso, diluída em 500 ou 1.000 mL de solução glicosada, em infusão contínua. É esperada melhora clínica já na primeira semana, embora o pico de ação desse fármaco deva ocorrer após o sétimo dia de tratamento. Sugere-se iniciar com 4 mg/kg, mas há experimento que considera 2 mg/kg a dose adequada para adultos, com eficácia comparável, ajustada, se necessário, com base nas medidas da ciclosporinemia, para avaliação do seu nível sérico eficaz (350 a 500 ng/mL, utilizando-se anticorpo monoclonal, e 600 ng/mL com anticorpo policlonal). Ressalte-se que a dose reduzida poderá falhar naqueles que não responderam à corticoterapia endovenosa. O tratamento da DC com CyA não tem o mesmo sucesso relatado para a RCU. Os efeitos adversos podem ser identificados na tabela. A azatioprina/6-mercaptopurina tem sua indicação na DII nas circunstâncias de má resposta a anti-inflamatórios específicos, refratariedade ou dependência aos corticosteroides ou recorrência precoce dos sintomas após suspensão do uso (menos de três meses). Diferentemente do consenso sobre a importância dos derivados tiopurínicos na DC, de cuja ação sistêmica se espera que atinja todas as áreas inflamadas seja qual for a sua localização anatômica, sua eficácia no tratamento da RCU continua em questionamento, ainda que na prática seja uma alternativa utilizada nas fases de indução e de manutenção da remissão dessa inflamação, com resultados superiores aos obtidos com placebo. Recomenda-se, assim, a AZA ou a 6-MP nos pacientes com colite ulcerativa e DC, em qualquer estágio do processo inflamatório, nos quais não se consegue manter o controle sintomático sem a associação com esteroides ou que venham a necessitar deles novamente no intervalo de um ano.
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108 Coloproctologia As doses diárias de AZA e de 6-MP são calculadas de acordo com o peso do paciente na proporção de 2 a 3 mg/kg e 1 a 1,5 mg/kg, respectivamente, iniciando-se com 50 mg/dia, para ambas as substâncias e aumentando-as a cada duas semanas, até as quantidades preconizadas. Em virtude de sua mielotoxicidade, impõe-se um controle hematológico na fase de ajuste da dose, no mínimo quinzenal, para identificação de possível leucopenia de risco abaixo de 3.000 leucócitos totais/mm3. Atingida a dose de estabilidade, recomendam-se novos controles sanguíneos pelo menos a cada três meses, inclusive a medida das enzimas hepáticas.
Tratamento da retocolite ulcerativa em relação à intensidade de seu quadro clínico Forma leve Mesalazina oral retal (dose 800 a 1.600 mg/dia) ou Sulfassalazina oral (dose 2 a 4 g/dia) Forma moderada Mesalazina oral/retal (dose 1.600 a 3.200 mg/dia) ou Sulfassalazina oral (dose 4 a 6 g/dia) Associado a glicocorticoide oral (40 a 60 mg/dia) Resistência ao tratamento: imunomodulador oral (50 a 100 mg/dia)
Além da depressão medular, efeitos sistêmicos pelo uso de AZA e de 6-MP exigem atenção médica: pancreatite aguda, erupção cutânea, febre artralgias, mialgias, toxicidade hepática e infecções, que podem determinar a suspensão definitiva do uso. A AZA ou a 6-MP associadas a corticosteroides aumentam os riscos de infecções, especialmente a disseminação da citomegalovirose e estrongiloidíase. Podem ocorrer também quadros de herpes-zoster, pneumonias, abscesso hepático e colite por citomegalovírus (CMV).
Hospitalização; Glicocorticoide IV (100 mg – 6/6 h); antimicrobianos e heparinização Resistência ao tratamento: ciclosporina IV (5 mg/kg/dia) ou cirurgia
Forma grave
RCU em remissão Mesalazina oral/retal (400 a 800 mg/dia) ou Sulfassalazina oral (1 a 2 g/dia) ou Imunomodulador oral (50 mg/dia) Tabela 10.18 Efeitos adversos da sulfassalazina e 5-aminosalicilato
Biológicos
Dose dependente
São anticorpos monoclonais eficazes em induzir e manter a remissão em pacientes portadores de DII. Do grupo anti-TNF-α, infliximabe (Remicade, Centocor, Malvern), é o de maior experiência na RCU. Em portadores de colite moderada a greve em que a terapêutica com 5-ASA ou azatioprina/ 6-mercaptopurina falhou, o infliximabe nas mesmas posologias descritas na DC foi capaz de induzir remissão e manutenção nessa populações. As drogas anti-integrinas (natalizumabe e vedolizumabe) devem ser consideradas potentes anti-inflamatórios com aplicação prática para DC, não se tendo no momento grandes estudos na RCU. Vale a pena rever este tópico no capítulo de Doença de Crohn, apostila de Cirurgia do Intestino Delgado. O tratamento com probióticos, constituído pela ad-
ministração de altas concentrações de bactérias não patogênicas (Lactobacillus, Bifidobacterium, Saccharomyces boulardii, Streptococcus salivarius) que modificarão a flora intestinal, substituindo as cepas mais agressivas e reduzindo a agressão antigênica oriunda das bactérias patogênicas, tem obtido resultados animadores, tanto em pacientes com RCUI, como em portadores da doença de Crohn. No entanto, essa alternativa de tratamento das DII ainda carece de mais estudos, antes que possa ter seu papel definitivamente estabelecido.
Não relacionadas à dose
Hipersensibilidade cutânea/ fotossensibilidade Náuseas, vômitos e Artralgia dispepsia Anemia hemolítica (Def. de G6PD) Anorexia Anemia aplásica Pancreatite Alopecia Hepatite Dor abdominal Infertilidade (sulfassalazina) Má absorção de folato Alveolite fibrosante, (anemia megalobláspneumopatia eosinofílica tica) Pericardite Miocardite Tabela 10.19 Efeitos adversos do corticoide lplaazina Hipocalemia Retenção hídrica HAS Hiperglicemia Hiperlipidemia Gastrointestinal Dispepsia Disfagia (candidíase)
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Endócrino Diabetes Aspecto cushingoide Insuficiência adrenal Retardo do crescimento (crianças) Neurológico Depressão Insônia Ansiedade Psicose
109 10 Retocolite ulcerativa inespecífica (RCU) Efeitos adversos do corticoide Dermatológico Estrias Acne Púrpura/equimoses
Imunológico
quando necessário. A gestação deve ser tratada como se a colite ulcerativa não estivesse presente, e a colite ulcerativa, como se a gestação não existisse.
Predisposição às infecções Tabela 10.20
Colite fulminante
Efeitos adversos da azatioprina e 6-mercaptopurina Supressão da medula óssea Pancreatite Diarreia, dor abdominal, náuseas Febre, rush e artralgia Alterações dos testes de função hepática Infecções Linfoma Tabela 10.21 Efeitos adversos da ciclosporina HAS Insuficiência renal Anormalidades eletrolíticas Hirsutismo Hiperplasia gengival Parestesias Hepatotoxicidade Anafilaxia Infecções oportunistas Tabela 10.22
Colite ulcerativa na criança
A colite fulminante, associada ou não à dilatação do cólon, é considerada uma complicação potencialmente letal tanto da colite ulcerativa como da colite de Crohn. Os resultados do tratamento da colite fulminante ainda são desapontadores, embora a mortalidade e a morbidade tenham diminuído na última década. O tratamento intensivo com esteroides, suporte nutricional, antibióticos e reposição hidroeletrolítica contribuiu para essa melhora. Os tratamentos clínico e cirúrgico desses pacientes extremamente graves ainda apresentam problemas. A colite fulminante associada com dilatação do cólon, também denominada “megacólon tóxico” ou “dilatação tóxica”, não deve ser vista como sinônimo de colite aguda fulminante sem megacólon, quando se discute o tratamento cirúrgico. Colite fulminante Ocorre na retocolite ulcerativa e na doença de Crohn do cólon Diarreia > 6 evacuações ao dia, com ou sem sangramento retal Taquicardia, febre, palidez cutaneomucosa, anemia, desidratação, hipotensão arterial Leucocitose (com desvio à esquerda), elevação da velocidade de hemossedimentação e do título de proteína C reativa
Tabela 10.23
A colite ulcerativa na criança tem características similares às do adulto. Entretanto, existem características peculiares a esse grupo etário que precisam ser reconhecidas. Surgem dois problemas: retardo no crescimento em razão da presença de doença crônica e o risco de subsequente desenvolvimento de câncer de cólon.
Durante o curso da colite fulminante, certas situações são indicativas de cirurgia: 1. deterioração evidente do estado geral; 2. presença de choque endotóxico; 3. dor abdominal severa localizada;
Colite ulcerativa na gestante
4. perfuração livre ou peritonite generalizada; e 5. estado tóxico associado com hemorragia maciça.
Os corticosteroides e a sulfassalazina não aumentam a morbidade e a mortalidade fetais, e, portanto, o seu uso isolado ou associado está indicado
Nas situações em que não existe indicação absoluta de cirurgia, como acima, a observação e o tratamento clínico contínuos são apropriados enquanto o paciente estiver apresentando melhora.
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110 Coloproctologia Terapêutica na colite fulminante e megacólon tóxico 1. Dieta zero 2. Nutrição parenteral 3. Reposição hidroeletrolítica 4. Hemotransfusão se necessária 5. Reposição de albumina humana a 20% 6. Vitamina K caso INR alargado 7. Antibióticos: aminoglicosídeo + metronidazol 8. Corticoide endovenoso: hidrocortisona 150 mg de 6/6 horas 9. Ciclosporina 4 mg/kg/dia EV em infusão contínua caso não haja melhora clínica com o item 8 10. Butilescopolamina 100-200 mg/dia para alívio de dor abdominal. Evitar opiáceos e medicações antidiarreicas Obs.: qualquer sinal de deterioração enquanto o paciente estiver sob tratamento clínico adequado deve influenciar decisivamente na indicação cirúrgica. Tabela 10.24
A hemorragia maciça é rara na RCU, mas corresponde a cerca de 10% das indicações de cirurgia de urgência nesta população. Se não houver melhora em 48 a 72 horas ou se forem necessários mais de quatro unidades de concentrado de hemácias em 24 horas, a cirurgia deverá ser realizada. O procedimento cirúrgico padrão é colectomia + ilestomia + fechamento do coto retal ou fístula mucosa. Este procedimento apresenta menor taxa de mortalidade (4%) quando comparado à protocolectomia com ilestomia à Brooke, cuja taxa de mortalidade é de 11%. Diante de hemorragia incontrolavel e/ou gravidade do caso, a proctocolectomia com ileostomia definitiva é a alternativa cirúrgica mais adequada.
Cirurgia eletiva Tratamento de manutenção O arsenal terapêutico usado para manutenção da remissão na RCUI incluem: sulfassalazina, 5-ASA, imunossupressores como azatioprina/6-mercaptopurina e anti-TNF-α, em particular o infliximabe.
Cirurgia na RCUI Cirurgia na urgência Corresponde a menos de 10% de todas as cirurgias para RCU. Indicações: megacólon tóxico/ colite fulminante; perfuração e hemorragia maciça não controlável e obstrução por câncer. As medidas iniciais para megacólon tóxico/ colite fulminante são de intensivismo acrescido de corticoide intravenoso e anti-TNF-α. Pacientes que deterioriam o quadro clínico ou aqueles que se mantém com mais de 8 avacuações/dia e PCR > 45 mg/dL são altamente de risco para um desfecho cirúrgico. Vale frisar que o principal determinante para o melhor momento cirúrgico é a não resposta clínica às medidas agressivas. A perfuração é consequência da colite fulminante e/ou megacólon tóxico. Independente de ser livre ou bloqueada é uma complicação grave que requer indicação cirúrgica (taxa de mortalidade de 27 a 57% dos casos).
Os diversos estudos mostram que cerca de 25% dos portadores de RCU são operados em decorrência de sintomas ou complicações da doença. Mais de 90% dos pacientes que necessitam de cirurgia são operados em caráter eletivo. A intratabilidade clínica é a principal indicação e que deve ser compreendida como pacientes que não tem controle clínico da sua doença e/ ou aqueles que tem controle mas às custas de excessivos efeitos colaterais a médio e longo prazo. Câncer, displasia de alto grau, DALM (displasia associada a lesões e massas), retardo do crescimento, manifestações extraintestinais intensas e estenose endoscópica ou radiológica (estenoses ocorrem em 5 a 10% dos pacientes e 20 a 25% são de natureza maligna) são outras indicações de tratamento cirúrgico. A via laparoscópica é a de eleição para cirurgias eletivas, devendo-se respeitar o tempo de treinamento e o volume de casos operados. Os melhores resultados estão condicionados a essas prerogativas. O procedimento cirúrgico de eleição é a protocolectomia total com bolsa ileal e anastomose ileonal, que possibilita a preservação do trânsito intestinal com o mecanismo esfincteriano. A mortalidade perioperatória varia de 0,2% a 1%. Atualmente, a proctocolectomia total com ileostomia definitiva (no passado era a cirurgia padrão-ano) é uma opção apenas em condições específicas que incluem: 1. Lesão importante da musculatura esficteriana anorretal. 2. Câncer de reto distal.
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111 10 Retocolite ulcerativa inespecífica (RCU) 3. Dificuldade técnica para se levar a bolsa ileal ao períneo. 4. Recusa do paciente de se submeter à colocação da bolsa ileal. As complicações relacionadas ao procedimento cirúrgico incluem: Deiscência da anastomose (5%-10%), fístula da bolsa ileal para a vagina (3% a 16%), bolsite (23 a 46% num período de 10 a 12 anos após a cirurgia). O risco de câncer no reto distal (risco muito baixo) pode estabelecer vigilância anual com anuscopia; mais raro ainda é o aparecimento de câncer na bolsa ileal. Obstrução intestinal pode ocorrer em até 25% dos casos ao longo dos primeiros anos após a cirurgia. Aproximadamente 1/3 desses pacientes requer tratamento cirúrgico. Vale destacar alguns aspectos funcionais relevantes associados à protocolectomia total com anastomose ileoanal e bolsa ileal: nos primeiros meses várias evacuações/dia que podem chegar a 10 a 15 vezes/dia; progressivamente observa-se adequação do número de evacuação. A perda insensível de gazes e fezes (soiling) observada em até 40% dos casos e que melhora progressivamente ao longo de até três anos após a cirurgia. Disfunção erétil (5-10% dos casos) que pode ser evitada ao respeitar-se os cuidados técnicos como dissecar o mesorreto próximo ao reto e preservação dos nervos hipogástricos ao longo de todo o seu trajeto.
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