A ST R O AM
R1 PLENO MATERIAL DIDÁTICO
CAPÍTULO
10
Hérnias
Definição Consiste na protrusão anormal de um saco com revestimento peritoneal, através da cobertura musculoaponeurótica do abdome. A fraqueza da
parede abdominal, de origem congênita ou adquirida, resulta na incapacidade de manter o conteúdo visceral da cavidade abdominal em seus locais normais.
Pontos anatômicos de importância Anel inguinal externo – defeito medial no oblíquo
externo, acima do tubérculo pubiano que dá passagem do cordão espermático ao escroto.
Anel inguinal interno – defeito na fascia transversalis e aponeurose do TA, a meio caminho entre o púbis e a espinha ilíaca anterossuperior.
Ligamento de Cooper – é uma faixa fibrosa, resistente, que se estende lateralmente por cerca de 2,5 cm ao longo da linha iliopectínea, na face superior do ramo pubiano superior, tendo início na base lateral do ligamento lacunar. Ligamento inguinal (ligamento de Poupart) – porção mais grossa e inferior da aponeurose do oblíquo externo. Ligamento lacunar (Gimbernat) – possui cerca de 1,25 cm de comprimento e tem a forma triangular. A borda lateral aguda, semilunar, deste ligamento é a armadilha inflexível para o estrangulamento de uma hérnia femoral.
Ligamento de Henle – situado no nível da borda lateral do músculo reto do abdome, formando limite medial do anel femoral. Espaço pré-peritoneal – entre a fascia transversalis e o peritônio. Fascia transversalis – lâmina que recobre o músculo transverso do abdome e sua aponeurose. Separa a parede abdominal da gordura pré-peritoneal.
Trígono de Hesselbach – delimitado pela artéria epigástrica inferior, borda lateral do reto abdominal e ligamento inguinal.
Trato iliopúbico – banda aponeurótica dentro da lâmina do transverso do abdome, que faz uma ponte entre os vasos ileofemorais externos do arco iliopectíneo até o ramo superior do púbis. O trato iliopúbico é posterior ao ligamento inguinal. Ele passa por cima dos vasos femorais e compõe uma porção da bainha femoral. Variações no trato iliopúbico podem causar a formação da hérnia femoral.
Trígono de Hessert – delimitado pelo ligamento inguinal, vasos epigástricos e oblíquos internos.
Fáscia de Camper – localizada abaixo da pele é a fáscia superficial.
Tendão conjunto – fusão das fibras aponeuróticas do oblíquo interno e transverso. Ocorre em menos de 10% das dissecções.
156 Cirurgia geral e politrauma Fáscia de Scarpa – localizada abaixo da fáscia de Camper; é mais espessa e dirige-se à região escrotal, onde forma a fáscia de Dartos.
Triângulo de Doom (triângulo vascular) – delimitado pelo ducto deferente medialmente e os vasos espermáticos lateralmente contendo a veia e artéria ilíaca externa. Funículo espermático – contém: músculo cremáster, ducto deferente, veia plexo pampiniforme, ramo genital do nervo genitofemoral, artérias e veias testiculares, nervo ilioinguinal. Na mulher, não existe funículo espermático; o que se tem é o ligamento redondo. Estrutura herniária básica Orifício herniário Saco herniário Colo do saco herniário Conteúdo do saco herniário
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Figura 10.1 Estrutura herniária básica. (1) Desenho esquemático mostrando a pele; (2) a parede do saco herniário; (3) a cavidade do saco herniário; (4) o conteúdo do saco herniário; (5) o colo do saco herniário e o orifício herniário; (6) o peritônio parietal; (7) a cavidade peritoneal; e (8) e o plano muscular. Colo é a parte mais estreita do saco herniário. Orifício herniário é o espaço que, originado no ponto fraco, permite a saída de estrutura intra-abdominal.
Músculo Reto Triângulo de Hesselbach (1814)
Triângulo de Hesselbach (hoje) Artéria epigástrica profunda
Ligamento inguinal Músculo iliopsoas
Artéria femoral Veia femoral Ligamento pectíneo (de Cooper) Ligamento lacunar
Figura 10.2 O triângulo de Hesselbach segundo a descrição original (à esquerda) e segundo a descrição atual.
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10 Músculo oblíquo externo
157 Hérnias
Músculo transverso abdominal Fascia transversalis (lâmina posterior) Artéria e veia epigástrica transversal Fascia transversalis (lâmina posterior) Anel inguinal secundário
Músculo oblíquo interno
Canal inguinal interno Anel abdominal interno
Canal inguinal
Artéria e veia ilíaca externa
Trato iliopúbico
Figura 10.3 Diagrama parassagital clássico de Nyhus da região médio-inguinal direita ilustrando as camadas musculoaponeuróticas separadas nas paredes anterior e posterior. A lâmina posterior da fascia transversalis foi adicionada, com os vasos epigástricos inferiores cursando através da parede abdominal medialmente ao canal inguinal interno.
Área de hérnia direta Área de hérnia indireta
Anel inguinal interno
Tubérculo púbico
V. E. I.
Borda do ligamento inguinal
T. I. P. Ligamento de Cooper
V. G.
Canal femoral V. I. E. D. D.
Figura 10.4 Anatomia das estruturas pré-peritoneais importantes no espaço inguinal direito. VEi: vasos epigástricos inferiores; TIP: trato iliopúbico; DD: ducto deferente; VG: vasos gonadais; e VIS: vasos ilíacos externos.
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158 Cirurgia geral e politrauma Na verdade, muito se escreveu da anatomia sobre a hérnia, mas foi somente a partir do fim da década de 1950 que, graças a Henry Fruchaud, entendeu-se o conceito de região inguinocrural, determinando uma área chamada orifício miopectíneo, limitada cranialmente pelos músculos transverso e oblíquo interno, medialmente pelo músculo reto do abdome, lateralmente pelo músculo iliopsoas, e caudalmente pelo ligamento pectíneo, que recobre o ramo superior do púbis.
Figura 10.5 Ponto fraco da parede abdominal. Em 1, a fosseta inguinal lateral, mostrando o funículo espermático, o qual se relaciona com o anel inguinal profundo; em 2, a fosseta inguinal média.
Figura 10.8 A musculatura posterior do trígono inguinal e a fáscia transversal. 1: Músculo reto do abdome; 2: músculo transverso; 3: trato iliopúbico; 4: músculo iliopsoas; 5: ligamento pectíneo; e 6: forame obturatório.
Figura 10.6 Ponto fraco da parede abdominal. Observa-se o triângulo ou quadrilátero de Grynfeltt (1), cuja nomenclatura oficial é trígono lombar superior, e um vaso local (2), que debilita mais ainda a região.
A hérnia inguinal do adulto, principalmente a partir da década de 1980, não é mais entendida como simples artefato mecânico, em que uma solução de continuidade ocorre na parede abdominal, mas é a patologia que ocorre à luz de conceitos de biologia celular e molecular com alterações moleculares do colágeno e das fibras elásticas integrantes da matriz extracelular, componente soberano da fáscia transversal. Esta concepção atual agora justifica a associação de hérnias com doenças como: tabagismo, sobrepeso, prostatismo, emagrecimento acentuado, aterosclerose, afecções que podem acompanhar a doença herniária inguinal.
Incidência e prevalência
Figura 10.7 Ponto fraco da parede abdominal. Notam-se: hérnia lombar superior (1, Grynfeltt), trígono lombar inferior (2) e hérnia lombar inferior (3, Petit).
Nomenclatura Incidência (%) Hérnias inguinofemorais 75 Hérnias umbilicais 10 Hérnias incisionais 10 Hérnias epigástricas 5 Hérnias de Spigel 5 Hérnias paraestomais 5 Tabela 10.1 Incidências das hérnias da parede abdominal.
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10 A distribuição epidemiológica aqui descrita se refere a doentes adultos, pois, se considerarmos toda a população, vale dizer, incluindo a faixa etária pediátrica, a hérnia inguinal atinge cifras de 83%. A hérnia inguinal representa 69% da doença herniária do adulto. A distribuição, segundo o sexo estabelece, 80% dos casos atingindo homens e 20% mulheres.
Quando analisamos a distribuição quanto à faixa etária, podemos afirmar que 35% das hérnias inguinais ocorrem entre os 20 e 40 anos e os 65% restantes estão distribuídos a partir dos 40 anos.
159 Hérnias
Indireta ou oblíqua externa – mais comum delas, principalmente em homens. Acontece pela persistência do conduto peritoniovaginal (CPV). Ocorre porque não há a obliteração do processo vaginal que é o caminho peritoneal que o testículo faz descendo até a bolsa escrotal. O saco herniário passa através do anel inguinal interno, em posição anteromedial dentro do funículo espermático, podendo estender-se ao longo do canal inguinal ou seguir para fora pelo anel inguinal externo. O saco herniário está lateral aos vasos epigástricos inferiores.
Quanto à topografia, em homens até os 40 anos, temos a predominância de hérnia inguinal à direita, com 65% dos casos, 28% à esquerda e 7% bilateral. Na mulher, nesta mesma faixa etária, 13% são bilaterais e as unilaterais são distribuídas homogeneamente à direita e à esquerda. Nos homens com idade superior a 40 anos, 40% são bilaterais e a distribuição unilateral, seja à direita ou à esquerda, se equivalem.
As hérnias crurais ou femorais (tipo V da classificação de Rodrigues Jr./Campanha Nacional do Mutirão de Hérnia Inguinal do Ministério da Saúde, 1999) são mais comuns na mulher do que no homem, na proporção de 4 para 1 e na faixa etária acima dos 40 anos. Ela também é duas vezes mais frequente à direita.
Quando analisamos pacientes portadores de hérnia inguinal com mais de 60 anos, representando cerca de 18% do total de doentes com hérnia inguinal, é mito não oferecer possibilidade de correção, pois a maioria apresenta indicação cirúrgica. Características das Hérnias Inguinais Diretas Indiretas Congênitas Adquiridas Homem jovem Homem mais idoso Aparece lentamente Aparece rapidamente Pode chegar à bolsa escrotal Raramente chega à bolsa escrotal Pode estrangular É muito raro estrangular Difícil a redução espontânea Redução espontânea Tabela 10.2 Características das hérnias inguinais, segundo fatores predisponentes. Atenção!
Classificação das hérnias Apesar de não existir consenso entre os cirurgiões sobre qual das classificações é a mais prática e acreditada, é aceito que as hérnias inguinais e crurais podem ser classificadas como uma única deficiência: o defeito da parede posterior.
Figura 10.9
Volumosa hérnia inguinoescrotal.
Direta ou oblíqua interna – resulta do enfra-
quecimento da parede posterior (fascia transversalis). Tem como local de menor resistência a fosseta peritoneal média. O saco herniário é medial aos vasos epigástricos inferiores, através do trígono de Hesselbach. Por isso, a hérnia direta é chamada hérnia do trígono de Hesselbach. O saco peritoneal se desenvolve perpendicularmente à parede abdominal. Qualquer condição que demande muito esforço muscular e/ou aumento de pressão abdominal pode resultar em hérnia direta: obesidade, ascite e atrofia dos músculos abdominais por velhice. Mista ou Pantaloon – coexiste hérnia direta e indireta. Femoral – saco herniário passa por trás do ligamento inguinal e insinua-se por meio do anel femoral, por dentro da bainha dos vasos femorais. Das hérnias estranguladas, a femoral é de grande frequência e, ainda, pode ocorrer com hérnia de Richter. Hérnia de deslizamento – parte da parede do
saco é a própria víscera (cólon, bexiga etc.). De acordo com a classificação proposta por Nyhus (1991) podemos dividir as hérnias da região inguinofemoral em quatro tipos (Tabela 10.3).
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160 Cirurgia geral e politrauma Classificação de Nyhus I – Hérnia indireta sem alargamento do anel interno (por exemplo, hérnia na criança). II – Hérnia indireta com alargamento do anel interno, mas parede posterior intacta e vasos epigástricos na posição anatômica esperada. III – Defeitos da parede posterior. IIIA – Hérnia direta. IIIB – Hérnia indireta – anel interno dilatado com destruição medial da fáscia transversalis. Por exemplo, inguinoescrotais, pantaloon, hérnias de deslizamento. IIIC – Hérnia femoral. IV – Hérnias recidivadas*. IVA – Direta. IVB – Indireta. IVC – Femoral. IVD – Combinação de A, B e C. Tabela 10.3 Atenção! *IV A: hérnia direta; IV B: Hérnia indireta; IV C: hérnia femoral; e IV D: hérnia mista.
Outra classificação utilizada na prática cirúrgica é a idealizada por Junqueira Rodrigues Jr. Classificação de Junqueira Rodrigues Jr. Tipo 1 Presença de saco herniário lateral aos vasos epigástricos profundos. Anel inguinal profundo < 1 cm. Assoalho do canal inguinal íntegro e resistente (hérnia do jovem). Tipo 2 Presença de saco herniário lateral aos vasos epigástricos profundos. Anel inguinal profundo “pátulo” > 2,5 cm. Assoalho do canal inguinal parcialmente alterado (hérnia do adulto/idoso). Tipo 3 Fraqueza do assoalho, em geral de natureza diverticular (hérnia do adulto/idoso). Tipo 4 Hérnia dupla ou “em pantalona” (hérnia do adulto/idoso). Tipo 5 Hérnia femoral. Pode ser redutível ou, em geral, encarcerada (ocorre com maior frequência em mulheres). Tabela 10.4 Classificação das hérnias inguinocrurais de Junqueira Rodrigues Jr. Classificação das hérnias externas Superiores Diafragmáticas Hérnia do hiato esofagiano. Anterior (Morgagni). Posterior (Bochdalech). Inferiores Perineais Isquiáticas. Posterio- Lombares Superior (Grynfeltt). res Inferior (Petit). Anteriores Epigástricas. Umbilicais. Inguinais. Femorais. Linha semilunar. Tabela 10.5 Classificação das hérnias externas.
De acordo com o tamanho do anel herniário, podem ser pequenos (< 1,5 cm), médias (1,5 a 3-4 cm) e grandes (> 3-4 cm ou duas polpas digitais).
Conforme o tamanho do saco herniário, as hérnias podem ser classificadas como restritas ao canal inguinal, situadas além do anel inguinal externo e, por último, na bolsa escrotal. As hérnias podem ser redutíveis ou irredutíveis (encarceradas). O estrangulamento é caracteri-
zado pela impossibilidade de redução associada à isquemia de seu conteúdo. Na hérnia de deslizamento, parte do saco herniário é constituída pela parede de alguma víscera intra-abdominal, mais frequentemente o cólon, seguido da bexiga.
Etiopatogenia Defeitos congênitos e adquiridos são responsáveis pela maioria das hérnias inguinais.
A persistência do processo vaginal é o fator primário que desencadeia o desenvolvimento de uma hérnia inguinal indireta. Prematuridade e baixo peso ao nascer são comprovadamente fatores de risco significativos. Anormalidades congênitas, como deformidades pélvicas ou extrofia da bexiga, podem causar
anormalidades do canal inguinal, resultando na formação de hérnias inguinais. Deformidades congênitas ou deficiências de colágeno podem proporcionar o aparecimento de hérnias
inguinais diretas. As hérnias diretas são atribuídas aos estresses e desgastes da vida. O esforço para urinar ou para defecar, tossir e levantar objetos pesados tem sido implicado como fator causal, provocando traumatismo e enfraquecimento do assoalho inguinal. Já se verificou que hérnias inguinais ocorrem mais amiúde em tabagistas do que em não tabagistas. Idade avançada e doenças crônicas são fatores de risco associados ao desenvolvimento de hérnias. Ati-
vidade física vigorosa e a prática de esportes também têm sido propostas como estresses crônicos que podem apresentar formação de hérnias.
Apresentação clínica e diagnóstica De modo geral, um paciente com hérnia inguinal queixa-se de um “caroço” na região inguinal. O paciente pode descrever dor discreta ou vago desconforto associado à protrusão abdominal. Às vezes, os pacientes queixam-se de parestesias relacionadas à irritação ou compressão de nervos inguinais pela hérnia.
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10 A área inguinal é examinada com o paciente de pé e de frente para o médico. A inspeção visual da virilha revela, com frequência, perda da simetria ou uma protrusão bem definida. Quando se pede ao paciente para tossir ou realizar a manobra de Valsalva, a protrusão acentua-se. A manobra de Landivar consiste na colocação da ponta dos dedos na parede abdominal sobre a região inguinal e pede-se ao paciente para repetir a manobra de Valsalva. A seguir, coloca-se a ponta de um dedo no canal inguinal, e a manobra de Valsalva é repetida. Uma protrusão que passa de uma posição lateral para uma medial contra a ponta do dedo é mais compatível com uma hérnia indireta. Já a protrusão que avança contra o dedo de uma posição profunda para uma superficial por meio do assoalho do canal é mais compatível com hérnia inguinal direta. A diferenciação entre hérnias diretas e indiretas, por ocasião do exame físico, não é essencial, porque os dois tipos podem ser reparados pela mesma abordagem. Uma protrusão abaixo do ligamento inguinal é compatível com uma hérnia femoral.
161 Hérnias
Hérnia irredutível ou encarcerada é a que se mantém em estado de protrusão crônica ou aquela que não pode ser reduzida mediante manipulação. Estrangulada é a hérnia encarcerada que apre-
senta comprometimento da vascularização do seu conteúdo, podendo evoluir para gangrena e perfuração. A ultrassonografia específica da parede abdominal na região inguinofemoral, com transdutores menores, tem sido cada vez mais utilizada para o diagnóstico de herniações, com sensibilidade de 90% e especificidade entre 82% e 86%. Para melhores resultados, o exame deve ser realizado com o paciente alternando situação de relaxamento muscular com manobra de Valsalva. A herniografia, realizada por injeção de contraste iodado na cavidade peritoneal, é pouco utilizada em nosso meio. Apesar de ser um exame simples e que pode evitar intervenções cirúrgicas desnecessárias em casos duvidosos, apresenta alguns inconvenientes, como dor abdominal após o contraste, risco de perfuração de vísceras e reações alérgicas. A tomografia computadorizada, por sua vez, é realizada para elucidação diagnóstica de massas, e o achado de hérnias acaba sendo incidental. Outra utilidade da tomografia é a mensuração do volume do conteúdo herniado nas grandes hérnias inguinoescrotais, bem como a identificação dos órgãos que possam estar herniados. A ressonância nuclear magnética, não constitui método habitual para diagnóstico de hérnias inguinais ou femorais. Apresenta, porém, sensibilidade e especificidade maiores que 95% para estabelecer o tipo de hérnia encontrado, se femoral ou inguinal.
Figura 10.10 Manobra de Landivar: Palpação para exame do orifício inguinal externo e avaliação da parede posterior.
A seguir, o paciente é examinado em decúbito dorsal, repetindo as etapas descritas para o exame em posição ortostática. Uma massa inguinal descrita pelo paciente, mas que não foi identificada no exame físico, pode tornar-se palpável ou visível após se fazer o paciente deambular ou ficar de pé por algum tempo. É incomum a necessidade de fazer o paciente retornar para um novo exame da região inguinal. A incapacidade de reduzir manualmente uma hérnia encarcerada exige intervenção cirúrgica imediata. A maioria das hérnias ocorre em homens. A hérnia mais comum em homens e mulheres é a hérnia inguinal indireta. Hérnia redutível é a hérnia cujo conteúdo regres-
sa espontaneamente ou mediante manipulação para a cavidade abdominal.
Tratamento cirúrgico das hérnias inguinais Indicação cirúrgica: após o diagnóstico Exceção: Paciente em estado terminal, imunossuprimido ou extremamente idoso estaria na categoria dos pacientes cuja correção cirúrgica pode ser postergada até a melhora das condições clínicas ou não ser operado.
A história natural da hérnia inguinal é de aumento progressivo e enfraquecimento, com o potencial de encarceramento e obstrução intestinal e subsequente comprometimento da irrigação vascular para o intestino (estrangulamento), resultando em infarto intestinal. As hérnias não desaparecem espontaneamente nem melhoram com o passar do tempo. A correção de uma hérnia inguinal pode ser planejada de maneira eletiva, a menos que exista encarceramento ou estrangulamento.
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162 Cirurgia geral e politrauma Fatores associados ao aumento da pressão intra-abdominal devem ser corrigidos ou atenuados, se possível, antes da herniorrafia eletiva, como prostatismo, tosse crônica ou constipação.
Antibioticoprofilaxia
do pênis e do escroto. O ramo genital do nervo genitofemoral inerva o grande lábio na mulher e a bolsa escrotal no homem.
Existem numerosas opções para reconstrução do assoalho inguinal; faremos uma descrição dos diversos procedimentos cirúrgicos. Resumem-se em três tempos fundamentais:
Apesar de a herniorrafia inguinal ser classificada como uma cirurgia limpa, vários estudos atestam a vantagem de antibioticoprofilaxia. O antibiótico de escolha é a cefazolina (dose única ou, no máximo, por 24 horas, se for usada prótese). O antibiótico deve ser administrado por via endovenosa na indução da anestesia.
cuidar dos elementos herniados, reconduzindo-os à cavidade de origem ou ressecando-os, quando necessário (caso haja necrose);
dissecção cuidadosa do saco herniário, seguida de ligadura e secção do mesmo;
correção do defeito anatômico que permitiu a formação herniária.
Anestesia As herniorrafias inguinais podem ser realizadas com anestesia local, espinhal (regional) ou geral. A seleção do tipo de anestesia depende de vários fatores, principalmente a idade e as condições gerais do paciente, a preferência do cirurgião e a técnica de herniorragia utilizada. Os agentes anestésicos mais utilizados para a anestesia local são a lidocaína e a bupivacaína, associadas ou não a vasoconstritores. A lidocaína
inicia sua ação mais rapidamente e sua duração habitualmente não excede duas horas, apresentando ações tóxicas com níveis séricos acima de 5 mg/L. A bupivacaína, por sua vez, inicia sua ação com um período de latência maior, sua duração é mais prolongada, alcançando até oito horas, e seu nível sérico limite é 1,6 mg/L. O uso de adrenalina diminui a absorção local dos anestésicos e permite que o seu tempo de ação seja prolongado. A concentração adequada de adre-
Figura 10.11 Hérnia inguinal indireta. Canal inguinal aberto evidenciando cordão espermático afastado medialmente e o saco peritoneal herniário indireto dissecado acima do nível do anel inguinal interno.
nalina para esse objetivo é de 1/200.000, acima da qual poderão aparecer efeitos colaterais. O desconforto referido durante a infiltração dos anestésicos locais pode ser reduzido com a adição de bicarbonato de sódio ou de solução salina isotônica à solução anestésica, visando à diminuição de sua acidez. Habitualmente com anestesia local, obtém-se 80 mL de solução de bupivacaína a 0,125% (dose total de 100 mg) e lidocaína a 0,5% (dose total de 400 mg) pela adição de 20 mL de bupivacaína 0,5% a 20 mL de lidocaína 2% e a 40 mL de soro fisiológico.
A correção da hérnia a céu aberto começa com uma incisão curvilínea a aproximadamente dois dedos transversos acima do ligamento inguinal. Deve-se ter cuidado para não lesar os nervos ilioinguinal e íleo-hipogástrico, que são responsáveis pela inervação da pele da porção inferior do abdome,
Figura 10.12 Hérnia inguinal direta. Canal inguinal aberto e o cordão espermático afastado para baixo e para fora para revelar a protuberância herniária por meio do assoalho do triângulo de Hesselbach.
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Técnicas de reconstrução da parede posterior do canal inguinal Técnica de Marcy Publicada por Henry Orlando Marcy, em 1871, no Boston Medical and Surgical Journal. Pode ser utilizada em hérnias inguinais indiretas isoladas ou associadas a hérnias diretas, com a técnica, neste caso, fazendo parte de um procedimento mais extenso. As indicações para o uso da técnica de Marcy são: lactentes e crianças com anéis internos dilatados (tipo II); pacientes jovens com PPCI (parede posterior do canal inguinal) preservada (tipo II); pacientes de meia-idade ou idosos com hérnias inguinais indiretas grandes ou com hérnia inguinal direta, nos quais o anel inguinal profundo está fechado, como parte de um procedimento mais extenso de reforço da PPCI (tipos IIIa e IIIb).
163 Hérnias
Correção de Shouldice (canadense) Após dissecção, a parede posterior da fascia transversalis é aberta e suturada “em jaquetão” por dois planos de sutura. A primeira sutura fixa a borda inferior da fáscia à face posterior do folheto superior, e a segunda fixa a borda inferior do folheto superior da fáscia ao ligamento inguinal. Um segundo reforço é feito pela aproximação do tendão conjunto, da borda inferior dos músculos oblíquo interno e transverso ao ligamento inguinal. Todos os planos são aproximados por suturas contínuas com fio monofilamentar; com esta técnica as recidivas herniárias ficam em torno de 1%. Desvantagens: elevado índice de recidiva, tensão excessiva na linha de sutura, aprendizado difícil. Atualmente, pouco utilizada no Brasil.
A técnica de Marcy pode ser realizada por via transabdominal, pré-peritoneal ou inguinal. Caracteriza-se pelo fechamento do anel inguinal profundo com estruturas pertencentes exclusivamente à PPCI, ou seja, o arco do músculo transverso do abdome e o trato iliopúbico. O resultado final desse procedimento preserva a mobilidade e a função protetora do anel profundo, ao contrário do que ocorre em técnicas nas quais o anel é fixado por pontos cirúrgicos ao ligamento inguinal, como nas técnicas de Bassini e de Zimmerman, por exemplo.
Técnica de Bassini (ligamento de Poupart) Originalmente consiste na aproximação do tendão conjunto e a borda dos músculos oblíquos internos e transversos ao ligamento inguinal de Poupart. A sutura se inicia no púbis e termina no anel interno. Corresponde ao método mais amplamente utilizado. O reparo de Halsted coloca o músculo oblíquo externo abaixo do cordão, mas de outra forma assemelha-se ao reparo de Bassini.
Figura 10.13 Técnica de Shouldice: exposição da parede posterior do canal inguinal e linha de incisão.
Como só 11% da população possui tendão conjunto, a técnica é também descrita da seguinte forma: aproximação do arco aponeurótico do transverso ao ligamento inguinal, com pontos separados de sutura inabsorvível. As principais indicações são: hérnias inguinais unilaterais ou bilaterais.
Desvantagens: elevado índice de recidiva, ao redor de 30%. Atualmente, praticamente abandonada, em função dos altos índices de recidiva.
Zimmerman (cinta iliopectínea) Sutura a fascia transversalis à cinta iliopectínea, iniciando-se no nível do púbis e terminando na borda do orifício interno, estreitando-o. Em desuso.
Figura 10.14 Técnica de Shouldice: abertura da parede posterior do canal inguinal, expondo o tecido adiposo pré-peritoneal, desde o anel inguinal profundo até o tubérculo púbico.
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164 Cirurgia geral e politrauma
Operação de Condon
Figura 10.15 Técnica de Shouldice: primeiro plano; sutura contínua iniciada no tubérculo púbico e terminando no anel inguinal profundo, unindo a borda livre do folheto inferolateral (IL) à face posterior do folheto superomedial.
Reparo anterior ao trato ileopectíneo. O reparo de Condon é feito mediante suturas separadas, a 5 a 7 mm de distância uma da outra, que unem a borda do transverso abdominal (tendão conjunto) ao trato iliopúbico. As suturas mais laterais ligam até o ânulo inguinal interno e logram seu fechamento medial; mas, além disso, o reparo total do ânulo efetua-se mediante a colocação de outras suturas laterais ao cordão espermático. Como em outros reparos, o ajuste do fechamento do ânulo é determinado pela ponta de uma pinça hemostática grande. Nesta técnica, é recomendada uma incisão de relaxamento no reparo das hérnias diretas.
Operação de McVay Esta técnica consiste na sutura do arco aponeurótico do transverso ao ligamento pectíneo (Cooper), com incisões relaxadoras na bainha do reto abdominal. Suas indicações são: hérnias inguinais unilaterais ou bilaterais e hérnias femorais. Este reparo é particularmente utilizado para as hérnias femorais estranguladas, porque proporciona obliteração do espaço femoral sem o uso de malha. Desvantagens: elevado índice de recidiva, tensão excessiva na linha de sutura e lesão da veia femoral.
Técnicas com utilização de prótese livre de tensão Figura 10.16 Técnica de Shouldice: segundo plano; sutura contínua unindo a borda livre do folheto superomedial ao ligamento inguinal, desde o anel inguinal profundo até o tubérculo púbico.
Figura 10.17 Técnica de Shouldice: terceiro plano; sutura contínua aproximando os músculos oblíquo interno e transverso do abdome ao ligamento inguinal desde o anel profundo até o tubérculo púbico.
Lichtenstein (livre de tensão) Lichtenstein enfatizou a falta de lógica de corrigir uma hérnia por meio da reunião de tecidos que são suturados sob tensão. Então, propôs que a “ausência total de tensão na linha de sutura é condição sine qua non para a correção (de hérnias)”. A rotina é realizar a cirurgia em esquema ambulatorial com anestesia local. Uma tela de Marlex® (polipropileno) é suturada ao tecido aponeurótico sobreposto ao osso púbico, com a continuação dessa sutura ao longo da borda do ligamento inguinal (de Poupart), até um ponto lateral do anel inguinal interno. A borda lateral da tela é cortada para permitir a passagem do cordão espermático. A borda cefálica da tela é suturada no tendão conjunto, com a borda do músculo oblíquo íntimo sobreposta em aproximadamente 2 cm. As duas pontas da face lateral da tela são suturadas. Atualmente, é a técnica mais utilizada para o tratamento das hérnias inguinais, no entanto, tem como desvantagens maior incidência de neurodinia associada à lesão de nervos periféricos e intensa fibroplasia local.
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Figura 10.21 aspecto final. Figura 10.18 Lichtenstein.
165 Hérnias
Técnica de Lichtenstein: tela suturada,
Herniorrafia inguinal pela técnica de
Stoppa Consiste no revestimento do peritônio pélvico com tela de polipropileno. A tela é fixada ao osso público em sua face posterior e mantida em posição pela pressão abdominal. Os elementos do cordão inguinal são parietalizados. As principais indicações são: hérnias inguinais bilaterais, hérnias inguinais grandes ou com destruição do ligamento inguinal, hérnias recidivadas, hérnias femorais. Desvantagens: dissecção grande, difícil aprendizado que exige o conhecimento da anatomia pré-peritoneal, intensa fibroplasia pré-peritoneal.
Figura 10.19 Secção longitudinal da tela, a partir de sua borda superior, até o anel inguinal profundo, o que permite ao cordão inguinal emergir pelo extremo inferior dessa secção, sendo criados dois folhetos na tela.
É a técnica mais radical para tratamento de hérnias inguinocrurais. Deve ser realizada por cirur-
giões experientes no tratamento de hérnias.
Técnica de Nyhus A incisão cutânea é horizontal, à direita e acima da sínfise pubiana. A dissecção é realizada até o espaço pré-peritoneal, após divulsão das fibras do músculo oblíquo interno e transverso. É realizada secção do espaço pré-peritoneal, com prolongamento da incisão medial, lateral e inferiormente. Dessa forma, os sacos herniários podem ser visualizados como divertículos peritoneais, os quais (sacos diretos ou indiretos) são separados dos elementos do cordão e reduzidos. O reparo da hérnia é realizado por meio de suturas com fio monofilamentar, aproximando o tendão conjunto ao trato iliopúbico. Mais recentemente, Nyhus prega a utilização de prótese, além das suturas, para correção das hérnias inguinais, principalmente as diretas.
Operação de Gilbert Figura 10.20 Técnica de Lichtenstein: posicionamento do folheto medial da tela sobre o folheto lateral.
Esta técnica de reparo das hérnias inguinais emprega uma prótese de polopropileno conhecida como Prolene Hérnia System (PHS) que combina três mecanis-
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166 Cirurgia geral e politrauma mos de ação. A tela de PHS é formada por uma malha interna, o componente pré-peritoneal que reforça o orifício miopectíneo. Também inclui um componente oval externo que é inserido sobre a fáscia transversal para reforçar o assoalho da região inguinal, como na técnica de Lichtenstein. Os componentes internos e externos da tela são acoplados por meio de um cilindro.
Operação de Trabucco Um cone de polipropileno oblitera o ânulo inguinal profundo e uma prótese do mesmo material, recortada segundo a área do trígono inguinal do paciente, é colocada sobre a fáscia transversal, envolvendo o funículo, sem fixação às estruturas adjacentes.
Operação de Rutkow e Robbins Um cone de polipropileno é introduzido no ânulo inguinal profundo e uma prótese pré-confeccionada, de tamanho padrão, é aplicada sem suturas sobre a fáscia transversal.
Uma variante é a técnica de Alexandre, que realiza uma dissecção mais ampla do espaço pré-peritoneal, com secção dos vasos epigástricos. A tela grande de 18 x 15 cm é deixada no espaço pré-peritoneal sem fixação. Um reparo de McVay é realizado anteriormente à prótese. As principais indicações são: hérnias inguinais
unilaterais ou bilaterais, hérnias inguinais recidivadas, hérnias femorais. Desvantagens: procedimento tecnicamente difícil que exige conhecimento da anatomia pré-peritonial, aprendizado difícil, intensa fibroplasia local. Os melhores resultados são observados nas hérnias recidivadas com destruição da parede posterior.
Técnica de PHS
Operação de Rives
O PHS (Prolene Hernia System) é uma tela tridimensional dupla com um conector no meio, que permite que a hérnia seja corrigida por meio de uma pequena incisão (em média de 3 a 5 cm), na região inguinal. O material pode ser utilizado em todos os tipos de hérnia e possui tamanhos diferentes, para vários tamanhos de hérnias.
Consiste na fixação de tela de polipropileno sob a fascia transversalis, no espaço pré-peritonial. A tela é suturada ao ligamento pectíneo e ao arco aponeurótico do transverso. Também é realizada uma abertura na porção lateral da tela, que permite a passagem do funículo espermático e a criação de um novo anel inguinal profundo.
Possibilita o tratamento das hérnias de maneira eficaz, com baixo índice de recidiva (1%). A técnica com PHS é considerada segura, em geral, realizada sob anestesia local. Permite que o paciente saia caminhando do centro cirúrgico, gerando assim menos gastos, pois não necessita de internação hospitalar.
Diferenças técnicas entre as operações de hernioplastia com prótese de polipropileno Autor Dimensões da prótese Posição da prótese Proteção do ânulo profundo Posição do funículo Lichtenstein 16 x 8 cm, recortada Sobre a fáscia transversal, fixa Cruzamento da prótese ao Abaixo da aponeurose no intraoperatório. nas estruturas adjacentes. redor do funículo. do MOE. Gilbert 8 x 4 cm, recortada Sobre a fáscia transversal, sem fi- “Guarda-chuva” no EPP. Abaixo da aponeurose no intraoperatório. xação nas estruturas adjacentes. do MOE. Rutkow e 8 x 4 cm, pré-cortada. Sobre a fáscia transversal, sem fi- Cone no EPP. Abaixo da aponeurose Robbins xação nas estruturas adjacentes. do MOE. Trabucco 8 x 4 cm, pré-cortada. Sobre a fáscia transversal, sem Cone no EPP. Acima da aponeurose fixação nas estruturas adjacentes. do MOE. EPP: Espaço pré-peritoneal; MOE: músculo oblíquo externo. Tabela 10.6
Hérnias femorais A hérnia femoral ocorre por meio de um espaço limitado superiormente pelo trato iliopúbico, inferiormente pelo ligamento de Cooper, lateralmente pela veia femoral e medialmente pela inserção do trato iliopúbico no ligamento de Cooper. No exame físico, encontra-se uma massa abaixo do ligamento inguinal. As hérnias femorais são mais comuns nas mulheres (4 a 5 vezes) do que nos homens.Em razão do seu pequeno e rígido orifício é a que mais facilmente estrangula.
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10
167 Hérnias
A cirurgia da hérnia femoral pode ser realizada através de vários acessos, cada um apresentando vantagens e inconvenientes: 1) via inguinal; 2) via femoral; 3) via combinada; e 4) via pré-peritoneal.
visceral constitui mais comumente a parede posterolateral do saco herniário. Essencial ao reparo de deslizamento é a redução de uma hérnia das vísceras para dentro da cavidade peritoneal e a ligadura do saco herniário.
A hérnia femoral pode ser corrigida usando-se uma técnica-padrão de reparo do ligamento de Cooper (de McVay) ou a técnica de Gilbert modificada, em que se usa um plug de Marlex (polipropileno) na região femoral. As abordagens pré-peritoneal e laparoscópica também proporcionam excelente visualização e acesso. A recorrência é semelhante àquela descrita para hérnia inguinal direta, de cerca de 5%-10%.
A chave para o reparo bem-sucedido de uma hérnia de deslizamento é o reconhecimento do componente visceral e a devolução segura das vísceras para a cavidade abdominal, com reconstrução meticulosa do canal inguinal.
Em serviços como a Unifesp, o plug femoral é considerado o padrão de excelência no tratamento de hérnias femorais.
Correção laparoscópica das hérnias O tratamento videocirúrgico das hérnias apresenta várias vantagens em relação à abordagem aberta, sendo as principais: redução acentuada da dor, retorno mais precoce ao trabalho e cicatriz mínima. A videocirurgia permite a inspeção das regiões inguinal e femoral bilateralmente, de forma que hérnias contralaterais não diagnosticadas, previamente, podem ser reparadas concomitantemente sem a necessidade de incisões adicionais.
Figura 10.22 HF típica – localizada medialmente à veia femoral e lateralmente à borda medial do anel femoral.
Hérnias de deslizamento Uma hérnia inguinal de deslizamento é definida como aquela na qual uma víscera forma uma porção da parede do saco herniário. Mais comumente, a víscera envolvida é um segmento do intestino ou da bexiga. O ceco é envolvido mais comumente nas hérnias inguinais à direita, enquanto o cólon sigmoide é o órgão mais frequentemente envolvido no lado esquerdo. As hérnias inguinais indiretas representam o tipo mais comum de hérnia de deslizamento, embora ocorram hérnias de deslizamento diretas e femorais. O perigo primário associado a uma hérnia de deslizamento é a incapacidade de detectar o componente visceral da hérnia, antes que ocorra lesão do intestino ou da bexiga. O saco herniário deve ser aber-
to em sua borda anteromedial, enquanto o componente
As principais desvantagens da herniorrafia videocirúrgica são a utilização de anestesia geral pela maioria dos cirurgiões e o custo mais elevado, quando se utilizam clampeadores e outros materiais descartáveis. Pacientes que não podem tolerar a anestesia geral ou que apresentam várias cirurgias prévias em abdome inferior não devem ser submetidos à herniorrafia laparoscópica. Apesar da maior dificuldade técnica, o procedimento laparoscópico totalmente extraperitoneal é a herniorrafia videocirúrgica (laparoscópica), mais utilizada, atualmente, em razão de seus menores índices de complicações e recorrência.
Técnica laparoscópica transabdominal préperitoneal (TAPP) Após a realização de pneumoperitônio, os trocartes são colocados dentro da cavidade abdominal. O peritônio é incisado superiormente ao assoalho inguinal, de modo a produzir um retalho de peritônio. A dissecção e a fixação da tela são realizadas no espaço pré-peritoneal. O saco herniário é dissecado e reduzido, como mencionado na técnica laparoscópica anterior. A tela é posicionada e fixada no ligamento de Cooper e ao lado interno do tendão conjunto, não colocando suturas lateralmente aos vasos epigástricos. Finalmente, o retalho do peritônio é colocado em sua posição inicial, de modo a cobrir totalmente a tela e evitar aderências e erosões da tela a alças intestinais. Relatos atuais demonstram bons resultados com baixas taxas de recidiva.
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168 Cirurgia geral e politrauma
Técnica laparoscópica totalmente extraperitoneal (TEP) Apesar da maior dificuldade técnica, a técnica totalmente extraperitoneal (TEP) é a herniorrafia videocirúrgica (laparoscópica) mais utilizada atualmente. Essa operação inicia-se com uma pequena
incisão na bainha anterior do músculo reto do abdome, na altura ou pouco abaixo do umbigo. Afastando-se o músculo reto do abdome, um trocarte rombo é introduzido na bainha do músculo, sobre a aponeurose posterior, paralelo à bainha, em direção ao púbis. A partir da linha arqueada de Douglas, o trocarte penetra diretamente no espaço pré-peritoneal, e a dissecção romba ou por meio de um balão dissector é efetivada. Posteriormente, o gás é insuflado nessa região pré-peritoneal dissecada, permitindo a introdução dos trocartes auxiliares e a identificação das estruturas do orifício miopectíneo. A colocação e a fixação da prótese podem ser semelhantes àquelas utilizadas pela técnica transabdominal. Comparação entre as técnicas laparoscópicas TAPP versus TEP Vantagens da TAPP Vantagens da TEP Permite o rápido e fácil Não viola a cavidade peritodiagnóstico de “hérnia neal. contralateral” (não diagnosticada no pré-operatório). Mais fácil reconhecimen- Menor risco de lesões visto dos elementos anatôcerais. micos. Menor risco de conversão. Menor risco de obstrução intestinal e de hérnias nas incisões dos trocartes. Menor risco de lesões Realização mais suscetívasculares. vel quando realizada com anestesia locorregional . Na maioria dos casos não precisa fixar a prótese. Tabela 10.7
Complicações cirúrgicas para correção das hérnias inguinais Testículos: orquite isquêmica e atrofia testicular são as duas possíveis complicações que acometem o testículo, após herniorrafias inguinais. Apresentam-se como dor, edema e endurecimento do testículo associado a febre baixa. Essa condição pode progredir para atrofia testicular.
A fisiopatologia da orquite isquêmica, provavelmente, tem início com a congestão venosa intensa dentro do testículo, secundária à trombose das
veias do cordão espermático (veias pampiniformes).
Vaso deferente: trauma no vaso deferente pode ser por transecção ou obstrução. A transecção, geralmente, ocorre em reparos abertos, principalmente nas hérnias recidivadas. A obstrução pode ocorrer pelo pinçamento excessivo causando fibrose de intensidade variada no lúmen do vaso. Hidrocele: é uma complicação pouco comum das operações para correção de hérnias inguinais. Provavelmente, está relacionada à esqueletização do cordão espermático e dissecção excessiva do saco herniário e do ânulo inguinal interno. Além disso, a persistência da parte proximal do saco herniário indireto pode ser um fator predisponente. Seromas: na região inguinal são raramente de relevância clínica. Entretanto, com a introdução das próteses, há uma tendência maior à formação de seromas. Vasculares: lesões da veia femoral podem ser causadas por suturas próximas à parede anterior da veia, ou por compressão da veia femoral por uma sutura colocada muito lateralmente, próxima ao ligamento de Cooper. A lesão da artéria femoral pode acontecer durante a reconstrução da parede posterior, próximo ao anel inguinal profundo; neste local a artéria femoral se situa 1 a 1,5 cm abaixo da fáscia transversal. Bexiga: a bexiga é posterior e medial à parede inguinal posterior e pode estar aderida ou “deslizar” em uma hérnia direta ou femoral. Além disso, retenção urinária, principalmente, após anestesias locorregionais, é uma complicação comum das herniorrafias inguinais. Intestinos: nos casos de encarceramento ou estrangulamento da hérnia há envolvimento direto do intestino, necessitando de inspeção rigorosa e, até mesmo, ressecção de alças em alguns casos. Indiretamente, pode haver laceração ou até ruptura de uma alça na presença de hérnia deslizante. Infecção: pode complicar todos os tipos de cirurgia. As mulheres têm maior índice de infecção que os homens. Hérnias encarceradas, recorrentes, umbilicais e femorais também apresentam maiores taxas de infecção, respectivamente 7,8%, 10,8%, 5,3% e 7,7%. A presença de prótese também aumenta os índices de infecção.
A presença de infecção não exige necessariamente a retirada da prótese, a não ser que esta se encontre mergulhada em um abscesso ou banhada por secreção purulenta. Infecções tardias também podem acontecer quando houver próteses, até meses ou anos, após o implante. Lesões de nervo: são infrequentes. Os nervos mais atingidos durante o reparo aberto da hérnia são o ilioinguinal, ramo genital e genitofemoral e íleohipogástrico. No reparo laparoscópico, os nervos cutâneo femoral lateral e genitofemoral são afetados com mais frequência.
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10 A dor inguinal crônica ou inguinodinia pode ser neurálgica ou neuropática. A neuralgia é caracterizada por hiperestesia sobre o dermátomo, com dor intensa sobre um neuroma ou nervo que foi incluído em uma sutura ou sob a tela. Se não houver resposta ao tratamento clínico, deve ser realizada a exploração cirúrgica com secção dos três nervos da região inguinal. A dor neuropática é caracterizada por um período inicial de anestesia e posterior hiperestesia da região e dor paroxística. Recidiva: permanece como a complicação mais comum da cirurgia para hérnias inguinais. A recidiva é elevada para as técnicas que não usam prótese, variando de 2,3% a 20% para hérnias inguinais e de 11,8% a 75% para hérnias femorais. A recidiva é bem menor com os procedimentos que usam tela (técnica sem tensão na sutura), de 1% a 2%.
Complicações da correção laparoscópica As complicações encontradas na herniorrafia laparoscópica abdominal são semelhantes às encontradas na experiência com cirurgia a céu aberto, a saber, infecção de ferida e formação de seroma. É comum o achado de enduração no orifício de entrada dos trocartes e foi observado em todos os pacientes em um estudo. Em geral, esta enduração cede completamente no prazo de 6 a 8 semanas. As infecções de ferida são muito raras, com incidência aproximada de 3%. Os seromas pós-operatórios foram raros, com incidência aproximada de 6%. Esta incidência pode ser mais minimizada se o saco herniário não for excisado. No entanto, se surgir um seroma, devemos evitar a tentativa de aspirar, pois este procedimento aumenta o risco de infecção e não acelera a resolução. Também há relatos de lesão intestinal acidental que ocorrem durante a retirada de aderências ou como consequência de uma lesão térmica da transmissão da corrente do eletrocautério. Consequentemente, devemos dar ênfase ao uso limitado do eletrocautério durante a dissecção e a lise das aderências.
169 Hérnias
Comparação entre correção laparoscópica e a céu aberto A comparação entre a herniorrafia laparoscópica e os controles realizados a céu aberto demonstrou que a abordagem laparoscópica é pelo menos tão eficaz quanto à abordagem a céu aberto no que diz respeito à infecção de ferida (12% vs. 3%), formação de seroma (14% vs. 6%) e taxa de recorrência (10% vs. 3%).
Materiais protéticos para herniorrafia Apesar das preocupações iniciais sobre possível rejeição e infecção resultantes do uso de próteses, a evidência de que hernioplastias “livres de tensão” usando um biomaterial têm uma taxa reduzida de recidivas e menores taxas de complicações, tornou esta conduta, atualmente, uma decisão sem conflitos.Telas simples e duplas de diferentes materiais passaram a ser uma preocupação do cirurgião. Materiais como: prolene, polipropileno, politetrafluoretileno, poliéster trançado, passaram a fazer parte dos materiais a serem incluídos na síntese cirúrgica.
Figura 10.23 Eletromicrografia de malha de polipropileno trançada monofilamentar (Marlex).
Taxa de recorrência da correção laparoscópica Aproximadamente 3%. No entanto, assim como na correção das cirurgias a céu aberto, a real incidência da recorrência só será evidente depois que dispusermos de um acompanhamento a longo tempo.
Figura 10.24
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Eletromicrografia da malha de Surgipro.
170 Cirurgia geral e politrauma
Figura 10.25
Figura 10.26
Eletromicrografia da malha de Trelex.
Figura 10.29 Visão macroscópica de placa de Gore Tex de politetrafluoroetileno expandida.
Eletromicrografia da malha Atrium.
Figura 10.30 Eletromicrografia da malha de poliéster trançada (Mersilene).
Critérios para biomateriais Biomateriais usados no reparo de hérnia não só têm de satisfazer estes critérios na maior extensão possível, como também devem ser fáceis de manusear. Estudos de próteses usadas em reparos de parede abdominal, geralmente, focalizaram-se no desenvolvimento de aderências, hérnia recorrente, infecção, formação de seroma, crescimento interno de tecido associado a seu uso, à força dos materiais e às várias técnicas para implantá-los. Figura 10.27
Eletromicrografia da malha de Prolene.
Tela de polipropileno (PPM) A malha de polipropileno tem sido usada em reparos abertos convencionais de hérnia há mais de 30 anos, com resultados geralmente bons. O material satisfaz muitos dos critérios de Cumberland e Scales e é fácil de manusear. As taxas relatadas de recidiva depois da implantação de PPM foram inferiores àquelas após o fechamento primário, porém, a PPM foi associada a várias complicações sérias, especialmente quando usada em reparos ventrais. Estes incluíram sepse de ferida, fístula intestinal, erosão em órgãos intra-abdominais e exteriorização da tela. Figura 10.28 Visão macroscópica da malha de Composix. Note as duas superfícies de materiais diferentes.
Muitas destas complicações se desenvolveram porque a PPM tende a evocar uma reação intensa, inflamatória, de corpo estranho, que no final das contas resulta no intestino ficando densamente aderido ao mate-
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10 rial. Estas aderências são irregulares e desorganizadas, tornando o PPM especialmente difícil de remover, caso seja necessário. Vários investigadores aconselham que a PPM não seja usada em reparos de hérnia nos quais o material protético deva ser colocado diretamente sobre as vísceras, o que pode ser frequentemente necessário na hernioplastia ventral. A víscera também é um local exigido no reparo intraperitoneal laparoscópico com malha de hérnia inguinal ou de hérnia ventral. Um relato avaliando Marlex, Dexon (Davis & Geck, Wayne, NJ) e Gore-Tex defendeu o uso deste último material no fechamento temporário da parede abdominal no paciente traumatizado. Nesse estudo, três dos quatro pacientes com um implante de Marlex desenvolveram uma fístula intestinal. Outros estudos não encontraram nenhuma diferença estatística na formação de aderência entre Prolene, E-PTFE ou Marlex em modelos suínos. Critérios para biocompatibilidade de material protético O biomaterial ideal deve ter as seguintes características: Quimicamente inerte. Não carcinogênico. Resistente a tensões mecânicas. Capaz de ser fabricado na forma necessária. Capaz de ser esterilizado. O biomaterial ideal não deve: Provocar uma reação inflamatória ou de corpo estranho. Produzir alergia ou hipersensibilidade. Ser modificado fisicamente por líquidos teciduais. Tabela 10.8 Atuais produtos de malha de polipropileno Marlex Trelex Atrium Surgipro Prolene Composix Tabela 10.9
O uso de polipropileno como prótese no reparo da parede abdominal tem ampla base científica. Na realidade, atualmente, é o tipo de material mais utilizado mundialmente. O reparo livre de tensão, aberto, provou ser um excelente material para reparo de hérnias. O desenvolvimento de intensa formação de tecido cicatricial é um apelo para muitos cirurgiões. Isto levou ao reparo laparoscópico dos defeitos do abdome. Este material tem sido usado no reparo do assoalho inguinal, da superfície ventral do abdome e de vários outros locais por muitos anos, tanto com a abordagem aberta quanto com o método laparoscópico. Em ambas as técnicas, a taxa de recidivas é baixa e a taxa de complicações acei-
171 Hérnias
tável. O desenvolvimento de complicações severas pelo polipropileno é, felizmente, muito incomum. O desenvolvimento de uma infecção, embora infrequente, é tratado mais facilmente do que com E-PTFE e comumente não necessita da remoção do próprio material da malha. Foi sugerido que os seromas seriam menos prováveis depois de reparos com PPM do que aqueles em que foram utilizados outros materiais. Da mesma forma, há evidências de que o selamento da cavidade peritoneal acontece dentro de 12 horas, sendo usada ou não uma tela, e que nenhuma drenagem deve ser possível depois desse tempo.
Politetrafluoroetileno expandido (E-PTFE) As vantagens da E-PTFE em reparos de hérnia incluem sua inércia, força, baixa taxa de formação de aderências, características do crescimento interno de tecido, baixa taxa de infecção, e a suavidade e flexibilidade que muitos cirurgiões acreditam tornar mais fácil de controlar que outros biomateriais. Ao contrário de outros materiais, a E-PTFE não é macroporosa, portanto, permite a visualização de qualquer estrutura atrás dela. Estudos clínicos do uso de E-PTFE em enxerto vascular estabeleceram que o material seja inerte e biocompatível. A força material e a capacidade de reter uma sutura da E-PTFE foram avaliadas em testes mecânicos e estudos em animais e constatou-se ser maior ou igual ao de outros materiais protéticos usados no reparo de hérnia. Ao contrário da PPM, a E-PTFE produz apenas uma reação inflamatória mínima nos tecidos circunvizinhos, com pequena resposta de corpo estranho. Próteses de politetrafluoroetileno expandidas para reparos de hérnia estão agora disponíveis em seis formas. A placa de tecidos moles Gore-Tex é uma folha porosa lisa de E-PTFE. O biomaterial Gore-Tex Mycro-Mesh tem macroporos visíveis a olho nu, que são projetados para acelerar o crescimento interno de tecido. Este material também possui microporos com aproximadamente 22 µm de diâmetro para permitir a penetração celular e de colágeno. A adição do macroporos a este material não resulta em um aumento na resistência à tração do tecido cicatricial pós-implante sobre a PPM. Ela também não parece aumentar as aderências subsequentes que acontecem no processo de cicatrização. Uma forma de Gore-Tex MycroMesh com macroporos ainda maiores, facilita a visualização de tecidos e estruturas embaixo do material durante reparos inguinais laparoscópicos. O biomaterial Gore-Tex DualMesh tem duas superfícies: uma é muito lisa (microporos < 3 µm de diâmetro), e a outra é semelhante à placa de tecidos moles de Gore-Tex (microporos aproximadamente iguais a 22 µm). O DualMesh é projetado para ser implantado com a superfície lisa contra o tecido ou vísceras às quais uma mínima aderência tecidual é desejada, e a outra contra a superfície onde a in-
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172 Cirurgia geral e politrauma corporação de tecido é desejada. Há duas escolhas estruturais do produto Gore-Tex DualMesh. Um é uma folha sólida e o outro é perfurado para permitir maior incorporação de tecido. Uma recente inovação nos produtos supracitados foi a incorporação de prata e clorexidine ao E-PTFE. A adição destes agentes resulta em uma cor marrom-clara em lugar do branco do E-PTFE. Os dois produtos têm ação antimicrobiana que objetiva reduzir o risco de infecção quando estes produtos forem usados. Estudos clínicos não encontraram qualquer evidência de efeito colateral pelo uso destes biomateriais saturados com antimicrobiano. Dados clínicos, em longo prazo, não estão disponíveis para avaliar qualquer benefício percebido na adição de um agente antimicrobiano a estes produtos. Produtos de PTFE expandido atuais Placa de tecidos moles MycroMesh MycroMesh Plus
mentais de uma tela impregnada por gelatina fluoropassivada, a TMS 2, uma estrutura de metano policarbonato coberta em um lado com elastômero de silicone e um composto de PPM impregnado com folhas de silastic vulcanizadas.
Malhas em tampão e em placa Durante os últimos anos, a proliferação do reparo em tampão e em placa de hérnias inguinais e ventrais foi proeminente. Em cada um destes tipos de reparo o biomaterial é uma textura de polipropileno. Este material é configurado em várias formas pelo fabricante (Perfix, C.R. Bard) ou modelado pelo defeito, enquanto o material é inserido (Atrium). Cada reparo confia no conceito livre de tensão porque um material de placa é usado em frente (Perfix, Atrium) ou atrás (Kugel, Surgical Sense, Arlington, TX) da musculatura da parede abdominal. O Prolene Hernia System coloca uma placa na frente e atrás da parede muscular.
DualMesh DualMesh Plus DualMesh com orifícios Tabela 10.10
PTFE, politetrafluoroetileno.
Produtos de malha em tampão/placa Tampão Prefix Placa Kugal Prolene Hernia System Tampão e Placa de malha de Atrium Tabela 10.11
Tela de fibra de poliéster A tela de fibra de poliéster trançada é usada, principalmente, na França em hernioplastias incisionais abertas, nas quais uma grande prótese é inserida entre os músculos abdominais e o peritônio (cirurgia de Stoppa). A prótese estende-se além das bordas do defeito e é mantida em posição, inicialmente, pela pressão intra-abdominal e depois por meio de crescimento interno fibroso. Cirurgiões que executam frequentemente estes procedimentos preferem uma prótese de poliéster em razão da sua flexibilidade, que permite moldar-se livremente ao saco visceral, sua textura granulada que permite agarrar-se ao peritônio e sua capacidade para induzir uma resposta fibroblástica rápida para assegurar sua fixação. Como o biomaterial perfeito ainda está por ser descoberto, os esforços continuam para desenvolver uma prótese que satisfaça as metas do cirurgião e do paciente. Este material asseguraria uma incorporação de tecido significativa, contudo limitaria o desenvolvimento de respostas teciduais anormais como aderências. A nova tela Composix representa a última tentativa de atingir essa meta. Recentes relatos comentam os primeiros resultados experi-
Figura 10.31 Visão macroscópica do sistema de tampão e placa Prefix.
Figura 10.32
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Placas de hérnia Kugel.
10
173 Hérnias
Alguns relatos de acompanhamento têm mostrado bons resultados em curto prazo. Os resultados em longo prazo destes procedimentos relativamente novos são desconhecidos, particularmente os procedimentos que são executados em grande número pelo grupo maior de cirurgiões menos experientes. Adicionalmente, complicações em longo prazo, como erosão, fistulização ou encolhimento do material, que se sabe ocorrer com o polipropileno, podem tornar-se evidentes no futuro.
Telas absorvíveis Figura 10.33 Prolene Hernia System. Esta é uma tela de polipropileno em camada dupla interconectada por uma peça de material.
Embora as telas absorvíveis não sejam úteis como próteses permanentes no reparo de hérnias de parede abdominal, elas têm um papel para proporcionar o fechamento temporário de grandes defeitos, contaminados.
HÉRNIA INGUINAL Estrangulada Cirurgia de emergência Reparo tecidual de risco de infecção ↑ Unilateral primária
Sintomática
Assintomática/Oligossintomática
Cirurgia eletiva
Considerar observação
Bilateral primária
Reparo com tela: Lichtenstein ou endoscópico
Recorrente
Reparo com tela: endoscópico ou Lichtenstein
Após cirurgia por via anterior
Após cirurgia por via posterior
Reparo com tela: endocópico ou aberto via posterior
Reparo com tela: Lichtenstein
Em qualquer situação, considerar cirurgia endoscópica se há proficiência por parte do cirurgião Figura 10.34
É parte da cura o desejo de ser curado. Sêneca.
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CAPÍTULO
33
Doença de Crohn
“No Brasil, Berardinelli em 1943, publicou o primeiro caso de ileíte regional, 11 anos após o artigo de Crohn, Oppenheimer e Girzburg.” – Equipe SJT
Introdução A DC foi descrita em 1932 por Crohn, Ginsburg e Oppenheimer. Sua etiologia ainda é desconhecida, e acredita-se que o processo inflamatório seja resultante da combinação de predisposição genética e fatores ambientais.
Epidemiologia A incidência das DII (doença intestinal inflamatória) varia de maneira importante e depende de fatores étnicos e localização geográfica. Embora apresentem distribuição universal, registraram-se maiores incidências nos Estados Unidos (principalmente entre
brancos), na Grã-Bretanha e Escandinávia. Nos EUA, a prevalência da DC é menor que a relatada para a RCUI, estimando-se que atinja aproximadamente 90 em cada 100 mil habitantes, embora já tenha sido relatada relação inversa em outras regiões. A incidência da DC tem aumentado nas últimas décadas. No Brasil, também têm sido registrados índices cada vez maiores, particularmente na região Sudeste. Acomete igualmente ambos os sexos, predominando na população de nível cultural maior do que a população-controle. A doença é mais comum em fumantes (2 vezes mais), em parentes de primeiro grau de indivíduos acometidos e judeus asquenaze. Começa a se manifestar com maior frequência após os dez anos de idade e apresenta distribuição bimodal por faixa etária, atingindo picos entre 15 e 25 anos e 55 e 60 anos.
340 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado Dados Incidência (por 100.000 hab.) Prevalência (por 100.000 hab.) Idade Sexo (relação feminino:masculino) Raça Etnia População urbana versus rural Nível socioeconômico e ocupação
RCU
DC
0,5-24,5 0,1-16 35-100 10-100 Entre 20 e 40 anos; às vezes 2º pico entre 60-80 anos ≥1 < 1 ou > 1 Brancos > negros > asiáticos Mais frequente em judeus; Ashkenazi > Sefarditas Urbana > rural Atinge mais indivíduos com nível socioeconômico mais alto; mais frequente entre os que trabalham em ambientes fechados
Tabela 33.1 Principais dados epidemiológicos descritivos da doença inflamatória intestinal. Atenção!
Etiopatogenia Atualmente, a hipótese geral mais aceita a respeito da etiopatogenia das DII considera um mecanismo multifatorial envolvendo a atuação integrada de componentes genéticos de predisposição, elementos da microbiota intestinal, fatores ambientais, além da resposta imunitária. No que diz respeito à predisposição genética o polimorfismo do gene N0D2 (nucleotide-binding oligomerization domain-containing protein 2), também conhecido como CARD15 (caspase recruitment domain-containing protein 15) presente no cromossomo 16, foi a primeira entre muitas alterações genéticas documentadas na DC e que seguramente apontam para alterações funcionais de base imunológica ou relacionadas com respostas contra micro-organismos. Tem sido descrito como fator de risco para doença ileal e doença estenosante. Consequentemente associa-se a maior necessidade de cirurgia. Entre os muitos fatores ambientais potencialmente implicados, o tabagismo é o que oferece os dados mais concretos. Postula-se que componentes do fumo possam atuar diretamente sobre o sistema imunitário e sua resposta. Há relatos também de que o fumo provoca alterações no aporte de nutrientes à mucosa intestinal, na produção de muco e na permeabilidade da barreira epitelial. O tabagismo está associado também a maior agressividade da doença. O papel da microbiota é de perticular relevância nas DII, nas quais se postula que componentes da microbiota representem o alvo principal contra o qual uma resposta imunológica anormal estaria derecionada. No que diz respeito à resposta imunológica, nas DII, a lesão tecidual é observada em áreas onde há grande infiltração de linfócitos TCD4+, recrutados do sangue em função de produção aumentada de quiomicinas ou expressão de receptores quimiotáticos. Na DC, os Linfócitos T auxiliares apresentam tipicamente o fenótipo Th1 de resposta, com produção aumentada de IFN-gama.
Na mucosa intestinal dos pacientes com DC, os macrófagos que, juntamente com as células dendríticas, atuam como apresentadores de antígenos produzem grandes quantidades de citocinas indutoras, como, por exemplo, IL-12 e IL-18. Consequentemente, a ativação excessiva da resposta Th1 leva a produção de outras citocinas pró-inflamatórias, principalmente pelos próprios macrófagos, como TNF-alfa e IL-lbeta. O subgrupo de linfócitos Th17, recentemente descoberto, também aparece como provável responsável, juntamente com linfócitos Th1, pela orquestração da inflamação na DC. Os linfócitos T da mucosa intestinal de pacientes com DC, sendo induzidos por IL-23, produzem IL-17 em excesso, constituindo contribuição adicional à inflamação Th1. Outro fator importante para a persistência e a cronicidade da inflamação na DC é a longa permanência de linfócitos Th1 ativados na mucosa intestinal.
Patologia A lesão inicial é a hiperplasia dos folículos linfoides das placas de Peyer, com ulceração tardia da mucosa adjacente. Estas lesões aparecem como pontos hemorrágicos ou nitidamente como úlceras. Em um próximo estágio, delimitam-se áreas de mucosa edemaciada e fissuras profundas na parede da alça. Finalmente a lesão torna-se transmural (atinge todas as camadas), comprometendo toda a parede da alça. Pode evoluir para estenose, fistulização interna – entre alças intestinais, com as vias urinárias ou mesmo perfuração em peritônio livre (fistulização externa). O processo inflamatório na DC é caracteristicamente transmural, o que contrasta com a retocolite ulcerativa inespecífica (RCUI) e outras entidades inflamatórias. Esse comportamento produz ulcerações aftoides, puntiformes ou lineares, mais profundas que as erosões superficiais da RCUI e habitualmente dispostas no eixo longitudinal do intestino, representando uma das manifestações macroscópicas mais precoces da DC. O envolvimen-
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341 33 Doença de Crohn to de todas as camadas da parede intestinal pelo processo inflamatório, que pode estender-se até a gordura mesentérica e linfonodos regionais, é responsável pela instalação de fissuras, fístulas entre alças intestinais, órgãos vizinhos, parede abdominal e região perianal, abscessos, densas aderências entre alças intestinais e, finalmente, áreas de estenose intestinal. Devido à descontinuidade do processo inflamatório, as áreas lesadas são entremeadas por áreas de mucosa normal, comportamento que também distingue a DC da RCUI. Outro aspecto típico encontrado na mucosa intestinal acometida pela DC é denominado pedras de calçamento (cobblestone), que resulta da combinação de ulceração mucosa profunda e espessamento submucoso nodular. Do ponto de vista macroscópico, o segmento intestinal envolvido apresenta-se com hiperemia, espessado, com deposição de fibrina e aderências entre alças comprometidas. O mesentério torna-se espessado, fibrótico, com edema e grande quantidade de gordura, estendendo-se até a serosa do intestino, em direção à borda antimesentérica, como projeções digitiformes ou em chama de vela. Macroscopicamente, os seguintes achados caracterizam a DC, além da natureza transmural já mencionada: inflamação descontínua (focal), reação inflamatória mais intensa na submucosa, espessamento submucoso, fibrose, fissuras e a presença de granulomas. Os granulomas de células gigantes, característicos da DC, são detectados em 25 a 80% dos casos. As fissuras, por não serem encontradas em nenhum processo inflamatório do cólon, são indicadores confiáveis da DC. Mais importante para o diagnóstico da DC não é o encontro do granuloma, e sim a presença de inflamação em todas as camadas do intestino. A doença é segmentar, e caracteristicamente NÃO acomete o reto e ajuda a fazer diferenciação com retocolite ulcerativa. A doença de Crohn de longa duração tem aumento da incidência de câncer tanto do intestino delgado quanto do cólon.
Quadro clínico A DC é uma entidade heterogênea que requer abordagens diagnósticas e terapêuticas individuais. Caracteriza-se por inflamação transmural em qualquer parte do trato digestivo, apresentando períodos de exacerbações e remissões, muitas vezes acompanhados de manifestações extraintestinais. Os segmentos mais atingidos são o intes-
tino delgado (27%), o delgado e cólon (30%), o cólon (40%), o estômago e duodeno (5%) e a região perianal isolada (3%). Da cavidade oral ao reto pode-se documentar a doença de Crohn. A apresentação clínica é extremamente variável, e os sintomas diferem conforme a localização predominante das lesões e a extensão da doença. O acometimento esofágico é raro e se manifesta por disfagia, odinofagia, pirose ou dor torácica. A doença gástrica pode ser assintomática, restringindo-se à presença de úlceras aftoides. Quando mais avançada, há dor, vômitos e perda ponderal. No trato digestivo superior descreveram-se também fístulas esofagobrônquicas ou gastrocólicas. O acometimento duodenal é mais comum que o gástrico, embora seja raro. Pode haver espessamento de pregas, calcetamento, úlceras, estenose e fístulas. A forma jejunoileal da DC caracteriza-se por cólicas, diarreia, emagrecimento e distensão abdominal. Na doença ileocólica ocorrem diarreia, dor em fossa ilíaca direita e quadros evolutivos de suboclusão. A colite de Crohn desencadeia surtos agudos de diarreia, dor em baixo-ventre, sangramento nas fezes, mucorreia, constipação e febre. Já a forma perianal pode se manifestar por fístulas, abscessos, fissuras, úlceras e plicomas. A doença perianal ocorre em 25% dos pacientes com doença de Crohn, 41% com ileocolite e em 48% com doença colônica isolada. Pode ser a única apresentação clínica da doença de Crohn (5% dos casos). Estenoses inflamatórias ou associadas à fibrose intensa determinam estreitamento da parede intestinal, principalmente no íleo, desencadeando quadros de suboclusão. Fístulas podem se originar de qualquer segmento intestinal e envolver órgãos ou estruturas adjacentes, como a pele (enterocutâneas), bexiga (enterovesicais), vagina (retovaginais) e alças intestinais (enteroentéricas ou enterocólicas). Fístulas perianais são uma manifestação frequente da DC, podendo resultar em morbidade significativa, como sepse, incontinência e necessidade de tratamento cirúrgico. Uma das complicações mais sérias é a colite fulminante, que representa uma inflamação aguda e grave do cólon associada a toxemia, com febre, taquicardia, hipotensão, leucocitose e peritonite. Quando esse quadro se acompanha de grande dilatação cólica, configura-se o megacólon tóxico, que apresenta grande possibilidade de perfuração do cólon. As DII estão associadas a maior risco de desenvolvimento de câncer no intestino delgado e colorretal. Na DC, esse risco é cerca de 20 vezes maior que na população geral, ocorre em grupo etário mais jovem, desenvolvendo carcinomas infiltrativos (coloide ou mucinoso) em segmentos excluídos ou em coto retal doente. Essa possibilidade deve ser cogitada quando ocorrer recorrência dos sintomas em doença quiescente por tempo prolongado.
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342 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado Emergências nas doenças inflamatórias intestinais idiopáticas Colite fulminante Ocorre na retocolite ulcerativa e na doença de Crohn do cólon Diarreia > 6 evacuações ao dia, com ou sem sangramento retal Taquicardia, febre, palidez cutaneomucosa, anemia, desidratação, hipotensão arterial Leucocitose (com desvio à esquerda), elevação da velocidade de hemossedimentação e do título de proteína C reativa Megacólon tóxico Evidências radiográficas de distensão colônica (> 6 cm) Pelo menos três dos seguintes critérios: Febre > 38ºC Frequência cardíaca > 120 bpm/min. Leucocitose com neutrofilia > 10.500/mm³ Anemia Além dos critérios acima, pelo menos um dos seguintes: Desidratação Alteração do nível de consciência Distúrbios eletrolíticos Hipotensão arterial Tabela 33.2 IA inflamatória na DC Estado geral (ótimo = 0; bom = 1; regular = 2; mau = 3; péssimo = 4) Dor abdominal (ausente = 0; leve = 1; moderada = 2; grave = 3) Número de evacuações líquidas/dia Massa abdominal (ausente = 0; leve = 1; moderada = 2; grave = 3) Complicações: artralgia/artrite, uveíte/ irite, eritema nodoso, aftas orais, pioderma gangrenoso, fissura anal, fístulas, abscesso etc. < 7 = Inativa/Leve 8 a 10 = Leve/Moderada > 10 = Moderada/Grave
Pontuação 0a4 0a3
IA inflamatória na DC
Multiplicado por
Estado geral (ótimo = 0; bom = 1; regular = 2; mau = 3; péssimo = 4). Considerar a 7 soma total dos dados individuais da última semana Número de sintomas/sinais associados (alistar por categorias): 1) artralgia/ 20 valor artrite; 2) irite/uveíte; 3) eritema anal, máximo = fístula ou abscesso; 5) outras fístulas; 120 6) febre Consumo de antidiarreico (Não = 0; Sim = 1)
30
Massa abdominal (ausente = 0; duvido10 sa = 2; bem definida = 5) Déficit de hematócrito: homens 47-Ht; mulheres 42-Ht (diminuir em vez de somar 6 no caso do Ht do paciente ser maior do que o padrão) Peso-porcentagem abaixo do esperado (diminuir em vez de somar se o peso do 1 paciente for maior que o esperado) Soma total (IA da doença de Crohn) < 150 = Remissão 150-250 = Leve 250-350 = Moderada > 350 = Grave Tabela 33.4 Índice de atividade (IA) inflamatória na doença de Crohn de acordo com Best et al. (conhecido como CDAI: Crohn’s Disease Activity Index).
nº/dia 0a3 1 ponto cada
Tabela 33.3 Índice de atividade (IA) inflamatória na doença de Crohn de acordo com Harvey & Bradshaw, 1980.
Multiplicado por Número de evacuações líquidas na últi- 2 ma semana Dor abdominal (ausente = 0; leve = 1; 5 moderada = 2; grave = 3). Considerar a soma total dos dados individuais da última semana
Do ponto de vista clínico, a doença de Crohn é frequentemente classificada com base na idade de início, comportamento e lcoal de origem (classificação de Viena), como exposto na tabela abaixo:
Classificação de Viena da Doença de Crohn Idade no diagnóstico (anos)
A1: < 40 A2: ≥ 40
Comportamento
B1: sem estenose, não penetrante B2: estenosante B3: penetrante L1: íleo terminal L2: cólon L3: ileocólon L4: trato gastrointestinal superior
IA inflamatória na DC
Localização
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Tabela 33.5
343 33 Doença de Crohn Dados clínicos obtidos por meio da anamnese e do exame físico também permitem classificar a DC e servem para orientar a propedêutica armada (exames laboratoriais, radiológicos, endoscópicos e histopatológicos) e o tratamento. Pode-se dividir clinicamente a DC em:
DC leve a moderada: pacientes ambulatoriais, capazes de tolerar alimentação por via oral, sem manifestações de desidratação, toxicidade, desconforto abdominal, massa dolorosa, obstrução ou perda maior que 10% do peso;
DC moderada a grave: pacientes que falharam em responder ao tratamento ou aqueles com sintomas mais proeminentes de febre, perda de peso, dor abdominal, náuseas ou vômitos intermitentes (sem achados de obstrução intestinal) ou anemia significativa;
DC grave a fulminante: pacientes com sintomas persistentes a despeito da introdução de corticosteroides e/ou terapia biológica ou indivíduos que se apresentam com febre, vômitos persistentes, evidências de obstrução intestinal, sinais de irritação peritoneal, caqueixa ou evidências de abscesso.
Manifestações extraintestinais A DC pode comprometer praticamente todos os sistemas e órgãos, seja por efeito local ou sistêmico e, até mesmo, em decorrência de seu tratamento. As manifestações extraintestinais podem preceder, acompanhar ou surgir após o início das alterações intestinais. Os pacientes que apresentam uma das manifestações extraintestinais têm maior risco de apresentar outras. A explicação para tais ocorrências parece ser de ordem imunológica, pelo achado de complexos imunológicos circulantes no soro desses pacientes. Entretanto, nem todo doente com esses achados apresenta manifestações extraintestinais. Algumas alterações metabólicas secundárias à DC também podem levar a manifestações extraintestinais, principalmente por má absorção intestinal, como na colelitíase, litíase renal e hidronefrose. Pode haver comprometimento de vários órgãos, mas os chamados órgãos-alvo costumam ser as articulações, pele e mucosas, olhos, fígado e rins.
Manifestações osteoarticulares Uma forma periférica de acometimento inclui a “sinovite enteropática” ou “artrite colítica”. Os joelhos,
tornozelos e cintura escapular são as articulações mais envolvidas. Apresenta-se como monoartrite ou como poliartrite migratória. É mais comum na colite ou ileocolite da DC. Evolui paralelamente à doença intestinal. Por não ser destrutiva, não costuma deixar sequelas. Uma forma axial, manifestando-se como espondilite anquilosante ou sacroileíte, é mais rara na DC, porém mais comum nos pacientes HLA-B27 positivos. A espondilite pode apresentar um curso evolutivo completamente distinto da doença subjacente, e mesmo havendo remissão da doença intestinal o quadro articular pode ter um curso até anquilosante. Como cerca de 50% dos pacientes com artrite também apresentam manifestações oculares, deve-se proceder a cuidadoso exame oftalmológico como rotina nestes casos. As descrições de manifestações articulares na DC incluem artralgias, artrites, espondilite anquilosante, sacroileíte, sinovite granulomatosa e osteoartropatia hipertrófica. Baqueteamento digital é observado em 30% dos casos; é de aparecimento tardio, reversível e de causa desconhecida. Diminuição da densidade óssea é descrita ao diagnóstico e durante o curso da afecção. Os fatores implicados são: dieta insuficiente no conteúdo calórico-proteico, inadequada ingestão ou má absorção de cálcio, deficiência de vitamina D, excessiva produção de citocinas pelo intestino inflamado, interferindo no metabolismo ósseo, e a inibição dos corticosteroides na absorção do cálcio e ação direta sobre a formação do osso. Como consequência, podem-se verificar osteopenia, osteoporose, osteomalacia ou osteonecrose.
Manifestações cutâneomucosas O eritema nodoso é a manifestação mais comum e, geralmente, reflete inflamação intestinal ativa. Cerca de 75% dos pacientes com essa manifestação também têm artrite. O pioderma gangrenoso é mais raro na DC. Outras descrições incluem acne, alopecia, celulite escrotal, DC na vulva, DC metastática na pele, eritema multiforme, vasculite cutânea, poliarterite nodosa, pelagra, psoríase, epidermólise bolbosa. Na boca são observadas estomatite aftoide, glossite, queilite, pioestomatite vegetante e tonsilite granulomatosa.
Manifestações oculares Os pacientes com comprometimento colônico são mais suscetíveis a desenvolver uveíte, esclerite ou epiesclerite. A administração crônica de altas doses de corticosteroides pode aumentar a pressão ocular e desencadear cataratas. Outras alterações compreendem úlceras de córnea, blefarite, conjuntivite, queratite, infiltrado do plexo coroide.
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344 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado
Manifestações hepatobiliares Cerca de 15% dos pacientes podem apresentar elevação dos níveis de aminotransferases no curso da DC. São frequentemente associadas com surtos da doença, ao uso de drogas (6- mercaptopurina, sulfassalazina), nutrição parenteral total, esteatose (corticosteroides, má nutrição ou ganho maciço de peso). Hepatite crônica ativa e colangite esclerosante primária (mais comum com RCUI) são mais graves e ocorrem em 1% das crianças com DC, podendo chegar à cirrose e à insuficiência hepática. Foram descritos ainda colelitíase, hepatite granulomatosa, abscesso hepático, síndrome de Budd-Chiari, amiloidose e trombose da veia porta. Figura 33.1 Pioderma gangrenoso em paciente com DC.
Manifestações nefrológicas Hidronefrose à direita pode ocorrer quando o ureter direito é envolvido por massa inflamatória ileocólica. Nefrolitíase, fístula enterovesical, infecção do trato urinário, glomerulonefrite por complexo imune, abscesso perinefrítico, amiloidose e hipertensão também já foram descritos na DC. Os cálculos renais são de oxalato de cálcio e resulta da má absorção intestinal, ou seja, da hiperoxalúria. O cálcio alimentar em condições normais se liga ao exalato na luz intestinal, sendo eliminado pelas fezes. Na presença de má absorção, grande parte do cálcio se liga a ácidos graxos, deixando o oxalato livre para ser absorvido, ocorrendo assim a hiperoxalemia e secundariamente hiperoxalúria e nefrolitíase.
Manifestações hematológicas Anemia por deficiência de ferro, folato ou vitamina B12, anemia hemolítica autoimune, neutropenia, trombocitose e trombopenia são dados referidos por diversos autores.
Figura 33.2 DC com grave acometimento perianal, levando à destruição do aparelho esfincteriano.
Manifestações extraintestinais
Manifestações vasculares Tromboflebites, vasculites, poliarterite nodosa, arterite de Takayasu, vasculite pulmonar, arterite de células gigantes. Redução dos níveis de proteína S e antitrombina III, assim como aumento dos níveis de fator VIII, V e I são aspectos que podem justificar o risco de hipercoagulabilidade e trombose na DC.
Manifestações pancreáticas Pancreatite aguda ou crônica, insuficiência pancreática. Manifestações pulmonares Vasculite pulmonar, alveolite fibrosante, pneumonia eosinofílica, pneumomediastino Manifestações cardíacas Miocardite, pericardite
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345 33 Doença de Crohn Manifestações extraintestinais (cont.) Manifestações musculoesqueléticas Miosite granulomatosa, dermatomiosite, miosite vasculítica, miopatia induzida por corticosteroides Manifestações neurológicas Neuropatia periférica, perineurite, abscesso epidural espinhal, convulsões Articulares Artrite, sacroileíte, espondilite anquilosante Hepatobiliares Pericolangite, colangite esclerosante, dilatação sinusoidal, abscesso hepático, infiltração gordurosa, cirrose, colelitíase Urológicas Metabólicas (cálculos, amiloidose) e inflamatórias (abscesso retroperitoneal, fibrose, obstrução ureteral) Dermatológicas Eritema nodoso, pioderma gangrenoso, vasculites Oftalmológicas Conjutivite, uveíte, episclerite, celulite orbitária Geral Amiloidose Tabela 33.6
Figura 33.4 DC com grave doença perianal.
Diagnóstico O diagnóstico da DC baseia-se na análise conjunta de dados clínicos, endoscópicos, radiológicos e histológicos. O diagnóstico presuntivo de DII deve ser contemplado em paciente com idade entre 15 e 25 ou 50 e 65 anos que apresente queixa de diarreia crônica, acompanhada ou não de sangue, dor abdominal, perda de peso, febre e manifestações extraintestinais. Eventualmente o diagnóstico só é firmado na vigência de complicações que requeiram tratamento cirúrgico. Os achados ao exame físico variam conforme o grau de atividade da doença. Alterações gerais importantes são representadas por anemia, desnutrição e febre. Dor constante, picos febris e leucocitose sugerem abscessos e fistulização. Deve-se pesquisar também a presença de manifestações extraintestinais. Ao exame físico abdominal podem ser constatados dor, tumor inflamatório palpável e fístulas cutâneas. Às vezes as alterações perianais podem ser a primeira manifestação da doença. Pregas perianais edemaciadas, fissuras (únicas ou múltiplas, geralmente sem hipertonia esfincteriana), fístulas únicas ou múltiplas, abscessos, lesões aftoides, calcetamento da mucosa e úlceras longitudinais podem ser encontrados durante o exame proctológico.
Achados laboratoriais
Figura 33.3 DC e eritema nodoso.
Inespecíficos e dependem do local e da extensão do processo. São comuns: anemia, hipoalbuminemia, esteatorreia, absorção anormal de D-xilose, sugerindo doença extensa ou fístula; níveis altos de lisozima, indicando o grau de atividade da doença.
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Velocidade de Hemossedimentação (VHS) Como marcador inflamatório nas DII, a VHS tende a se elevar mais tardiamente bem como reduzir mais lentamente em comparação com a Proteína C reativa. Embora inespecífica, correlaciona-se bem à atividade clínica e endoscópica da doença. Vale ressaltar que a VHS é menos sensível para os pacientes com DC localizada em íleo terminal.
Proteína C reativ,a (PCR) Proteína da fase aguda da inflamação é estimulada principalmente pela interleucina-6 (IL-6), pela interleucina-1 (IL-1) e pelo fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa). Possui maior sensibilidade e especificidade, assim com precocidade, em relação à VHS. Níveis de PCR > 53 mg/l na DC com ileíte regional são preditores de risco aumentado para ressecções intestinais.
É também preditor de resposta ao tratamento. Pacientes com PCR acima de 5 mg/L apresentam melhor resposta terapêutica ao infliximabe. Níveis mais alto de PCR podem indicar melhor resposta à estratégica top-down de tratamento da DII.
Biomarcadores fecais A mucosa intestinal inflamada contém um grande número de neutrófilos e proteínas fecais derivadas dessas células como a lactoferrina, a calprotectina e a elastase fecal, que se expressam como marcadores do processo inflamatório intestinal. Destes biomarcadores, a calprotectina fecal (proteína ligada ao cálcio) é atualmente o mais utilizado, sendo considerado um “ótimo biomarcador”. A concentração fecal é seis vezes maior que a plasmática, mantendo-se estável à temperatura ambiente por sete dias. A respeito deste biomarcador, destaca-se:
a elevação deste biomarcador pode revelar doença ativa em pacientes ainda clinicamente assintomáticos
correlação significativa entre os níveis fecais e os índices endoscópicos de atividade
valor preditivo de recorrência pós-operatória e no diagnóstico de bolsite
marcador de rastreamento de DII em familiares de indivíduos com DC
VN: 25 mg/kg Níveis > 50 mg/kg é considerado para atividade inflamatória
A S100A12 é uma proteína similar à calprotectina e que parece ser mais sensível na avaliação da atividade endoscópica nas DII, porém necessita de mais estudos para ser validada.
Calprotectina sérica Proteína proveniente de granulócitos, com meia vida de cerca de 5h. Na DC, sua elevação apresenta boa correlação com a atividade inflamatória clínica, com o nível de PCR, não havendo associação com o grau de atividade inflamatória endoscópica. (Atenção!).
Testes sorológicos (ASCA/pANCA) Perinuclear antineutrophil cytoplasmic autoantibodies (pANCA) tem sido reconhecido como bom marcador de RCUI. Anticorpos para epítopos oligomanosídicos do fungo Saccharomyces cerevisiae (Sc) (ASCA) são marcadores para DC. Ambos estão implicados no diagnóstico diferencial entre as duas entidades. A combinação de ambos pode ajudar nesta diferenciação. Ambos são feitos por técnicas padronizadas de imunofluorescência indireta e ELISA. A presença de ASCA em pacientes com DC está associada a comprometimento do intestino delgado. Níveis elevados mostrou associação com curso mais agressivo da doença. Um grande estudo de coorte relatou uma especialidade de 92% para a doença de Crohn em pacientes que eram ASCA positivos/ANCAp negativos e 98% para colite ulcerativa em pacientes que eram ASCA negativos/ANCAp positivos. Recentemente vários estudos buscaram correlacionar a presença de anticorpos ao diagnóstico da DII, o risco de aparecimento de complicações, resposta terapêutica e necessidade de cirurgia, mas até o momento observou-se pouca acurácia e aplicabilidade clínica.
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347 33 Doença de Crohn Painel sorológico e sua associação a complicações Anticorpo Doença de delgado Estenose Penetrante Cirurgia Doença perianal pANCA Não associado Não associado ASCA + +++ ++++ + Não associado Anti-l2 + + Não associado + Não associado OmpC Não associado +/+ + Não associado Anti-CBir1 Não associado ++ +/Não associado Não associado AMCA ++ ++ ++++ ALCA ++ ++ ++ ACCA ++ ++ ++ Anti-C + + ++++ Anti-L ++++ ++++ ++++ Anti-I2 (proteína da Pseudomonas fluorescens relacionada com DC). CDbir1: anticorpo contra a flagelina, antígeno imunodominante contra o qual há forte resposta de células B e linfócitos TCD4+. OmpC: anticorpos contra a porina C da membrana externa da E. coli. AMCA: antimanobiosídio. ALCA: antilaminaribiosídio. ACCA: anticitobiosídio. Tabela 33.7
O teste ASCA positivo em familiares de pacientes com DC sugere que este teste seja um marcador subclínico da afecção. Mas se ele reflete fatores ambientais ou genéticos, ou a combinação de ambos, ainda não se sabe.
Radiologia Os sinais radiológicos, em trânsito intestinal e enema opaco, podem estar ausentes na doença inicial. Os mais comuns são: relevo mucoso com serrilhamento; falhas de enchimento; sinal do “cordel”, ou de Kantor (área de estenose segmentar no íleo terminal e fístulas internas). Outro sinal é a imagem em paralelepípedo “cobblestone”.
Figura 33.5 Trânsito delgado mostrando acometimento do íleo terminal por doença de Crohn. Observe o aspecto do ceco que se encontra retraído.
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348 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado
Figura 33.6 Trânsito delgado mostrando várias úlceras intestinais (setas) em doença de Crohn.
Figura 33.9 Megacólon tóxico: observe a grande dilatação do cólon transverso.
Na fase aguda da doença, o exame radiológico simples pode trazer informações importantes, como distensão de alças com gás e níveis hidroaéreos na obstrução. Ocasionalmente esse exame poderá sugerir complicação grave como o megacólon tóxico, caracterizado por grande dilatação do cólon transverso e perda das haustrações. Mais raramente, a ocorrência de perfuração intestinal será atestada pelo achado de pneumoperitônio.
Figura 33.7 Doença de Crohn do intestino delgado mostrando múltiplas áreas de estreitamento com o clássico aspecto em calceamento.
Figura 33.8 TC do abdome em doença de Crohn. Observe a formação de abscesso do psoas à esquerda por complicação da doença de Crohn da mesma forma que envolvimento do mesentério e linfadenopatia retroperitoneal.
O exame radiológico contrastado poderá revelar a alternância de áreas sadias e doentes, além de caracterizar complicações como estenose e fístula. Não deve ser realizado na suspeita de megacólon tóxico ou perfuração. No trânsito intestinal, são achados comuns o calcetamento, diminuição do lúmen, dilatação proximal a áreas estenóticas, distorção dos contornos e deslocamento de alças adjacentes por massa inflamatória na fossa ilíaca direita. A cápsula endoscópica reconhece lesões que não seriam vistas em outros exames de imagem. Ela é mais sensível que as modalidades convencionais, é fácil de ser realizada e é bem tolerada pelos pacientes. O exame da cápsula endoscópica é especialmente empregado para diagnóstico de sangramento oculto, mas também é muito útil na avaliação do intestino delgado em pacientes com DC. No entanto, está contraindicado nos casos de suspeita de obstrução gastrointestinal, estenoses ou fístulas, marca-passo ou outros dispositivos eletrônicos implantados e distúrbios da deglutição. Por ser ainda um exame caro, não está disponível de forma mais abrangente. O exame de duplo contraste do cólon exibe características semelhantes aos achados na RCUI, embora o envolvimento preponderante do íleo terminal e cólon
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349 33 Doença de Crohn direito, a presença de lesões salteadas, calcetamento, fístulas, estenoses e ausência de comprometimento retal sejam características mais marcantes da DC. A realização de colonoscopia visa o diagnóstico e a avaliação da extensão da doença colônica. Nesse exame, lesões aftoides, fissuras e úlceras longitudinais, calcetamento da mucosa, pseudopólipos, fístulas e estenoses poderão ser observados. A ultrassonografia poderá revelar espessamento de alças intestinais, caracterizado por imagem em alvo. Esse exame também é útil no diagnóstico de abscessos associados à doença. A tomografia computadorizada permite observar aumento da espessura da parede intestinal, alterações na gordura mesentérica, retroperitoneal e do grande omento, presença de linfonodomegalia regional, abscessos, fístulas e massas inflamatórias. Na presença de fístulas enterocutâneas, a realização de fistulografia com contraste hidrossolúvel poderá ser útil para esclarecer o trajeto das fístulas e identificação das alças envolvidas. Principais diferenças macroscópicas entre RCU e DC Achados macroscópicos RCU Crohn Predomínio de envolvimento do: Cólon distal Comum Incomum Cólon proximal Incomum Comum Reto poupado Raro Comum Lesões segmentares (salteadas) Não Sim Úlceras aftosas Não Sim Úlceras profundas Incomuns Comuns Aspecto pavimentoso ou em Raro Comum mosaico (cobblestone) Pseudopólipos Comuns Incomuns Mucosa atrófica Comum Incomum Tabela 33.8 Principais diferenças microscópicas entre RCU e DC Achados RCU Crohn microscópicos Inflamação Difusa, mucosa Segmentar, focal, transmural Abscessos de criptas Frequentes Ocasionais Distorção de criptas Leve a intensa Leve Atrofia de mucosa Comum Rara Depleção de células Pronunciada Discreta caliciformes Granulomas epiteAusentes Presentes em lioides e/ou células 30 a 60% dos gigantes de Lancasos: valor gerhans diagnóstico
Principais diferenças microscópicas entre RCU e DC (cont.) Típicas Ulcerações com pou- Só nos casos ca inflamação adja- fulminantes cente Metaplasia pilóríca Ausente Típica no íleo Metaplasia de célula Comum Rara de Paneth Tabela 33.9
Tratamento clínico Como não há cura definitiva para a DC, os objetivos terapêuticos são induzir e manter a remissão da doença e suas complicações, de preferência com o mínimo de efeitos colaterais e com o menor custo para o paciente e/ou o sistema de saúde. A primeira linha de tratamento é baseada em combinações que incluem aminossalicilatos e derivados, glicocorticoides, terapia nutricional e antimetabólitos. Mais recentemente, novas opções terapêuticas têm sido lançadas no mercado, proporcionando novas estratégias que visam lançar os compostos ativos diretamente no local acometido, reduzir a flora intestinal e modular a resposta inflamatória e imunológica. A sulfassalazina é composta pela sulfapiridina e ácido 5-aminossalicílico (5-ASA), sendo absorvida pelo intestino delgado (25%), captada pelo fígado e excretada na bile. O restante é clivado no cólon e libera o 5-ASA, que é pouco absorvido. Este inibe a ciclo-oxigenase (e consequentemente a produção de prostaglandinas), a produção de imunoglobulinas por células mononucleares intestinais, e tem atividade supressora sobre radicais livres. É ineficaz na DC do delgado, mas benéfica na forma colônica. Pode ser responsável por efeitos colaterais dose-dependentes (cefaleia, náuseas, vômitos) e por reações de hipersensibilidade. É utilizada nas doses de 2 a 4 gramas por dia. As preparações farmacêuticas do 5-ASA (comprimidos, enemas e supositórios) evitam os efeitos adversos da sulfapiridina, propiciam maior concentração no nível das lesões e maior atividade terapêutica no intestino delgado. Têm maior custo e são utilizadas em doses de 2 a 5 gramas por dia. São representadas pela olsalazina (Dipentum®), mesalazina (Asacol®, Pentasa®, Asalite®, Rowasa®). São eficazes no tratamento das formas leve e moderada da DC, especialmente na colite, embora com resultados menos pronunciados que na colite ulcerativa. Os preparados orais têm sido avaliados nas exacerbações agudas da DC, demonstrando vantagens terapêuticas sobre placebo, mas resultados inferiores aos corticoides. Os glicocorticoides (prednisona e metilprednisolona) constituem a base do tratamento clínico da DC ativa, induzindo remissão dos sintomas em alta porcentagem de pacientes em 12 a 16 semanas
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350 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado (cerca de 70 a 90%). Inibem a produção de leucotrienos e têm atividade moduladora sobre a IL-1, TNF-alfa e outros. Geralmente inicia-se o tratamento com 40 a 60 mg de prednisona por dia, reduzindo-se a dose a 5 mg/ semana quando houver resposta terapêutica favorável. Doentes com colites graves necessitam de hospitalização e emprego da via venosa (hidrocortisona 100 mg três vezes ao dia ou prednisolona 30 mg 12/12 horas). Devido a seus potenciais efeitos colaterais (Cushing, osteoporose, diabete, sangramento digestivo), novos derivados glicocorticoides têm sido introduzidos no mercado. A budesonida e a beclometasona apresentam maior atividade tópica e pouca atividade sistêmica. A revisão de estudos controlados com budesonida utilizada em doses de 9 mg/dia mostra eficácia comparável à da prednisona em doses de 40 mg/dia na DC do íleo distal e cólon direito, não havendo benefícios relevantes na terapia de manutenção. Uma vez obtida a remissão bem sucedida com glicocorticoides, seu uso no tratamento contínuo em doses baixas é ineficaz na prevenção da recidiva; além disso, aproximadamente 35% dos pacientes desenvolvem dependência dessas drogas. Nesses casos, o controle efetivo do processo inflamatório é mandatório para evitar o desenvolvimento de complicações. Nesse contexto, os imunossupressores (azatioprina, 6-mercaptopurina, metotrexato, ciclosporina) são habitualmente indicados para induzir remissão em doença refratária ou dependente de glicocorticoides, e também como terapia de manutenção. Azatioprina na dose de 50 mg/dia é a primeira alternativa. Nos casos de intolerância ou alergia, usa-se o metotrexato 25 mg por semana por via intramuscular por 6 semanas, reduzindo-se para 10 a 15 mg/semana na manutenção. Análogos da purina (AZA ou 6-MP) também podem ser empregados em fístulas abdominais/entéricas ou perianais, com índices de sucesso de 80 e 56%, respectivamente. Entretanto, têm a desvantagem de apresentar resposta tardia à terapêutica (3 a 9 meses) e estão associados a efeitos adversos em 9 a 15% dos pacientes, como depressão medular, infecção, pancreatite, hepatite tóxica e linfoma. A ciclosporina age por bloqueio seletivo da ativação de linfócitos T-helper e citotóxicos. Apesar de ser um agente útil na conduta inicial de fístulas refratárias da DC, ocorre recidiva com a diminuição dos níveis séricos da droga. Além disso, os efeitos da ciclosporina na manutenção da remissão são desapontadores, razão pela qual tem sido cada vez menos indicada. O emprego de antibióticos (metronidazol, ciprofloxacina) baseia-se na suposição de que a flora bacteriana tenha um papel na patogênese das lesões da DC. Podem ser usados na manutenção da remissão clínica, na doença refratária e na presença de fístulas. O metronidazol é ativo contra a flora anaeróbica, e tem sido especialmente indicado no tratamento da doença perianal ou quando o cólon está envolvido. A ciprofloxacina é uma quinolona com atividade sobre E. coli e enterobactérias, que pode ser usada isoladamente ou associada ao metronidazol.
Terapêutica biológica O fator de necrose tumoral alta (TNF-alfa) é uma potente citocina, com uma série de efeitos proinflamatórios em pacientes com DII. O infliximabe (1998), adalimumabe (2007) e o certolizumabe (2008) são as principais drogas antiTNF-α. O golimumabe é o mais recente anti-TNF-α. O etanercept não se mostrou eficaz em pacientes com DC. Qual é o melhor? A experiência mais consistente é com o infliximabe. Na prática o infliximabe deve ser a escolha inicial, principalmente nos pacientes que necessitam de uma rápida indução de resposta clínica ou que possam ter problemas de adesão à autoinjeção. Indicações: DC moderada a grave, doença fistulizante, DC refratária e doença metastática. Dose do infliximabe: 5 mg/kg (meia vida de 7-12 dias), infusão venosa, a intervalos de 0,2 e 6 semanas, seguindo-se doses de manutenção a cada oito semanas. Em pacientes que não obtiveram mais respostas a 5mg/kg com dose de manutenção, há evidência de que venham a responder novamente com uma dose de 10 mg/kg. Efeitos adversos: reação de hipersensibilidade, lúpus-like, tuberculose, linfoma e doença desmielinizante do SNC. A realização de PPD e radiografia de tórax é obrigatória. Pacientes com PPD reator (≥ 5 mm)e sem sinais de tuberculose ativa, fazer infliximabe associado com isoniazida (300 mg/dia por 6 meses). Cocidioidomicose e histoplasmose são outras infecções documentadas nos pacientes em uso de infliximabe. Terapias anti-TNF usadas na doença de Crohn Via de adProtocolo Protocolo Agente ministrade manude indução ção tenção 5 mg/kg nas 5 mg/kg a Infliximabe Intravenosa semanas 0, cada 8 se2, 6 manas 160 mg na semana O 40 mg a 80 mg na seAdalimuSubcutânea cada 2 semabe mana 2 manas 40 mg na semana 4 400 mg nas 400 mg a CertolizuSubcutânea semanas 0, cada 4 semabe 2, 4 manas Tabela 33.10
Drogas anti-integrinas Os anticorpos anti-integrinas (natalizumabe e vedolizumabe) têm como alvo as moléculas integrinas, que são fundamentais na migração de leucócitos para
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351 33 Doença de Crohn os locais de inflamação. O natalizumabe foi aprovado pelo FDA em 2008. Em relação ao perfil de segurança a maior preocupação tem sido o desenvolvimento de encefalopatia multifocal progressiva, causada pelo vírus JC. A dose recomendada é de 400mg uma vez a cada quatro semanas e sem dose de indução, em infusão endovenosa. A indicação fica por enquanto aos pacientes não respondedores às drogas anti-TNF-α. Terapias anti-integrina usadas na doença de Crohn Via de adProtocolo Protocolo Agente ministrade manude indução ção tenção 300 mg a Natalizu300 mg na Intravenosa cada 4 semabe semana O manas 300 mg nas 300 mg a VedolizuIntravenosa semanas 0, cada 8 semabe 2, 6 manas
Requisitos de triagem infecciosa previamente ao início da terapia* Agente
Tuberculose
Hepatite B
Vírus JC
Infliximabe
+
+
–
Adalimumabe
+
+
–
Certolizumabe
+
+
–
Natalizumabe
–
–
+
Vedolizumabe
–
–
–
Tabela 33.13 (*) Recomendações gerais: é possível que pacientes individuais requeiram investigação para infecções, com base em estado clínico, história de infecção, suspeita de infecção e/ou localização geográfica.
Tabela 33.11
Terapia nutricional (TN)
Outros tratamentos A oxigenoterapia hiperbárica tem sido utilizada para elevar a tensão relativa de oxigênio tecidual, a fim de controlar infecção por anaeróbios, melhorar a atividade bactericida de leucócitos e a proliferação de fibroblastos. Sua administração normalmente requer várias sessões semanais de oxigênio a 100% em pressão de 2,5 atmosferas, com resultados iniciais bons em doença perianal refratária. O tratamento com probióticos, constituído pela administração de altas concentrações de bactérias não patogênicas (Lactobacillus, Bifidobacterium, Saccharomyces boulardii, Streptococcus salivarius) que modificam a flora intestinal, substituindo as cepas mais agressivas e reduzindo a agressão antigênica oriunda das bactérias patogênicas, mais agressivas (exemplo: Salmonella, Listeria, Clostridium etc.), tem obtido resultados animadores, tanto em pacientes com RCU como em portadores da doença de Crohn prolongando o tempo de remissão da doença.
A TN pelas vias oral, enteral ou parenteral pode ser necessária em várias fases evolutivas das DII. Os principais objetivos da TN são manter e/ou recuperar as condições nutricionais, obter uma eventual remissão da atividade da doença, reduzir as indicações cirúrgicas e as complicações operatórias. De maneira geral, prefere-se a via enteral em virtude de gerar menos complicações e ter custo menor, reservando-se a via parenteral para quando houver contraindicação ou intolerância à via enteral. Contraindicações ao uso da nutrição enteral (NE) incluem hemorragia maciça, perfuração ou obstrução intestinal, fístulas de alto débito, megacólon tóxico e alguns casos de síndrome do intestino curto. DII
Novos biológicos em andamento Novos produtos biológicos sob investigação para DII Fármaco Alvo molecular Anrukinzumabe IL-13 Etrolizumabe Integrinas Tralokinumabe IL-13 Ustekinumabe IL-12/23 Vatelizumabe VLA-2 IL: interleucina; VLA: antígeno de ativação muito tardia. Tabela 33.12
Consegue atingir 60% das necessidades por via oral? Sim Dietas poliméricas por via oral
Não Nutrição parenteral nos casos em que a nutrição enteral não é possível
Nutrição enteral (sonda nasogástrica, enteral, gastrostomia, jejunostomia) • Poliméricas • Oligoméricas • Monoméricas
Figura 33.10 Algoritmo para indicação da terapia nutricional na doença inflamatória intestinal (DII)
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352 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado
Indicações cirúrgicas O tratamento cirúrgico de uma complicação deve ser limitado ao do segmento envolvido e nenhuma tentativa deve ser feita para ressecar mais intestino, mesmo que uma doença macroscopicamente evidente possa ser aparente.
zão pela qual os antibióticos devem ser administrados antes que ocorra a contaminação bacteriana, visando a bactérias Gram-negativas e anaeróbicas. Nas DII, a antibioticoterapia deve ser terapêutica, porque esses doentes apresentam alterações imunológicas que podem favorecer a instalação de infecções secundárias.
Técnicas cirúrgicas
As indicações cirúrgicas para tratamento das DII devem resultar de um consenso entre cirurgião e o paciente conhecedor das características de sua doença, das perspectivas do ato operatório e suas consequências. O tratamento cirúrgico possibilita melhora da qualidade de vida deteriorada em parcela significativa dos pacientes.
Estima-se que o tratamento cirúrgico seja necessário em aproximadamente 50% dos pacientes após 5 anos de doença e entre 74 a 96% após 10-20 anos de seguimento. A ressecção completa dos segmentos macroscopicamente envolvidos era considerada essencial, mas demonstrou-se que a incidência de recidiva não depende de doença residual microscópica nas margens de ressecção.
A intratabilidade clínica e a obstrução intestinal são as mais comuns indicações cirúrgicas.
Como princípios básicos, recomenda-se realizar incisão mediana para preservar os quadrantes inferiores do abdome, reconhecer a extensão da doença para o correto planejamento operatório, proceder a ressecções econômicas e evitar anastomoses na presença de contaminação cavitária.
Vários autores destacam a intratabilidade clínica como a indicação mais comum, no entanto o tratado do Sabiston, 19a edição destaca a obstrução intestinal como a causa mais comum. Principais indicações cirúrgicas na doença de Crohn (DC) Intratabilidade clínica Dificuldade no controle dos sintomas com doses máximas de medicação Efeitos colaterais importantes do tratamento clínico Dificuldade de manutenção do tratamento pela presença de crises de agudização Complicações agudas Abscessos anais Abscessos abdominais Perfuração livre Oclusão intestinal Megacólon tóxico Hemorragia maciça Complicações crônicas Fístulas internas Fístulas enterocutâneas e colocutâneas Manifestações extraintestinais Retardo no crescimento Neoplasi Tabela 33.14
Preparo pré-operatório O preparo mecânico do cólon é fundamental. Preparos anterógrados com manitol, polietileno glicol ou picossulfato sódico devem ser realizados cuidadosamente, uma vez que muitos desses doentes podem ser portadores de estenose ou fístulas. O preparo reduz a quantidade de fezes e bactérias, mas não as elimina, ra-
Para preservar a maior extensão possível do intestino, empregam-se ressecções econômicas ou enteroplastias no tratamento das lesões múltiplas do intestino delgado. Ressecções parciais ou múltiplas, retirando as áreas mais intensamente atingidas, podem ser benéficas para diminuir os sintomas e evitar desnutrição.
Doença ileal ou ileocecal Na doença ileal os quadros obstrutivos são, geralmente, parciais e passíveis de resolução com tratamento conservador. Quando associadas a fibrose extensa, abscessos e fístulas associadas, a ressecção do segmento acometido torna-se imperativa, e a reconstrução do trânsito pode ser feita por anastomose laterolateral mecânica ou terminoterminal manual, reconhecendo-se, hoje, que a primeira está associada a menor índice de complicações e recidiva. A ressecção com margem mínima de segurança deve se acompanhar de cuidados técnicos adicionais na dissecção do mesentério inflamado e espessado, a fim de manter o segmento remanescente bem vascularizado. Linfadenectomias empregadas no passado são desnecessárias. Excepcionalmente, quando as condições técnicas impedirem a ressecção intestinal, pode-se realizar derivações internas ou externas. Em pacientes já submetidos a operações prévias, a combinação de ressecção limitada e técnicas conservadoras pode ser a melhor alternativa. A ressecção ileal interfere com a absorção de vitamina B12 e dos sais biliares, podendo determinar alterações funcionais, desenvolvimento de litíase biliar e cálculos renais de oxalato. Desnutrição grave ocorre quando é excisado mais que 75% do intestino delgado.
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353 33 Doença de Crohn
Jejunoileíte Forma clínica grave com acometimento de segmentos longos e/ou múltiplos no intestino delgado, levando, com maior frequência, a quadros de estenoses curtas. O tipo mais popular de enteroplastia é a técnica de Heineke-Mikulicz, originalmente proposta para tratamento da hipertrofia pilórica. Geralmente usada em estenoses menores que 7 cm, essa técnica consiste em abrir longitudinalmente o intestino na borda antimesentérica, fechando essa brecha no sentido transverso de maneira a aumentar a luz intestinal e corrigir a estenose. Já a técnica de Finney é mais bem indicada em estenoses entre 7 e 15 cm (geralmente > 10 cm), arqueando o segmento afetado em forma de U. Por esse detalhe técnico, seu uso não é indicado para longos segmentos intestinais pela dificuldade de dobrá-lo sobre si mesmo. Embora a técnica de Heineke-Mikulicz seja a mais comumente usada, a análise evolutiva dos pacientes sugere que a técnica de Finney pode reduzir os índices de reoperações em pacientes selecionados. Variações das técnicas de enteroplastia têm sido idealizadas. Fazio et al. descreveram um método que combina elementos desses dois tipos de plástica, utilizada nas estenoses de até 20 centímetros. Michelassi sugeriu a realização de enteroplastia isoperistáltica com anastomose laterolateral para tratamento de estenoses longas. Em 1997, Taschieri et al. descreveram uma enteroplastia alternativa, indicada seletivamente para os casos em que o íleo terminal está muito inflamado e há estreitamento da válvula ileocecal. A seleção dos locais para realização da enteroplastia é importante. Estenoses fibróticas segmentares (curtas) são consideradas as mais apropriadas, seja no jejuno íleo, duodeno ou em anastomoses ileocolônicas ou ileorretais após ressecção intestinal. As enteroplastias têm sido especialmente indicadas em pacientes com jejunoileíte difusa (especialmente com ressecções prévias) e nas estenoses longas, com bons resultados. Eventualmente, são associadas a ressecções parciais. Perfuração intestinal, fístulas e abscessos são considerados contraindicações para sua realização.
Doença colônica As principais indicações cirúrgicas são intratabilidade clínica, fístulas e estenoses. A realização de derivações intestinais isoladas para prover “repouso” ao intestino inflamado não oferece benefícios aos pacientes, sendo esta indicação abandonada em favor da instituição de terapia nutricional parenteral no pré-operatório. Assim, a doença colônica deve ser tratada por técnicas de ressecção que irão variar conforme as características de cada paciente. A conduta operatória irá depender da localização preferencial do processo inflamatório e da pre-
sença de lesão perianal. Ressecções econômicas segmentares do cólon direito ou do cólon esquerdo com anastomose primária podem ser realizadas em doenças limitadas a esses segmentos. Mesmo sendo elevada a incidência de recidiva, o paciente se beneficia pela ausência do estoma e pelo controle dos sintomas durante algum tempo. A maioria dos doentes com colite de Crohn apresenta acometimento extenso, poupando o reto em até 25% dos casos. Colectomia total com ileorretoanastomose pode ser realizada em pacientes em que o reto tenha boa complacência, não esteja muito comprometido pelo processo inflamatório ou por displasia, comprovando-se que há boa função esfincteriana. Do ponto de vista técnico, é procedimento mais simples, com baixo índice de complicações pós-operatórias e sem consequências na esfera urogenital. Nos casos em que o cirurgião não esteja convicto da viabilidade do reto ou na presença de sepse perineal, pode-se preservar o reto e realizar colectomia subtotal e ileostomia, postergando a ressecção definitiva do reto. Nesses casos, o paciente deve ser submetido a exames rotineiros do reto em vista da possibilidade de malignização. O acometimento perianal importante torna necessária a realização de proctocolectomia total com ileostomia definitiva.
Cirurgia de emergência O tratamento cirúrgico emergencial é realizado para o controle das hemorragias, tratamento da obstrução aguda, do megacólon tóxico, da ileíte aguda e da perfuração, que são complicações pouco frequentes.
Fístula Fístulos podem se originar de qualquer segmento intestinal e envolver órgãos ou estruturas adjacentes, como a pele (enterocutâneas), bexiga (enterovesicais), vagina (retovaginais) e alças intestinais (enteroentéricas ou enterocólicas). Fístulas perianais são frequentes. Deficiências nutricionais, como anemia e hipoalbuminemia, são comuns. As fístulas enterocutâneas devem ser tratadas pela excisão do trajeto fistuloso ao longo do segmento lesado do intestino e realizando-se uma reanastomose primária. Se a fístula formar-se entre duas ou mais alças adjacentes de intestino lesado, os segmentos envolvidos devem ser excisados. A presença de uma fístula enteroenteral radiologicamente demonstrável sem nenhum sinal de sepse ou de outras complicações não é, em si mesma, uma indicação cirúrgica.
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354 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado Caso haja indicação cirúrgica, a recomendação é ressecção econômica com anastomose primária. Nas fístulas ileossigmoideanas, geralmente, a ressecção fica restrita ao segmento do íleo acometido, já que o sigmoide, na grande totalidade dos casos, está sadio. Caso se evidencie doença nesse segmento colônico, o sigmoide deve ser ressecado em conjunto com o íleo.
O tratamento deve ser individualizado. Combinações terapêuticas envolvendo antibióticos, azatioprina/6-MP com ou sem infliximab, associadas à cirurgia conservadora (incisão, drenagem e colocação de seton) podem facilitar a cicatrização de fístulas em muitos pacientes. Em casos de sepse perianal, o emprego de oxigenoterapia hiperbárica pode melhorar as condições locais, e o uso de drogas biológicas (anti-TNF-alfa) podem ser benéficas.
Megacólon tóxico O megacólon tóxico constitui complicação grave caracterizada por dilatação do cólon (> 6 cm) e quadro séptico, de etiologia ainda mal definida. A inflamação transmural resulta em paralisia da musculatura lisa do cólon, que se dilata passivamente e perde as contrações propulsivas. A peritonite localizada permite absorção de toxinas, desencadeando quadro séptico com febre, taquicardia, leucocitose e choque. Muitos pacientes não respondem à terapia clínica e requerem intervenção cirúrgica precoce. Constituem indicações para cirurgia imediata a presença de perfuração livre ou sinais de peritonite, dor abdominal intensa e localizada (indicando perfuração iminente), sinais de choque séptico, hemorragia maciça associada ou deterioração das condições gerais em período de 24 horas. A restauração da continuidade do trânsito intestinal não deve ser tentada em condições emergenciais, como a colite fulminante e megacólon tóxico. Nessas circunstâncias, o procedimento mais indicado é a colectomia subtotal com ileostomia e sepultamento do reto remanescente, ou sua exteriorização como fístula mucosa.
Doença perianal As manifestações perianais da DC ocorrem em proporção variável entre 20 a 80% dos pacientes, e a meta do tratamento é a resolução da sintomatologia. Embora o tratamento local possa ser efetivo em pacientes selecionados, todos os esforços devem ser dirigidos para a resolução da doença intestinal, cujo controle ajuda na cicatrização perianal. Os critérios para avaliação da atividade da doença incluem a presença de dor abdominal, diarreia e complicações sistêmicas. A realização de colostomia não promove cicatrização, e a presença de lesões extensas pode motivar a indicação de amputação do reto, sendo essa situação pouco comum. Quando associada à incontinência fecal, outra opção é a proctocolectomia total, que evita a realização de grandes feridas que podem ter cicatrização lenta e difícil. O abscesso anal se constitui em indicação óbvia de tratamento cirúrgico local.
Videocirurgia na doença de Crohn Virtualmente, todas as operações realizadas por via convencional em pacientes com DC podem ser feitas por VL, incluindo procedimentos laparoscópicos de complexidade variável, como laparoscopia diagnóstica, derivação intestinal para controle de sepse perineal ou fístulas complexas, ressecção intestinal segmentar, ileocolectomia, enteroplastia, colectomia segmentar ou total (com ou sem anastomose). Essas técnicas variam na extensão em que os sucessivos tempos operatórios (desvascularização, secção intestinal e anastomose) são realizados dentro ou fora da cavidade abdominal. A colocação dos portais deve ser cuidadosamente planejada, tendo em mente que ao longo da evolução podem ser necessárias reoperações ou a confecção de estoma de derivação (doença perianal grave, ileostomia permanente, quadro fulminante). As ressecções segmentares e enteroplastias devem ser feitas segundo os mesmos princípios da cirurgia convencional. Recomenda-se reconhecer a extensão da doença pela inspeção sequencial retrógrada (do íleo terminal ao ângulo de Treitz), à procura de lesões não detectadas radiologicamente. Os segmentos doentes podem ser marcados e exteriorizados para ressecção ou enteroplastia. As ressecções ileocolônicas são realizadas de maneira “assistida”. O segmento é mobilizado por via laparoscópica, após o que é exteriorizado por pequena incisão auxiliar (ou facilitadora), desvascularizado, ressecado e anastomosado fora da cavidade abdominal. Em seguida, as alças são reintroduzidas e se restabelece o pneumoperitônio. A desvascularização também pode ser intracorpórea, facilitando a exteriorização do cólon. Na DC, é necessário evitar a apreensão e tração da alça inflamada, progredindo-se a dissecção da área intestinal normal em direção ao segmento doente, a fim de evitar enterotomias. A inflamação transmural resulta em mesentério espessado, friável e com aderências, tornando sua manipulação difícil e com maior risco de sangramento. Além disso, a mobilização de alças infla-
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355 33 Doença de Crohn madas através de uma pequena incisão pode causar estiramento e sangramento do mesentério, além de poder acarretar íleo pós-operatório prolongado. Apesar disso, a mobilização laparoscópica seguida de ligaduras vasculares extracorpóreas pode ser mais segura, rápida e barata quando o mesentério for espessado, permitindo, inclusive, a confecção de anastomose fora da cavidade. Há que se considerar também que a aplicação de clipes requer maiores cuidados técnicos em mesentério espesso. Nesse sentido, uma opção bastante atraente consiste em utilizar dispositivos especiais como o Ligasure Lap (Valleylab), que permite selar vasos com mínimo chamuscamento e disseminação de energia térmica, mas a experiência atual é ainda pequena. Recomenda-se que as incisões auxiliares sejam medianas trans-umbilicais, ou transversais suprapúbicas tipo Pfannenstiel. Além do efeito cosmético, essas incisões preservam os flancos do abdome para a eventual realização de estomas intestinais. Uma vantagem adicional da incisão mediana é possibilitar reintervenções pós-operatórias e futuras ressecções laparoscópicas nas recidivas. Aqueles que defendem a incisão de Pfannenstiel acreditam que ela também proporciona menos dor e complicações (infecção e hérnia) em comparação às incisões medianas ou transversais.
Figura 33.12 Estrituroplastia. A: os estreitamentos curtos podem ser alargados por uma incisão longitudial e um fechamento transversal (análogo à piloroplastia de HeinekeMikulicz); B: os estreitamentos mais extensos são abertos por uma incisão longitudinal e realiza-se um longo fechamento laterolateral (análogo à piloroplasia de Finney).
Após a ressecção com margem mínima de segurança, pode-se fazer anastomose laterolateral mecânica ou terminoterminal manual, sabendo-se, hoje, que a primeira está associada a menores índices de complicações e recidivas.
Figura 33.11 Ressecção ileocolônica típica para enterite regional. A: a margem de ressecção ileal fica imediatamente acima (proximal) da doença macroscópica. O ceco (e a válvula ileocecal) deve ser removido de forma que toda doença seja retirada, porém o cólon direito é preservado seccionando-o logo abaixo (distal) de qualquer acometimento colônico. O mesentério pode ser seccionado relativamente próximo ao intestino, a fim de preservar o suprimento sanguíneo (linha interrompida), pois os gânglios linfáticos aumentados não precisam ser removidos; B: uma anastomose terminoterminal é sempre exequível, apesar de qualquer discrepância de tamanho entre o íleo e o cólon.
Figura 33.13 Técnica de enteroplastia de Finney.
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356 Cirurgia do esôfago, estômago e intestino delgado
Prognóstico Os pacientes com pior diagnóstico são aqueles que manifestam a doença antes dos 40 anos ou naqueles que têm doença por mais de 13 anos. A taxa de mortalidade é duas a três vezes maiores do que na população geral. A chance de desenvolvimento de câncer é de 3-20 vezes maior do que na população em geral.
Ao diagnóstico
Qualquer momento
Resumo dos fatores preditores de mau prognóstico na DII Risco aumentado < 40 anos de idade Doença perianal Necessidade de corticosteroide no primeiro surto Envolvimento do trato digestivo superior Acometimento extenso do delgado (> 100 cm) Perda de peso > 5 kg 2 a 3 dos itens anteriores conferem > 90% de chance Manifestações extraintestinais Tabagismo Envolvimento ileal Ulcerações profundas na colonoscopia Falta de cicatrização mucosa após indução Tabela 33.15
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CAPÍTULO
6
Atresia de duodeno
“Sucesso autêntico é saber que se deixasse o mundo hoje, partiria sem arrependimentos.” – Autor desconhecido
Definição Atresia corresponde à obstrução completa do lúmen duodenal quase sempre no nível da ampola de Vater. Estenose: obstrução parcial geralmente no
Aproximadamente 50% possuem anomalias congênitas associadas (veja a seguir);
Pâncreas anular é encontrado associado à atresia duodenal com cotos separados em 20 a 30% dos casos, embora não seja considerado causa primária de obstrução.
nível da ampola de Vater, com pequeno orifício comunicando os dois segmentos comprometidos.
Epidemiologia
Prevalência: 1:5.000 a 10.000 nascidos vivos;
Leve predisposição ao sexo feminino;
Aproximadamente 50% pesam menos do que 2.500 g (prematuros e/ou pequenos para a idade gestacional - PIG) e, destes, 20% pesam menos do que 2.000 g;
Em 80% dos casos a atresia é distal à ampola de Vater e em 20% proximal;
Anomalias congênitas associadas
Trissomia 21: 25 a 30%;
Gastrointestinais: 30% (atresia de esôfago 7%; má rotação intestinal 20%; anomalia anorretal 3%; atresia jejunoileal e divertículo de Meckel);
Cardiovasculares: 20%;
Genitourinárias: 8%.
53 5 Atresia de duodeno
Classificação Estenose e atresia de duodeno estão limitadas, quase totalmente, à primeira e segunda porções duodenais. Pâncreas anular pode estar associado e quase sempre não é causa da obstrução.
Poli-hidrâmnio: 50 a 60%, em atresias e 10 a 15%, em estenoses;
Constipação ou eliminação de mecônio anormal;
Prematuridade ou PIG: 45 a 50%.
Tipo I (86%): são constituídas por um diafragma ou membrana formada por mucosa e submucosa. São divididas em:
– Membrana completa. – Membrana com pequeno orifício central. – Membrana do tipo “biruta” (windsock). Esse tipo de membrana alongada surge por influência direta da peristalse. O local de origem dessa membrana pode estar muitos centímetros proximais ao nível da obstrução.
Tipo II (2%): fundos cegos são conectados por curto cordão fibroso e têm mesentério intacto.
Tipo III (12%): não há cordão fibroso conectando os cotos, que são separados por alguma distância. O mesentério está ausente em defeito com forma de V.
Quadro clínico
Vômitos biliosos nas primeiras 24 h em atresias e entre 24 e 48 h, em estenoses, com resíduo gástrico: > 30 mL;
Distensão do epigástrio e restante do abdome escavado;
Presença de icterícia: 50%. Normalmente, os recém-nascidos, principalmente prematuros ou pequenos para a idade gestacional, apresentam icterícia por hiperbilirrubinemia indireta. Isso se deve ao aumento da produção de bilirrubina, meia-vida mais curta dos eritrócitos, maior formação de bilirrubinas de origem não hemoglobínica do heme, diminuição da concentração da albumina sérica resultando em menor capacidade de ligação e maior ciclo enteroepático. O mecônio do recém-nascido contém bilirrubina e betaglicuronidase, uma enzima que hidrolisa a bilirrubina conjugada à forma não conjugada. Pode ser reabsorvida e voltar ao fígado pelo ciclo enteroepático, que costuma estar aumentado nos recém-nascidos. Em obstruções intestinais congênitas, principalmente do duodeno, a alimentação retardada e a motilidade intestinal diminuída favorecem maior atividade da betaglicuronidase.
A
B
D
C
E
Figura 6.1 Representação esquemática dos tipos anatômicos mais frequentes de atresias e estenoses duodenais. A: atresia membranosa. B: membrana perfurada. C: membrana tipo “biruta”. D: atresia com cotos conectados por cordão fibroso. E: atresia com cotos separados.
Atenção: enquanto a atresia duodenal é uma situação diagnosticada nos primeiros dias de vida, a estenose duodenal pode ter quadro clínico muito menos aparente, com icterícia neonatal prolongada e déficit no crescimento. Os vômitos biliosos estão usualmente presentes desde o nascimento. Como a obstrução é somente parcial, há eliminação de mecônio e “fezes de transição”. A radiografia do abdome e mesmo o estudo contrastado do esôfago, estômago e duodeno são usualmente inconclusivos e a endoscopia digestiva alta é necessária para confirmar o diagnóstico.
Abordagem diagnóstica
História e exame físico;
Radiografia de abdome;
- Atresias: visualização de dupla bolha (estômago e bulbo duodenal); - Estenoses: dilatação do estômago, duodeno proximal e pouco gás visível abaixo da obstrução; Trânsito intestinal e/ou enema opaco: para afastar má rotação intestinal, que deve ser considerada emergência.
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54 Cirurgia pediátrica, urológica e vascular
Tratamento Avaliação e cuidados pré-operatórios
Reequilíbrio hidroeletrolítico e sonda nasogástrica n° 8-10;
Solicitar hemograma com plaquetas, prova de coagulação, glicose, bilirrubinas, ureia, creatinina, eletrólitos, cálcio, gasometria arterial e ecocardiografia.
Cirurgia Figura 6.2 Radiografia simples de abdome mostrando o sinal da dupla bolha. A bolha esquerda corresponde ao estômago (E) e a direita, ao duodeno obstruído (D).
Ultrassonografia prénatal Detecção pré-natal de atresia duodenal é uma indicação de análise cromossômica pré-natal pela alta associação com a síndrome de Down. Cerca de 15 a 20% das crianças com atresia de duodeno podem ter o diagnóstico sugerido por ultrassonografia pré-natal. Sinais ultrassonográficos:
Poli-hidrâmnio (a quantidade de fluido amniótico deglutido excede a capacidade absortiva do estômago e duodeno proximal);
Acesso: laparotomia transversa supraumbilical direita;
Liberação do ângulo hepático do cólon e manobra de Kocher;
Tratar bandas de Ladd ou outra forma de má rotação se houver;
Observar aspecto da vesícula biliar (associação com atresia de vias biliares é de 1 a 2%);
Certificar-se de que não existe veia porta pré-duodenal (4% dos casos);
A observação de continuidade preservada na parede do duodeno faz o diagnóstico de membrana. Colocar sonda de Foley por gastrotomia ou solicitar ao anestesista que introduza a sonda nasogástrica até o duodeno, guiada pelo cirurgião. Essa manobra pode diagnosticar membrana do tipo “biruta” ao distendê-la e provocar indentação proximal, definindo o ponto de sua inserção;
A permeabilidade do restante do duodeno e do jejunoíleo é comprovada pela injeção intraluminal de ar ou soro fisiológico. A coexistência de uma segunda membrana duodenal é de 1 a 3%.
Sinal da dupla bolha (estômago e duodeno preenchidos com líquido).
Tratamento da membrana
Figura 6.3 Ultrassonografia fetal: sinal da dupla bolha.
Duodenotomia longitudinal sobre a inserção da membrana;
Identificar a localização da ampola de Vater em relação à membrana. Comprimir a vesícula biliar para observar a saída de bile pela ampola. Usar magnificação óptica. Havendo orifício na membrana, a ampola quase sempre estará localizada na sua margem posteromedial;
Ressecar porções anteriores e laterais da membrana em forma de V (membranectomia parcial em forma de V). Deixar porção medial intacta;
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55 5 Atresia de duodeno
Realizar sutura fina contínua bem próxima das margens ressecadas para controlar sangramento, se necessário. Nunca usar cautério para isso;
Fechamento duodenal no sentido transversal;
No caso de diafragma ou membrana duodenal, também pode ser feita duodenoplastia do tipo Heinecke-Mikulicz, sem ressecção da membrana. Também é possível a ressecção da membrana por via endoscópica, por operadores experientes (riscos: perfuração duodenal, lesão da papila de Vater).
Tratamento da atresia sem continuidade ou pâncreas anular associado
Duodenojejunostomia laterolateral: pouco utilizada atualmente;
Duodenoduodenostomia laterolateral;
Duodenoduodenostomia laterolateral em forma de diamante (Diamond-shape), conforme descrição de Kimura: incisão transversa no coto proximal do duodeno e longitudinal no coto distal. A anastomose inicia-se aproximando as extremidades da incisão proximal à porção média da incisão distal. É a técnica mais utilizada atualmente;
Duodenoplastia redutora pode ser indicada primariamente durante o primeiro ato operatório, ou no pós-operatório tardio complicado por vômitos recorrentes, com radiografia demonstrando duodeno extremamente dilatado (megaduodeno) e atônico. Pouco usada; Gastrostomia: pouco usada atualmente.
A
B
Figura 6.4 A: anastomose de Kimura em forma de diamante. A extremidade proximal da incisão longitudinal (distal) deve ser aproximada ao ponto médio da borda inferior da incisão transversa (proximal). Os pontos médios da incisão longitudinal devem ser aproximados às extremidades da incisão proximal transversa. B: anastomose simples.
Pós-operatório
A maioria pode ser alimentada em sete a dez dias usando-se a técnica de Kimura. Porém, têm sido observadas até três semanas de obstrução funcional.
A realimentação, em geral, pode ser iniciada quando a drenagem da SNG tornar-se clara e < 30 a 35 mL/dia.
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CAPÍTULO
48
Doenças da aorta
“O poder da cooperação é o norte de uma equipe. Juntos seremos mais fortes”. – R.A.G.
Aneurismas aórticos Aneurisma arterial é definido como a dilatação focal de uma artéria, tendo pelo menos 50% do aumento de seu diâmetro quando comparada ao diâmetro normal da artéria em questão. O diâmetro normal da aorta abdominal em homens é de 20 mm, sendo normalmente 2 mm maior que nas mulheres. A importância do reconhecimento reside na prevenção da ruptura, visto que esse evento traz consigo índice de mortalidade superior a 50%.
5,5% 12%
2,5%
80%
Figura 48.1 Na aorta, os segmentos mais afetados, segundo Crawford são: ascendente em 5,5%, descendente em 12%, toracoabdominais descendentes em 12%, toracoabdominais em 2,5% e abdominais (infrarrenal) em 80%.
341 48 Doenças da aorta
Figura 48.2 Classificação dos aneurismas toracoabdominais segundo Crawford. Tipo I: distal à artéria subclávia esquerda e acima das artérias renais. Tipo II: distal à artéria subclávia esquerda e abaixo das artérias renais. Tipo III: a partir do 6º espaço intercostal e abaixo das artérias renais. Tipo IV: a partir do 12º espaço intercostal até a bifurcação ilíaca.
Epidemiologia O AAA (Aneurisma de Aorta Abdominal) é uma doença predominante dos homens brancos idosos. A frequência aumenta continuamente depois dos 50 anos, sendo 2-6 vezes mais comuns nos homens que nas mulheres e 2-3 vezes mais frequentes nos homens brancos que nos negros. A incidência (ou probabilidade de desenvolver um AAA) relatada variou de 3-117/100.000 habitantes-ano. Toda aorta abdominal com diâmetro transverso acima de 30 mm deve ser considerada aneurismática. Acredita-se que os aneurismas da aorta abdominal
(MA) sejam causados por lesão localizada da parede arterial, superimposta às alterações degenerativas causadas pela idade, fatores hemodinâmicos locais e fatores de risco sistêmicos, como a predisposição genética.
Etiologia e Patogênese Os fatores de risco associados aos AAA são idade acima de 65 anos, sexo masculino, hipertensão arterial, história familiar de aneurismas da aorta, tabagismo, doença pulmonar obstrutiva crônica, aterosclerose e doença arterial periférica. Pacientes portadores dessa afecção apresentam história familiar positiva em 15 a 20% dos casos. Os AAA são ocasionalmente associados a aneurismas em outros locais, principalmente nas artérias poplíteas e ilíacas. Aneurismas degenerativos – atualmente, quase todos os aneurismas da aorta são acompanhados de degeneração aterosclerótica dos grandes vasos, passando a ser chamados, na prática, de aneurismas ateroscleróticos (em contraposição aos de origem in-
flamatória, luética ou micótica, frequentes no passado). Tal associação entre aneurisma e aterosclerose leva-nos a
supor a existência de uma relação de causa e efeito entre essas condições, defendida por muitos. Recentemente, porém, descobriu-se a influência da elastase, enzima que participa da degradação das fibras elásticas e cuja atividade encontra-se aumentada na aorta desses pacientes. O aumento da elastase seria derivado, por sua vez, de deficiências na produção dos fatores teciduais inibidores das metaloproteinases, grupo do qual faz parte a elastase. A elevada incidência de aneurismas da aorta em irmãos de pacientes portadores dessa doença – chegando a 20% em algumas séries – sugere a interferência de um fator genético em tal deficiência. Por outro lado, a aterosclerose sabidamente provoca o alargamento das artérias que acometem todos os territórios e há autores que acreditam ser ela a causa dos aneurismas. Para eles, o aumento da atividade da elastase é apenas uma resposta tecidual a um remodelamento do vaso causado pela progressão das placas de ateroma. O fato é que a aterosclerose pode manifestar-se com estreitamento (estenose) ou dilatação (aneurisma) da luz do vaso. Provavelmente, os aneurismas da aorta são causados pela degeneração aterosclerótica, quando ela ocorre em indivíduos que, por constituição genética, carregam deficiência em inibir a atividade da elastase. Diversos estudos mostraram a associação de infecção crônica por Chlamydia pneumoniae e a sua relação com a expansão dos aneurismas aórticos. Aneurismas inflamatórios: cerca de 4 a 10% dos aneurismas da aorta abdominal apresentam parede espessa, constituída por uma camada fibrosa. Acredita-se que ocorra o envolvimento de mecanismos autoimunológicos em sua gênese. As fibras elásticas da camada média são substituídas por tecido fibroso, que tem pouco poder de sustentação. O que se considera como certo é que a destruição da elastina promove a liberação de mediadores das respostas inflamatórias, entre as quais a interleucina-1-b, que ocorre envolvendo a parede do aneurisma. Aneurismas infecciosos (micóticos): surgem da destruição da camada média. Êmbolos sépticos instalam-se neste local mediante a nutrição da camada média pela vasa vasorum. Também podem ocorrer pela contiguidade de processos infecciosos nos tecidos vizinhos. Reconhecem-se como mais frequentes os aneurismas micóticos que surgem em decorrência de endocardite infecciosa e septicemia por bacilos Gram-negativos. Até meados do século XX, a maior causa dos aneurismas infecciosos era a sífilis, por ação direta do Treponema pallidum sobre as fibras elásticas da camada média da aorta torácica, em geral na ascendente e no arco. Aneurismas congênitos: resultam de deformidade vascular originada durante a embriogênese. Mais comumente são de dimensões reduzidas e acometem ramos intracranianos e vasos viscerais, como a artéria esplênica e as artérias renais.
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342 Cirurgia vascular ilíacas e fornece outras informações importantes ao planejamento cirúrgico. A TC é particularmente útil
Figura 48.3 Representação de aneurismas de aorta: A: abdominal infrarrenal. B: toracoabdominal.
Diagnóstico A maioria dos AAA (Aneurismas de Aorta Abdominal) é assintomática, o que explica a dificuldade na detecção. Em alguns casos, os pacientes podem descrever uma “pulsação” no abdome ou palpar uma massa pulsátil. Ainda que a maioria dos AAA clinicamente significativos possa ser palpada durante o exame físico de rotina, a sensibilidade da técnica depende do tamanho do AAA, do grau de obesidade do paciente, da habilidade do examinador e do motivo principal do exame. Em 75% dos AAA de 5 cm ou mais o exame físico é capaz de detectá-lo. O valor preditivo positivo do exame físico para identificar AAA de 3,5 cm ou mais é de apenas 15%.
Existem várias modalidades de imageamento disponíveis para confirmar o diagnóstico dos AAA. A ultrassonografia abdominal em modo B é o exame menos dispendioso e invasivo e a técnica utilizada mais comumente, principalmente para a confirmação inicial da suspeita de um AAA, ou para o acompanhamento das lesões pequenas. As determinações ultrassonográficas do diâmetro mostram variabilidade interobservador < 5 mm em 84% dos estudos e são mais exatas na incidência anteroposterior que na lateral. A visibilização da aorta suprarrenal e das artérias ilíacas pode ser obscurecida pelos gases intestinais ou difícil nos pacientes obesos. A ultrassonografia não consegue determinar com precisão a existência de ruptura e, em geral, também não consegue avaliar precisamente a extensão proximal de um AAA. A tomografia computadorizada (TC) é mais dispendiosa que a ultrassonografia, expõe o paciente à radiação e requer contraste intravenoso, mas possibilita a determinação mais exata do diâmetro, pois 91% dos exames mostram variabilidade interobservador <5 mm. A precisão pode aumentar com o uso de técnicas padronizadas, compassos eletrônicos e amplificação. A TC define com precisão os limites proximais e distais do AAA, gera imagens mais nítidas das artérias
na exclusão da ruptura de AAA em pacientes sintomáticos e estáveis; à definição do limite proximal de um AAA; e à demonstração de outras patologias até então insuspeitas, como um aneurisma inflamatório ou outras anomalias intra-abdominais na ausência de um AAA. A TC helicoidal é um método novo e mais rápido de imageamento, que proporciona resolução excelente até mesmo dos ramos aórticos viscerais, caso sejam realizados “cortes” finos. Entre os avanços da TC helicoidal esta a reconstrução tridimensional, que fornece imagens mais esclarecedoras ao examinador e facilita a determinação exata dos diâmetros dos enxertos endovasculares. A ressonância magnética (RM) tem a mesma precisão da TC para avaliar e determinar as dimensões do AAA, e evita a exposição à radiação. Entretanto, a técnica é mais dispendiosa, não está tão disponível e é menos tolerada pelos pacientes claustrofóbicos que a TC. A RM é particularmente valiosa quando há contraindicação ao uso de contrastes intravenosos, como ocorre nos pacientes com insuficiência renal. Contudo, o refinamento da resolução espacial da TC helicoidal (angio TC-3D), combinado com a técnica mais rápida, praticamente relegou a RM a um papel secundário na investigação diagnóstica dos AAA. A arteriografia não é uma técnica sensível para confirmar o diagnóstico do AAA ou medir seu diâmetro com precisão, já que os trombos presentes dentro do aneurisma comumente diminuem o diâmetro da luz preenchido pelo contraste. Já a ar-
teriografia é utilizada na avaliação pré-operatória de alguns pacientes com AAA para definir a patologia das artérias adjacentes, que poderia afetar a reparação do aneurisma principal.
Quadro clínico As razões mais comuns para o desenvolvimento de sintomas nos pacientes com AAA são rupturas e expansão rápida. Os pacientes com ruptura de AAA relatam dor abdominal ou lombar de início súbito, que pode irradiar-se para o flanco ou para a virilha. A maioria dos AAA rotos é palpável, desde que a detecção não seja impedida pela obesidade ou distensão abdominal; em geral, as lesões também são dolorosas à palpação. Quando há ruptura, o extravasamento do sangue ocorre pela parede aórtica rompida. O volume da hemorragia e a compensação cardiovascular determinam a gravidade da hipotensão e do choque associados à ruptura; em geral, isso depende do local específico da ruptura, que em 20% dos casos está na superfície anterior da aorta e extravasa para a cavidade peritoneal. Ali, pode-se esperar pouco tamponamento e as hemorragias subsequentes são profusas. Oitenta por cento
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343 48 Doenças da aorta das rupturas ocorrem na superfície posterior da aorta e o sangue extravasa para o espaço retroperitoneal, onde o hematoma fica contido nos estágios iniciais, o que aumenta as chances de sobrevivência.
A maioria dos pacientes com rupturas de AAA tem no mínimo hipotensão transitória, que evolui para choque ao longo de algumas horas. Em alguns casos, a ruptura é contida tão eficazmente dentro do retroperitônio que os sintomas podem persistir por dias ou semanas, embora o paciente não tenha hipotensão. Os pacientes com “rupturas contidas” crônicas podem ser difíceis de diagnosticar, porque seus sintomas comumente simulam distúrbio inflamatório agudo. Embora a apresentação clássica da ruptura de AAA inclua dor abdominal ou lombar, hipotensão e massa abdominal pulsátil, as três manifestações clínicas são evidenciadas em apenas 26% dos pacientes com rupturas comprovadas. Perda temporária da consciência é sinal potencialmente importante de ruptura de AAA, porque ocorre em combinação com dor em 50% dos pacientes e é o único sintoma em 17% dos casos de ruptura de AAA.
Figura 48.5 Massa abdominal pulsátil (mesogástrio) em paciente magro – aneurisma de aorta infrarrenal. O sinal de Debakey: positivo quando, à palpação constata-se que a dilatação atinge o nível do gradeado costal (comprometimento dos ramos viscerais).
Com muito mais frequência, os AAA podem causar sinais e sintomas não relacionados com a ruptura. Em casos raros, AAA volumosos causam sintomas atribuídos à compressão local, como saciedade precoce, náuseas ou vômitos causados pela compressão do duodeno; sintomas urinários secundários à hidronefro-
se por compressão dos ureteres; ou trombose venosa por compressão das veias cava e ilíacas. A erosão posterior dos AAA para dentro das vértebras adjacentes pode causar dor lombar. Mesmo que não haja envolvimento ósseo, os AAA podem causar dor lombar ou abdominal crônica difusa e mal definida. Os sintomas isquêmicos agudos podem ser atribuídos à embolização distal dos detritos trombóticos contidos no AAA, o que parece ser mais comum aos AAA menores, principalmente se os trombos intraluminares forem irregulares ou estiverem fissurados. A trombose aguda dos AAA é rara, mas causa isquemia catastrófica comparável a qualquer obstrução aórtica aguda. A embolia é mais comum que a trombose aguda dos AAA, mas as duas combinadas ocorrem em menos de 2-5% dos pacientes com AAA.
Figura 48.6 Tomografia computadorizada de abdome com contraste: aneurisma de aorta abdominal infrarrenal (seta). Veia mesentérica superior (origem da veia porta)
Parede abdominal anterior
Piloro
Pâncreas Veia esplênica
Fígado
Tronco celíaco Aorta abdominal
Disco intervertebral
Artéria mesentérica superior
Veia renal esquerda
Lobo hepático esquerdo Fissura do ligamento redondo
Estômago
Pâncreas (corpo) Cólon transverso (próximo da flexura esplênica)
Lobo quadrado do fígado Vesícula Lobo hepático direito
Veia esplênica
Processo uncinado do pâcreas
Cólon descendente Jejuno Glândula adrenal esquerda Baço
Porção descendente do duodeno (2ª) Corpo vertebral
Artéria mesentérica superior
Veia cava inferior
Aorta
Glândula adrenal direita Pilar diafragmático direito Veia renal esquerda
Figura 48.4 USG abdominal evidenciando aorta (corte longitudinal).
Pilar diafragmático esquerdo Musculatura paravertebral
Figura 48.7 Tomografia computadorizada de abdome – exame normal.
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344 Cirurgia vascular
Figura 48.8 A: aneurisma da aorta torácica demonstrado pela reconstrução 3D com exibição simultânea de um corte sagital da TC para gerar contexto. O artefato de movimento é muito maior ao redor do coração e da aorta ascendente proximal. As bolhas focais evidentes no modelo foram confirmadas por ocasião da cirurgia. B: as artérias intercostais estão marcadas nos cortes da TC e demonstradas no modelo 3D por meio de um software interativo (marcas azuis). As marcas vermelhas foram colocadas para assinalar o topo da 8ª vértebra torácica (T8) e a parte inferior da 12ª vértebra torácica. A artéria intercostal calibrosa situada perto do topo de T8 foi identificada e preservada durante a cirurgia.
Figura 48.9 A e B: aortografias nas incidências anteroposterior (A) e lateral (B) do que parecia ser um AAA infrarrenal. A artéria renal direita está obstruída e a artéria renal esquerda tem uma estenose discreta. C e D: as reconstruções 3D nas projeções anteroposterior e lateral apenas do fluxo sanguíneo acentuado pelo contraste mostram a mesma coisa. E: a reconstrução 3D de objetos múltiplos torna visível a placa calcificada (branco) e o trombo (amarelo) e demonstra que o AAA na verdade afeta a aorta suprarrenal, inclusive a origem da artéria mesentérica superior. Isso foi confirmado na cirurgia. Essa imagem da reconstrução foi útil para a escolha de um local apropriado para a colocação do clampe aórtico transversal (antes da artéria celíaca) e para determinar que uma anastomose biselada poderia ser realizada ao longo da aorta relativamente normal. A artéria renal esquerda foi reimplantada sobre um remendo aórtico depois da endarterectomia da placa na origem da artéria renal. F: a estenose da artéria celíaca está evidente na reconstrução 3D ampliada e rodada, tornando visível apenas o fluxo sanguíneo. A lesão foi confirmada à cirurgia. A estenose da artéria celíaca passou despercebida na angiografia porque estava superposta à artéria mesentérica superior na incidência lateral.
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345 48 Doenças da aorta
História natural Os aneurismas da aorta abdominal (AAA) tendem a crescer até se romper. A velocidade de crescimento não é, porém, linear, e varia de um paciente para outro. Além disso, essa velocidade é progressiva, ou seja, quanto maior o aneurisma, mais rapidamente ele cresce. O dado preditivo mais importante de ruptura é o diâmetro da aorta, medido no ponto de maior dilatação. É muito rara a ocorrência de ruptura até o diâmetro atingir 5 cm. A partir daí, o risco de ruptura aumenta progressivamente (alto risco, diâmetro > 6 cm). Outros eventos menos frequentes podem ocorrer durante a evolução natural: a embolização a partir dos trombos murais, com isquemia de membros inferiores, ou a corrosão de corpos vertebrais.
taxa de expansão e o risco de ruptura. A interrupção do tabagismo é crucial e a hipertensão deve ser controlada rigorosamente, bem como otimizar o tratamento da dislipidemia. Betabloqueadores: diminuem a DP/DT, com consequente diminuição da velocidade de crescimento do aneurisma. O alvo deve ser a pressão arterial sistólica de 105 a 120 mmHg. Devem ser utilizados mesmo após a correção cirúrgica dos aneurismas. Doxiciclina (inibe a ação das metaloproteinases) parece ser promissora em reduzir a velocidade de crescimento dos aneurismas. Como a determinação do diâmetro pela TC é mais precisa do que pela ultrassonografia, alguns autores sugeriram que os AAA devam ser acompanhados pela TC de seis em seis meses.
Indicação cirúrgica
Risco de ruptura A influência do tamanho dos aneurismas no risco de ruptura ficou firmemente estabelecida e ofereceu bases seguras para recomendar o reparo eletivo dos AAA grandes, especialmente porque esses dois estudos revelaram aumento expressivo da sobrevida depois do reparo cirúrgico (Tabela 48.1).
Fatores de risco para ruptura de aneurisma aórtico abdominal Fator de Baixo risco Risco médio Alto risco risco Diâmetro < 5 cm 5-6 cm > 6 cm Expansão < 0,3 cm/ 0,3-0,6 cm/ > 0,6 cm/ ano ano ano Tabagismo, Nenhum, Moderado Intenso/ DPOC leve esteroides História Sem Um parente Vários familiar parentes parentes Hipertensão Pressão Controlado Mal arterial controlado normal Forma Fusiforme Sacular Muito excêntrico Sexo Masculino Feminino Tabela 48.1 Sabiston, 19ª edição.
Tratamento clínico Para os pacientes com AAA de baixo risco (diâmetro pequeno sem outros fatores de risco para ruptura) acompanhados pelas determinações periódicas do diâmetro, devem-se realizar esforços para reduzir a
Como vimos, a ruptura de aneurismas menores do que 5 cm (baixo risco) é tão rara que sua probabilidade de ocorrência é menor do que a mortalidade operatória (Tabela 48.2), mesmo em centros com grande experiência e em pacientes com bom estado geral. Fatores de risco independentes para mortalidade cirúrgica depois do reparo eletivo dos aneurismas da aorta abdominal Razão de IC de Fator de risco probabilidades* 95% Creatinina > 1,8 mg/dL 3,3 1,5-7,5 Insuficiência cardíaca 2,3 1,1-5,2 congestiva Isquemia no ECG 2,2 1-5,1 Disfunção pulmonar 1,9 1-3,8 Idade avançada (por dé1,5 1,2-1,8 cada) Sexo feminino 1.5 0,7-3 Tabela 48.2 (*) Razão de probabilidades indica o risco relativo comparado com pacientes sem esse fator de risco. IC: intervalo de confiança.
Tratamento cirúrgico Os pacientes com indicação de correção cirúrgica devem passar por avaliação clínica cuidadosa antes do ato operatório. Quase sempre são pacientes idosos e portadores de aterosclerose disseminada. Em 50% dos casos, existe doença arterial coronariana e muitos pacientes apresentam doença pulmonar obstrutiva crônica. A hipertensão e o diabetes mellitus também aparecem como fatores associados com bastante frequência.
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346 Cirurgia vascular
Indicações:
sintomáticos: intervenção independentemente do tamanho;
assintomáticos: diâmetro no homem > 5,5 cm, na mulher > 5,0 cm;
velocidade de crescimento maior que 0,5 cm em 6 meses.
O ponto mais importante para a redução de riscos de tratamento operatório é a otimização cardíaca pré-operatória, uma vez que as complicações cardíacas são a causa mais comum de morbidade e mortalidade perioperatória. Se o paciente apresentar sopro na carótida ou história anterior de ataque isquêmico transitório ou derrame, executa-se o exame duplex da carótida. Pacientes com alto grau de estenose da artéria carótida interna (70 a 99%) são considerados para endarterectomia da carótida antes do tratamento do AAA.
Estabilização perioperatória Os antibióticos intravenosos pré-operatórios (geralmente cefalosporina) são administrados para reduzir o risco de infecção do enxerto artificial. Como rotina, recomenda-se um acesso intravenoso amplo, a monitoração da pressão intra-arterial e a monitoração do débito urinário por um cateter de Foley. Para os pacientes com doença cardíaca significativa, monitorização hemodinâmica mais agressiva. Como o volume de sangue perdido durante a reparação dos AAA geralmente requer reposição sanguínea, a autotransfusão intraoperatória e a doação autóloga pré-operatória têm adquirido popularidade, principalmente porque evitam o risco de infecção associada às transfusões alogênicas. Entretanto, os estudos da relação custo-benefício desses procedimentos questionaram sua utilização rotineira. Um estudo demonstrou que os hematócritos pós-operatórios < 28% estavam associados à morbidade cardíaca significativa entre os pacientes de cirurgia vascular. A conservação da temperatura corporal normal durante a cirurgia aórtica é importante para evitar coagulopatia, permitir a extubação e manter a função metabólica normal. Para evitar hipotermia,
passe pelo tubo e não mais exerça pressão sobre as paredes enfraquecidas da aorta. Esse tubo pode ser introduzido por laparotomia ou por cateterismo (correção intraluminal).
Correção por laparotomia Nesse procedimento, a aorta é dissecada logo abaixo do cruzamento da veia renal esquerda, assim como as artérias ilíacas. A aorta e as ilíacas são pinçadas e o aneurisma é aberto. Os óstios dos ramos lombares e da artéria mesentérica inferior são suturados por dentro do aneurisma aberto, de forma a conseguir hemostasia completa. O tubo sintético é suturado ao colo proximal e, em seguida, ao colo distal. Quando o aneurisma atinge a bifurcação da aorta ou se estende até as ilíacas comuns, coloca-se um tubo bifurcado com sutura em cada uma dessas artérias. A liberação das pinças deve ser feita com cuidados especiais de manutenção das funções vitais, uma vez que sempre ocorre queda da pressão arterial, em maior ou menor grau, em decorrência da expansão do leito vascular que esteve reduzido durante o tempo de interrupção da aorta. A cirurgia do aneurisma da aorta apresenta mortalidade de 5 a 15%, dependendo da seleção de pacientes e do centro onde é realizada. As possíveis
complicações incluem isquemia de membro inferior (que pode levar à amputação), insuficiência renal, isquemia mesentérica e infarto do miocárdio. A paraplegia por isquemia medular é rara nos aneurismas infrarrenais, mas pode ocorrer devido à necessidade de ligadura das artérias lombares e sacrais durante o procedimento cirúrgico.
Indicações de tratamento cirúrgico para AAT (aorta torácica) Sintomáticos: indicação de intervenção indepen-
dentemente do maior diâmetro transversal do vaso. Assintomáticos:
deve-se colocar uma manta com recirculação forçada de ar quente em contato com o paciente e os líquidos intravenosos (inclusive o sangue devolvido pela máquina de autotransfusão) devem ser aquecidos antes da infusão.
O tratamento cirúrgico do aneurisma da aorta abdominal consiste, basicamente, em implantar um tubo sintético (de poliéster ou PTFE) dentro do aneurisma, de forma a fazer com que o sangue
aneurisma da aorta ascendente: maior diâmetro > 5,5 cm; aneurisma do arco aórtico: maior diâmetro > 6,0 cm; aneurisma da aorta descendente: maior diâmetro > 6,5 cm; aneurisma toracoabdominal: maior diâmetro > 6,5 cm; velocidade de crescimento maior que 0,5 cm em 6 meses.
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Correção dos aneurismas toracoabdominais da aorta Nessa situação, a via de acesso é por toracofrenolaparotomia, devendo-se considerar várias peculiaridades. A anastomose proximal pode ser transversal ou em forma de bisel, abrangendo a parede posterior da aorta para reconstrução das artérias intercostais, a fim de evitar sequelas neurológicas (paraplegia por neuropatia isquêmica). As artérias viscerais são englobadas em apenas uma ou duas aberturas laterais na prótese. A anastomose distal é feita de forma convencional. É importante que o tempo de pinçamento seja o mais breve possível. As principais complicações são isquemia medular, com paraplegia (que ocorre em cerca de 15% dos casos), insuficiência renal por isquemia prolongada, insuficiência hepática e necrose intestinal.
Figura 48.11 Correção de aneurisma toracoabdominal: note confecção de bisel na prótese de dacron para preservação dos óstios das artérias intercostais e renais.
Correção intraluminal
Figura 48.10 A: correção de aneurisma de aorta abdominal infrarrenal por laparotomia. B: clampeamento abaixo das artérias renais, abertura da parede do aneurisma. C: interposição de prótese de dacron. D: fechamento da parede do aneurisma (capa).
Nesse tipo de operação, usam-se tubos de poliéster ou PTFE. Introduzido pela artéria femoral, o tubo é comprimido dentro de uma bainha. Sua progressão é acompanhada por fluoroscopia. Retira-se então a bainha, permitindo que o tubo se expanda e se encaixe dentro do aneurisma. Esses tubos são construídos sobre stents, grades metálicas que podem ser comprimidas e depois expandidas no momento certo. Os stents fixam o tubo à artéria, sem necessidade de sutura. Conforme o tipo de stent utilizado, sua expansão pode ser feita de duas formas diferentes: uma delas exige que um balão de angioplastia seja inflado no interior
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348 Cirurgia vascular da grade para que o tubo se expanda; outra utiliza a própria elasticidade do tubo, quando liberado da bainha. Neste último grupo, os stents de nitinol são os mais usados, pois têm como característica sua memória térmica - o nitinol é bastante elástico quando mantido em temperatura baixa e torna-se rígido quando exposto à temperatura do corpo. Os tubos usados para esse tipo de operação (fixados por stents) são chamados de endopróteses. As endopróteses podem também ser bifurcadas para implante desde a aorta até as duas ilíacas comuns. Nesse caso, são necessários acessos pelas duas artérias femorais. Um segmento, constituído pelo tronco e por um dos ramos, é introduzido por um lado. O outro ramo é adicionado a partir da artéria femoral contralateral. Para possibilitar o acoplamento do segundo ramo ao tronco, este último tem um coto com marcas radiopacas. Não são todos os aneurismas da aorta abdominal que podem ser corrigidos por via intraluminal. Como os stents ocupam uma extensão de cerca de 15 mm na parede arterial para se fixar, é necessário que o colo proximal tenha no mínimo esse comprimento, desde as artérias renais até o início da dilatação. Aneurismas justarrenais, portanto, não são passíveis de correção por essa técnica. Exige-se também que haja um segmento não dilatado de cada ilíaca comum para a implantação distal. Não se recomenda a implantação nas ilíacas externas, o que implica oclusão das ilíacas internas, pelo risco de complicações associadas com essa oclusão (isquemia intestinal). Como a prótese é introduzida pela artéria femoral, contida em uma bainha de maleabilidade limitada, a tortuosidade exagerada do trajeto arterial pode inviabilizar o método. Assim, deve-se evitar os casos em que as ilíacas comuns são muito sinuosas. Em decorrência da necessidade de injeções repetidas de contraste iodado na aorta durante o procedimento, os pacientes com função renal limítrofe também não devem ser operados por via intraluminal. Na literatura, os índices de conversão variam entre 5 e 29%, dependendo da seleção de casos e da experiência do cirurgião.
Condições anatômicas necessárias para o implante com sucesso das endopróteses de aorta abdominal Comprimento do colo proximal ≥ 15 mm Angulação do colo proximal < 60º Diâmetro da artéria ilíaca externa ≥ 7 mm Ausência das artérias renais acessórias Ausência de trombos ou de calcificação extensa no colo proximal Tabela 48.3
Figura 48.12 Implante de endoprótese de aorta abdominal por técnica endoluminal por meio das artérias femorais direita e esquerda.
Complicações do reparo dos aneurismas da aorta abdominal Apesar da melhora significativa dos resultados do reparo eletivo dos AAA, ainda ocorrem complicações importantes que devem ser tratadas adequadamente ou evitadas para manter a mortalidade baixa necessária para justificar o reparo profilático dessas lesões. Infarto agudo do miocárdio é a principal causa isolada de mortes imediatas e tardias entre os pacientes submetidos a reparo dos AAA e deve ser avaliado e tratado cuidadosamente para reduzir a mortalidade. Complicações imediatas (30 dias) depois do reparo eletivo dos aneurismas da aorta abdominal estimadas com base nas séries cirúrgicas Complicação Morte Todas as causas cardíacas lnfarto do miocárdio Todas as causas pulmonares Pneumonia Insuficiência renal Dependente de diálise Trombose venosa profunda Sangramento Lesão ureteral AVE Isquemia do membro inferior Isquemia do intestino grosso Isquemia da medula espinhal Infecção da ferida Infecção do enxerto Trombose do enxerto Tabela 48.4
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Frequência (%) <5 15 2-8 8-12 5 5-12 1-6 8 2-5 <1 1 1-4 1-2 <1 <5 <1 <1
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Complicações cardíacas A maioria dos episódios de isquemia cardíaca ocorre nos primeiros 2 dias depois da cirurgia e, durante esse intervalo, a monitoração intensiva é apropriada aos pacientes de alto risco. As interven-
ções importantes para evitar isquemia miocárdica no pós-operatório são maximizar a função miocárdica pela manutenção da pré-carga adequada, controlar o consumo de oxigênio por meio da redução do produto frequência cardíaca X pressão arterial, assegurar a oxigenação apropriada e administrar analgesia eficaz. Os pacientes com disfunção cardíaca têm riscos mais elevados de IAM quando o hematócrito pós-operatório é < 28%, mesmo que o nível seja bem tolerado pelos indivíduos normais. Além de proporcionar controle excelente da dor, a analgesia epidural pós-operatória pode reduzir as complicações miocárdicas porque atenua a resposta das catecolaminas ao estresse.
Hemorragia Em geral, as hemorragias intraoperatórias ou pós-operatórias resultam das dificuldades encontradas durante a realização da anastomose aórtica proximal ou das lesões venosas iatrogênicas. O sangramento venoso geralmente resulta da lesão da veia ilíaca ou renal esquerda durante a exposição inicial. Em geral, o aneurisma aórtico distal ou os aneurismas da artéria ilíaca comum estão firmemente aderidos à veia ilíaca correspondente, o que dificulta a dissecção arterial circunferencial. Nesses casos, os clampes vasculares quase sempre podem ser aplicados com sucesso, mesmo sem a dissecção completa da parede posterior da artéria ilíaca, ou o controle vascular pode ser assegurado por cateteres de oclusão com balões. A veia renal esquerda posterior ou uma veia lombar calibrosa pode gerar riscos semelhantes durante a dissecção proximal. Se não forem detectadas pela TC pré-operatória, essas anomalias acarretam risco elevado de lesão venosa. O reparo cuidadoso por sutura das lesões venosas é necessário e, em alguns casos, facilitado pela secção temporária da artéria sobrejacente. O sangramento difuso depois de uma hemorragia intraoperatória substancial geralmente deve-se ao esgotamento dos fatores da coagulação e das plaquetas, agravado pela hipotermia. O reaquecimento rigoroso e a reposição de plaquetas e fatores da coagulação são necessários para reverter essa complicação.
Complicações hemodinâmicas O clampeamento aórtico (principalmente se supracelíaco) causa aumento súbito da pós-carga cardíaca, que se evidencia por hipertensão e pode causar isquemia miocárdica. Para evitar o problema, o clampe deve ser aplicado gradativamente e o procedimen-
to coordenado cuidadosamente com a administração do anestésico e dos fármacos vasoativos. Já a liberação repentina do clampe aórtico está associada a hipotensão significativa, causada pela superposição de redução da pós-carga cardíaca; “recirculação” do potássio, dos metabólitos ácidos e dos fatores depressores miocárdicos depois da reperfusão dos membros isquêmicos; e redução da pré-carga secundária ao aumento da capacitância venosa das pernas. A liberação gradativa do clampe com reposição adequada de líquidos e sangue é crucial para evitar tal complicação. A monitoração intraoperatória cuidadosa, inclusive por registro da pressão capilar pulmonar em cunha e por ecocardiograma transesofágico, pode facilitar a administração de líquidos, anestésicos e fármacos vasoativos aos pacientes com risco cardíaco bem definido.
Lesões iatrogênicas A lesão de algum órgão adjacente é possível durante o reparo dos AAA. A lesão do ureter é rara durante as operações eletivas, a menos que o trajeto do ureter tenha sido distorcido por um AAA volumoso, fibrose ou inflamação. Se houver lesão ureteral, deve ser reparada imediatamente. Um stent em duplo J é inserido pela área lesada para interligar a pelve renal e a bexiga urinaria. O ureter é fechado com a aplicação de suturas interrompidas com fios finos. Já o omento pode ser mobilizado com um pedículo vascular e enrolado ao redor do local da lesão. Depois da irrigação copiosa, o reparo do aneurisma pode prosseguir, supondo que a urina não esteja infectada. Depois do reparo, é recomendável fazer uma TC pós-operatória imediata para detectar a possível formação de urinoma, complicação que não é provável se o stent estiver funcionando adequadamente, mas que, quando presente, deve servir de indicação para a drenagem fechada percutânea sob orientação da TC ou ultrassonografia. Se a lesão ureteral não for diagnosticada, o paciente pode desenvolver hidronefrose ou urinoma, que requer a reexploração e reparo mais complexo. A identificação cuidadosa do ureter, especialmente durante a dissecção pélvica, evita essa complicação. A lesão esplênica causada pela retração excessiva pode resultar em hemorragia, que deve ser controlada pela esplenectomia porque a hemorragia tardia não é bem tolerada, caso a tentativa de reparo da lesão do baço seja infrutífera. A enterotomia acidental antes da colocação do enxerto deve justificar a interrupção imediata da cirurgia, com reparo eletivo subsequente do AAA para evitar infecção do enxerto. Pancreatite é uma complicação incomum do reparo dos AAA e é atribuída à retração do órgão na base do mesocolo transverso. Ela deve ser considerada causa do íleo pós-operatório persistente, principalmente quando a exposição da aorta proximal tiver sido difícil.
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Insuficiência renal A insuficiência renal é rara, atualmente, graças à reposição adequada do volume e a manutenção do débito cardíaco e do fluxo sanguíneo renal normais.
Entretanto, ainda são necessárias precauções para reduzir o risco dessa complicação. Em razão da toxicidade renal dos contrastes intravenosos, é recomendável postergar o reparo dos AAA depois da arteriografia ou da TC contrastada, para se ter certeza de que o exame não causou disfunção renal. Uma causa mais provável de insuficiência renal depois do reparo dos AAA infrarrenais é a embolização dos detritos ateromatosos da aorta para as artérias renais durante o clampeamento transversal da aorta proximal. A TC pré-operatória pode demonstrar placas ateromatosas ou trombos pararrenais, que devem indicar o clampeamento transversal supracelíaco temporário até que a aorta infrarrenal seja aberta. Nesse ponto, esse material pode ser removido e o clampe transferido para sua localização infrarrenal habitual. Durante a manipulação, as artérias renais devem ser temporariamente clampeadas e seus orifícios cuidadosamente irrigados antes da restauração do fluxo sanguíneo. Como a disfunção renal pré-operatória é o melhor previsor de insuficiência renal pós-operatória, precauções especiais são apropriadas para esses pacientes. Evidências sugerem um efeito benéfico com manitol intravenoso (cerca de 25 g) administrado antes do clampeamento transversal da aorta. Embora alguns autores tenham recomendado a manutenção do volume urinário alto por meio da furosemida, sua eficácia não foi comprovada e ela pode dificultar a avaliação do balanço hídrico por aumentar artificialmente o débito urinário. Como a insuficiência renal é mais provável nos pacientes que necessitam de clampeamento suprarrenal prolongado, são aconselháveis medidas especiais como o resfriamento renal.
Complicações gastrointestinais Depois de qualquer cirurgia abdominal, sempre há algum grau de disfunção intestinal. Entretanto, o íleo paralítico que ocorre depois da evisceração e da dissecção da base do mesentério durante o reparo transperitoneal dos AAA geralmente é mais persistente que o íleo que se desenvolve depois de outras cirurgias. Por essa razão, deve-se ter cautela ao reiniciar a alimentação oral depois da cirurgia. Anorexia, constipação transitória ou diarreia comumente ocorre nas primeiras semanas depois do reparo dos aneurismas. A isquemia do intestino grosso é uma complicação incomum e geralmente fatal, que pode ser atribuída à interrupção da irrigação sanguínea do colo sigmoide durante o reparo do AAA. Para evitá-la, é
importante entender a irrigação sanguínea do colo sigmoide e da pelve. A artéria mesentérica sinuosa é a comunicação mais importante entre a AMS e a AMI, interligando o ramo esquerdo da artéria cólica média com a artéria cólica esquerda ou a AMI. A artéria marginal de Drummond tem menos importância hemodinâmica, mas pode fornecer colaterais importantes se a artéria mesentérica sinuosa for lesada ou não estiver presente. O colo sigmoide também pode receber circulação colateral expressiva da artéria ilíaca interna por meio da artéria retal superior e até mesmo dos ramos femorais circunflexos da artéria femoral profunda, caso a artéria ilíaca interna seja obstruída. A circulação colateral ipsolateral proveniente das artérias ilíaca externa e femoral é mais importante que a circulação colateral pélvica contralateral, caso haja obstrução da artéria ilíaca interna. O reparo dos AAA (ou a reconstrução aortoilíaca por doença obstrutiva) pode colocar em risco a irrigação sanguínea do colo sigmoide depois da ligadura de uma AMI ou artéria ilíaca interna patente; por embolização dos detritos ateromatosos para dentro dessas artérias; por hipotensão prolongada, principalmente durante o reparo dos AAA rotos; e pela lesão por retração dos ramos colaterais importantes. Entretanto, em virtude da profusão dessa circulação colateral, o infarto intestinal não é comum.
Embolização distal A isquemia dos membros inferiores pode ocorrer depois do reparo de um AAA, geralmente por embolização dos detritos aneurismáticos durante a mobilização do aneurisma ou o clampeamento da aorta. Em geral, esses êmbolos são pequenos (conhecidos como microêmbolos), não podem ser removidos cirurgicamente e causam áreas dispersas de escurecimento transitório da pele, ou “dedos azulados”. O problema pode gerar dor persistente ou perda da pele, em alguns casos com necessidade de amputação. Segundo alguns autores, é recomendável o tratamento com dextrano de baixo peso molecular ou até mesmo a simpatectomia para essas lesões microembólicas, mas a conduta é basicamente expectante. Ocasionalmente, êmbolos maiores ou retalhos da íntima distal, principalmente das artérias anormais, podem exigir cirurgias. Por essa razão, as pernas devem ser cuidadosamente inspecionadas durante o procedimento para detectar isquemia depois do reparo dos AAA, enquanto a incisão ainda está aberta e o acesso às artérias pode ser conseguido facilmente, caso necessário.
Paraplegia A paraplegia resultante da isquemia da medula espinal é rara depois do reparo dos AAA infrarrenais, mas pode ocorrer quando a circula-
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351 48 Doenças da aorta ção colateral predominante das artérias espinais provém das artérias ilíacas internas, ou a origem anormalmente baixa da artéria espinal acessória (artéria radicular magna, ou artéria de Adamkiewicz)
é obstruída ou embolizada durante o reparo do AAA. Como a artéria espinal acessória normalmente se origina da parte descendente da aorta torácica ou da aorta abdominal alta, essa complicação é muito mais comum depois do reparo dos aneurismas toracoabdominais. Para evitá-la, alguns estudos enfatizaram a importância de preservar a perfusão das artérias colaterais espinais importantes pelas artérias ilíacas internas normais. Combinada com a hipotensão grave, a doença obstrutiva das artérias colaterais espinhais também pode causar paraplegia, o que explica a frequência mais alta da complicação durante os reparos dos AAA rotos. A paraplegia também foi descrita como sintoma inicial dos AAA infrarrenais, o que sugere que a circulação colateral pelas artérias espinais importantes, que se origina da aorta distal, possa ser obstruída pelo trombo mural alojado dentro do aneurisma, ou por sua trombose propriamente dita.
Disfunção sexual A impotência ou a ejaculação retrógrada pode ocorrer depois do reparo dos AAA como consequência da lesão dos nervos autonômicos durante a dissecção para-aórtica. É difícil calcular a incidência,
tendo em vista as diversas causas de impotência nessa faixa etária e a subnotificação frequente. Outra causa possível da impotência pós-operatória é a redução da irrigação sanguínea da pelve em virtude da obstrução ou embolização da artéria ilíaca interna.
Tromboembolia venosa Embolia pulmonar e trombose venosa profunda são menos comuns depois do reparo dos AAA que depois de outras cirurgias abdominais, talvez porque se utilize anticoagulação intraoperatória. Entretanto, a trombose venosa profunda subclínica pode ocorrer em 18% dos pacientes não tratados.
Complicações tardias As complicações tardias depois do reparo bem-sucedido de um AAA ou aneurisma ilíaco não são frequentes. Em um estudo populacional, apenas 7% dos pacientes tiveram essas complicações nos 5 anos subsequentes ao reparo dos AAA. A ruptura da anastomose, geralmente secundária à degeneração da artéria, pode resultar na formação de um pseudoaneurisma (um hematoma contido localmente pelos tecidos conjuntivos circundantes). Um estudo demonstrou incidência dos pseudoaneurismas aórticos de apenas 1% depois de 8 anos, mas de 20% depois de 15 anos. Quando são detecta-
dos, os pseudoaneurismas aórticos e ilíacos devem ser reparados, tendo em vista a probabilidade alta de morte depois da ruptura.
A infecção do enxerto depois do reparo dos AAA também é rara, a menos que seja necessária uma anastomose femoral. Com os enxertos aortoilíacos, a probabilidade de infecção é de 0,5% e geralmente ocorre 3-4 anos depois da implantação. A apresentação precoce é possível e mais provável se houver uma anastomose femoral. O desenvolvimento de fístulas aortoentéricas secundárias ao reparo também não é comum (0,9%), embora muito mais frequente que as fístulas aortoentéricas primárias associadas a um AAA.
Em geral, as fístulas aortoentéricas desenvolvem-se cerca de 5 anos depois do reparo do AAA, quase sempre envolvem o duodeno na linha de sutura proximal e comumente se evidenciam por hemorragia gastrointestinal. Em casos menos comuns, as fístulas aortoentéricas podem envolver a porção central do enxerto e causar infecção, em vez de hemorragia. Menos de 10% dos pacientes desenvolvem complicações tardias do reparo dos AAA ao longo de suas vidas. Entretanto, a maioria é grave e comumente fatal.
Complicações específicas do tratamento endovascular A síndrome pós-implante, caracterizada por febre e dor lombar (não acompanhada de leucocitose), pode ocorrer em até 50% dos pacientes. Acredita-se que seja causada pela trombose do saco aneurismático e tem evolução benigna. A região inguinal, onde é feito o acesso, também pode ser sítio de complicações como hematomas, pseudoaneurismas, linfocele, linforreia e infecção. Uma das razões principais para a falha da endoprótese é a presença de vazamento (endoleak), definido como um fluxo de sangue persistente para fora do enxerto e dentro da bolsa aneurismática. Há quatro tipos de vazamento. Tipos e tratamentos de vazamento após reparo endovascular de aneurisma aórtico Tipo de vazamento
Tipo I
Opções de tratamento Dilatação por Selamento inadequado balão da extremidade proxi- Colocação de mal ou distal da endo- stents ou módulos prótese adicionais Conversão aberta
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Causas do vazamento
352 Cirurgia vascular Tipos e tratamentos de vazamento após reparo endovascular de aneurisma aórtico (cont.) Fluxo proveniente das Observação artérias com sangraEmbolização com mento retrógrado espiral ou cola Tipo II Artérias lombar, sacral Ligadura laparosmédia, mesentérica incópica ferior, hipogástrica e reConversão aberta nal acessória patentes Colocação de Rompimento ou lacerastents ou módulos ção do tecido da endoadicionais Tipo III prótese Endoprótese secunDesconexão do módária dulo Conversão aberta Fluxo proveniente da Tipo IV porosidade do tecido Observação da endoprótese Tabela 48.5
Uma outra complicação do procedimento endovascular é a migração do dispositivo. Isso é definido como um aumento superior a 5 mm na distância entre a artéria renal inferior e a extremidade craniana do dispositivo. A migração responde pela maioria dos vazamentos do tipo I e representa um fator significativo para a ruptura posterior. Essa migração pode ocorrer em caso de fratura dos ganchos na endoprótese ou se houver uma fratura do sistema de fixação ao fixar ou penetrar na parede aórtica. Além disso, a remodelação e a dilatação do colo aórtico após o procedimento EVAR que altera a zona de selamento do dispositivo já foram sugeridas como outra causa potencial da migração do enxerto. A migração do dispositivo está associada a um risco três vezes maior para vazamentos do tipo I e ao grau de sobreposição existente entre o dispositivo e a aorta infrarrenal (menos sobreposição envolve risco mais alto de migração). Essa migração também depende do comprimento do colo da aorta e da extensão da dilatação do colo proximal.
Dissecção aórtica Define-se dissecção da aorta como a delaminação das suas paredes produzidas pela infiltração de uma coluna de sangue que percorre um espaço virtual (luz falsa) entre a adventícia e a íntima.
Epidemiologia Os homens são acometidos com maior frequência e muitos estudos registraram uma proporção de 5:1 comparando homens e mulheres. O pico de incidência para a dissecção do tipo A ocorre entre 50-60 anos
de idade e para o tipo B entre os 60-70 anos. A hipertensão arterial encontra-se presente em 70-80% dos casos e as dissecções do tipo A representam aproxi-
madamente 60% dos casos. A dissecção aórtica aguda apresenta um padrão cronobiológico circadiano e sazonal. De forma semelhante ao que ocorre no infarto do miocárdio, na morte súbita e nos acidentes vasculares encefálicos, a dissecção se inicia com maior frequência pela manhã, entre 6-10 h, e é mais comuns nas estações mais frias (outono, inverno e primavera) que no verão. Com relação às doenças aórticas, a presença de
valva aórtica bicúspide acompanhada de dilatação da raiz dessa artéria é um fator de risco bem estabelecido para a ocorrência de dissecção no segmento ascendente, tendo sido documentada em 7-14% de
todas as dissecções aórticas. Outras doenças aórticas, como coarctação, ectasia do anel aórtico, anormalidades cromossômicas (síndrome de Turner e síndrome de Noonan), hipoplasia do arco aórtico, arterite e doenças hereditárias (síndrome de Marfan e síndrome de Ehlers-Danlos) são fatores de risco reconhecidos para o desenvolvimento de dissecção aórtica aguda. A síndrome de Marfan é responsável pela maioria dos casos de dissecção aórtica que ocorre em pacientes com menos de 40 anos de idade. Em mulheres com menos de 40 anos, 50% das dissecções aórticas ocorrem durante a gestação. Em geral,
a hipertensão arterial, como parte de um quadro de pré-eclâmpsia, pode ser um fator complicador em 25-50% de todas as gestações em que ocorram dissecção aórtica. Em alguns casos, o diagnóstico de síndrome de Marfan é feito quando a mulher se apresenta com uma dissecção aguda no periparto. Nas mulheres com diagnóstico de síndrome de Marfan, a presença de uma raiz aórtica dilatada (> 4 cm) as coloca em uma posição de certo risco para a ocorrência de dissecção aguda no período próximo ao parto. A aorta ascendente é o local em que é mais frequente a ocorrência de dissecção aórtica associada à gestação. Em 75% dos casos a ruptura da íntima ocorre no espaço de 2 cm a partir da valva aórtica. A ruptura da aorta pode ocorrer sem qualquer aviso durante o 3º trimestre ou durante o trabalho de parto. O consumo de cocaína é uma causa rara de dissecção aórtica aguda em indivíduos até então saudáveis. O paciente prototípico é jovem, negro e com
história de hipertensão arterial. Acredita-se que o mecanismo envolvido se relacione com um defeito subjacente existente na camada média da artéria em razão de hipertensão arterial sem controle e com a atividade simpática intensa provocada pela ingestão de cocaína, ocasionando um aumento dramático e agudo na força de contração ventricular (dP/dT) sobre a parede da aorta. A ruptura da íntima ocorre com maior frequência no ligamento arterial, local onde a aorta está relativamente presa e incapaz de suportar a carga advinda da intensa taquicardia e da elevação na pressão arterial.
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Fatores predisponentes A hipertensão arterial e os distúrbios do tecido conjuntivo (em particular a síndrome de Marfan) podem predispor os pacientes à dissecção. A causa da laceração inicial ainda não é conhecida, mas a histologia da parede aórtica exibe tipicamente degeneração medial.
Classificação Duração: aguda (até 2 semanas) e crônica (> 2
semanas).
Localização DeBakey Tipo I: origina-se na aorta ascendente, propagan-
do-se para o arco aórtico (e geralmente distalmente). Tipo II: origina-se e permanece restrito na aorta
ascendente. Tipo III: origina-se na aorta descendente e pro-
paga-se distalmente (é raro seguir proximalmente).
Stanford Tipo A: localização na aorta ascendente (tipos I e II). Tipo B: encontra-se na aorta descendente (tipo III).
A dissecção proximal (tipo A ou tipos I e II) é a mais comum, ocorrendo em 2/3 dos casos. Essa classificação tem sido usada preferencialmente por encerrar aspectos de prognósticos e conduta de uma maneira muito objetiva. Cumpre ressaltar, todavia, que essas classificações não enquadram todas as dissecções retrógradas. São, no entanto, importantes, pois permitem uniformidade na descrição e entendimento dos trabalhos científicos.
Figura 48.13 Classificação de DeBakey/Stanford das dissecções de aorta.
Anatomia patológica da dissecção aórtica aguda A ruptura das camadas íntima e média é o evento inicial na maioria dos casos de dissecção aórtica. A
violação da túnica íntima resulta na formação de um plano de clivagem pela camada média externa e sua subsequente propagação a uma distância variável, que tanto pode ser no sentido retrógrado quanto no anterógrado. O preenchimento com sangue do espaço criado entre as camadas da parede aórtica forma a falsa luz. A partir do ponto de entrada, a coluna de sangue pode causar dissecção no sentido proximal ou no distal como consequência do gradiente hidrodinâmico entre as luzes falsa e verdadeira. Além disso, a falsa luz pode aumentar no sentido longitudinal ou circunferencial em razão da clivagem produzida pelo fluxo de sangue nas camadas da parede aórtica. A pressão hemodinâmica contínua pode causar lesões adicionais na túnica íntima, pontos de entrada suscetíveis a novas dissecções ou de saída para a coluna de sangue que corre pela falsa luz. Essas janelas ou fenestrações espontâneas ocorrem com frequência nos óstios dos ramos da aorta, como a artéria renal esquerda. A presença de um “flap na íntima”, que representa o septo íntimo-medial entre as luzes falsa e verdadeira, é o achado patológico mais característico na dissecção aórtica aguda. A ruptura flap na íntima localiza-se no segmento ascendente da aorta em 65% dos pacientes, na aorta descendente em 25%, e no arco e no segmento abdominal da aorta em 5-10%. A ruptura típica é transversal e não atinge toda a circunferência da artéria. Na aorta descendente, a ruptura na íntima se origina tipicamente a poucos centímetros da artéria subclávia esquerda. No padrão habitual da dissecção na aorta torácica descendente (DeBakey I ou III, Stanford B), o plano de clivagem progride com uma topografia característica na medida em que a falsa luz evolui descendo pela face posterolateral da aorta; as artérias celíaca, mesentérica superior e renal direita emergem tipicamente da luz verdadeira, e a artéria renal esquerda da falsa luz. Entretanto, são frequentes as variações encontradas para esse padrão. A aterosclerose não é considerada um fator etiológico importante para a dissecção aórtica aguda;
entretanto, Jex e colaboradores notaram a presença de ateromas macroscópicos ou microscópicos em 83% dos pacientes em suas revisões. Placas ateromatosas podem ser protetoras na medida em que servem para interromper o processo de dissecção uma vez que a natureza inflamatória transmural da aterosclerose é capaz de fusionar as camadas aórticas. A ocorrência de um aneurisma aterosclerótico em concomitância a uma dissecção aórtica é incomum, estando presente em apenas 2-12% das dissecções. A coexistência incomum de uma dissecção aórtica com um aneurisma aterosclerótico preexistente parece mudar substancialmente a história natural de cada uma dessas patologias. Nesse cenário, a ruptura do aneurisma preexistente é a evolução mais provável.
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354 Cirurgia vascular
Quadro clínico A dor torácica é o sintoma mais comum. Frequentemente é súbita e intensa (“dilacerante”) desde o início, irradiando-se para a região interescapular e, tipicamente, migra com a propagação da dissecção. Em até 10% das dissecções não há relato de dor. Hipertensão: mais frequente na dissecção distal. Hipotensão: mais comum na dissecção proximal, pois geralmente causa ruptura para o pericárdio (tamponamento) ou insuficiência aórtica grave.
Sinais de insuficiência aórtica: ocorrem em mais de 50% dos casos de dissecção proximal. A síncope pode complicar a apresentação clínica da dissecção aórtica aguda em 5-10% dos pacientes, e sua presença com frequência indica o desenvolvimento de tamponamento cardíaco ou o envolvimento de vasos braquiocefálicos. Como um
sintoma isolado, sem nenhuma queixa de dor torácica anterior ou posterior, a síncope ocorreu em menos de 3% de todos os pacientes no estudo IRAD. A isquemia na medula espinal em razão da interrupção do fluxo nos vasos intercostais é evidentemente mais comum nos pacientes com dissecção aórtica do tipo B, podendo ocorrer em 2-10% de todos os casos. A compressão direta de qualquer nervo
periférico raramente ocorre, mas quando acontece resulta em parestesia (plexopatia lombar), rouquidão da voz (compressão do nervo laríngeo recorrente) ou síndrome de Horner (compressão do gânglio simpático). Ao exame físico inicial, a hipertensão arterial sistêmica está presente em 70% das dissecções do tipo B, mas apenas em 25-35% das dissecções do tipo A. A presença de hipotensão complicando uma dissec-
ção do tipo B é rara (menos de 5% dos pacientes). Em contraste, a hipotensão pode estar presente em 25% dos casos de dissecção envolvendo a aorta ascendente, potencialmente como resultado de regurgitação aórtica ou de ruptura intrapericárdica. A perfusão inadequada dos vasos braquiocefálicos causada pela dissecção pode ocasionar níveis pressóricos falsamente baixos quando a medição é feita com o manguito sobre a artéria braquial. É comum a ocorrência de hipertensão arterial refratária durante o tratamento clínico para as dissecções aórticas do tipo B, ocorrendo em 64% dos pacientes com envolvimento da aorta descendente. Entretanto, essa hipertensão refratária não está associada a comprometimento da artéria renal ou dilatação aórtica, estando indicada a manutenção da terapêutica clínica. Déficits no pulso são comuns e ocorrem em 3050% dos pacientes com envolvimento do arco aórtico, do segmento toracoabdominal ou de ambos. O
exame da população do estudo IRAD apontou envolvimento do tronco braquiocefálico em 14,5% dos pacientes, da artéria carótida comum esquerda em 6%, da artéria subclávia esquerda em 14,5% e das artérias
femorais em 13-14%. Os pacientes que se apresentaram com alterações de pulso tiveram déficits neurológicos, coma e hipotensão com maior frequência. Déficits no pulso carotídeo estiveram fortemente correlacionados com AVE fatais, observação consistente com dados anteriores. O número de déficits de pulso foi associado ao aumento na mortalidade. Nas primeiras 24 h após a apresentação, 9,4% dos pacientes sem déficits de pulso morreram, contra 15,8% dos pacientes com 1 ou 2 déficits e 35,3% daqueles com 3 ou mais déficits. Com relação a deficiências de pulso apenas nos membros inferiores é incomum a mortalidade resultante de isquemia nessa localização ou de suas sequelas, tendo ocorrido em apenas 4 de 38 pacientes com isquemia clinicamente evidente dos membros inferiores associada à dissecção aguda. De qualquer forma, a isquemia na perna causada por dissecção aguda foi considerada um marcador da extensão do problema e pode ser acompanhada pelo comprometimento de outros territórios vasculares. A evolução clínica da isquemia periférica é variável; 1/3 desse grupo pode evoluir com resolução espontânea dos déficits de pulso. O exame rápido do pulso à beira do leito pode fornecer informações importantes para o diagnóstico da dissecção aórtica aguda e sobre os pacientes sob risco de complicações. Dada a elevada morbidade provocada pela ausência de diagnóstico nos casos de dissecção aórtica, a história e os sinais físicos podem aumentar a acurácia clínica. Em um modelo preditivo clínico, a presença isolada de dor do tipo aórtica (torácica ou interescapular de início súbito) foi associada a uma razão de probabilidade de 2,6. O acréscimo de alterações no pulso ou na pressão arterial à já mencionada dor aumentou a razão de probabilidade para 10,5. O acréscimo de sinais como aumento do mediastino ou da silhueta aórtica na radiografia do tórax aos indicadores anteriores elevou a razão de probabilidade para 66. Essa tríade diagnóstica foi encontrada em apenas 27% dos pacientes. Já a ausência de dor súbita, de alterações no pulso e de sinais radiográficos torna o diagnóstico de dissecção extremamente raro (4% dos pacientes). Dada a morbidade provocada pela ausência desse diagnóstico, mesmo uma razão de probabilidade tão baixa pode ser insuficiente para excluir a dissecção aórtica se houver qualquer suspeita clínica.
Exames complementares
ECG: exame que colabora no diagnóstico diferencial com isquemia miocárdica. Em contrapartida, pacientes com dissecção da aorta ascendente podem ter envolvimento da artéria coronária no flap, usualmente a coronária direita, com consequente alteração flagrada no ECG. Pode ocorrer, então, supra de ST de parede inferior.
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355 48 Doenças da aorta
Radiografia de tórax: alargamento mediastinal é visto em 63% das dissecções de aorta ascendente e 56% nos casos de dissecção distal. Outro achado que sugere dissecção é o “sinal do cálcio” (separação da calcificação intimal em relação à borda externa do tecido aórtico > 1 cm).
Aortografia: sensibilidade de 88% e especificidade de 94%. Os falsos-negativos ocorrem principalmente nos casos de trombose da luz falsa ou hematoma intramural. Tem sido substituída por métodos mais acurados e menos invasivos.
Ecocardiograma transesofágico: a dissecção é confirmada quando duas lâminas separadas por um flap intimal são visibilizadas. Sensibilidade e especificidade em torno de 98 e 95%, respectivamente. Pode ser realizado na sala de emergência; portanto, é o exame de escolha nos pacientes instáveis. Exame suficiente para encaminhar o paciente para cirurgia.
Angiotomografia: os principais estudos mostram sensibilidade de 83 a 98% e especificidade de 87 a 100%. O principal dado na dissecção é a demonstração do flap intimal separando a luz falsa da luz verdadeira. É melhor que o eco transesofágico para avaliação dos ramos aórticos. Importante para a equipe cirúrgica definir a tática operatória. Exame rápido que não resultará em retardo significativo da intervenção cirúrgica, desde que o paciente esteja estável. Angiorressonância: tem acurácia semelhante à TC, porém, em razão da inconveniência da demora e limitação do acesso ao paciente e monitorização durante o exame, fica reservada para os casos de dissecção crônica.
setas indicando o “intimal flap”, com dupla luz em toda a extensão do tórax e trombo mural da aorta descendente (cabeça de seta). Como o achado não era esperado e o último corte do tórax ainda mostrava dissecção, foi feita uma nova injeção com menos contraste para avaliação da extensão da lesão, que se prolongou pela ilíaca comum. E: nesta imagem, vemos a luz verdadeira (setas finas) e o tronco celíaco (setas grossas) contrastados. F: reformatação oblíqua. Exame realizado sem protocolo ideal por falta de suspeita clínica.
Tratamento Clínico
Nos casos de suspeita de dissecção da aorta, os pacientes na sala de emergência devem ser monitorizados, receber oxigênio suplementar e acesso venoso calibroso.
Analgesia: morfina IV.
Controle rigoroso da pressão arterial e da frequência cardíaca – manter PA sistólica entre 100 e 120 mmHg e FC < 60 bpm. Utilizar betabloqueador: propranolol, metoprolol, labetalol ou esmolol.
Se o paciente mantiver níveis tensionais acima dos indicados após a infusão de betabloqueador, utilizar nitroprussiato de sódio IV.
Reposição volêmica para os pacientes hipotensos.
Cirúrgico Ruptura aórtica é a causa mais comum de mortalidade em dissecção aórtica, seguida de dissecção e isquemia de órgãos-alvo (cérebro, rins, coronárias).
Objetivos do tratamento Parar as progressões proximal e distal da dissecção. Remover o local da ruptura de íntima e ressecar a aorta no local mais provável de ruptura.
Princípios gerais Os enxertos arteriais preferidos são aqueles mais impermeáveis:
Figura 48.14 Paciente com 73 anos, do sexo masculino, hipertenso e corretamente medicado fez radiografia de tórax para controle. A radiografia evidenciou uma silhueta cardíaca (A) que sugere aumento do ventrículo esquerdo e aorta alongada. Embora seja absolutamente assintomático, pediu-se tomografia de tórax (B a F). A sequência de cortes do tórax evidencia dissecção do tipo A de Stanford (que se inicia na aorta ascendente),
Enxertos impregnados com colágeno tipo Hemashield têm a desvantagem de ser muito caros (mais comuns devido a sua praticidade de uso). Enxertos Woven very soft pré-coagulados com albumina ou plasma em autoclave a 120 F por cinco minutos (pouco utilizados). Enxertos de pericárdio bovino, revestidos ou não por Dacron, são excelentes, mas não são aplicáveis no arco aórtico (atualmente em desuso).
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356 Cirurgia vascular
Dissecção tipo A A evolução natural com o tratamento clínico é muito desfavorável, ocorrendo o óbito precoce por rotura intrapericárdica da aorta, rotura distal, insuficiência aórtica ou oclusão de óstios das coronárias. Todos os casos de dissecção aórtica do tipo A devem ser considerados para a cirurgia de urgência independentemente da presença de complicações, pois poucos casos sobrevivem à fase aguda. Nessa
situação, apresentam-se para o tratamento cirúrgico mais tardiamente em decorrência de expansão da falsa luz ou de insuficiência aórtica. O ato cirúrgico é realizado com circulação extracorpórea associada à hipotermia profunda com parada circulatória total a 16°C, dispondo-se de um período de tempo bastante satisfatório para a inspeção da croça aórtica e sutura distal, das camadas aórticas ao tubo de Dacron ou de pericárdio bovino. Em seguida, se restabelece a circulação extracorpórea e realiza-se a sutura das camadas dissecadas apoiando com feltro de teflon e, a seguir, procede-se à sutura desse coto proximal reconstituído ao tubo de Dacron. A insuficiência da valva aórtica, na imensa maioria das vezes, dispensa a substituição valvar, pois o mecanismo da insuficiência é a perda de apoio das comissuras na íntima dissecada, sendo salva a valva aórtica normal. Com a reconstrução da parede aórtica dissecada, a suspensão das comissuras corrige o refluxo. Em casos pouco frequentes de laceração do óstio da coronária direita pode ser necessária uma ponte de safena para a restauração do fluxo comprometido. É excepcional o esgarçamento do óstio da coronária esquerda, uma vez que a face medial da aorta ascendente quase sempre é poupada pela dissecção. O risco operatório dessa intervenção é atualmente baixo para os pacientes não complicados, aumentando consideravelmente em função de complicações instaladas antes do procedimento cirúrgico como: parada cardíaca prévia, tamponamento com choque cardiogênico, insuficiência renal e isquemias viscerais e de membros inferiores.
vando-se a terapêutica cirúrgica para as dissecções complicadas em que temos expansão da falsa luz, hemotórax, insuficiência renal, isquemia visceral ou de membros inferiores.
Essa conduta conservadora deve-se ao fato de a história natural destas dissecções ser melhor do que a do tipo A e, fundamentalmente, pelo fato de o tratamento cirúrgico por meio da abordagem direta por toracotomia esquerda ser um procedimento trabalhoso e de alto risco, sendo particularmente temida a paraplegia. Por outro lado, operando-se somente pacientes complicados, o risco do tratamento cirúrgico é ainda maior. Esses fatos fazem com que se adote inicialmente o tratamento clínico para todos esses casos. Todavia, a observação dos resultados ao final do primeiro ano demonstra alta incidência de complicações tardias, a maioria delas decorrente da expansão da falsa luz ou isquemia de diferentes territórios com expectativa de vida de apenas 35% ao final de 5 anos. Dessa forma, nos incluímos entre os autores que têm indicado a reparação cirúrgica na fase inicial mesmo para os casos não complicados, parecendo não ter lógica a indicação cirúrgica apenas para pacientes de alto risco quando complicados.
Prognóstico Mortalidade no tipo A: 20%. Mortalidade no tipo B: 25%. Mortalidade Arco Aórtico: 50%. A mortalidade cirúrgica na dissecção crônica é maior que na dissecção aguda, pois invariavelmente há evolução para dilatação da aorta e dos ramos afetados pela dissecção (dissecção crônica dilatada). Dissecção aórtica aguda (< 14 dias depois do início)
Tipo A
Tipo B
Operação de emergência para reparo da aorta ascendente + válvula aórtica
Não complicado
Terapia medicamentosa “anti-hipertensiva”
Após a alta hospitalar, os pacientes devem ser acompanhados com avaliações semestrais por meio de tomografia, de ecocardiografia ou de ressonância magnética nuclear, à procura de dissecções residuais, reentradas ou expansão de falsa luz.
Dissecção aórtica crônica (>14 dias do início)
AATD/AATA > 5 cm
Se para as dissecções agudas do tipo A há um consenso a respeito da necessidade de tratamento cirúrgico precoce, nas dissecções do tipo B a maioria dos autores preconiza o tratamento clínico inicial, reser-
Intervensão cirúrgica, ou endoluminal (ex.: fenestração, endoprótese, substiruição da aorta por enxerto, interposição de enxerto)
Acompanhamento rigoroso e TC seriada (ou ARM) de tórax e abdome Sem alteração do diâmetro aórtico
Dissecção tipo B
Ruptura, isquemia de membro, má perfusão abdominal, dor persistente ou hipertensão incontrolável
1º ano - a cada 3 meses 2º ano - a cada 6 meses Então anualmente
Avaliação para cirurgia de interposição de enxerto
Figura 48.15 Algoritmo para tratamento da dissecção aórtica. TC: tomografia computadorizada; AATD: aneurisma aórtico torácico descendente; ARM: angiografia por ressonância magnética; AATA: aneurisma aórtico toracoabdominal.
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357 48 Doenças da aorta
Arterite de Takayasu (AT) Definição A arterite de Takayasu (AT) é uma doença inflamatória sistêmica, de etiologia desconhecida, que afeta a aorta e seus ramos principais. É classificada como uma vasculite de grandes artérias, que acomete principalmente mulheres jovens, e tem evolução crônica, causando grande morbidade.
Epidemiologia A AT é uma vasculite sistêmica rara, mais frequente em mulheres jovens e com distribuição universal, porém, com características demográficas diferentes em cada país. No Brasil, a média de idade ao diagnóstico de 73 pacientes com AT foi de 27 anos, com predomínio 5 vezes maior em mulheres, sendo 68% em raça branca. A incidência de AT nos EUA foi estimada em 1 a 3 casos por milhão.
Anatomia patológica As lesões se distribuem principalmente na aorta e nos seus ramos principais. São também
Etiopatogenia A etiopatogenia da AT ainda é pouco conhecida e, provavelmente, multifatorial. A infecção pelo Mycobacterium tuberculosis foi mais prevalente em algumas populações estudadas. Em trabalho realizado na Índia, Aggawarl A encontrou maior prevalência de anticorpos contra extratos de Mycobacterium tuberculosis em pacientes com AT quando comparados com controles. Estudos posteriores evidenciaram que os relatos de maior frequência de tuberculose e positividade à reação ao PPD em pacientes com arterite de Takayasu se dá nos países de alta prevalência de tuberculose. A ausência de Mycobacterium tuberculosis nas lesões arteriais e a falta de resposta ao tratamento tuberculostático vêm reforçar a hipótese de ser apenas uma provável reação de hipersensibilidade. As diferenças na distribuição étnica e geográfica e a agregação familiar sugerem possível predisposição genética. Os principais estudos encontraram associação com HLA classe I, como o HLA-B5 em indianos e os HLA-B52 e B39.2 em japoneses. Na população mexicana, foi descrita a presença do HLA B15 e dos resíduos 63 e 67 da molécula de HLA B. Entretanto, os estudos em pacientes ocidentais não confirmaram estes dados. As lesões inflamatórias na AT originam-se na vasa vasorum das artérias acometidas. O infiltrado inflamatório é constituído principalmente por células T, mas também por células dendríticas, monócitos e granulócitos, que se localizam preferencialmente na adventícia e na periferia da camada média. Neste estágio, o encontro de citocinas inflamatórias e de moléculas de adesão sugerem atividade quimiotática das células T e monócitos. A participação de interleucinas (IL) na etiopatogenia desta entidade parece ser marcante, já que estudos mostraram aumento no nível sérico de IL 6, 8 e 12 em pacientes com AT quando comparados com controles sadios.
envolvidas as artérias pulmonares, femorais, renais, mesentéricas, coronarianas e vertebrais. O processo inflamatório se caracteriza por um infiltrado linfomonocitário com formação de granulomas, e a presença esporádica de células gigantes. Em estágios mais avançados, a doença se torna obliterativa. Critérios para classificação da arterite de Takayasu Critério
Definição
Idade até instala- Desenvolvimento dos sintomas ou ção da doença in- achados relacionados à AT até a idaferior a 40 anos de de 40 anos Claudicação de extremidades
Desenvolvimento e piora da fadiga e desconforto em músculos de uma ou mais extremidades, quando em uso, especialmente de membros superiores
Diminuição do Diminuição da pulsação em uma ou pulso em artéria ambas artérias braquiais braquial Diferença de Diferença de pressão arterial sistópressão arterial > lica acima de 10 mmHg entre mem10 mmHg bros superiores Sopro sobre arté- Sopro audível à ausculta sobre uma ria subclávia ou ou ambas artérias subclávias ou aorta aorta abdominal Anomalidades arteriográficas
Estreitamento ou oclusão da aorta, seus ramos primários, ou das grandes artérias proximais das extremidades superiores ou inferiores, não devido à arteriosclerose, displasia fibromuscular ou causa similar; Alterações geralmente focais ou segmentares
Tabela 48.6 Três ou mais critérios presentes definem AT.
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358 Cirurgia vascular
Quadro clínico A clássica descrição bifásica da doença divide o quadro clínico em fases inflamatória-sistêmica e vascular. Esta classificação não tem grande utilidade clínica, pois muitos pacientes não seguem esta evolução. Na época do diagnóstico, 20% dos pacientes podem ser assintomáticos, e em 60 a 80% dos casos os sintomas sistêmicos estão ausentes. Na fase inflamatória, o paciente pode apresentar sinais e sintomas inespecíficos como febre, sudorese noturna, adinamia, perda de peso, artralgia, carotidínea e mialgia. Posteriormente, as manifestações vasculares são mais sugestivas da doença e caracterizam-se por diminuição ou ausência de pulsos (84 a 96%), claudicações de membros, sopros arteriais (80 a 94%), diferença de pressão arterial entre os membros e manifestações isquêmicas abdominais, cardíacas e neurológicas. O diagnóstico é muitas vezes realizado tardiamente, quando já ocorreram alterações vasculares estruturais. A hipertensão arterial pode ocorrer em até 93% dos casos. A tabela a seguir relaciona os principais achados clínicos na AT.
Comparação dos vários sistemas de classificação para arterite de Takayasu Tipo I
Classificação de Ueno Doença do arco aórtico e de seus ramos
Doença restrita à aorta torácica descendente e abdominal Tipo III Combinação dos tipos I e II Tipo II
Tipo IV Qualquer uma das características acima com acometimento da artéria pulmonar (modificação de Lupi-Herrera) Tipo I Tipo II
Classificação de Nasu Doença limitada aos vasos com origem no arco aórtico Acomete também a raiz aórtica e o arco
Tipo III Localizada na aorta subdiafragmática Tipo IV Toda a aorta e seus ramos acometidos Classificação da Conferência Internacional de Tóquio sobre Arterite de Takayasu* Apenas os ramos do arco aórtico Tipo I Tipo lIa Aorta ascendente, arco e ramos Tipo Ilb IIa mais aorta torácica descendente
Achados clínicos comuns na AT Sopros
80%
Claudicação
70%
Diminuição dos pulsos
60%
Artralgias
50%
Pressão arterial assimétrica
50%
Sintomas constitucionais
40%
Cefaleia
40%
Hipertensão
30%
Tonturas
30%
Pulmonares
25%
Cardíacos
10%
Eritema nodoso
8% Tabela 48.7
Classificação Para ser clinicamente útil, um sistema de classificação para AT deve levar em conta as áreas de atividade da doença. A classificação de Ueno, publicada originalmente em 1967, dividiu a AT em 3 tipos com base no acometimento arterial. Em 1994, na Conferência Internacional de Tóquio sobre Arterite de Takayasu, foi proposto um novo sistema de classificação, publicado a seguir naquele mesmo ano (Tabela 48.8).
Tipo III Aorta torácica descendente e aorta abdominal/ramos Tipo IV Aorta abdominal/ramos Tipo V
Toda a aorta e ramos
Tabela 48.8 (*) Modificação de qualquer um com C(+) para acometimento coronariano e P(+) para acometimento da artéria pulmonar, respectivamente. O tipo II é o mais comum.
Diagnóstico Clínico O passo inicial para o diagnóstico é o achado dos aspectos clínicos compatíveis anteriormente descritos (guarde a frequência dos achados clínicos comuns na AT). A avaliação da atividade da
doença na AT através de marcadores sorológicos é imprecisa. Na ausência de sinais e sintomas típicos de piora do quadro isquêmico, não há parâmetros objetivos capazes de detectar pacientes assintomáticos que continuem com a doença em progressão. O padrão-ouro para determinar a presença do processo inflamatório é o exame anatomopatológico, porém, a obtenção de amostras das artérias envolvidas é um procedimento invasivo e de alto risco. Portanto, em 1994, foram propostos pelo NIH nos EUA os seguintes critérios de atividade:
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359 48 Doenças da aorta
Início ou piora dos seguintes itens:
Sinais e sintomas sistêmicos (febre, astenia, perda de peso, sudorese, artralgia ou mialgia);
Aumento da VHS;
Características de isquemia vascular ou inflamação (claudicação, diminuição ou ausência de pulsos, sopro, carotidínea, diferença de PA em MMSS ou MMII);
Alterações características na angiografia.
Laboratorial (achados inespecíficos) Reagentes da fase aguda elevados VHS elevada, mas nem sempre segue o grau de inflamação ativa e pode estar normal em até 33% dos pacientes. Anemia normocrômica normocítica com trombocitose, achado comum nas condições inflamatórias diversas.
Figura 48.17 Arteriografia de aorta abdominal e artérias renais em paciente com AT: observe estreitamento da aorta abdominal (setas pretas) e estenose nas saídas das artérias renais (setas brancas).
Radiológico (padrão-ouro)
Tratamento
Arteriografia convencional (ou angiorressonância):
Os corticoides são medicamentos fundamentais no tratamento da AT. A droga de escolha é a prednisona (1 mg/kg/dia nas fases ativas da doença, com redução paulatina). Cerca de 50 a 60% dos pacientes respondem ao tratamento inicial. O regime de doses em dias alternados não apresenta sucesso. A prednisona é mantida em doses altas até que os sintomas e as evidências laboratoriais (VHS) de inflamação se normalizem. Chamamos a atenção para o fato de que a VHS nem sempre reflete o grau de inflamação observado quando comparado à biópsia.
Estenose vascular;
Circulação colateral;
Aneurismas nas áreas acometidas (são incomuns).
A RNM detecta espessamento e inflamação da parede dos vasos, bem como trombose mural. Pode também detectar envolvimento da artéria pulmonar, no entanto, falha em detectar algumas lesões, particularmente no arco aórtico proximal e nos ramos aórticos distais, que são mais bem detectados pela arteriografia.
Os imunossupressores (metotrexato, ciclofosfamida, azatioprina, ciclosporina A, com maior destaque para o metotrexato em baixas doses, 0,15 a 0,3 mg/kg semanais) estão indicados para aqueles pacientes que não respondem ao tratamento com corticoide. Mais recentemente, o micofenolato mofetil e os agentes anti-TNF (p. ex.: infliximab) têm sido usados em alguns relatos de casos refratários aos corticoides e/ou imunossupressores.
Figura 48.16 Arteriografia de arco aórtico em paciente com AT: observe a estenose bilateral da carótida comum e da artéria subclávia direita.
Cerca de 20 a 30% dos casos nunca terão remissão completa, e suas lesões progredirão apesar do tratamento. Em 50% dos casos, haverá necessidade de tratamento cirúrgico, sendo as principais indicações: hipertensão renovascular, grave comprometimento das artérias carótidas e vertebrais (mais de 70% de oclusão do lúmen arterial), isquemia de extremidades e lesão coronariana. A angioplastia transluminal é eficaz em 50% dos casos, porém, as reestenoses são frequentes e precoces. Alguns estudos mostraram que a sobrevida em 5 anos foi de 94%, evidenciando que,
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360 Cirurgia vascular apesar de alta morbidade, a doença não causa grande mortalidade. A mortalidade diretamente relacionada com a enfermidade é inferior a 10%.
cientes é de grande importância, por causa da provável incidência mais alta de ruptura anastomótica após o reparo de aneurisma na AT.
A intervenção cirúrgica aberta tem sido o suporte principal do tratamento por muitos anos, porém os procedimentos endovasculares estão tendo maior aplicação. O problema mais significativo com os últimos é a ausência de informação a longo prazo acerca dos resultados. Evidentemente, inúmeras condições clínicas podem resultar de AT, e a incidência dos vários problemas já foi abordada. Em um grau muito maior do que a aterosclerose, a arterite de Takayasu torna necessários ajustes da terapia para cada paciente. Além disso, a natureza sistêmica da doença deve ser considerada no tratamento. A experiência relatada sugere um risco mais alto de complicações cirúrgicas quando as cirurgias são realizadas durante a fase ativa da doença. Além disso, embora os pacientes com AT em geral sejam mais jovens que aqueles com aterosclerose, o risco cardíaco é acentuadamente mais alto para os pacientes com AT que para os controles de idade equivalente.
A intervenção poderá ser necessária também para uma ampla variedade de outras condições. A regurgitação aórtica clinicamente significativa pode ocorrer em até 44% dos pacientes com AT e o reparo da válvula aórtica ou sua substituição está sendo realizado mais comumente nesses casos. Poderá ser necessário realizar também uma revascularização coronariana convencional, porém na excelente revisão de 106 pacientes com AT que necessitaram de cirurgia, publicada por Miyata e colaboradores, nenhum deles necessitou de enxerto com bypass das artérias coronárias. A aorta ascendente é normalmente poupada, porém existem relatos de reparos aneurismáticos nessa localização. Outros procedimentos podem estar indicados e deve ser sempre levada em conta a apresentação de cada paciente individual.
O bypass continua sendo a abordagem cirúrgica padronizada para a maioria das lesões da AT. A endarterectomia constitui uma escolha inadequada, por causa da extensa inflamação e da natureza transmural do processo patológico. Uma das indicações primárias para a intervenção na AT é a doença vascular cerebral. O aci-
Outras terapêuticas incluem tratamento anti-hipertensivo (vasodilatadores devem ser evitados, a não ser que o paciente sofra de insuficiência cardíaca), terapêutica com antiagregante plaquetário para prevenir trombose, terapêutica com cálcio para prevenir osteoporose e controle de dislipidemia.
Prognóstico
dente vascular encefálico nessas circunstâncias em geral é considerado devido a um fluxo reduzido e não à embolia. Não existem dados que confirmem essa hipótese, apesar de alguns dados angiográficos em pacientes com AT e acidente vascular encefálico mostrarem a presença de lesões obstrutivas completas das artérias carótidas ou inominada. Assim, os pacientes com estenoses graves ou obstrução das artérias inominada ou carótida são considerados candidatos à reconstrução cirúrgica. Esse tratamento assume habitualmente a forma de um enxerto de bypass da aorta ascendente para um local-alvo distal sem acometimento. A aorta ascendente é escolhida por causa da relativa raridade com que é acometida pelo processo patológico. Uma prótese de 10 mm pode ser costurada após a colocação da pinça lateral e ramos adicionais poderão ser acrescentados se necessário para realizar um bypass com outros vasos.
Os índices de sobrevida a longo prazo são de 80 a 90%. A morte súbita pode ocorrer ocasionada por IAM, AVC, ruptura de aneurisma ou aneurisma dissecante, no entanto, os aneurismas geralmente são estáveis e raramente necessitam de tratamento cirúrgico. A mortalidade precoce e tardia varia de 10 a 20%.
As indicações para o reparo dos aneurismas na AT espelham provavelmente aquelas para os aneurismas de outra etiologia. A incidência de ruptura provavelmente é mais baixa para os aneurismas de AT, mas essas lesões também ocorrem em uma população de pacientes muito mais jovens, produzindo um risco especialmente mais alto de ruptura durante o tempo de vida. A vigilância a longo prazo desses pa-
Os aneurismas isolados da artéria ilíaca, sem um AAA associado, são raros, respondendo por menos de 2% de todos os aneurismas aortoilíacos. Como ocorre com os AAA, a frequência desses aneurismas aumenta com a idade e são raros antes de 60 anos. A localização profunda na pelve torna praticamente impossível a detecção ao exame físico, embora alguns aneurismas volumosos das artérias ilíacas sejam de-
Outros aneurismas arteriais Aneurismas isolados da artéria ilíaca
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361 48 Doenças da aorta tectados pelo toque retal. Por causa do aumento das técnicas de imageamento abdominal, hoje são detectados mais aneurismas ilíacos pequenos. A artéria ilíaca comum é afetada mais comumente (70-90%), seguida da artéria ilíaca interna (10-30%); por razões desconhecidas, a artéria ilíaca externa geralmente é preservada. Há nítido predo-
mínio no sexo masculino (relação masculino/feminino de 5:1-16:1) e, na maioria das séries cirúrgicas, os pacientes tinham entre 65-75 anos. Cerca de 50% são bilaterais.
Sinais e sintomas Embora os aneurismas das artérias ilíacas geralmente sejam assintomáticos até se romperem, podem causar sinais específicos secundários à compressão local das estruturas pélvicas adjacentes. Obstrução ureteral, hematúria, trombose da veia ilíaca, obstrução do intestino grosso e déficit neurológico do membro inferior podem ocorrer, mas são causados muito mais comumente por outras doenças, frequentemente confundido o diagnóstico inicial de aneurisma ilíaco. O tamanho médio dos aneurismas ilíacos no momento do diagnóstico é de 5,6 cm, com taxa de ruptura de 30%. O índice de mortalidade operatória em pacientes com aneurismas ilíacos rotos é de 40%.
Diagnóstico Antes da utilização generalizada da TC e da RM, a maioria dos aneurismas ilíacos isolados apresentava-se com ruptura, que acarretava taxa elevada de mortalidade. Entretanto, a história natural dos aneurismas ilíacos pequenos não está bem definida, porque as lesões são incomuns e geralmente não têm sido acompanhadas por exames de imageamento sequenciais. Na maioria das séries cirúrgicas, o diâmetro médio desses aneurismas é de 4-5 cm, enquanto o diâmetro médio dos aneurismas ilíacos rotos foi estimado em 6 cm. Depois do acompanhamento dos aneurismas ilíacos, os autores relataram índices variáveis de ruptura entre 10-70% depois de 5 anos. O acompanhamento dos aneurismas ilíacos volumosos (4-12 cm de diâmetro) indica que não haja relação direta entre ruptura e diâmetro nessa faixa. Santilli e colaboradores descreveram 189 pacientes com aneurismas ilíacos, nos quais não houve ruptura quando os diâmetros eram < 4 cm. A mortalidade associada à ruptura é elevada (25-57%), enquanto a causada pelo reparo eletivo é < 5%. Atualmente, a maioria dos cirurgiões recomenda reparo eletivo dos aneurismas ilíacos isolados a partir do diâmetro limítrofe de cerca de 3-4 cm, desde que o risco cirúrgico seja apropriado. Todas as questões relativas ao
processo de decisão frente aos pacientes com AAA também se aplicam aqui, principalmente quando se comparam os riscos de ruptura versus reparo eletivo.
Tratamento O tratamento aberto de aneurismas da artéria ilíaca é feito por colocação de enxerto através de uma incisão cirúrgica aberta. Uma vez que a artéria ilíaca externa raramente apresenta essa lesão, essa cirurgia pode ser geralmente confinada ao abdome. Aneurismas bilaterais da artéria ilíaca comum exigem reconstrução com um enxerto aortoilíaco bifurcado. Aneurismas da artéria hipogástrica podem ser tratados com endoaneurismorrafia. Essas lesões não são tratadas com uma simples ligadura do colo, pois permanecerão pressurizadas por meio de vasos colaterais, causando maior dilatação aneurismática. O advento das técnicas endovasculares expandiu as opções de tratamento para aneurismas ilíacos. Os aneurismas da artéria ilíaca comum são tratados percutaneamente com um stent revestido (endoprótese), excluindo assim a lesão, como ocorre no tratamento endovascular de AAA. Os aneurismas das ilíacas internas também são tratados comumente por oclusão com espirais endovasculares. Nesses casos, é importante colocar espirais nos ramos eferentes da artéria hipogástrica (semelhante à ligadura endoaneurismática) para evitar expansão progressiva e ruptura, que podem ocorrer se forem simplesmente colocados na artéria aneurismática.
Aneurismas da artéria poplítea O diâmetro normal da artéria poplítea é de 0,90 ± 0,20 cm. Outros autores relataram um diâmetro médio menor (0,52 ± 0,11 cm). Podemos considerar que estamos diante de um aneurisma poplíteo se o diâmetro for > 1,5 cm, ainda que o limite de 2 cm seja usado com frequência na clínica diária para essa localização.
Incidência Os aneurismas da artéria poplítea são raros. No entanto, são os mais comuns dentre aqueles que ocorrem em artérias periféricas, representando mais de 70% de todos os aneurismas periféricos. Predo-
minância no sexo masculino (>90%), acometimento bilateral é documentado em metade dos casos, e a associação com aneurisma de aorta abdominal é de 60% dos casos.
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362 Cirurgia vascular e colaboradores, que encontraram um infiltrado inflamatório, incluindo linfócitos T, na parede de aneurismas da artéria poplítea, associado a aumento na apoptose e na degradação da matriz extracelular. Os aneurismas poplíteos verdadeiros também podem ser resultado da síndrome de encarceramento da artéria poplítea. O mecanismo parece ser a ocorrência de traumatismos crônicos repetitivos, de forma semelhante ao que ocorre na dilatação da artéria subclávia no segmento distal a uma costela cervical. Falsos aneurismas da artéria poplítea podem ser causados por traumatismos crônicos provocados por tumores ósseos benignos, como os osteocondromas, na metáfise distal do fêmur. Traumatismos penetrantes também podem causar pseudoaneurismas da artéria poplítea.
Manifestações clínicas Figura 48.18 Angiografia de um aneurisma da artéria poplítea.
Aproximadamente 1/3 dos pacientes com aneurisma poplíteo é assintomático por ocasião do diagnóstico inicial. Em 43% dos casos assinto-
máticos, um ou ambos os pulsos podálicos estavam ausentes. É provável que esses aneurismas já tivessem produzido embolia distal, o que enfatiza o risco de obstrução progressiva das artérias poplíteas. Esses membros estão sob alto risco de evoluir com complicações. O risco de desenvolver complicações, incluindo trombose aguda, tromboembolia crônica e dor causada por compressão, é de 36% ao longo de 3 anos para os pacientes com pulsos podálicos normais, e de 86% em 3 anos para aqueles pacientes com ausência de pulsos.
Diagnóstico O exame físico isoladamente com frequência não é confiável e pode produzir resultados falsos-positivos e falsos-negativos. A ultrassonografia é um recurso preciso para o diagnóstico. Para o planejamento do tratamento, a angiografia, a TC tridimensional e a RM são úteis. Figura 48.19 Angiografia de um pseudoaneurisma da artéria poplítea causado por um tumor ósseo benigno. Observar o deslocamento e o encarceramento da artéria poplítea.
Patogenia A maioria dos aneurismas poplíteos é de natureza degenerativa. A causa é provavelmente uma
combinação de defeito genético e inflamação com aumento na produção local de enzimas que degradam a elastina e o colágeno. Isso foi confirmado por Jacob
Tratamento Apesar de alguns autores terem sugerido uma abordagem conservadora para o tratamento de aneurismas poplíteos assintomáticos, a maioria concorda que os resultados do reparo eletivo são excelentes, com baixas morbidade e mortalidade, e significativamente melhores do que o tratamento realizado em aneurisma com trombose com quadro clínico de isquemia. Os aneurismas pequenos, definidos como aqueles com menos de 2 cm de diâmetro, e assintomáticos podem ser acompanhados sem cirurgia reconstrutora.
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363 48 Doenças da aorta Pacientes assintomáticos com AAF de 2 cm ou mais, assintomáticos e com risco cirúrgico aceitável devem ser tratados cirurgicamente.
Tratamento eletivo A opção técnica mais comum e com melhores resultados é a ligadura proximal e distal do aneurisma, combinada com ponte de veia safena magna reversa, geralmente da poplítea proximal ao aneurisma até a poplítea distal. Alguns aneurismas mais extensos ou associados à doença oclusiva podem necessitar pontes mais longas, partindo da artéria femoral superficial ou femoral comum. As outras opções de enxerto autógeno são a veia safena parva, as veias de membros superiores e a veia femoral superficial. As próteses vasculares sintéticas de politetrafluoroetileno são utilizadas apenas em casos em que não há veia autógena disponível. Isso porque os resultados a longo prazo dos enxertos sintéticos são muito inferiores aos dos enxertos venosos implantados nessa posição. Após o procedimento cirúrgico, todos os pacientes devem ser acompanhados clinicamente e por exames complementares periódicos, para detectar sinais precoces de falha do enxerto e maximizar a patência de longo prazo. Em aneurismas particularmente grandes ou que estejam produzindo sintomas compressivos, pode ser recomendável a abordagem por via posterior, com abertura do saco aneurismático e sutura dos óstios das colaterais, o que visa evitar a manutenção de fluxo no saco aneurismático por colaterais. Em caso de trombose aguda do aneurisma com isquemia do membro, antes da revascularização é necessária a remoção dos trombos da circulação distal por trombólise ou por embolectomia por cateter balão, para permitir o restabelecimento adequado de fluxo. A trombólise apresenta resultados ligeiramente superiores aos da embolectomia nessas circunstâncias. A técnica endovascular com stents recobertos tem sido uma nova opção de tratamento dos AAP, mas os resultados são inferiores ao procedimento aberto convencional. As potenciais vantagens do procedimento são a rapidez e redução do estresse cirúrgico. Em virtude dos resultados discutíveis, a técnica endovascular tem sido considerada exceção, reservada a pacientes com risco operatório elevado e/ou ausência de enxerto autógeno disponível. As taxas de morbimortalidade do tratamento eletivo nos pacientes sem isquemia são mais baixas do que os casos que se apresentam como isquemia grave. A chance de salvamento do membro a longo prazo fica ao redor de 95% para os pacientes eletivos e cai para 70% nos pacientes operados em condições de urgência/ emergência. Os resultados a longo prazo das operações com veias autógenas são melhores do que com próteses sintéticas ou stents recobertos.
Tratamento de emergência Nos casos graves de isquemia aguda do membro, a tromboembolectomia ou trombólise intraoperatória combinadas com a reconstrução com bypass das artérias poplítea ou tibial é um tratamento efetivo para um aneurisma poplíteo associado a trombose. Entretanto, a instrumentação com cateteres para trombectomia deve ser realizada com a maior atenção, para que se evitem lesões irreversíveis nas artérias de pequeno calibre. A trombectomia é um procedimento de difícil realização via artéria poplítea, por não ser possível a cateterização cega seletiva das artérias tibiais anterior e posterior, e o cateter com balão geralmente acaba sendo introduzido na artéria fibular. A embolectomia da trifurcação é a 1ª alternativa. Uma das complicações da trombólise é a deterioração isquêmica do membro durante o procedimento, em razão da propagação do coágulo e de fragmentos do trombo com a restauração do fluxo sanguíneo. A deterioração grave e irreversível foi detectada em 2,3% dos casos, mas ocorrências mais leves foram observadas em 13% dos pacientes durante a trombólise de aneurismas poplíteos, sendo causadas, com frequência, por trombose pericateter, nos casos em que a heparinização não tenha sido adequada, por retrombose, ou por embolia distal. A deterioração leve geralmente é tratável man-
tendo-se a trombólise, enquanto os casos mais graves podem requerer uma intervenção cirúrgica imediata. Tais complicações ocorrem com frequência significativamente maior durante o tratamento de aneurismas poplíteos que tenham sofrido trombose do que durante o tratamento de êmbolos ou de artérias e enxertos ateromatosos trombóticos. O índice de amputações associadas a complicações de trombólises é alto, e a intervenção cirúrgica parece ter melhores resultados do que a manutenção desse procedimento.
Acompanhamento após a reconstrução Após a reconstrução de um aneurisma poplíteo, o acompanhamento deve se focalizar na vigilância de sua manutenção, em particular se tiver sido utilizado um enxerto autólogo usando veia. Essa vigilância implica a realização de ecodoppler em intervalos regulares, especialmente durante o 1º ano após a cirurgia. Uma degeneração aneurismática subsequente em localização imediatamente proximal ou distal a um bypass curto pode ocorrer em 5% ao longo de um período de 10 anos de acompanhamento, o que enfatiza a necessidade de acompanhamento regular por toda a vida do paciente. Além disso, o acompanhamento deve se concentrar na vigilância sobre o desenvolvimento de novos aneurismas, uma vez que tais pacientes têm incidên-
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364 Cirurgia vascular cias altas de aneurismas aórticos, femorais e poplíteos contralaterais. Em geral, um exame anual feito com ultrassonografia é suficiente para excluir ou confirmar a dilatação desses vasos na maioria dos pacientes. O intervalo entre os exames é arbitrário, mas em várias séries a indicação para reconstrução arterial ocorreu no período de 24 meses, mesmo nos casos de pequenos aneurismas assintomáticos. Podem ocorrer dilatação e formação de aneurisma em enxertos venosos usados para reconstrução de aneurismas poplíteos, fatos que devem ser detectados por meio da vigilância realizada com ecodoppler, uma vez que tais casos algumas vezes necessitam de reparo.
Aneurismas da artéria esplênica Incidência e etiologia A artéria esplênica é o vaso abdominal visceral (circulação esplâncnica) afetado mais comumente pela doença aneurismática. Os aneurismas dessa artéria representam 60% de todos os aneurismas da circulação esplâncnica. Mais de 1.800 pacientes com aneurismas das artérias esplênicas foram descritos nos estudos publicados até hoje. A incidência dessas lesões ainda não está bem definida e varia de 0,098% em quase 195.000 necrópsias até 10,4% em um estudo cuidadoso de necrópsias dos vasos esplâncnicos dos pacientes idosos. Os macroaneurismas da artéria esplênica geralmente são saculares, ocorrem mais comumente nas bifurcações e são múltiplos em cerca de 20% dos pacientes. Em contraste nítido com os aneurismas da aorta abdominal e das artérias do membro inferior, os da artéria esplênica mostram predileção incomum pelo sexo feminino, com relação de 4:1 entre os sexos. A propensão ao desenvolvimento dos aneurismas nas artérias esplênicas em vez de em qualquer outra artéria esplâncnica tem sido atribuída às anormalidades adquiridas da parede vascular, inclusive fragmentação das fibras elásticas, perda da musculatura lisa e ruptura da lâmina elástica interna. Três fenômenos independentes podem contribuir para essas alterações. O 1º fator contribuinte para a formação dos aneurismas das artérias esplênicas é a existência de fibrodisplasia arterial sistêmica. A desestruturação demonstrada da arquitetura da parede arterial por processos displásicos da média é um precursor lógico desses aneurismas. Os pacientes com fibrodisplasia da média da artéria renal desenvolvem aneurismas das artérias esplênicas com frequência 6 vezes maior do que a observada na população normal. O 2º fator contribuinte é a hipertensão porta
com esplenomegalia. Os aneurismas têm sido diag-
nosticados em 10-30% dos pacientes com hipertensão porta e esplenomegalia. Nesses casos, os aneurismas podem ser sequelas do processo hipercinético aparente que causa o aumento do diâmetro das artérias esplênicas dos pacientes com hipertensão porta. Qualquer que seja o fator responsável pela dilatação da artéria, um processo semelhante nas bifurcações das artérias poderia aumentar a suscetibilidade à formação dos aneurismas. Assim, o diâmetro dos aneurismas de pacientes com hipertensão porta foi correlacionado diretamente com o diâmetro da artéria esplênica. A maioria dos casos inclui aneurismas múltiplos, um tipo específico de aneurisma das artérias esplênicas diagnosticado comumente em pacientes com transplantes hepáticos ortotópicos. A triagem para aneurismas da artéria esplênica foi recomendada para todos que fizeram transplantes de fígado. O 3º fator contribuinte, importante para a evolução dos aneurismas das artérias esplênicas, são os efeitos vasculares das gestações repetidas. Em um estudo de grande porte, 40% das mulheres descritas sem causas evidentes para seus aneurismas tinham 6 ou mais gestações a termo. A importância da gravidez na patogenia dessas lesões também é confirmada pelo fato de que 45% das mulheres com aneurismas das artérias esplênicas descritos na literatura inglesa referem-se às décadas de 1960 e 1970, quando as gestações repetidas eram mais comuns. As alterações gestacionais da parede vascular causadas por fatores hormonais e locais podem ter uma relação causal com as anormalidades da média das artérias e a formação dos aneurismas. Os efeitos podem ser semelhantes às alterações responsáveis pelas complicações vasculares da gravidez associadas à síndrome de Marfan ou Ehlers-Danlos. A predileção desses aneurismas pelas artérias esplênicas em vez de outros vasos musculares com diâmetro semelhante pode refletir a ampliação do shunting arteriovenoso esplênico durante a gravidez com fluxo sanguíneo excessivo ou representar anormalidades estruturais preexistentes intrínsecas à artéria esplênica.
Alguns aneurismas das artérias esplênicas parecem ser atribuídos ao enfraquecimento arteriosclerótico da parede vascular. Entretanto, o local frequente das alterações arterioscleróticas calcificadas nos aneurismas, sem envolvimento da artéria adjacente, reforça a hipótese de que a arteriosclerose ocorra comumente como processo secundário, em vez de ser fator etiológico primário. Em alguns pacientes com dilatações aneurismáticas múltiplas, embora não em todos os casos, as alterações arterioscleróticas calcificadas reforçam ainda mais a hipótese. Os processos inflamatórios adjacentes à artéria esplênica, principalmente a pancreatite crônica com pseudocistos associados, também são causas comprovadas de aneurismas.
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365 48 Doenças da aorta Os pseudoaneurismas peripancreáticos ocorrem em mais de 10% dos pacientes com pancreatite crônica e muitos afetam a artéria esplênica. Do mesmo modo, os traumatismos fechados e perfurantes podem levar à formação de aneurismas. As lesões infectadas (micóticas) associadas comumente à endocardite bacteriana subaguda dos usuários de drogas intravenosas são diagnosticadas com frequência crescente. Os microaneurismas da circulação intraesplênica geralmente atribuem-se às doenças do tecido conjuntivo, dentre elas a periarterite nodosa, mas sua importância cirúrgica é muito menor do que a dos macroaneurismas causados por outros fatores. Figura 48.20 Aneurisma da artéria esplênica. As calcificações curvilíneas em forma de anel de sinete no quadrante superior esquerdo são típicas dos aneurismas da artéria esplênica.
Manifestações clínicas e diagnóstico Os aneurismas da artéria esplênica geralmente são denominados de assintomáticos. A ruptura do aneurisma com hemorragia intraperitoneal é responsável pela apresentação clínica mais dramática dos aneurismas das artérias esplênicas. Nas pacientes que não estão grávidas, a
ruptura geralmente se evidencia como uma catástrofe intra-abdominal aguda com colapso cardiovascular associado. Na maioria dos casos, o sangramento acumula-se inicialmente na região retrogástrica. A medida que o sangue escapa pelo forame de Winslow, o paciente pode relatar sintomas distantes do quadrante superior esquerdo e do epigástrio. A hemorragia sempre evolui para sangramento intraperitoneal grave, à medida que a contenção oferecida pelo omento menor é rompida. Esse “fenômeno de ruptura dupla” ocorre em quase 25% dos casos e geralmente oferece uma oportunidade de tratamento antes do início da hemorragia fatal. Nas gestantes, a ruptura do aneurisma pode simular outras emergências obstétricas como descolamento prematuro da placenta, embolização de líquido amniótico ou ruptura uterina. A incidência mais alta de ruptura foi relatada nas mulheres jovens grávidas, ou seja, mais de 95% dos aneurismas descritos durante a gravidez tinham rompido. Apesar dessa observação, é lógico
supor que muitos aneurismas das artérias esplênicas desenvolvam-se durante a gravidez e que a maioria não sofra ruptura ao longo da gestação. A existência de aneurisma da artéria esplênica pode ser considerada frente à demonstração radiográfica de calcificações curvilíneas semelhantes a um anel de sinete no quadrante superior esquerdo, sinal descrito em 70% dos casos. Esses aneurismas
são diagnosticados mais comumente por arteriografia convencional, ultrassonografia, TC ou RM em pacientes sem qualquer indício anterior da presença das lesões.
Figura 48.21 Aneurisma da artéria esplênica. Documentação arteriográfica de um aneurisma do terço médio da artéria esplênica, relacionado com pancreatite.
Indicações e técnica cirúrgica A embolização percutânea da artéria esplênica é o procedimento mais frequentemente aplicado. Raramente é necessária a esplenectomia cirúrgica aberta, mas a ligadura cirúrgica distal e a proximal com a cirurgia aberta ou com a laparoscopia são boas opções de tratamento. A ligadura aberta ou a embolização por cateterismo deverão ser consideradas para aneurismas sintomáticos, para aneurismas de 2 cm de diâmetro ou para qualquer aneurisma de artéria esplênica em uma mulher em idade reprodutiva. O infarto esplênico e a recanalização da artéria tratada com embolização são quadros preocupantes, e esses pacientes exigem acompanhamento regular com investigações por imagem. Mais recentemente, endopróteses têm sido usadas com sucesso para tratar aneurismas de artéria esplênica. Os aneurismas micóticos (principalmente secundários a endocardite infecciosa) podem exigir tratamento cirúrgico aberto com esplenectomia e pancreatectomia, frequentemente com prognóstico ruim.
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CAPÍTULO
4
Neoplasias da pele
Carcinoma basocelular O carcinoma basocelular (epitelioma basocelular) é uma neoplasia maligna da pele constituída por células morfologicamente semelhantes às células basais da epiderme, que apesar de malignidade local, já que tem alto poder infiltrativo e destrutivo (pode infiltrar cartilagens e ossos), muito raramente ocasiona metástases a distância (relatos raríssimos na literatura), sendo considerada a neoplasia maligna da pele de melhor prognóstico, pois a cirurgia com margens cirúrgicas livres é curativa. É o câncer maligno de pele mais frequente, representando cerca de 50% a 70% de todas as neoplasias malignas. Sua ocorrência é mais comum após os 40 anos de idade (90% dos casos após os 40 anos), nas pessoas de pele clara, e seu surgimento tem relação direta com a exposição cumulativa da pele à radiação solar durante a vida. Exposição a substâncias
como arsênico inorgânico e alcatrão também pode ser apontada como fator causal. Determinadas síndromes genéticas apresentam elevada frequência do tumor, sendo possível identificar um gene supressor do tumor no cromossomo 9q22, cuja perda do alelo resulta em aparecimento de tumor. A grande maioria das lesões aparece na face, em seu terço superior. O epitelioma basocelular pode se manifestar de diversas formas, mas, em sua apresentação mais típica, inicia-se como pequena lesão papulosa consistente, de cor rósea ou translúcida e aspecto “perolado”, liso e brilhante, com finos vasos sanguíneos na superfície (teleangiectasias) que crescem progressiva e lentamente. Na sua evolução pode ulcerar. Não há linfadenopatia ou comprometimento sistêmico, como já dito. Na histopatologia, destaca-se a organização das células tumorais em blocos com retração conjuntiva ao redor.
46 Dermatologia
Formas clínicas
Figura 4.1 Carcinoma basocelular nodular e ulcerado, com discretas telangiectasias (A). Lesão perolada pigmentada, fazendo diagnóstico diferencial com melanoma maligno (B) e lesão terebrante e região frontal com grande destruição tecidual (C).
Papulonodular (ou carcinoma de células basais clássico): trata-se da apresentação clínica mais comum, responsável por 50% a 80% de todos os carcinomas de células basais.
Ulcerada: a ulceração não faz a lesão perder sua principal característica, a borda perolada.
Terebrante (ulcus rodens): trata-se da forma ulcerada com invasão rápida, provocando grande destruição do maciço central da face, globo ocular ou calota craniana.
Plano cicatricial: lesão superficial e de crescimento centrífugo em extensão, preferencialmente na região orbitária. A porção central apresenta aspecto cicatricial e a borda é ligeiramente perolada.
Superficial ou pagetoide: área geralmente oval, eritematoescamosa ou superficial, com borda nítida. É mais frequente no tronco e extremidades e tem correlação com a ingestão de arsênico.
Esclerodermiforme: assemelha-se a uma placa de esclerodermia, a borda é pouco nítida e dificilmente perolada. É rara e com alto poder infiltrativo e pior prognóstico.
Pigmentado: mais comum em negros, diagnóstico diferencial com melanoma. Há grande quantidade de melanina nas massas tumorais à histopatologia.
Vegetante: forma muito rara de carcinoma basocelular. A forma vegetante é mais comumente vista em lesões do tipo espinocelular.
Cístico: apresenta aparência cinza-azulada ou clara e exsuda fluido claro após incisão. Se localizado em área peri-orbital, pode ser confundido com hidrocistoma. Presença de espaço cístico dentro dos nódulos tumorais, geralmente, devido à necrose ou presença de mucina.
Fibroepitelioma de Pinkus: variante rara do CBC que se apresenta como pápula ou placa rosada, na porção inferior do tronco. Tem como principal diagnóstico diferencial o melanoma amelanótico. Na histologia padrão reticulado de células basaloides anastomosados finas em um estroma frouxo; várias conexões com a epiderme.
Metatípico (carcinoma basoescamoso): aspectos histopatológicos mistos dos carcinomas espinocelular e basocelular. Esta variante representa 1% de todos os carcinomas cutâneos não melanomas.
Quanto à evolução das lesões, tumores localizados nas linhas de fusão da pele têm mais chances de recidivar que os demais.
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47 4 Neoplasias da pele
História natural O CBC apresenta evolução crônica, crescendo progressivamente, e tende a tornar-se ulcerativo. São lesões friáveis, frequentemente recobertas por crostas que, quando retiradas, determinam sangramento. Algumas lesões tendem a involuir espontaneamente e formam cicatriz conforme se estendem. A disseminação periférica pode produzir placas de configuração serpiginosa. A ulceração acentuada pode chegar até os tecidos subcutâneos profundos e, até mesmo, à cartilagem e ao osso, causando destruição extensa e mutilação. Pelo menos metade dos óbitos que ocorrem no CBC resulta da extensão direta do tumor para estruturas vitais, e não de metástases.
Metástases As metástases são extremamente raras, ocorrendo em 0,0028% a 0,55% dos casos de carcinoma de células basais. Acredita-se que essa baixa incidência se deve ao fato de que as células tumorais precisam de um estroma de apoio para sobreviver. Os seguintes critérios são aceitos para o diagnóstico de CBC metastático: 1. O tumor primário deve se originar na pele. 2. Deve-se demonstrar a presença de metástases longe do tumor primário, não sendo relacionadas com simples extensão do tumor. 3. Deve haver uma similaridade histológica entre o tumor primário e as metástases. 4. As metástases não devem estar misturadas com carcinoma de células escamosas. O CBC metastático é duas vezes mais comum nos homens do que nas mulheres. A imunossupressão não parece aumentar o risco de metástase. A maioria dos tumores que apresenta metástase se localiza na cabeça e no pescoço, sendo geralmente tumores grandes que apresentam recorrência, a despeito dos vários procedimentos cirúrgicos ou radioterápicos. O achado histológico de CBC perineural ou intravascular aumenta o risco de metástases. Os linfonodos regionais são os locais mais comuns para o aparecimento de metástases, seguidos por pulmões, ossos, pele, fígado e pleura. A disseminação ocorre tanto pela via hematogênea quanto pela linfática. O tempo entre o diagnóstico do tumor primário e a metástase é de aproximadamente 9 anos, mas o intervalo varia de 1 a 45 anos. Apesar de o tumor primário poder estar presente por muitos anos antes que haja uma metástase, depois que esta ocorre, a evolução é muito rápida. Menos de 20% dos pacientes sobrevivem por 1 ano e menos de 10% vivem mais de 5 anos após a metástase.
Associação a tumores malignos internos Frisch et al. relataram uma série de 37.674 pacientes com CBC acompanhados por 14 anos. A comparação com a taxa de câncer da população em geral foi impressionante, pois esses pacientes apresentaram 3.663 novos carcinomas, enquanto o grupo-controle desenvolveu 3.245. O melanoma maligno e os carcinomas de lábio foram os mais frequentes; entretanto, notou-se a incidência excessiva de carcinomas internos envolvendo glândulas salivares, laringe, pulmões, mama, rins e órgãos linfáticos (linfoma não Hodgkin). A frequência do linfoma não Hodgkin estava particularmente aumentada. Os pacientes com diagnóstico de CBC antes dos 60 anos de idade apresentaram maior incidência de câncer de mama, câncer testicular e linfoma não Hodgkin.
Imunossupressão A imunossupressão para transplante de órgãos aumenta em 10 vezes o risco de desenvolver CBC. Acredita-se que a infecção pelo HIV e o uso de medicamentos imunossupressores para outras finalidades também aumentem a incidência deste câncer. Os pacientes com leucemia linfocítica crônica também apresentam risco maior para desenvolver CBC. História de queimaduras solares com formação de vesículas na infância nos pacientes imunossuprimidos representa fator de risco muito grande para o desenvolvimento dessa afecção após a instituição de imunossupressão.
Tratamento O tratamento do carcinoma basocelular deve ser individualizado. Classicamente, a cirurgia é considerada meio de abordagem mais curativo, já que a determinação de margens cirúrgicas livres no exame histopatológico considera a lesão como tratada definitivamente. Preconiza-se margem cirúrgica de 5 mm para lesões de basocelular, entretanto muitas vezes lesões palpebrais e de outras localizações nobres não permitem tal amplitude. A cirurgia micrográfica de Mohs pode ser opção nestes casos (há retirada de lesão com margem mínima e estudo histopatológico imediato por congelação com ampliação das margens, até a congelação mostrar ausência de neoplasia no material examinado). Muitas vezes faz-se necessário enxerto ou retalho de pele para reconstituição do leito cirúrgico. A cirurgia micrográfica de MOHS também está indicada para lesões recidivantes.
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48 Dermatologia Inicialmente, Frederic Mohs desenvolveu esta técnica na Universidade de Wiscosin nos anos 1930. A técnica original usava pasta de cloreto de zinco para fixar o tecido in vivo, e era feita a excisão cirúrgica. O Dr. Theodore Tromovitch e o Dr. Samuel Stegman modificaram essa técnica nos anos 1970, utilizando análise dos tecidos a fresco por congelação, variante que continua a ser usada hoje em dia. Enquanto os princípios cirúrgicos básicos da cirurgia micrográfica de Mohs são similares aos usados na excisão-padrão, existem desafios únicos encontrados na cirurgia de Mohs. Uma compreensão completa da patologia, anatomia, oncologia cutânea, reconstrução cirúrgica avançada e controle de complicações cirúrgicas são essenciais para um resultado bem sucedido para o paciente. Qualquer dermatologista que realize a cirurgia micrográfica de Mohs deve ser bem treinado nesta técnica e em todos os desafios que cercam os cuidados cirúrgicos e pós-operatórios. A excisão cirúrgica micrográfica de Mohs é uma técnica poupadora de tecido que emprega o controle de 100% da margem cirúrgica através de cortes congelados. Esta avaliação da margem cirúrgica total usando secções horizontais (e não verticais, como usadas no seccionamento-padrão), combinada com mapeamento preciso, permite um alto índice de cura para as neoplasias cutâneas. Além disso, o fato de poupar os tecidos normais adjacentes pode melhorar a cosmética e diminuir o risco de defeitos funcionais em locais anatômicos sensíveis. Todo tumor com padrão de crescimento contíguo deve ser candidato para excisão cirúrgica micrográfica de Mohs. Existem múltiplas indicações para a excisão cirúrgica micrográfica de Mohs. A cirurgia de Mohs provê índices de cura de 99% de CBCs primários e 95% para CBCs recorrentes. Os CECs na pele e nos lábios tratados com a cirurgia de Mohs têm taxa de recorrência em 5 anos de 3,1% (versus 10,9% para outras modalidades). O CEC na orelha tratado com a cirurgia de Mohs tem taxa de recorrência em 5 anos de 5,3% (versus 18,7% para outras modalidades). O CEC localmente recorrente também tem índice de recorrência reduzido quando tratado com cirurgia de Mohs, se comparado com outras modalidades (10% versus 23,3%). Outros tumores que podem ser tratados com sucesso pela cirurgia de Mohs incluem dermatofibrossarcoma protuberante, fibroxantoma atípico e carcinoma adnexial microcístico.
Indicações para cirurgia de MOHS Câncer de pele não melanoma recorrente ou não completamente excisado Tumores com subtipos histológicos agressivos (i. e.: infiltrativos, semelhantes à morfeia, micronodulares, com comprometimentos perivascular ou perineural) Tumores com margens clínicas mal definidas
Indicações para cirurgia de MOHS (cont.) Localização de alto risco > 0,4 cm (zona H da face, olhos, orelhas e nariz) Tumores grandes (> 1 cm na face; > 2 cm no tronco ou extremidades) Áreas cosmeticamente e funcionalmente importantes, incluindo as áreas genital, anal e perianal, mãos, pés e unhas Tumores surgindo em pacientes imunossuprimidos Tumores surgindo em pele previamente irradiada ou em cicatriz Doenças genéticas com risco aumentado de neoplasias (i. e.: síndrome do carcinoma basocelular nevoide ou xerodermia pigmentosa) Tabela 4.1
A criocirurgia com nitrogênio líquido é boa e versátil opção terapêutica para os tumores cutâneos. Com aparelhos especiais consegue-se crionecrose dos tecidos, obtida com temperaturas que variam de -30°C a -60°C, e a morte celular ocorre por formação de gelo intra e extracelular. Ocorrem também fenômenos imunológicos. Algumas indicações e vantagens da criocirurgia são: a) tratamento de lesões tumorais localizadas em áreas anatômicas com mobilidade mínima do tecido, tais como nariz, pavilhões auriculares, região frontal e dorso das mãos; b) áreas com possibilidade de ocorrerem cicatrizes e retrações indesejáveis, tais como pálpebras e região pré-esternal. A criocirurgia não deve ser utilizada em pacientes com história clínica de sensibilidade ao frio, com doença ou fenômeno de Raynaud ou que tenham exames alterados para crioglobulinas e crioaglutininas.
Quimioterapia citotóxica local Utilizam-se, principalmente, duas substâncias, o 5-fluorouracil tópico e, mais recentemente, imiquimod. A indicação maior é para lesões pré-cancerosas, mas também para o carcinoma basocelular plano superficial, embora possa ocorrer recidiva.
Terapêutica fotodinâmica (PDT) Baseada na ação citotóxica e da destruição celular do ácido delta-aminolevulínico ou pelo cloridrato de aminolevulinato de metila, sob radiação de luz com um comprimento de onda específico. Indicação para carcinoma basocelular superficial.
Síndrome de Gorlin A síndrome do carcinoma de células basais nevoide (SCCBN), ou síndrome do nevo de células basais, é um distúrbio autossômico dominante caracteriza-
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49 4 Neoplasias da pele do pelo desenvolvimento de múltiplos carcinomas de células basais; cistos odontogênicos na mandíbula; pequenas depressões nas mãos e nos pés; anomalias ósseas nas costelas, coluna e crânio; e outros múltiplos distúrbios. Cistos de queratina são vistos com frequência, podendo haver a presença de depósitos de cálcio na pele, principalmente no couro cabeludo. O paciente apresenta uma fácies característica com protuberância frontal, hipoplasia do maxilar, raiz nasal alargada e hipertelorismo ocular verdadeiro.
Tumores cutâneos Os carcinomas de células basais se iniciam muito cedo e em qualquer idade como lesões múltiplas, normalmente numerosas. Eles normalmente aparecem entre os 17 e 35 anos de idade. Apesar de qualquer parte do corpo poder ser afetada, há preferência pelo envolvimento da área central da face, especialmente as pálpebras, região periorbital, nariz, lábio superior e região malar. Qualquer tipo de CBC pode estar presente. As crianças podem apresentar pápulas pigmentadas semelhantes a pólipos.
Cistos mandibulares Os cistos mandibulares afetam 70% dos pacientes. Tanto a mandíbula quanto o maxilar podem apresentar defeitos císticos na radiografia, sendo que o envolvimento mandibular é 2 vezes mais frequente. O paciente pode queixar-se de dor e de que a mandíbula está dolorida, bem como febre, dificuldade para fechar a boca e edema da mandíbula. Os cistos são uni ou multiloculares, podendo ocorrer em qualquer época, sendo que aparecem com mais frequência na 1ª década de vida. Eles podem apresentar revestimento queratinizado e alguns são ameloblastos.
Depressões nas palmas e solas Depressões incomuns nas palmas das mãos e solas dos pés são a manifestação característica da doença. Elas normalmente se tornam aparentes na 2ª década de vida. Até 87% dos pacientes com a síndrome do carcinoma de células basais nevoide apresentarão tais depressões. O exame histológico mostra uma proliferação basaloide, mas as lesões não progridem e nem se comportam como um CBC.
Defeitos esqueléticos Diversos defeitos esqueléticos são facilmente detectados pelas radiografias. Tais defeitos incluem espinha bífida, costelas bífidas, fundidas, ausência de costelas ou costelas alargadas; escoliose e cifose. Uma manifestação interessante é o encurtamento do quarto metacarpo e do metatarso. O encurtamento do
quarto metacarpo causa, clinicamente, uma depressão sobre a quarta articulação metacarpofalangiana (sinal de Albright). A evidência radiológica de lesões múltiplas é altamente sugestiva dessa síndrome, e já que a maioria está presente congenitamente, as radiografias podem ser úteis no seu diagnóstico em pacientes muito novos para manifestar outras anormalidades. Setenta a 75% dos pacientes apresentam anormalidades do esqueleto. Foram encontradas transparências no formato de chamas nas falanges, nos ossos do metacarpo e do carpo em 30%, em um total de 105 pacientes. Outras características radiológicas nessa série incluem costelas bífidas (26%), hemivértebra (15%) e fusão de corpos vertebrais (10%).
Distúrbios do sistema nervoso central Os sinais radiológicos importantes incluem calcificação da foice do cérebro (65%), do tentório cerebelar (20%) e da ponte da sela turca (68%). À tomografia computadorizada (TC), a calcificação da foice do cérebro é distintamente lamelar. Os pacientes podem apresentar problemas mentais variáveis.
Outros defeitos Anormalidades oftalmológicas e cistos mesentéricos, ovarianos e mamários, assim como fibromas uterinos, lipomas, cistos epiteliais, milia e cálculos renais ocorrem, ocasionalmente, nesses pacientes. Fibromas ovarianos multinodulares calcificados são característicos.
Etiologia Esse é um distúrbio genético com uma herança autossômica dominante. A penetrância pode ser de até 95%. Mutações no gene supressor de tumor Patch 1 (PTCH1) e, mais raramente, nos genes sonic hedgehog (SHH) ou smoothened (SMOH) são responsáveis por essa síndrome.
Histopatologia A histopatologia do CBC que se desenvolve nos pacientes com a síndrome é idêntica àquela que se desenvolve nos pacientes que não são portadores da síndrome, sendo que os tipos sólido e superficial são os mais comuns.
Tratamento O aconselhamento genético é essencial. É recomendado restringir a exposição ao sol e fazer uso de proteção solar máxima, semelhante às recomendações para o xeroderma pigmentoso. O tratamento envolve
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50 Dermatologia o monitoramento regular e biópsia de lesões suspeitas. O tratamento tópico com tazaroteno e imiquimod pode ter um papel preventivo ao tratar os tumores superficiais. O tratamento cirúrgico é usado para a maioria das lesões. Um caso com lesões intratáveis respondeu à quimioterapia sistêmica com o paclitaxel. O tratamento oral com retinoide reduz a frequência de novas lesões de CBC.
Carcinoma espinocelular O carcinoma espinocelular é um tumor maligno da pele, com capacidade de invasão local e de metastatizar, representando cerca de 20% a 25% dos cânceres da pele. Origina-se de células epiteliais do tegumento (pele e mucosas) com certo grau, maior ou menor, de diferenciação para produção de queratina. É mais frequente no sexo masculino (54%) e de aparecimento mais tardio que o basocelular. Relaciona-se diretamente com a exposição solar e é o mais frequente dos tumores relacionados à imunossupressão, com o HIV, por exemplo, aumentando a chance de ocorrência. O arsenicismo também aumenta o risco de ocorrência e a queratose actínica aparece como lesão cutânea pré-maligna mais frequente. O tratamento com etanercept foi associado ao aparecimento deste câncer em pacientes portadores de artrite reumatoide que, também, estavam usando metotrexate. O papilomavírus (HPV-16, 18, 31 e 35) desempenha papel importante no desenvolvimento desses tumores na genitália e região periungueal. Quanto à localização, o terço inferior da face e dorso das mãos são os locais de predileção. Lábio inferior pode ter lesão de carcinoma espinocelular com frequência, especialmente quando precedido por queilite actínica. Iniciam-se como lesões pequenas e endurecidas e têm crescimento rápido, podendo chegar a alguns centímetros em poucos meses. Crescem infiltrando-se nos tecidos subjacentes e também para cima, formando lesões elevadas ou vegetantes. É frequente haver ulceração com sangramento. A classificação de Broders define o grau de diferenciação baseado na ceratinização do corte histológico:
I: expressiva diferenciação celular, com mais de 75% de corte, apresentando tendência à ceratinização, inclusive com eventuais “pérolas córneas”;
II: 50% a 75% do corte com elementos favoráveis à ceratinização;
III: 25% a 50% do corte com diferenciação;
IV: menos de 25% do corte com elementos ligados à ceratinização, mostrando grande indiferenciação.
Esta classificação é criticada por alguns dermatologistas e dermatopatologistas porque só caracteriza o grau de diferenciação, sem levar em conta o grau de invasão. O carcinoma espinocelular pode surgir em pele sadia ou previamente comprometida por algum processo, como cicatrizes de queimaduras antigas (úlceras de Marjolin), úlceras crônicas, radiodermites ou lesões decorrentes do efeito acumulativo da radiação solar sobre a pele, como as queratoses solares (ou actínicas). A doença de Bowen caracteriza-se por lesão eritemato-escamosa de crescimento centrífugo, preferencialmente localizada em áreas não fotoexpostas, e trata-se de um carcinoma espinocelular in situ. Quando localizado no pênis, recebe o nome de eritroplasia de Queyrat. O carcinoma espinocelular tem crescimento mais rápido do que o carcinoma basocelular, pode atingir as mucosas (lábios, mucosas bucal e genital) e, neste caso, apresenta maior chance de metastatizar. Quando este fenômeno ocorre, é inicialmente por via linfática e posteriormente hematogênica, comprometendo preferencialmente ossos e pulmões. A frequência de metástase de um CEC também varia de acordo com a lesão que lhe deu origem, sendo 0,5% de chance para queratose actínica, 17% para cicatriz de queimaduras, 20% para radiodermite crônica e 31% para fístula de osteomielite crônica.
Metástases A incidência de metástases no carcinoma de células escamosas varia de 0,5% a 5,2%. Deve-se dar atenção especial aos linfonodos regionais que drenam o local do tumor. Eles devem ser avaliados no exame inicial, quando a lesão suspeita é identificada, e nas consultas após o tratamento do tumor. Os fatores de risco para a recidiva local e metástases incluem: 1) modalidade de tratamento que não verifique as margens do espécime (como curetagem e dissecação, crioterapia ou radioterapia); 2) recorrência após o tratamento; 3) localização (têmporas, couro cabeludo, orelha, lábios); 4) tamanho; 5) profundidade; 6) diferenciação histológica; 7) evidência histológica de invasão perineural; 8) evidência histológica de desmoplasia; 9) outros fatores precipitantes além da luz UV; e 10) paciente imunossuprimido. Em referência às metástases, as maiores taxas estão associadas a cicatrizes (37,9%), lábio (13,7%) e orelha (8,8%). O risco de metástases aumenta para as lesões com mais de 2 cm de diâmetro, lesões cutâneas com mais de 4 mm de profundidade e lesões no lábio com mais de 8 mm de profundidade.
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51 4 Neoplasias da pele Os pacientes com disseminação perineural apresentam uma incidência de recorrência local de 47,2% e metastática de 34,8%. As chances de metástases são 6 vezes maiores no carcinoma de células escamosas desmoplásico do que nos outros padrões histológicos, excluindo as formas neurotrópicas. Os pacientes com carcinoma de células escamosas apresentam risco maior de desenvolver outros tumores malignos, como câncer dos órgãos respiratórios, cavidade oral, faringe, intestino delgado (nos homens), linfoma não Hodgkin e leucemia. O tratamento do CEC obedece aos mesmos princípios do tratamento do carcinoma basocelular.
Figura 4.2 Carcinoma espinocelular com características de corno cutâneo (A). Lesão úlcero-infiltrativa avançada (B). CEC de mucosa de glande – Eritroplasia de Queyrat (C).
Carcinoma verrucoso Trata-se de tipo especial de carcinoma espinocelular de baixo grau de malignidade, crescimento lento e que raramente metastatiza. Manifesta-se clinicamente como lesão exofítica e verrucosa, que acaba por invadir estruturas mais profundas da pele. A histopatologia revela alto grau de diferenciação, sem atipias, podendo ser erroneamente diagnosticado como verruga vulgar. Geralmente associado ao papilomavírus humano; incluem a papilomatose oral florida da boca, o condiloma gigante de Buschke-Lowenstein dos órgãos genitais e o epitelioma cuniculado das plantas. O tratamento do carcinoma espinocelular é cirúrgico, com retirada total da lesão, e deve ser realizado o mais precocemente possível, para evitar a ocorrência de metástases. Evolução para CEC pode ocorrer, sobretudo após tratamento com radioterapia. O prognóstico, entretanto, é bom.
Figura 4.3 Variações topográficas do carcinoma verrucoso: plantar ou epitelioma cuniculatum (A); urogenital ou condiloma acuminado gigante de Buscke-Loewenstein (B) e da cavidade oral ou papilomatose oral florida (C).
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52 Dermatologia
Melanoma O melanoma é um tumor de elevada malignidade, que se origina da transformação maligna dos melanócitos e envolve primariamente a pele. Sua incidência vem aumentando nos últimos anos (3% a 8% ao ano) e é maior em indivíduos de pele clara. Representa 3% de todos os tipos de câncer e com mortalidade em ascensão, representando 1% das mortes por câncer em todo o mundo e 90% das mortes associadas a tumores cutâneos. Indivíduos com grande quantidade de nevos melanocíticos comuns e aqueles com nevos congênitos e/ ou nevos atípicos apresentam maior risco de desenvolver a neoplasia. É mais frequente em homens, nos quais o prognóstico é ligeiramente melhor.
Etiologia Ocorre associado a fatores genéticos e ambientais, sendo a exposição solar intermitente e intensa o mais importante destes últimos. Pacientes que sofreram queimaduras solares na infância têm 3,6% mais chances de desenvolver melanoma do que aqueles que não se queimaram. A incidência e a mortalidade são inversamente proporcionais à latitude do domicílio e há menor chance de lesão em áreas do corpo duplamente cobertas. A história prévia de melanoma e os fototipos mais baixos (pele clara) aumentam a chance, bem como a presença de melanoma na família – 8% a 12% dos pacientes com diagnóstico de melanoma têm história familiar de melanoma. O trauma é sabidamente implicado como fator colaborador em lesões de melanoma do tipo lentiginoso acral, que apresenta maior prevalência em populações com o hábito de andar sem calçados. Imunodeficiências adquiridas podem aumentar a chance. Nevos axiais gigantes congênitos ou mutações no gene p16, protoncogene CD K4, p53 e gene APAF-1 e, recentemente, se encontrou associação entre melanoma e o polimorfismo do gene EGF, além de mutações somáticas de troca simples no oncogene BRAF (figura 4.4). A lesão do melanoma pode surgir sobre pele sã (melanoma de novo) ou sobre lesões preexistentes, principalmente os nevos melanocíticos; 1/3 dos melanomas surgem em lesões névicas prévias e o risco é maior para nevos displásicos e praticamente inexistente para nevos intradérmicos. Prurido, alterações
de pigmentação e do tamanho da lesão, inflamação, ulceração e sangramento são alterações que sugerem transformação maligna.
Perda de E-caderina e CDKN2A
Perda de p14ARF e APAF-1
Perda ou resistência à Proliferação inibição de autônoma proliferação
Evasão de apoptose
Melanoma cutâneo
Angiogênese Expressão de VEGF e remodelamento da matriz extracelular
Mutações em BRAF e sinalização via FGF-R
Invasão e metástase
αvβ3 integrinas e receptores de quimiocinas
Imortalização Aumento da atividade de telomerase
Figura 4.4 Melanoma cutânea: uma visão resumida das alterações moleculares detectadas. Hanahan & Weinberg agruparam as alterações encontradas em diferentes cânceres em seis principais categorias. Essa figura mostra os mecanismos moleculares alterados em cada uma das seis categorias e que estão associados com a progressão do melanoma. Esses mecanismo ilustram os elementos mais promissores para diagnóstico precoce e o foco da atenção da pesquisa de novas drogas para o tratamento de melanoma.
Principais formas clínicas Lentigo maligno-melanoma Lentigo maligno-melanoma é o melanoma que surge sobre a melanose maligna ou lentigo maligno. Ocorre geralmente em pacientes idosos, na face ou em outras áreas expostas ao sol, e se manifesta como mácula assintomática grande (de 2 a 6 cm), plana, acastanhada ou marrom, com pontilhado negro ou marrom espalhado irregularmente na superfície, que cresce radialmente. É uma forma de melanoma maligno superficial in situ, no qual as células névicas e os melanócitos são encontrados nas porções inferiores da epiderme. Já no lentigo maligno-melanoma, os melanócitos malignizados proliferam de maneira mais abundante na epiderme basal e podem invadir a derme. Dentre os melanomas, é o tipo menos comum (4%15%) e mais prevalente em idosos (+/- 65 anos). É quase exclusivo de áreas expostas ao sol – segmento cefálico – e é a lesão de melhor prognóstico, pela origem epidérmica dos melanócitos. A lesão geralmente é plana, com o desenvolvimento de áreas palpáveis sendo indicativo de melanoma mais invasivo.
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53 4 Neoplasias da pele
Melanoma extenso superficial Melanoma extenso superficial corresponde ao tipo clínico mais comum (70%). A lesão em geral é assintomática e bem menor que o lentigo maligno-melanoma. Localiza-se na maioria das vezes nas pernas, em mulheres, e no tronco, em homens. A idade média é de 40 anos. O paciente, em geral, procura o médico queixando-se de aumento no tamanho da lesão ou devido à sua coloração irregular. O aspecto característico da lesão é de placa com bordas elevadas e infiltradas, cujas margens são denteadas e irregulares, geralmente maiores que 6 mm, apresentando pontos cuja coloração varia desde acastanhada até negra, podendo ser esbranquiçada, acinzentada ou vermelha. Às vezes, há pequenos nódulos protuberantes de cor preto-azulada. É o tipo que mais se associa às lesões névicas prévias. Devemos valorizar, na anamnese do paciente, sinais e sintomas como prurido, ulceração e mudança da lesão. Histologicamente, a lesão se caracteriza por melanócitos atípicos por toda a epiderme, com eventual invasão dérmica. Seu prognóstico é intermediário entre o lentigo maligno-melanoma e o melanoma nodular.
aparecimento é de 55 a 65 anos. O período de evolução é de aproximadamente 2 anos e meio. Pode ser palmar, plantar ou subungueal. A lesão é castanha, marrom ou negra, com variação na cor e bordas irregulares, podendo haver pápulas e nódulos na fase de crescimento vertical com grande poder de matástase. O melanoma subungueal é raro, geralmente em hálux ou polegar, podendo se apresentar apenas como uma faixa de cor preta, geralmente maior que 6 mm de largura ou mesmo envolvendo toda a unha, por vezes hipercromia do leito ungueal proximal (pigmentação da prega ungueal posterior), correspondendo ao Sinal de Hutchinson.
Melanoma mucoso O melanoma primário das mucosas é raro, mas tipicamente demonstra um padrão de crescimento lentiginoso (juncional). Na boca, especialmente no palato, a lesão é geralmente pigmentada, podendo ser ulcerada. Na mucosa nasal, ele pode apresentar-se como um tumor polipoide. No lábio pode tomar a forma de uma úlcera indolente. O melanoma da vulva se manifesta como um tumor, geralmente ulcerado, com sangramento e prurido. Normalmente, ele é detectado depois da instalação de metástases para a virilha.
Melanoma nodular Melanoma nodular é responsável por 10% a 15% de todos os melanomas, sendo o segundo tipo mais comum. Pode aparecer em qualquer parte do corpo, sendo encontrado com maior frequência em pacientes entre os 20 e 60 anos de idade (idade média de aproximadamente 53 anos), em tronco, cabeça e pescoço. Também é assintomático, a não ser que se ulcere. O paciente, em geral, procura o médico queixando-se do aparecimento de pápulas protuberantes e escuras ou de placa escura que cresceu rapidamente com pouco aumento no sentido radial. A cor pode variar do branco perláceo ao cinza ou ao preto. Ocasionalmente, o melanoma nodular pode apresentar pouco ou nenhum pigmento. A evolução é rápida (6-18 meses), com prognose mais grave. Geralmente, surge em pele sã (melanoma de novo).
Melanoma amelanótico Merece destaque pela dificuldade e retardo de reconhecimento como lesão maligna. Suas células são incapazes de produzir melanina, sua função básica, daí o alto grau de indiferenciação e a alta malignidade, com comportamento mais agressivo que o dos melanomas melanóticos e maior capacidade de invasão. Trata-se do melanoma desmoplásico, cuja localizações mais comuns são cabeça e parte superior do tronco e 50% podem apresentar neurotropismo. Paciente de idade média de 63 anos tendo prognóstico reservado. Principais diagnósticos diferenciais são granuloma piogênico, CBC e ceratose actínica.
Diagnósticos diferenciais Melanoma lentiginoso acral Corresponde à forma mais comum de melanoma entre negros e asiáticos (60%-72% negros e 29%-46% asiáticos). É o tipo menos frequente em indivíduos de pele clara (2% a 8%). A idade média de
Os principais diagnósticos diferenciais do melanoma cutâneo são com nevo atípico, nevo de Spitz, nevo de Reed, carcinoma basocelular pigmentado, nevo azul, hemangioma trombosado, ceratose seborreica, melanoníquia estriada, hemantoma subungueal e alguns tumores anexiais raros.
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54 Dermatologia Características clínicas dos diferentes tipos de melanoma Idade História natural e características do crescimento radial Tipo de melanoma Localização comum média Melanoma Áreas de exposição solar, 70 anos Geralmente são lesões grandes (3 a 4 cm), achatadas, de colentigo maligno mais comumente cabeça loração bronzeada a preta, com lesão precursora (lentigo mae pescoço ligno) por 5 a 10 anos. Hipopigmentação do tecido ao redor. Representa 10% dos melanomas. Toda a superfície 56 anos Comumente associado com a síndrome do nevo displásico. TiMelanoma de disseminação corporal picamente, o diagnóstico é feito por mudança em uma lesão superficial preexistente. Inicialmente, vai desde lesões achatadas a levemente elevadas, com margens irregulares e coloração marrom, preta e rosa. Representa 70% dos melanomas. Melanoma Toda a superfície 49 anos Cresce mais comumente no tronco. A lesão é, em geral, escunodular maligno corporal ra e de coloração uniforme. É notável a completa ausência de anormalidades dos melanócitos na epiderme adjacente. Geralmente, não tem uma fase de crescimento radial e é associado com rápido crescimento vertical. Representa 10% a 15% dos melanomas. Melanoma Palma das mãos, sola 59 anos Na maioria dos casos, são lesões grandes, com bordas irregulentiginoso acral dos pés e subungueal lares, geralmente de coloração marrom. O subungueal mais comumente ocorre no 1º quirodáctilo ou 1º pododáctilo. Melanoma lentigi- Oral, ocular, de mucosa 56 anos Semelhante ao melanoma lentiginoso acral, ocorrendo em noso de mucosa genital uma variedade de tecido mucoso. Tabela 4.2
Figura 4.5 Melanoma extenso superficial.
Figura 4.7 Melanoma lentiginoso acral e sinal de Hutchinson.
Figura 4.6 Melanoma lentiginoso acral.
Figura 4.8 Melanoma nodular com satelitose.
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55 4 Neoplasias da pele
Detecção clínica do melanoma
Figura 4.9 Lentigo maligno-melanoma.
Deve-se realizar coleta de história clínica detalhada em busca de fatores de risco para o desenvolvimento de melanoma, obtendo informações sobre lesões suspeitas que apresentem prurido, sangramento ou mudanças de cor e tamanho. Os pacientes devem ser submetidos a exame físico completo observando-se alterações em lesões preexistentes ou o surgimento de lesões em áreas de pele sem nenhuma lesão anterior (de novo). Em relação aos nevos pigmentados que se alteram, é importante considerar alguns sinais, mnemonicamente ABCDE, que indicam provável transformação em melanoma:
Regra do ABCDE: A: Assimetria. B: Bordas irregulares. C: Cores variadas. D: Diâmetro ≥ 6 mm, ou em crescimento. E: Elevação, aumento da espessura.
Figura 4.10 Melanoma amelanótico.
Nos últimos anos, tem-se acrescido à semiologia das lesões pigmentadas a técnica da dermatoscopia, realizada através de aparelhos especiais (dermatoscópios) que, pela observação de determinados padrões de pigmentação e morfologia, aumentam a acuidade diagnóstica, porém a diagnose de certeza é feita pelo exame histopatológico. O diagnóstico clínico de melanoma está associado com uma taxa de erro no diagnóstico de 10-20%.
Biópsia A excisão completa, com margens laterais de 2 mm e profundidade até a camada superior do tecido adiposo, é o método preferível de biópsia para uma lesão com suspeita de melanoma. Apesar de a National Comprehensive Cancer Network (NCCN) recomendar que se evitem margens mais amplas para permitir um mapeamento linfático para pesquisa de nódulos sentinela, evidências sugerem que o mapeamento preciso ainda é possível após uma excisão ampla.
Figura 4.11 Melanoma maligno metastático.
Quando existe a suspeita de um melanoma se desenvolvendo a partir de um nevo pigmentado gigante, deve-se realizar uma biópsia incisional. A biópsia de um lentigo maligno é problemática, pois as lesões tendem a ser grandes e a se desenvolverem em regiões cosmeticamente relevantes. Essas lesões frequentemente contêm áreas normais, podendo levar a um diagnóstico errôneo. Áreas do tumor podem apresentar regressão liquenoide, simulando a ceratose liquenoide benigna. A colisão com outras lesões pigmentadas,
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56 Dermatologia como o lentigo solar benigno, acantoma pigmentado de células grandes e ceratose actínica pigmentada, é comum. Como existe o potencial de se biopsiar a área errada, pequenas biópsias frequentemente levam a um diagnóstico errôneo. A melhor técnica de biópsia na suspeita de lentigo maligno é geralmente a biópsia superficial tangencial ampla. Isso resulta em uma cicatriz mínima e fornece ao patologista uma ampla área da junção dermoepidérmica para ser examinada. Se a lesão for heterogênea, devem-se biopsiar diversas áreas. Se existe a suspeita de lentigo maligno ou melanoma desmoplásico, deve-se realizar uma biópsia incisional. Os erros de biópsia são mais comuns com as biópsias por punção. A PAAF é realizada nos casos de melanoma com doença em trânsito (melanoma que se dissemina para qualquer um dos gânglios linfáticos).
Histopatologia As biópsias devem ser examinadas por dermatopatologista ou patologista com experiência em lesões pigmentadas. O laudo deve incluir a espessura máxima em milímetros, conforme o método de Breslow; o nível de invasão de Clark; a presença ou ausência de ulceração; o estado das margens da exérese e presença de lesões satélites que é um forte indicador de prognóstico adverso. Outros fatores importantes incluem regressão, índice mitótico, linfócitos infiltrando o tumor, fase de crescimento (radial versus vertical), invasão angiolinfática, neurotropismo e subtipo histológico. Enquanto os nevos benignos estão bem aninhados na junção, os melanomas geralmente apresentam áreas juncionais em que predominam melanócitos fora de ninhos. Os nevos benignos apresentam dispersão de melanócitos na base da lesão, enquanto os melanomas permanecem aninhados na base. Os melanomas podem ser assimétricos, mas o melanoma metastático e nodular pode apresentar-se como esferas perfeitamente simétricas. Os nevos benignos apresentam simetria bilateral e maturação (células menores e com aspecto mais neuroide) que desce para a derme. A maioria dos melanomas não apresenta simetria bilateral e tem pouca maturação descendo para a derme. Nos nevos, os ninhos na junção tendem a ser redondos ou ovais e equidistantes. No melanoma, os ninhos juncionais geralmente são alongados ou têm um formato irregular. Eles se distribuem ao acaso e geralmente envolvem o ápice das papilas dérmicas, assim como as pontas e os locais dos cones dérmicos. Carreiras confluentes de melanócitos atípicos são vistas frequentemente na junção dermoepidérmica, normalmente se estendendo até os anexos. Nos nevos, os ninhos dérmicos são menores do que os ninhos juncionais, tornando-se progressivamente menores quanto mais profundos
na derme. No melanoma, os ninhos dérmicos não se tornam menores nas porções mais profundas da derme. Nos nevos, a pigmentação é mais proeminente na junção, reduzindo-se progressivamente nas camadas mais profundas da derme. Os melanomas geralmente retêm a pigmentação nas porções profundas da lesão. No melanoma de disseminação superficial, os melanócitos estão distribuídos na epiderme em um padrão de “tiro de escopeta”. Os tipos lentiginosos de melanoma tendem a proliferar na junção dermoepidérmica com pouca disseminação em tiro de escopeta. O melanoma invasivo está comumente associado a um infiltrado linfoide que forma uma faixa na periferia da lesão. Plasmócitos podem estar presentes em grande número. Uma fase de crescimento vertical é identificada pela presença de um ninho dérmico maior do que o maior ninho juncional, pela invasão da derme reticular ou pela presença de uma faixa elastótica solar. A profundidade do melanoma é medida a partir da camada granulosa ou da base da úlcera. Se houver invasão pela extensão folicular do tumor, a lesão é medida a partir da camada interna da raiz. As variantes raras do melanoma incluem o melanoma de células-balão e o melanoma dendrítico do “tipo equino”. Alguns tipos de nevos benignos mimetizam determinadas características dos melanomas. Os nevos de queimadura solar, acral e de Spitz podem apresentar disseminação intraepidérmica de melanócitos em tiro de escopeta. Os nevos azuis são tipicamente pigmentados na base, estendendo-se para a derme como uma projeção bulbar com pouca maturação e sem dispersão de células na base. A silhueta, estroma esclerótico e citologia branda são essenciais para o diagnóstico. A hibridização genômica comparativa mostrou que aberrações cromossômicas são comuns nos melanomas. Elas ocorrem mais cedo na progressão do melanoma acral do que nos melanomas do tronco. Em geral, os melanomas tendem a apresentar anormalidades envolvendo os cromossomas 9,10, 7 e 6. Os melanomas acrais têm maior incidência de aberrações envolvendo os cromossomas 5p, 11q, 12q e 15, tendo muitas amplificações no locus da ciclina D1. Os lentigos malignos são mais propensos a apresentar perdas nos cromossomas 17p e 13q. Aberrações cromossômicas são raras nos nevos benignos. Uma pequena porcentagem dos nevos de Spitz pode apresentar ganho isolado envolvendo o braço curto de cromossoma 11.
Metástases As metástases ocorrem por via linfática e sanguínea e são divididas em locais, regionais e sistêmicas. As metástases locais ocorrem por via linfática e podem ser lesões satélites (se até 2 cm do tumor de origem) ou metástases em trânsito (se distantes mais de
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57 4 Neoplasias da pele 2 cm do tumor). Metástases regionais, também linfáticas, são caracterizadas pelo comprometimento de linfonodos. A ulceração da lesão é o maior predisponente de envolvimento linfonodal. O risco de acometimento de linfonodo também é diretamente proporcional ao nível de Breslow, que será abordado na sequência. Metástases sistêmicas têm origem hematogênica e privilegiam órgãos como a própria pele (42%-59%), pulmão (18%36%), fígado (14%-20%), SNC (12%-20%), ossos (11%27%) e trato gastrointestinal (1%-7%).
Breslow III: 1,5 a 3 mm.
Breslow IV: 3 a 4 mm.
Breslow V: melanócitos atípicos encontrados em profundidade maior do que 4 mm.
As metástases para o SNC são a principal causa de óbito.
Prognóstico O prognóstico do melanoma está diretamente relacionado ao grau de invasão da pele. Existe correlação linear entre o grau de invasão (Breslow) e a sobrevida em 10 anos. Assim como a classificação de Breslow, os níveis elevados de desidrogenase lática e a presença de ulceração no tumor primário são considerados fatores independentes de mau prognóstico. Se houver acometimento linfonodal ou doença metastática, o prognóstico é sombrio independentemente da gravidade do acometimento da pele.
Figura 4.12 O nível de Breslow é medido do topo da camada granulosa até a célula tumoral mais profunda.
Classificação de clark I: lesão envolvendo apenas a epiderme (melanoma in situ). II: invasão da derme papilar, não alcançando a interface da derme papilar-reticular.
Classificação de breslow
Breslow Is: tumor não invasivo, in situ, não sendo encontrados melanócitos atípicos abaixo da membrana basal.
Breslow I: melanócitos atípicos não mais profundos do que 0,75 mm da superfície cutânea no corte histopatológico.
Breslow II: 0,75 a 1,5 mm.
III: invasão preenche e expande a derme papilar, mas não penetra a derme reticular. IV: invasão penetra a derme reticular, mas não penetra o tecido subcutâneo. V: invade através da derme reticular e penetra o tecido.
Estadiamento melanoma cutâneo
Classificação Tx Tis T1 T2 T3 T4
Classificação de tumor primário para melanoma Espessura do tumor Parâmetros de prognóstico adicionais Não informado Espessura do tumor ou informação sobre ulceração não disponível ou tumor primário desconhecido – Melanoma in situ, sem invasão tumoral ≤ 1 mm T1a: não ulcerado e índice mitótico < 1/mm2 T1b: com ulceração ou índice mitótico ≥ 1/mm2 1,01-2 mm T2a: não ulcerado T2b: ulcerado 2,01 - 4 mm T3a: não ulcerado T3b: ulcerado > 4 mm T4a: não ulcerado T4b: ulcerado Tabela 4.3
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58 Dermatologia Classificação de linfonodo regional para melanoma Número de linfonodos envolvidos (LN) Extensão das metástases linfonodais 0 Sem metástases em linfonodos regionais 1 N1a: micrometástases* N1b: macromatástases** N2 2-3 N2a: micrometástases N2b: macrometástases N2c: em trânsito / satelitoses / sem metástases LN N3 Clínico: ≥ linfonodos com metástase(s) em trânsito / satélites com linfono Patológico: > 4LN ou LN confluentes ou metástase em trânsito / satelitoses com LN metastáticos Tabela 4.4 *Micrometástases são diagnosticadas após a biópsia do linfonodo sentinela ou linfadenectomia (quando realizada). **Macrometástases são definidas como clinicamente evidentes e confirmadas após a linfadenectomia terapêutica ou quando a metástase apresenta extravasamento extracapsular macroscópico. Classificação N0 N1
Classificação de metástase a distância para melanoma LDH no Tipo de metástase Classificação a distância soro M0 Sem metástase a distância – M1a Metástase cutânea, subcutâ- Normal nea ou linfonodal a distância M1b Metástase em pulmão Normal M1c Metástases em outras vísNormal ceras; Qualquer metástase a Elevado distância Tabela 4.5
Estadiamento patológico (cont.) T1 – 4b N1 T1 – 4b N2 T1 – 4A N1b T1 – 4A N2b T1 – 4A N2c N1b III C T1 – 4b T1 – 4b N2b T1 – 4b N2c IV qqT N3 qq T qq N III B
M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0 M1
Tabela 4.7
Grupo 0 IA IB IIA IIB IIC III IV
Grupo 0 IA IB IIA IIB IIC III A
Estadiamento clínico T N Tis N0 T1a N0 T1b N0 T2b – T3a N0 T3b – T4a N0 T4b N0 qqT q N > N0 qqT qqN Tabela 4.6
M M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0 M1
Estadiamento patológico T N Tis N0 T1a N0 T1b – T2a N0 T2b – T3a N0 T3b – T4a N0 T4b N0 T1 – 4A N1 T1 – 4A N2
Para fins práticos, pode-se fazer uma análise prognóstica entre a sobrevida e o agrupamento dos pacientes por estádios, conforme a seguir: estádio I: T1-T2aN0M0 (sobrevida em 10 anos = 90%): estádio II: T2b-T4aN0M0 (sobrevida em 10 anos = 60%): estádio III: qqTN1-3M0 (sobrevida em 10 anos = 45%): estádio IV: qqTqqNM1 (sobrevida em 10 anos = 10%):
Estadiamento melanoma cutâneo M M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0
Mudança na última diretriz: A espessura do melanoma e a presença de ulceração são utilizadas para definir o estadiamento T. Para os melanomas T1, além da ulceração do tumor, a frequência de mitoses substituiu o grau de invasão (Clark) na definição da subcategoria T1b. A presença de micrometástases pode ser detectada utilizando a imuno-histoquímica ou H&E (antes a imunohistoquímica não era utilizada).
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59 4 Neoplasias da pele
Não utilizamos um limite inferior para definir a presença de metástases nodais regionais. No consenso anterior, tumores com depósitos nodais < 0,2 mm de diâmetro não eram considerados metastáticos. Entretanto, tumores pequenos podem ser clinicamente significativos.
O LDH elevado permanece como um significativo preditor de sobrevida e pode ser utilizado para categorizar o estádio M.
Sítios de metástase a distância continuam representando primariamente um componente da categoria M.
Cintilografia, mapeamento dos linfáticos e biópsia de linfonodo sentinela (linfadenectomia) permanecem como ferramentas importantes no estadiamento do melanoma e podem ser utilizados na definição de doença oculta Estádio III em pacientes com apresentação clínica IB ou II.
A presença de microssatélites não tem boa correlação com o prognóstico e, pela classificação do Melanoma Task Force, deve ser estadiada como N2c. Melanoma metastático de sítio primário desconhecido diagnosticado em linfonodos, pele e tecido celular subcutâneo é caracterizado mais como estágio III do que IV. A sobrevida dos pacientes com metástases regionais intralinfáticas é melhor que dos outros pacientes do estádio IIIB.
Tratamento O tratamento do melanoma maligno é cirúrgico e deve ser realizado o mais precocemente possível. O diagnóstico e o tratamento precoces são fundamentais para a cura. A abordagem inicial consiste em exame clínico da lesão e, se necessário, exame dermatoscópico para determinar a necessidade de exérese da lesão. Faz-se uma biópsia excisional da lesão, com margem mínima de 2 mm, e estudo anatomopatológico. Em caso positivo para melanoma, o tratamento cirúrgico complementar com ampliação de margens cirúrgicas iniciais deve ser feito com margens proporcionais ao índice de Breslow (microestadiamento) da lesão primária, uma vez que o aumento de espessura piora o prognóstico deste tumor. AAD – American Bologna J. Dematology, Academy of 2005 dermatology Margem de Margem Breslow Histopatologia excisão de excisão In situ 0.5 cm Melanoma in situ 0,5 cm ≤ 2 mm 1 cm Melanoma < 1 mm 1 cm > 2 mm 2 cm Melanoma de 1-4 mm 2 cm Melanoma > 4 mm 3 cm Tabela 4.8
O Comitê de Melanoma da AJCC recomenda que todos os pacientes com LN regionais clinicamente negativos e que possam ser considerados para futuros ensaios terapêuticos, cirúrgicos ou adjuvantes, devem ser mapeados intraoperatoriamente, com a técnica do linfonodo sentinela, e consequente estadiamento patológico, para que haja homogeneidade dentro dos grupos tratados e melhor discernimento entre o impacto proveniente da história natural e/ou da terapêutica utilizada nos diferentes ensaios. Melanomas com Breslow acima de 1 mm de espessura ou menores com ulceração merecem a realização de um linfonodo sentinela com efeito de estadiamento e possível remoção de micrometástases.
(+)
Linfonodos clinicamente negativos
Pesquisa linfonodo sentinela (–)
Linfonodos clinicamente positivos
ECRM/Avaliar parotidectomia Seguimento
EC radical modificado/ avaliar parotidectomia
Figura 4.13
Atualmente, as indicações da pesquisa do linfonodo sentinela são bem claras:
lesões primárias com espessura maior do que 0,76 mm;
lesões com espessura menor que 0,76 mm, associadas à ulceração e/ou índice minótico diferente de zero, e/ou nível de Clark IN, e/ou regressão extensa.
O melanoma subungueal merece algumas considerações especiais: como o polegar é o sítio anatômico mais comum, sempre que possível, deve ser tratado por ressecção ao nível da articulação interfalangeana distal, para preservar a função de oponência e manter a funcionalidade do membro; em relação ao hálux, recomenda-se a desarticulação metatarso-falangeana, preservando a cabeça do primeiro metatarso, para manter a base de apoio, obtendo-se resultado funcional bastante aceitável. Para os demais dedos, a amputação em raio é recomendável na maioria das ocasiões.
Terapia adjuvante O uso de interferon-α (IFN-2b) adjuvante em altas doses mostrou melhora na sobrevida livre de recidiva em três estudos cooperativos e melhora na sobrevida global em dois deles, levando à aprovação dessa terapia para pacientes com melanomas com mais de 4 mm de espessura (IIB ou IIC) ou envolvimento de linfonodos regionais (III), sem patologias sérias preexistentes e com uma expectativa de vida maior do que 10 anos. Essa terapia com altas doses causa muitos
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60 Dermatologia efeitos colaterais (fadiga, sintomas constitucionais, cefaleia, náuseas, perda de peso, mielossupressão, depressão), frequentemente requerendo redução de doses; por isso, deve ser administrada por profissional que esteja familiarizado com a sua toxicidade. As críticas ao uso do IFN-2b estão relacionadas ao fato de ser um tratamento tóxico e sem evidências de vantagem consistente na sobrevida a longo prazo. A despeito da toxicidade, modesta eficácia e custo elevado do IFN-2b, análises retrospectivas mostram que o uso desse agente está associado com melhora na qualidade de vida e apresenta um custo-benefício favorável. Várias vacinas têm sido investigadas como terapia adjuvante potencial para pacientes com melanoma de alto risco. Poucos estudos de fase III testaram a eficácia das vacinas. Apesar de alguns resultados animadores, estudos prospectivos confirmando esses resultados são necessários para que a terapia com vacinas possa ser considerada como uma opção de terapia adjuvante. A radioterapia adjuvante deve ser considerada em pacientes com envolvimento extranodal e com presença de linfonodos coalescentes e no envolvimento linfonodal em pacientes com melanoma de cabeça e pescoço. Em pacientes com metástases em trânsito ou satélite, para os casos com pouca doença e possibilidade de ressecção, a excisão completa com margens negativas é o tratamento preferido; pacientes com metástase em trânsito única e completamente ressecada devem realizar análise do linfonodo sentinela pela alta probabilidade de metástase linfonodal; para pacientes com um número finito de metástases em trânsito sem possibilidade de excisão completa, as opções são injeção intralesional com BCG ou interferon, perfusão isolada hipertérmica de membro com melfalano, radioterapia (baixa eficácia), terapia sistêmica (particularmente após falha de terapia local e/ou regional).
Tratamento da doença metastática A abordagem terapêutica dos pacientes com melanoma estádio IV (cirurgia, radioterapia, quimioterapia, imunoterapia) varia de acordo com a localização da metástase, o número de lesões e sítios envolvidos, as condições clínicas e a idade do paciente. Pacientes com metástase única no cérebro ou metástases pulmonares (nesse caso, não necessariamente metástase única) devem ser considerados para tratamento cirúrgico. Após o tratamento cirúrgico da metástase cerebral, recomenda-se radioterapia de todo o cérebro. Pacientes com metástase cerebral não candidatos à cirurgia, cuja lesão seja menor do que 3 cm, são candidatos a tratamento radiocirúrgico, seguido de radioterapia total do cérebro. Para pacientes com metástase cerebral e metástases sistêmicas concomitantes, além de radioterapia de todo o cérebro, é necessário tratamento sistêmico.
A fotemustina atravessa a barreira hematoencefálica e demonstra modesta resposta em estudos clínicos fases II e III em melanoma metastático, embora sem impacto na sobrevida. Recomenda-se fotemustina 100 mg/m2 nos dias 1, 8 e 15, concomitante com a radioterapia do cérebro com quatro semanas de repouso. Após, reavaliação e, se obter resposta, continuar o tratamento com 100 mg/m2 a cada 21 dias. Outra opção a considerar para potencializar o efeito da radioterapia no cérebro é administrar temozolomida 75 mg/m2 VO/dia durante seis semanas concomitantes. Para pacientes com doença sistêmica sem metástases para o cérebro, considerar tratamento com bioquimioterapia ou quimioterapia. Embora a recomendação de terapia sistêmica seja amplamente aceita, deve-se salientar que os ensaios clínicos randomizados realizados até o momento não apresentaram vantagem significativa na sobrevida para nenhuma droga ou combinação específica, incluindo a dacarbazina e a interleucina-2 em altas doses, ambas aprovadas para o uso. Na decisão sobre o uso de quimioterapia ou bioquimioterapia, devem pesar alguns pontos: a bioquimioterapia induz toxicidade severa e por isso deve ser reservada para pacientes selecionados e ser administrada por profissionais habituados com os efeitos tóxicos; ela mostrou-se superior à quimioterapia em apenas um estudo randomizado; a bioquimioterapia induz resposta duradoura acima de três anos em 5% a 10% dos pacientes. Vários estudos randomizados também analisaram se a combinação de quimioterapia com dacarbazina seria superior à monoterapia. Esses estudos falharam em mostrar benefício na sobrevida, no entanto há uma tendência para o aumento da resposta global. Recomenda-se considerar tratamento com bioquimioterapia em casos isolados, para pacientes jovens, com desempenho clínico normal (PS 0, pelo ECOG) e sem doença renal, cardíaca, pulmonar ou hepática. Esse tratamento deve ser realizado em centros capacitados para atender às intercorrências da bioquimioterapia. Para pacientes que não preenchem os critérios para o uso de bioquimioterapia, considerar tratamento com quimioterapia (combinação ou droga única) ou encaminhar para participar de estudo clínico. Uma nova classe de drogas com ação imunoterápica vem sendo desenvolvida nos últimos anos: os bloqueadores de CTLA-4. São anticorpos humanos, com afinidade pelo receptor CTLA-4 do linfócito T. Esse é responsável pela contrarregulação do estímulo provocado pela apresentação do antígeno, de forma que, com um estímulo inibitório, diminua a ação efetora imune. Com o bloqueio desse receptor, o sinal inibitório é interrompido, permitindo que a atividade efetora do linfócito T seja máxima. O princípio teórico é de que com uma ativação imune inespecífica, possa haver melhor controle do melanoma, que por si é uma neoplasia caracterizada por importante imunogenicidade.
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61 4 Neoplasias da pele O uso de drogas, com alvos moleculares específicos, também vem sendo estudado em melanoma, a exemplo das demais neoplasias. A primeira droga utilizada foi o sorafenibe, por seu potencial de bloqueio do BRAF. O benefício eventualmente será dependente da presença de mutações de BRAF e melhor observado com outras drogas que tenham maior capacidade de inibir o BRAF Um inibidor de BARF, PLX4032, vem sendo estudado em pacientes com melanoma que apresentam a mutação V600E, nesse gene. O gene apresenta mutação ao redor de 40 a 50% dos pacientes, e em cerca de 80% dos casos a mutação é a V600E. Dados preliminares de estudos fase I mostraram importante atividade já na definição da dose. São aguardados os dados dos estudos clínicos dessa droga ara os próximos anos.
Para lesões com índice de Breslow de até 0,75 mm e estádio I devem ser acompanhados a cada 6 meses durante o primeiro ano e a cada 12 meses nos anos subsequentes. Aqueles que apresentaram lesões de 0,76 a 1,49 mm ou que apresentaram tumores entre 1,5 a 4 mm, com um estádio II da doença, devem ser acompanhados a cada 4 meses nos 3 primeiros anos e a cada 12 meses nos anos subsequentes, sendo necessária a realização de radiografias de tórax de controle anuais, para os dois últimos anos. Já os pacientes em estádios III e IV necessitam de radiografias de tórax de controle trimestrais durante os 5 primeiros anos e anuais após esse período. O exame clínico completo de pele e mucosa deve ser sempre realizado, assim como o questionamento quanto à presença de sintomas pulmonares, hepáticos, ósseos, gastrointestinais e SNC. As metástases são detectadas pelo exame clínico em 94% dos casos e pelo raio X de tórax em 6%.
Seguimento A radiografia de tórax e as provas de função hepática, fosfatase alcalina (FA) e LDH são os únicos exames subsidiários de rotina para pacientes nos estádios I e II, enquanto nos estádios III e IV a avaliação inicial abrange a realização de ressonância magnética de crânio, tomografia de tórax, abdome e pelve ou até realização de PET-scan. O seguimento dos pacientes com melanoma depende, basicamente, da espessura do tumor, da presença de nevos atípicos e do estádio da doença.
Sobrevida Em 5 anos, de acordo com o indice prognóstico de Breslow: In situ: 100% Breslow < 0,75 mm: 96% Breslow 0,75-1,5 mm: 87% Breslow 1,5-2,5 mm: 75% Breslow 2,5-4,9 mm: 66% Breslow > 4 mm: 47% Tabela 4.9
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CAPÍTULO
3
Fisiologia do ciclo menstrual
Introdução Por volta da 6ª a 8ª semanas de vida intrauterina, a superfície externa do ovário é recoberta pelo epitélio germinativo. À medida que o feto se desenvolve, os ovócitos diferenciam-se deste epitélio e migram para o córtex ovariano. Cada ovócito é circundado por uma camada de células fusiformes do próprio estroma ovariano e que constituem as células da granulosa. O conjunto ovócito mais granulosa, assim constituído, é denominado folículo primordial, que, aos poucos, aumenta seu volume. Neste folículo, o ovócito que o constitui está estacionado na primeira divisão meiótica graças a produção de substâncias inibidores de meiose pela granulosa. Todos os ovócitos vão se diferenciar do epitélio germinativo em folículos primordiais, e grande parte apresentará degeneração ainda na vida fetal e que continuará até a menopausa. O ovário de um feto de 20 semanas apresenta em torno de seis milhões de folículos primordiais. Ao nascimento, restam apenas um milhão desses folículos e calcula-se um total de 300 a 400 mil na puberdade. A degeneração folicular indepente da regulação hormonal e está relacionada à primeira divisão meiótica, sendo que os óvulos que passaram por tal processo não degeneram. Durante os anos reprodutivos da mulher, cerca de 400 desses folículos desenvolvem-se o suficiente para expelir seus ovócitos, um a cada mês, e os restantes degeneram. Na menopausa (final da fase reprodutiva), apenas poucos folículos permanecem nos ovários e acabam se degenerando.
O funcionamento ovariano Os anos reprodutivos caracterizam-se por alterações rítmicas mensais na velocidade da secreção dos hormônios femininos e por mudanças correspondentes nos ovários e nos órgãos sexuais. Esse padrão rítmico é chamado ciclo menstrual ou ciclo sexual feminino. Consagrou-se como padrão o ciclo menstrual com intervalo em torno de 28 dias, com duração de dois a seis dias e com uma quantidade de sangue, perdido por menstruação, entre 20 a 80 mL. Geralmente, logo após a menarca (primeira menstruação), o ciclo é irregular e tende a se tornar cada vez mais rítmico. Cerca de cinco anos após a menarca o ciclo torna-se próximo do padrão convencional. De dois a sete anos que antecedem a menopausa, a menstruação em geral, torna-se gradativamente mais irregular.
3
Durante os primeiros dias após o início da menstruação, verifica-se aumento leve a moderado nas concentrações de FSH e LH, sendo que o do FSH precede o do LH em alguns dias. Esses hormônios, principalmente o FSH, são os responsáveis pelo crescimento acelerado de 6 a 12 folículos a cada mês. Há rápida proliferação de células da granulosa e a formação, externamente e adjacente a esta, de conjunto celulares derivados do interstício ovariano que recebem o nome de teca.
7,0
5,0
3,0
Nascimento
Número de células germinativas (milhões)
43 Fisiologia do ciclo menstrual
1,0 0,6 0,3 3
6
9
idade (meses do útero)
5 10
Fatores intrínsecos 30
50
Fatores extrínsecos
Sistema nervoso Central / Hipotálamo
idade (anos)
Figura 3.1 Número de oócitos presentes em ambos os ovários em diferentes idades.
GnRH
Retroação alça longa Retroação alça curta
Hipófise Ovário
Retroação alça ultracurta FSH, LH
Regulação intraovariana
Figura 3.3 O feedback no sistema hipotálamohipófise-ovário.
Figura 3.2 Fases do crescimento folicular. G: camada granulosa; T: camada da teca; Oc: oócito; r: receptores.
Entre os nove e dez anos de idade, o núcleo arqueado do hipotálamo secreta pulsos de GnRH (hormônio liberador de gonadotrofinas) que atuam na adeno-hipófise, e esta, por sua vez, inicia secreção progressiva de FSH (hormônio folículo estimulante) e LH (hormônio luteinizante), culminando com a presença dos ciclos menstruais mensais entre 11 e 16 anos. A pulsatilidade do GnRH pode ser modulada por neurotransmissores cerebrais como a noradrenalina (que aumenta a produção de GnRH), a dopamina e a endorfina (que deprimem a liberação de GnRH). Nesse processo de ciclicidade ovariana ocorre evolução de alguns folículos recrutados em fases, como explicitado a seguir.
Na granulosa há formação de líquido folicular, por estímulo do FSH, que possui altas concentrações de estrogênio. O acúmulo desse líquido gera um antro e o folículo passa a ser chamado de antral (Figura 3.4). Esses folículos crescem e formam suas variantes vesiculares. Isto porque o estrogênio secretado no folículo induz a formação de mais receptores de FSH pelas células da granulosa.
A secreção de FSH e LH pela hipófise levam à produção hormonal ovariana, de modo que os folículos, e órgão como um todo, apresentam crescimento. A princípio o ovócito aumenta três vezes seu diâmetro, aumentam as células da granulosa e o folículo passa de primordial a primário. É o início da fase folicular, ainda pouco dependente de gonadotrofinas.
Figura 3.4
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Folículo antral.
44 Ginecologia Na teca há colesterol que, na presença de LH, se transforma em testosterona e androstenediona. Esses androgênios atingem as células da granulosa, e na presença de FSH, sofrem ação da enzima aromatase, originando estrona e estradiol. Esta é a teoria das duas células.
Célula da teca
LH
Colesterol
Androstenediona
Testosterona Figura 3.6 Folículo dominante, pré-ovulatório, maduro ou folículo de Graaf.
Célula da granulosa
FSH
Androstenediona
Testosterona
Aromatização
Estrona
Estradiol
Figura 3.5 Sistema das duas células.
Após uma semana ou mais de crescimento, um dos folículos começa a se destacar dos demais, pois secreta maior quantidade de estrogênio e aumenta o número de seus receptores para FSH. Com isso ele continua a crescer mesmo com baixos níveis deste hormônio cuja secreção passa a ser reduzida por feeedbck negativo de estrogênio e inibida em ascensão. O folículo de maior tamanho cresce enquanto os demais entram em atresia. Estamos frente ao folículo dominante, pré-ovulatório, maduro ou de Graaf, quando já houve grande desenvolvimento da granulosa e produção de estradiol que, com o FSH, produz proteína receptora para LH nas células da granulosa, tornando-a capaz de se luteinizar, ou seja, produzir progesterona. O estradiol vai sendo produzido cada vez em maior quantidade até atingir seu pico. Esse pico de estradiol, após 12 a 24 horas, desencadeia o pico do LH.
O pico de LH ocorre, aproximadamente, 12 horas antes da ovulação e leva ao crescimento muito rápido do folículo, à diminuição da secreção de estrogênio e ao início da secreção de progesterona. Dentro de poucas horas, a teca começa a liberar enzimas proteolíticas dos lisossomas que tornam a parede folicular enfraquecida, com degeneração do estigma (área mais delgada do folículo dominante, próxima a periferia do ovário) e ruptura do folículo nesta região, para liberação do ovócito. Auxilia nesta ruptura o intumescimento folicular provocado por transmudação local de plasma causada por elevação de prostaglandinas. Assim, a ovulação ocorre 24 a 48 horas após o pico de estradiol e 12 a 24 horas após o pico de LH (início do pico de LH ocorre 32 a 36 horas antes da ovulação). Em seguida, as células da granulosa remanescentes, sob ação do LH, transformam-se em células luteínicas (duas ou mais vezes maiores que as células da granulosa e com inclusões lipídicas), formando o corpo lúteo produtor principalmente de progesterona e de pequena quantidade de estrogênio. Após 12 a 14 dias, o corpo lúteo perde sua função secretora e começa a involuir, sendo substituído por tecido conjuntivo, transformando-se no corpo albicans ou corpo branco, que não tem nenhuma função hormonal. No final da fase lútea, aparecem nas células da teca-granulosa luteinizadas receptores sensíveis ao hCG (hormônio gonadotrófico coriônico humano), fazendo com que o corpo lúteo persista na presença de tal hormônio, que tem sua produção iniciada após a fecundação.
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3 O pouco estrogênio liberado pelo corpo lúteo inibe a secreção de FSH e LH, assim como a progesterona inibe a secreção de LH. Além disso, as células luteínicas secretam inibina que, por sua vez, diminui a secreção de FSH. O resultado é queda de FSH e LH, responsável pela degeneração do corpo lúteo. Após 12 a 14 dias de vida do mesmo, a falta de secreção de estrogênio, de progesterona e de inibina estimula a secreção de FSH e LH, que iniciam o crescimento de novos folículos para outro ciclo ovariano.
45 Fisiologia do ciclo menstrual
O componente estromal evolui a partir de sua condição menstrual celular densa, através de um breve período de edema, para um estado final semelhante a um sincício frouxo. As arteríolas espiraladas tornam-se finas. Todos os componentes teciduais (glândulas, células estromais e endoteliais) demonstram proliferação, com pico nos dias 8 a 10 do ciclo. Essa proliferação é marcada por aumento da atividade mitótica e da síntese nuclear de DNA e citoplasmática de RNA. Durante a proliferação, o endométrio cresce de aproximadamente 0,5 mm para 3,5 mm a 5 mm de altura. Essa proliferação ocorre principalmente na camada funcional do endométrio, pelo espessamento do estroma. Uma característica importante dessa fase de crescimento endometrial é o aumento de células ciliadas e microvilosas, responsáveis pela mobilização e distribuição de secreções endometriais durante a fase secretória.
Figura 3.7 Esquema da anatomia microscópica do ovário. Indicam-se, em sentido horário, as alterações nos componentes do complexo folicular que ocorrem durante a atresia e a ovulação de um folículo primordial (em cima, à esquerda) até a formação de um corpo albicans (embaixo, à esquerda).
As fases do ciclo menstrual Em um ciclo menstrual ovulatório ocorrem alterações anatômicas e funcionais específicas nos componentes glandulares, vasculares e estromais do endométrio. O endométrio pode ser dividido, do ponto de vista morfológico, na camada funcional, que compreende os dois terços superiores, e na camada basal, que compreende o terço inferior. A finalidade da camada funcional é preparar-se para a implantação do embrião em fase de blastocisto. Na fase folicular ou proliferativa do ciclo menstrual, o esteroide sexual ovariano que predomina é o estrogênio, que age proliferando as células endometriais, daí o nome dessa fase: proliferativa. As glândulas representam a porção mais responsiva do endométrio à ação estrogênica. A princípio, elas são estreitas e tubulares, revestidas por células de epitélio colunar baixo. Graças à ação do estrogênio, mitoses tornam-se proeminentes e se observa a pseudoestratificação endometrial, sendo que as glândulas tornam-se alongadas e um pouco tortuosas.
No início da fase lútea, a taxa de crescimento endometrial diminui significativamente, no entanto o endométrio atinge uma espessura máxima em torno de 8 mm a 10 mm. O número de receptores estrogênicos cai, mas os receptores de progesterona permanecem abundantes, principalmente no estroma. Sabemos, de larga data, que o endométrio é relativamente insensível à progesterona, a menos que previamente exposto a estímulo estrogênico. Dessa forma, no endométrio proliferado, a progesterona é capaz de provocar intensas modificações, produzindo uma resposta secretora. A ação prévia dos estrogênios estimula a síntese dos receptores de progesterona, dando ao endométrio a capacidade de responder a este esteroide. Assim, as glândulas endometriais tornam-se mais tortuosas e sofrem um aumento em seu lúmen, passando a secretar grande quantidade de glicogênio, preparando-se para a implantação do blastocisto. Na fase lútea tardia, o estroma desenvolve características de reação decidual pré-menstrual, com grande infiltrado de linfócitos e aspecto edematoso. De um modo geral, a atividade mais importante durante a fase folicular do ciclo menstrual é a secreção de gonadotrofinas, que controla a foliculogênese e influencia a proliferação endometrial. Os eventos dominantes da fase periovulatória são o pico de LH e a ovulação. A alteração significativa que ocorre na fase lútea é a produção de glicogênio pelas glândulas endometriais, em preparação para um blastocisto embrionário. Esses eventos (e os processos metabólicos que os regulam) têm um amplo efeito sobre todo o organismo. A influência do ciclo menstrual ilustra a extensão da importância do processo reprodutivo sobre todo o corpo humano (Figura 3.9).
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46 Ginecologia Valores de referência do FSH e LH sanguíneos Período
FSH
LH
Pré-puberal
< 2 mUI/mL
< 1 mUI/mL
Fase folicular
5 a 20 mUI/mL
10 a 30 mUI/mL
Fase ovulatória 12 a 50 mUI/mL
30 a 150 mUI/mL
Fase luteínica
5 a 20 mUI/mL
10 a 30 mUI/mL
Menopausa
30 a 150 mUI/mL 40 a 150 mUI/mL Tabela 3.1
Usos clínicos da dosagem basal de gonadotrofinas Condição clínica
FSH
Mulher adulta normal
LH
5-30 mUI/mL 5-20 mUI/mL
Estado hipogonadotrófico < 5 mUI/mL
< 5 mUI/mL
Pré-puberal Disfunção hipotalâmica-hipofisária Estado hipergonadotrófico > 30 mUI/mL > 40 mUI/mL Pós-menopausa Falência ovariana prematura
ºC
Tabela 3.2 Temperatura corporal basal
39.6
30 IU
IU
LH
40
200
FSH
20
100
10
Largura do orifício cervical
mm
5 4 3 2
mm³
Mecanismos da remodelação endometrial
Quantidade de muco cervical
800 600 400 200
Viscosidade 15 cm
Figura 3.9 Alterações cíclicas idealizadas observadas nas gonadotrofinas: Estradiol (E2), progesterona (P) e endométrio uterino durante o ciclo menstrual normal. Os dados são centralizados em torno do dia do surto de LH (dia 0). Os dias do sangramento menstrual estão indicados por M.
10 5 Transparência
1
2
3
4
4
3
2
2
1
1
1
0
1
2
3
4
3
2
2
1
1
1
0
1
2
3
4
2
1
0
0
0
0
6
8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28
Arborização
2
4
Penetração do espermatozoide
Dia do ciclo
Figura 3.8 Alterações fisiológicas associadas ao ciclo menstrual. Os números de 0-4 indicam uma característica crescente do muco cervical. Note que o padrão arboriforme, a transparência e a penetração do espermatozoide são máximos no meio do ciclo. FSH: hormônio folículo-estimulante; LH: hormônio luteinizante.
Com a queda dos níveis de progesterona ao final do ciclo menstrual, dada a falta de estímulo decorrente da inibição de LH, o endométrio não se sustenta e descama provocando o fluxo menstrual e caracteriza início de um novo ciclo. No entanto, mecanismos hemostáticos são criados pela própria progesterona. O fluxo menstrual depende do controle hemostático, da descamação endometrial e do processo de remodelação ou reparação endometrial. O sistema hemostático é importante para o controle do fluxo menstrual e dependente dos seguintes fatores: contratilidade vascular local; adesão plaquetária; e formação do coágulo com o reforço da fibrina e do sistema fibrinolítico (estabilidade do trombo nas artérias espiraladas). As prostaglandinas e os hormônios sexuais atuam na regulação desse sistema. Ha várias substâncias que controlam a contratilidade vascular no endométrio, regulando o fluxo menstrual. Assim, a endotelina, a prostaglandina
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3 F2-alfa (PGF2-alfa), o tromboxano, a vasopressina e citocinas, principalmente a interleucina 8 (IL-8), são responsáveis pela vasoconstrição das artérias espiraladas. Essas substâncias são influenciadas pela ação da progesterona. O óxido nítrico, a prostaciclina e a prostaglandina E2 (PGE2) agem na vasodilação e sua regulação está relacionada aos níveis de estrogênios circulantes. Mulheres com ciclos menstruais normais têm aumento tanto da PGF2-alfa quanto da PGE2 no endométrio durante o período final da fase secretora, e a menstruação apresenta predominância da PGF2-alfa. Esse fato sugeriria que a progesterona seria necessária para a elevação aos precursores da PGF2-alfa. Como provoca contração de musculatura lisa, seja de parede de vasos ou do miométrio, destaca-se que seu excesso é uma das causas de dismenorreia. O tromboxano promove a agregação plaquetária, enquanto as prostaciclinas a inibem. Há evidências do aumento de prostaciclinas e diminuição de tromboxano em biópsia endometrial de mulheres com sangramento uterino anormal. Isso sugere que a deficiência de tromboxano seria, em parte, responsável pelo aumento do fluxo menstrual. Além disso, as prostaciclinas têm ação vasodilatadora e impedem a aglutinação de plaquetas; portanto, bloqueiam a formação de trombos na superfície endometrial em descamação. O sistema fibrinolítico é importante para o controle hemostático. A degradação do coágulo é dependente da plasmina, que é formada a partir de seu precursor, o plasminogênio. Este pode ser ativado pelo ativador do plasminogênio tecidual (t-PA) ou ser dependente da uroquinase (u-PA). Sua inibição está relacionada aos inibidores do tipo I e 2 (PAI-1 e PAI-2), bem como pela alfa2-antiplasmina. A progesterona suprime a produção de u-PA e aumenta a produção de PAI-1 tanto nas células epiteliais quanto nas estromais. Esses dados sugerem que a progesterona teria ação antifibrinolítica no endométrio, diminuindo o fluxo menstrual. Outro fator desencadeante de maior fluxo sanguíneo seria o aumento local de mastócitos, produtores de grande quantidade de heparina, podendo
47 Fisiologia do ciclo menstrual
aumentar a ativação do fibrinogênio em fibrina e a degradação do trombo nas artérias espiraladas e, portanto, o fluxo menstrual. O processo de descamação endometrial é importante para a quantidade do fluxo menstrual. Nesse sistema, participam as metaloproteinases matriciais, os lisossomos (hidrolases), os macrófagos, os mastócitos e as moléculas de adesão intercelular (ICAM-1 e PECAM). A autofagocitose endometrial é realizada pelos lisossomos que destroem o citoplasma. A heterofagocitose é feita pelos macrófagos, que digerem as fibras reticulares do estroma, fragmentando o tecido de conexão estromal. A redução dos níveis de progesterona no final da fase lútea permite o aumento da produção de IL-8 nas células endometriais, acarretando aumento da migração de leucócitos e da degranulação aos mastócitos. A progesterona também mantém a estabilidade aos lisossomos, que contêm enzimas que atuam na destruição de mucopolissacarídeos, colágeno e outras proteínas que dão suporte ao crescimento endometrial. As metaloproteinases da matriz são colagenases que atuam nos elementos da matriz extracelular e na membrana basal, aumentando a descamação endometrial; também estariam relacionadas aos níveis de progesterona. Por outro lado, o incremento desse leucócito no endométrio é dependente do estrogênio. Além da ação do sistema hemostático e do processo de descamação no sangramento genital, a reparação ou remodelação endometrial é essencial para o controle do fluxo menstrual. Esse processo é dependente do estrogênio, que promove proliferação endometrial. A ação estrínica é mediada por fatores de crescimento, principalmente fator de crescimento vasculoendotelial (VEGF), fator fibroblástico básico (b-FCF), fator epidermal de crescimento (ECF), fatores insulinoides e, ainda, as citocinas. Caso haja retardo ou deficiência na reparação, o fluxo menstrual pode se prolongar. Os sangramentos de pequena quantidade e de coloração escura, que ocorrem imediatamente após o fluxo, estão também vinculados ao retardo na remodelação endometrial por deficiência estrogênica.
Há coisas suficientes no mundo para todos se tivermos os olhos para enxergá-las, o coração para amá-las e a mão para buscá-las. Lucy Maud Montgomery
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CAPÍTULO
2
Indicadores de saúde
Introdução Indicador é medida que reflete uma característica particular. Um indicador de saúde tem como objetivo revelar a situação de saúde de um indivíduo ou de uma população. Indicadores de saúde são parâmetros utilizados internacionalmente com o objetivo de avaliar, sob o ponto de vista sanitário, a higidez de agregados humanos, bem como fornecer subsídios aos planejamentos de saúde, permitindo o acompanhamento das flutuações e tendências históricas do padrão sanitário de diferentes coletividades consideradas à mesma época ou da mesma coletividade em diversos períodos de tempo. A preparação de indicadores envolve a contagem de unidades: doentes, óbitos, acidentados, ou a medição de alguma característica dos indivíduos: peso, altura, PA etc. A forma mais simples de expressar um resultado é com um número absoluto, mas essa forma não permite comparações. Para facilitar as com-
parações e suas interpretações, os valores absolutos são expressos em relação a outros valores absolutos, que guardam entre si alguma relação coerente.
Mortalidade Historicamente, o primeiro indicador utilizado em avaliações de saúde coletiva, e ainda hoje, o mais empregado. São os mais utilizados pela facilidade do cálculo e disponibilidade das fontes de dados. A morte é objetivamente definida, ao contrário da doença, e é obrigatoriamente registrada pela Declaração de Óbito. Assim, os indicadores de mortalidade são mais confiáveis (fidedignos) do que os de morbidade (adoecimento). As principais desvantagens são: a mortalidade expressa a gravidade de uma situação e não reflete uma história completa da doença e seus fatores deter-
15 2 Indicadores de saúde minantes; alguns danos raramente levam ao óbito; as mudanças nas taxas de mortalidade são de pequena amplitude com o passar do tempo, tornando-se inútil para avaliações de curto prazo. Os coeficientes de mortalidade são definidos como quocientes entre as frequências absolutas de óbitos e o número dos expostos ao risco de morrer.
Coeficientes São relações (fração, quociente) entre o número de eventos reais e os que poderiam acontecer. Os coeficientes são medidas que procuram expressar risco de ocorrer o evento do numerador de um quociente entre os indivíduos componentes do denominador deste.
Principais indicadores de saúde
Coeficiente (taxa) de mortalidade geral.
Coeficiente (índice; taxa) de mortalidade infantil.
Anos potenciais de vida perdidos.
Coeficiente (razão) de mortalidade materna.
Coeficiente de mortalidade por doenças transmissíveis.
Esperança de vida (ao nascer).
Razão de mortalidade proporcional (de Swaroop e Uemura).
Curva de mortalidade proporcional (de Nelson de Moraes).
Coeficiente de mortalidade geral (CMG) Total de óbitos registrados em certa área no ano
x 1.000
População da área estimada para o meio do ano (1º de julho)
Mede o risco geral de morrer em um dado local, sem considerar causas de morte, idade ou outra característica da população do local. É sintético e fácil de ser calculado. Apesar de ser um dos indicadores mais utilizados em saúde pública, não serve para comparações entre populações com diferentes estruturas (pirâmides) etárias e nem para comparar uma mesma população ao longo de muitos anos, pois sua estrutura etária pode
estar se modificando no tempo. Populações mais idosas podem ter melhores condições de vida e saúde que populações mais jovens e, mesmo assim, apresentar maior risco (bruto) de morte, simplesmente pela presença de maior proporção de idosos. Para compararmos coeficientes de mortalidade geral, é necessária a padronização, ou o ajuste, desses coeficientes. Existem técnicas estatísticas que eliminam o efeito das diferenças de estrutura etária dessas populações. As taxas de mortalidade calculadas com a aplicação dessas técnicas estatísticas são denominadas taxas de mortalidade padronizadas (ou ajustadas) por idade. O ajuste ou padronização de um coeficiente deve ser realizado se o que estamos comparando depende da idade e a composição etária é diferente entre os grupos que estão sendo comparados. Um coeficiente de mortalidade padronizado nos informa qual seria a mortalidade da população de um dado local, em um dado ano, se a composição etária daquela população fosse a da população-padrão. Assim, populações com diferentes estruturas etárias são comparadas como se todas tivessem uma única estrutura etária. Outros problemas que influenciam o CMG: subnotificação de óbitos, invasão de óbitos para centros mais avançados em tecnologia médica e erros nas estimativas populacionais (denominador).
Coeficiente de mortalidade infantil (CMI) Total de óbitos de < 1 ano em certa área no ano
x 1.000
Total de nascidos vivos nesta área no ano
Este é um indicador que reflete as condições de vida de uma população, pois a criança menor de um ano é sensível às condições do ambiente; porém, também é sujeito a distorções em razão de sub-registros tanto de óbitos como de nascimentos. O coeficiente ou índice de mortalidade infantil pode ser subdividido em dois ou três componentes que, somados, constituem a mortalidade infantil total. Quando dividido em três componentes, esses são:
Coeficiente de mortalidade infantil neonatal precoce (CMINP) Total de óbitos de < 7 dias em certa área no ano Total de nascidos vivos nesta área no ano
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x 1.000
16 Medicina Preventiva | volume 1
Coeficiente de mortalidade infantil neonatal tardio (CMINT) Total de óbitos de crianças de 7 a 27 dias em certa área no ano
x 1.000
Total de nascidos vivos nesta área no ano
Coeficiente de mortalidade infantil pós-neonatal (CMIPN) Total de óbitos de crianças de 28 dias a 1 ano em certa área no ano x 1.000 Total de nascidos vivos nesta área no ano
Quando dividido em dois componentes apenas, ajuntam-se os dois primeiros (CMINP e CMINT), que passam a constituir o CMI neonatal ou, simplesmente, CMI precoce (atenção: não confunda este coeficiente com o CMINP). O terceiro componente (CMIPN) é também conhecido como CMI tardio (atenção: não confunda este coeficiente com o CMINT). A maioria dos óbitos no período neonatal (0 a 28 dias incompletos de vida) é decorrente de causas perinatais (problemas de gestação, de parto, vários fatores maternos) e de anomalias congênitas. Seu controle é mais difícil em virtude de causas como anomalias congênitas, de origem genética, problemas em berçários e efetiva cobertura da atenção pré-natal. A mortalidade infantil pós-neonatal (ou tardia) tem seu controle mais associado à melhoria das condições gerais de vida das populações do que a neonatal; depende da redução de óbitos por gastroenterites, sarampo, pneumonia, ou seja, por fatores mais ligados ao saneamento básico, à adequada nutrição e à oferta de imunizações (vacinas). Uma observação importante: quanto melhores as condições de vida de uma população, mais sua mortalidade infantil se concentrará no componente neonatal; quanto piores as condições, maior será a participação do componente pós-neonatal na mortalidade infantil total.
Coeficiente de mortalidade perinatal Nº de nascidos mortos (22 semanas ou mais de gestação) + Nº de óbitos de crianças de 0 a 7 dias em certa área no ano x 1.000 Total de nascidos vivos + total de nascidos mortos nesta área no ano
Coeficiente de natimortalidade Nº de nascidos mortos (22 semanas ou mais de gestação) ocorridos em certa área no ano x 1.000 Total de nascidos vivos + total de nascidos mortos nesta área no ano
Coeficiente de mortalidade na infância Nº de óbitos de < 5 anos em certa área no ano
x 1.000
Total de nascidos vivos nesta área no ano
Nota-se, claramente, que este coeficiente não expressa risco de vida, pois o numerador não está contido no denominador; ele costuma ser utilizado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) para comparar a mortalidade de crianças em uma faixa etária na qual, sob condições razoáveis de vida, ocorrem poucos óbitos.
Anos potenciais de vida perdidos (APVP) A morte de uma criança de 5 anos pode significar 70 anos de vida perdidos (porque a esperança de vida – EV – aos 5 anos pode ser de 70 anos mais). A morte de um idoso de 70 anos pode significar apenas 18 anos de vida perdidos (porque a EV aos 70 anos pode ser de 18 anos mais). Assim, os APVP são um interessante indicador de saúde porque atribuem mais valor à vida de uma criança do que a de um idoso. São úteis, também, porque podem ser comparadas diferentes causas de morte (doenças ou agravos à saúde) quanto a seu impacto na população não apenas relacionado ao número de óbitos. Nos últimos anos vem-se dando maior importância à qualidade de vida e não apenas à duração (quantidade) de vida. Dessa forma, tem-se procurado “ajustar” os APVP. Surgem, então, os Daly (Disability adjusted life years; em português, Avai: Anos de vida ajustados por incapacidade) e os Qaly (Quality adjusted life years; em português, Avaq: Anos de vida ajustados por qualidade de vida). Avai estendem o conceito de APVP para incluir também os anos vividos com saúde debilitada ou “imperfeita”; é uma medida que une (soma) morbidade à mortalidade. É um indicador de “carga de doença” (burden of disease) em uma população. Avai por uma doença é a soma dos anos de vida perdidos por morte prematura por essa doença com os anos de vida vivi-
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17 2 Indicadores de saúde dos com incapacidade em razão da doença (a incapacidade é avaliada com um escore que varia de zero (saúde perfeita) a 1 (morte)). Avai avaliam adequadamente doenças altamente incapacitantes, mas que tenham baixa letalidade. Avaq ajustam os anos de vida segundo a “utilidade” ou qualidade de vida. É um produto aritmético entre anos de vida e qualidade de vida; esta última requer um julgamento qualitativo. Um Avaq corresponde a um ano de vida em gozo de perfeitas condições de saúde; isso pode corresponder a dois anos com qualidade de vida reduzida à metade ou a quatro anos com a qualidade de vida reduzida a 25% do máximo possível. Avaq são utilizados para avaliar benefícios gerados a partir de diferentes intervenções em análises econômicas de saúde; quando combinados com o custo dessas intervenções, indicam o valor a ser gasto para gerar um ano em perfeita saúde (1 Avaq). Podem ser feitas comparações entre custo por Avaq de diferentes intervenções (cirurgias, transplantes, diálises ou outros procedimentos). Enfim, quando se pretende valorizar a qualidade de vida (anos de vida vividos sem incapacidades) não basta que sejam comparados os APVP de cada população; é preciso que esses APVP sejam ajustados por incapacidade: viver muito pode não significar viver com qualidade!
associados ao puerpério, osteomalacia puerperal, doença causada pelo HIV, mola hidatiforme maligna ou invasiva e necrose hipofisária pós-parto. A CID-10 estabelece ainda os conceitos de morte materna tardia, decorrente de causa obstétrica, ocorrida após 42 dias e menos de um ano depois do parto (código O96); e morte materna por sequela de causa obstétrica direta, ocorrida um ano ou mais após o parto (código O97). Esses casos também não são incluídos para o cálculo da Razão de Mortalidade Materna. A Nota Informativa sobre registros e notificação compulsória de doenças e agravos, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, por meio do ofício circular Nº 124/2014, de 20 de agosto de 2014 pontua que óbitos maternos são definidos como “a morte de uma mulher durante a gestação ou dentro de um período de até 1 ano, após o término da gestação, independentemente de duração ou da localização da gravidez, devida a qualquer causa relacionada com ou agravada pela gravidez ou por medidas em relação a ela, porém, não devida a causas acidentais ou incidentais”. Essa nota informativa refere-se à notificação compulsória dos óbitos maternos.
Esperança/expectativa de vida ou vida média (ao nascer)
Coeficiente (razão) de mortalidade materna Nº de óbitos por causas ligadas à gestação, parto ou puerpério em certa área no ano x 100.000 Total de nascidos vivos nesta área no ano
Inclui a morte de toda mulher que esteja grávida ou durante os 42 dias completos, após o fim da gravidez (independentemente de sua duração ou localização), por qualquer causa relacionada ou agravada pela gestação ou por seu manejo. São excluídas as causas acidentais ou incidentais (por exemplo, epidemias). Óbitos maternos podem ocorrer por causas obstétricas diretas (complicações obstétricas na gravidez, no parto e puerpério, decorrentes de intervenções, omissões, tratamento incorreto ou eventos desencadeados por estes). Podem ser em decorrência de causas obstétricas indiretas, quando resultantes de doenças pré-existentes ou que se desenvolveram durante a gravidez. As mortes maternas são causadas por afecções do Capítulo XV da CID-10 e por afecções classificadas em outros capítulos da CID, especificamente: tétano obstétrico, transtornos mentais e comportamentais
É um excelente indicador das condições de vida e saúde de uma população, pois reflete o efeito de todas as forças de mortalidade que agem nessa população; é, porém, difícil de ser calculado, pois requer a construção de tábuas de vida que se baseiam em taxas de mortalidade específicas por idade dos falecidos e cálculos de probabilidade de morte e, complementarmente, de vida, a cada idade. Indica o número médio de anos que restam a ser vividos se forem mantidas as condições de mortalidade existentes até então (ou seja, se não houver epidemias, catástrofes, guerras etc.). A esperança de vida é costumeiramente referida para a idade de zero ano (ao nascer), mas pode ser definida e calculada para qualquer idade (dado que se viveu até tal idade, restam ainda, em média, tantos anos a serem vividos).
Coeficiente de mortalidade por doenças transmissíveis As doenças transmissíveis são aquelas em que há a transmissão de um agente vivo, de uma fonte de infecção para um novo hospedeiro humano. Em tese, a
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18 Medicina Preventiva | volume 1 cadeia de transmissão sempre pode ser interrompida. Assim, a mortalidade por tais doenças pode indicar falhas no controle dessas ocorrências e, indiretamente, condições insatisfatórias de vida e saúde.
Coeficiente de letalidade Letalidade é o maior ou menor poder de uma doença em provocar a morte das pessoas que por ela adoeceram. É sempre expresso em porcentagem; permite avaliar a gravidade clínica de uma doença. Nº de óbitos por determinada doença em determinado período de tempo
x 100
Nº de casos desta doença neste mesmo período
Nº de óbitos de pessoas ≥ 50 anos em cada certa área no ano
x 100
Total de óbitos registrados nesta área no ano
Analisam-se as condições de vida e saúde de diversas regiões com base nesse indicador. 1º Nível: índice ≥ 75% – situam-se aqui os países com alto grau de desenvolvimento e adequada situação de saúde de sua população. Por exemplo, Suécia, Cuba, Estados Unidos e Japão. 2º Nível: índice variando de 50% a 74% – países com alto grau de desenvolvimento, porém, ainda sem superar alguns problemas de saúde de seus povos. Por exemplo, Costa Rica, Brasil, Tailândia.
Índices de mortalidade proporcional
3º Nível: índice variando de 25% a 49% – situam-se aqui países em desenvolvimento. Por exemplo, El Salvador, Guatemala.
Tais índices são proporções (o numerador está contido no denominador) que não expressam risco. O denominador é sempre o total de óbitos ocorridos em um dado local e ano-calendário. O numerador é uma parcela (uma “fatia”, uma fração) desses óbitos.
4º Nível: valores < 25% – estão incluídas as regiões com alto grau de subdesenvolvimento, em que as pessoas morrem muito jovens. Por exemplo, alguns países da África subsaariana.
Índice de mortalidade infantil proporcional (IMIP)
Atualmente, a proporção de óbitos de pessoas com 50 e mais anos de idade já não tem o poder descriminatório de condições de saúde demonstradas há algumas décadas. Por isso, já se considera a proporção de óbitos de pessoas com 75 e mais anos de idade como um melhor indicador do que o ISU. Para ter uma ideia, essa proporção, em anos próximos a 2000, era 29,3% no Egito, 29% no Brasil, 56,5% nos Estados Unidos e 79,7% na Suécia.
Nº de óbitos de < 1 ano em certa área no ano x 100 Total de óbitos registrados nesta área no ano
Razão (índice) de mortalidade proporcional de Swaroop e Uemura (ISU) É um bom indicador do nível de vida de uma população. Este índice significa a porcentagem de pessoas que morreram com 50 anos ou mais em relação ao total de óbitos ocorridos em determinada população. Vantagens:
Simplicidade do cálculo.
Disponibilidade de dados, na maioria dos países.
Possibilidade de comparabilidade nacional e internacional.
Dispensa dados de população (censitários).
Curva de mortalidade proporcional de Nelson de Moraes Com base em mortalidade proporcional por idade, o brasileiro Nelson de Moraes desenvolveu a chamada Curva de Mortalidade Proporcional. São calculadas cinco proporções de óbitos sobre o total dos ocorridos no ano: aqueles em menores de 1 ano de idade (o próprio IMIP), os ocorridos em crianças de 1 a 4 anos, em crianças e adolescentes de 5 a 19 anos, nos adultos de 20 a 49 anos e nos indivíduos de 50 anos ou mais (o próprio ISU). Essas cinco porcentagens são colocadas em um gráfico que fornece imediata impressão sobre o nível de saúde local.
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19 2 Indicadores de saúde
Tipo I Nível de saúde muito baixo
% 80 70 60 50 40 30 20 10 0
<1 1
1-4
5-19
20-49
Tipo II Nível de saúde baixo
%
50 e +
80 70 60 50 40 30 20 10 0
<1 1
1-4
idade (anos)
<1 1
1-4
5-19
20-49
50 e +
idade (anos)
Tipo III Nível de saúde regular
% 80 70 60 50 40 30 20 10 0
5-19
20-49
Tipo IV Nível de saúde elevado
%
50 e +
80 70 60 50 40 30 20 10 0
<1 1
idade (anos)
1-4
5-19 idade (anos)
Figura 2.1 Níveis de saúde segundo curvas de Nelson de Moraes.
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20-49
50 e +
CAPÍTULO
3
Histórico das Políticas e do Sistema de Saúde no Brasil e a Reforma Sanitária “Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um.” Fernando Sabino.
Histórico das Políticas e do Sistema de Saúde no Brasil e a Reforma Sanitária Formação do sistema de saúde brasileiro: contexto histórico A primeira iniciativa do Estado brasileiro na construção do sistema de saúde poderia se aproximar da noção de proteção social e data de 1923, com a edição da Lei Eloy Chaves e a criação das Caixas de Pensão e Aposentadoria (CAPs), que também garantiam a assistência médica aos contribuintes. Da década de 1920 até o final de 1980, o que pode ser reconhecido como sistema de saúde se pautava majoritariamente pela noção de seguro social (garantia de
acesso apenas a quem contribui) sendo a saúde um benefício ao contribuinte e se caracterizava por uma miríade de instituições públicas e algumas privadas, sem manter nenhuma articulação entre si. Nesse período, a assistência médica se vinculava à Previdência Social e as ações coletivas de saúde eram de responsabilidade do Ministério da Saúde. Paralelamente, desde a década de 1940 foram instituídas as primeiras modalidades de assistência médica suplementar, inicialmente dirigidas aos funcionários públicos da União e de alguns estados. Contudo, a primeira empresa de medicina de grupo brasileira surge em 1957, para prestar serviços à Volkswagen, que inaugurava a sua fábrica em São Bernardo do Campo. Esse arremedo de sistema imperou no Brasil durante 65 anos, voltado à população urbana, mais especificamente, para os trabalhadores formais e parcelas do funcionalismo público federal e de alguns estados, como São Paulo. Suas bases de financiamento eram as contribuições compulsórias sobre as folhas de salário. Aos demais brasileiros, a maior parte da população, estava reservada a assistência médica privada, por meio das Santas Casas ou a estatal, realizada pelas poucas instituições públicas de saúde existentes, geralmente vinculadas ao governo federal e aos estados e municípios mais ricos.
27 3 Histórico das Políticas e do Sistema de Saúde no Brasil e a Reforma Sanitária A promulgação da Constituição Federal de 1988 veio romper com essa situação, ao menos no plano do ideário, reformulando, por sua vez, o modelo de acesso a saúde. A adoção do conceito de seguridade social e a criação do sistema único de saúde representam uma grande inflexão na política de saúde no Brasil. É também essa mesma Carta que legitima a atuação do setor privado de saúde que se arregimenta no sistema supletivo de assistência médica. O sistema de saúde brasileiro é constituído por pelo menos dois subsistemas: um governamental, o Sistema Único de Saúde (SUS), e outro privado, o Sistema Supletivo de Assistência Médica (SSAM). Da perspectiva operacional há vários pontos de contatos entre eles, principalmente em relação aos profissionais de saúde e alguns serviços assistenciais, mas em termos da possibilidade do acesso da população há uma inexpugnável barreira, espécie de muro intransponível para a maior parte da população, justamente a parcela relativamente mais necessitada. Como será argumentado a seguir, não é a existência de um segmento público e de outro privado no sistema de saúde, mas sim o tipo de relação estabelecida entre eles que se constitui em enorme empecilho para a efetivação de um sistema universal de saúde no cotidiano da população, tal como preconizado pela Constituição. O sistema de saúde brasileiro é constituído por uma variedade de organizações públicas e privadas estabelecidas em diferentes períodos históricos. No início do século XX, campanhas realizadas sob moldes quase militares implementaram atividades de saúde pública. A natureza autoritária dessas campanhas gerou oposição de parte da população, políticos e líderes militares. Tal oposição levou à Revolta da Vacina, em 1904, episódio de resistência a uma campanha de vacinação obrigatória contra a varíola sancionada por Oswaldo Cruz, o então Diretor Geral de Saúde Pública. O modelo de intervenção do Estado brasileiro na área social data das décadas de 1920 e 1930, quando os direitos civis e sociais foram vinculados à posição do indivíduo no mercado de trabalho.
O sistema de proteção social brasileiro se expandiu durante o governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-45) e dos governos militares (1964-84). O processo de tomada de decisão e a gestão do sistema eram realizados sem participação da sociedade e estavam centralizados em grandes burocracias. O sistema de proteção social era fragmentado e desigual. O sistema de saúde era formado por um Ministério da Saúde subfinanciado e pelo sistema de assistência médica da previdência social, cuja provisão de serviços se dava por meio de institutos de aposentadoria e pensões divididos por categoria ocupacional (p. ex., bancários, ferroviários etc.), cada um com diferentes serviços e níveis de cobertura. As pessoas com empregos esporádicos tinham uma oferta inadequada de serviços, composta por serviços públicos, filantrópicos ou serviços de saúde privados pagos do próprio bolso. Após o golpe militar de 1964, reformas governamentais impulsionaram a expansão de um sistema de saúde predominantemente privado, especialmente nos grandes centros urbanos. Seguiu-se uma rápida ampliação da cobertura, que incluiu a extensão da previdência social aos trabalhadores rurais. Entre 1970 e 1974, foram disponibilizados recursos do orçamento federal para reformar e construir hospitais privados; a responsabilidade pela oferta da atenção à saúde foi estendida aos sindicatos, e instituições filantrópicas ofereciam assistência de saúde a trabalhadores rurais. Os subsídios diretos a empresas privadas para a oferta de assistência médica a seus empregados foram substituídos por descontos no imposto de renda, o que levou à expansão da oferta dos cuidados médicos e à proliferação de planos de saúde privados. A maior cobertura da previdência social e um mercado de saúde baseado em pagamentos a prestadores do setor privado com base nos serviços realizados (fee for service) geraram uma crise de financiamento na previdência social, que, associada à recessão econômica da década de 1980, alimentou os anseios pela reforma.
O processo histórico da organização do setor de saúde e o antecedente para o sistema brasileiro de cuidado da saúde Contexto macroeconômico e Contexto político socioeconômico Colonialismo português (15001822)
Exploração de maté- Controle político e culrias- primas e mono- tural de Portugal pólio comercial por Portugal
Sistema de saúde Século XVI: • Criação de hospitais da Santa Casa de Misericórdia em Santos, São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Belém e Olinda • Organização sanitária incipiente
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Principais desafios de saúde Doenças pestilenciais e assistência à saúde para a população
28 Medicina Preventiva | volume 2 Contexto macroeconômico e Contexto político socioeconômico
Sistema de saúde
Principais desafios de saúde
Império Abertura dos portos (1822–89) (1808), surgimento do capitalismo moderno e início da industrialização
Centralismo político e sistema de coronelismo, que dava aos grandes proprietários de terra o controle político de províncias e localidades
• Estruturas de saúde com ênfase na polícia sanitária • Administração da saúde centrada nos municípios • Criação das primeiras instituições de controle sanitário dos portos e de epidemias (1828 e 1850)
Doenças pestilenciais e prioridade da vigilância sanitária (portos e comércio)
República Velha (18891930)
Economia agroexportadora (capital comercial), crise do café e insalubridade nos portos
Estado liberal-oligárquico, revoltas militares e emergência das questões sociais
• Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP; 1897) • Reformas das competências da DGSP (Oswaldo Cruz; 1907) • Caixas de Aposentadoria e Pensão (Lei Eloy Chaves; 1923) • Incipiente assistência à saúde pela previdência social • Dicotomia entre saúde pública e previdência social
Doenças pestilenciais (febre amarela, varíola, peste) e doenças de massa (p. ex. tuberculose, sífilis, endemias rurais)
Ditadura Vargas (1930-45)
Industrialização, mas “Estado Novo” – Estado com manutenção da autoritário entre 1937 e 1938 identificado com estrutura agrária o nazifascismo
• Saúde pública institucionalizada pelo Ministério da Educação e Saúde Pública • Previdência social e saúde ocupacional institucionalizadas pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio • Campanhas de saúde pública contra a febre amarela e a tuberculose • Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP) estendem a previdência social à maior parte dos trabalhadores urbanos (1933-38)
Predominância de endemias rurais (p. ex. doença de Chagas, esquistossomose, ancilostomíase, malária), tuberculose, sífilis e deficiências nutricionais
Instabilidade democrática (1945–64)
Substituição de im- Governos liberais e poportações, rápida pulistas urbanização, migrações, advento da indústria automobilística, penetração do capital internacional
• Criação do Ministério da Saúde (1953) • Leis unificaram os direitos de previdência social dos trabalhadores urbanos (1960) • Expansão da assistência hospitalar • Surgimento de empresas de saúde
Emergência de doenças modernas (p. ex. doenças crônicas degenerativas, acidentes de trabalho e de trânsito)
Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAP) unificados no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), privatização da assistência médica e capitalização do setor da saúde (1966)
Predominância da morbidade moderna (p. ex., doenças crônicas degenerativas, acidentes de trabalho e de trânsito)
Internacionalização Ditadura da economia militar (1964–85) Milagre econômico (1968–73) Final do milagre econômico Penetração do capitalismo no campo e nos serviços
• Golpe militar, ditadura (1964) • Reforma administrativa (1966) • Crise política (eleições de 1974)
• Capitalização da medicina pela previdência social Abertura política lenta, • Crise do sistema de saúde segura e gradual (1974- • Programas de Extensão de Cobertura (PEC) 79) para populações rurais com menos de 20·000 habitantes • Liberalização • Crise na previdência social Criação do Centro • Instituto Nacional da Assistência Médica da Brasileiro de Estudos Previdência Social (Inamps; 1977) da Saúde (1976); movi- • Centralização do sistema de saúde, fragmentamentos sociais ção institucional, beneficiando o setor privado • 1ª. Simpósio de Polí• Inamps financia estados e municípios para extica de Saúde do Conpandir a cobertura gresso (1979) • Transição política (1974-84) Criação da Associação Brasileira em Pós-Graduação em Saúde Coletiva (1979)
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Persistência de endemias rurais com urbanização Doenças infecciosas e parasitárias predominando nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste
29 3 Histórico das Políticas e do Sistema de Saúde no Brasil e a Reforma Sanitária Contexto macroeconômico e Contexto político socioeconômico
Sistema de saúde
Transição democrática (1985–88)
Fim da recessão, reconhecimento da dívida social e planos de estabilização econômica
• Início da “Nova República” (1985) • Saúde incluída na agenda política • 8ª Conferência Nacional de Saúde • Ampliação do Movimento de Reforma Sanitária • Assembleia Nacional Constituinte • Nova Constituição (1988)
• Inamps continua a financiar estados e municípios • Expansão das AIS • Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde - SUDS (1987) • Contenção das políticas privatizantes • Novos canais de participação popular
Democracia (19882010)
Crise econômica (hiperinflação)
Presidente Fernando Collor de Mello eleito e submetido a impeachment
• Criação do SUS • Descentralização do sistema de saúde
Principais desafios de saúde • Redução da mortalidade infantil e de doenças preveníveis por imunização • Persistência de doenças cardiovasculares e cânceres • Aumento nas mortes violentas e relacionadas à Aids • Epidemia de dengue
Epidemias de cólera e dengue, mortalidade por causas externas Ajuste macroeconô(sobretudo homicídios e 9ª Conferência Nacional de Saúde mico • Extinção do Inamps (1993) acidentes de trânsito) Restante do mandato (Plano Real; 1994) Doenças cardiovascula• Criação do Programa de Saúde da Família presidencial (1993-94) (1994) res são a principal causa Estabilidade econô- exercido pelo Vice-Pre- • Crise de financiamento e criação da Contribui- de morte, seguidas por mica, recuperação sidente Itamar Franco ção Provisória sobre a Movimentação Financeira causas externas e cândos níveis de renda, ceres (1996) movimento cíclico Governos de Fernan• Tratamento gratuito para HIV/aids pelo SUS (altos e baixos), do Henrique Cardoso Redução na mortalida• Financiamento via Piso da Atenção Básica persistência das de infantil, prevalência (1995-1998 e 1999(1998) desigualdades, con- 2002) — Partido da inalterada de tubercu• 10ª e 11ª Conferências Nacionais de Saúde tinuidade da política Social- Democracia Bra- • Normas Operacionais Básicas (NOB) e de aslose, estabilização da monetarista prevalência de aids, sileira (PSDB) sistência à saúde (regionalização) • Regulamentação dos planos de saúde privados aumento na prevalência Reforma do Estado • Criada a Agência Nacional de Vigilância Sani- de dengue e aumento na incidência de leishma(1995) tária (1999) • Criada a Agência Nacional de Saúde Suplemen- niose visceral e malária Governos de Luiz Iná- tar para regulamentar e supervisionar os planos Expectativa de vida cio Lula da Silva (2003- de saúde privados (2000) 06 e 2007-10) – Partido • Criada a lei dos medicamentos genéricos em torno de 72,8 anos dos Trabalhadores32 • Lei Arouca institui a saúde do indígena como (69,6 para homens e parte do SUS 76,7 para mulheres) no • Emenda Constitucional 29 visando à estabiinício do século XXI lidade de financiamento do SUS definiu as responsabilidades da União, estados e municípios • Mortalidade infantil de (2000) 20,7 por 1.000 nascidos • Aprovada a Lei da Reforma Psiquiátrica (2001) vivos (2006) • Expansão e consolidação do PHC • Redução na prevalên• Criado o Serviço de Atendimento Móvel de Ur- cia de hanseníase e dogência - Samu (2003) enças preveníveis pela • Estabelecido o Pacto pela Saúde (Pacto de De- imunização fesa do SUS, Pacto de Gestão, Pacto pela Vida; • Expectativa de vida 2006) sobe para 72,8 anos • Política Nacional de Atenção Básica (2006) (69,6 para homens e • Política Nacional de Promoção da Saúde (2006) 76,7 para mulheres; • 12ª e 13ª Conferências Nacionais de Saúde 2008) • Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde e Política Nacional de Saúde Bucal (Brasil Sorridente; 2006) • Unidades de Pronto-Atendimento (UPA 24h) criadas em municípios com populações >100·000 (2008) • Criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) junto ao PSF (2008)
Tabela 3.1
(Adaptado de Paim et al, 2010).
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30 Medicina Preventiva | volume 2
Reforma Sanitária Para Arouca, discutir a Reforma Sanitária é imprescindível para aqueles que buscam construir as bases do socialismo democrático tão almejado em muitas sociedades. Para tanto, é de suma importância a compreensão de aspectos conceituais, ideológicos, políticos e institucionais, processo fundamental para países como o Brasil, Itália, Bolívia, Espanha, Portugal que buscavam a democratização das estruturas políticas e a melhoria da qualidade de vida dos seus cidadãos. (AROUCA, 1989b)
Reforma Sanitária brasileira A Reforma Sanitária brasileira foi proposta num momento de intensas mudanças e sempre pretendeu ser mais do que apenas uma reforma setorial. Almejava-se, desde seus primórdios, que pudesse servir à democracia e à consolidação da cidadania no País. A realidade social, na década de 1980, era de exclusão da maior parte dos cidadãos do direito à saúde, que se constituía na assistência prestada pelo Instituto Nacional de Previdência Social, restrita aos trabalhadores que para ele contribuíam, prevalecendo a lógica contraprestacional e da cidadania regulada. As consequentes transformações na vida política, econômica e sociocultural sofridas no Brasil no século XX refletiram significativamente na área da saúde do país. Debates sobre o setor da saúde a partir do desenvolvimento econômico e social foram presentes na década de 1960 e ampliaram-se na década de 1970, sendo a principal temática a necessidade de expansão de cobertura dos serviços sanitários com ênfase na atenção hospitalar privada. É neste contexto que surge o movimento da Reforma Sanitária, com o objetivo de impulsionar a reforma de saúde do país para além do setor privado e com garantia de acesso ampliado ao cidadão. A reforma do setor de saúde no Brasil estava na contramão das reformas difundidas naquela época no resto do mundo, que questionavam a manutenção do estado de bem-estar social. A proposta brasileira, que começou a tomar forma em meados da década de 1970, estruturou-se durante a luta pela redemocratização. Um amplo movimento social cresceu no país, reunindo iniciativas de diversos setores da sociedade – desde os movimentos de base até a população de classe média e os sindicatos –, em alguns casos associados aos partidos políticos de esquerda, ilegais na época. A concepção política e ideológica do movimento pela reforma sanitária brasileira defendia a saúde não como uma questão
exclusivamente biológica a ser resolvida pelos serviços médicos, mas sim como uma questão social e política a ser abordada no espaço público. Professores de saúde pública, pesquisadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC e profissionais de saúde de orientação progressista se engajaram nas lutas dos movimentos de base e dos sindicatos. O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) foi fundado em 1976, organizando o movimento da reforma sanitária, e, em 1979, formou-se a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). Ambas propiciaram a base institucional para alavancar as reformas. A expressão “Reforma Sanitária” foi usada pela primeira vez no país em função da reforma sanitária italiana. A expressão ficou esquecida por um tempo até ser recuperada nos debates prévios à 8ª Conferência Nacional de Saúde, quando foi usada para se referir ao conjunto de ideias que se tinha em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde. Essas mudanças não abarcavam apenas o sistema, mas todo o setor da saúde, introduzindo uma nova ideia na qual o resultado final era entendido como a melhoria das condições de vida da população. No início das articulações, o movimento pela reforma sanitária não tinha uma denominação específica. Era um conjunto de pessoas com ideias comuns para o campo da saúde. Em uma reunião na Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) em Brasília, esse grupo de pessoas, entre os quais estava Sergio Arouca, foi chamado de forma pejorativa de “partido sanitário”. Apesar disso, o grupo não se constituía como partido; sua mobilização era mais ampla, sendo considerada uma ação social. Em uma dissertação de mestrado orientada por Arouca em 1986, Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário, a atuação desse grupo foi chamada pela primeira vez de movimento sanitário. Surgiram também outras denominações, como “movimento pela reforma sanitária” e “movimento da reforma sanitária”. No livro O dilema preventivista, uma nota feita por Arouca diz que todos esses termos podem ser usados indistintamente. Considerado “o eterno guru da Reforma Sanitária”, Sergio Arouca costumava dizer que o movimento nasceu dentro da perspectiva da luta contra a ditadura. Existia uma ideia clara na área da saúde de que era preciso integrar as duas dimensões: ser médico e lutar contra a ditadura. Os departamentos de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas e o Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro eram os espaços adequados para isso. Esses locais abriram brechas para a entrada do novo pensamento sobre a saúde, lançado pelo movimento da reforma sanitária. Essa mudança começou
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31 3 Histórico das Políticas e do Sistema de Saúde no Brasil e a Reforma Sanitária no final dos anos 1960 e no início dos anos 1970 – o período mais repressivo do autoritarismo no Brasil –, quando se constituiu a base teórica e ideológica do pensamento médico-social, também chamado de abordagem marxista da saúde e teoria social da medicina. A forma de olhar, pensar e refletir o setor de saúde nessa época era muito concentrada nas ciências biológicas e na maneira como as doenças eram transmitidas. Há uma primeira mudança quando as teorias das ciências sociais começam a ser incorporadas. Essas primeiras teorias, no entanto, estavam muito ligadas às correntes funcionalistas, que olhavam para a sociedade como um lugar que tendia a viver harmonicamente e precisava apenas aparar arestas entre diferentes interesses. A grande virada da abordagem da saúde foi a entrada da teoria marxista, o materialismo dialético e o materialismo histórico, que mostra que a doença está socialmente determinada. No Brasil, duas teses são consideradas um marco divisor de águas que dá início à teoria social da medicina: O dilema preventivista, de Sergio Arouca, e Medicina e sociedade, de Cecília Donnangelo, ambas de 1975. A partir daí, pode-se dizer que foi fundada uma teoria médico-social para análise de como as coisas se processam no campo da saúde no país. Essa nova abordagem se torna conhecimento relevante, reconhecido academicamente, difundido e propagado. Durante todo o processo de modificação da abordagem da saúde, várias correntes se juntam como protagonistas. O movimento estudantil teve um papel fundamental na propagação das ideias e fez com que diversos jovens estudantes começassem a se incorporar nessa nova maneira de ver a saúde. As Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária, realizadas pela primeira vez em 1974, e os Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina, em especial os realizados entre 1976 e 1978, foram importantes nesse sentido, por serem espaços praticamente ignorados pela repressão militar, que não identificava o caráter político de suas discussões. Dentre esses diversos atores do movimento sanitário, destacam-se ainda os médicos residentes, que na época trabalhavam sem carteira assinada e com uma carga horária excessiva; as primeiras greves realizadas depois de 1968; e os sindicatos médicos, que também estavam em fase de transformação. Esse movimento entra também nos conselhos regionais, no Conselho Nacional de Medicina e na Associação Médica Brasileira – as entidades médicas começam a ser renovadas. A criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976, também é importante na luta pela reforma sanitária. A entidade surge com o propósito de lutar pela democracia, de ser um espaço de divulgação do movimento sanitário, e reúne pessoas que já pensavam dessa forma e realizavam projetos inovadores. Importante produto da atuação do Cebes residiu
na socialização da produção acadêmica da emergente saúde coletiva; que propiciou um conjunto de debates sobre a saúde e os problemas da sociedade, editou revistas (saúde em debate), publicou livros, que segundo COTTA constitui um movimento social/intelectual organizado, o qual esboçou o que viria a ser a construção da proposta do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) o qual antecedeu o Sistema Único de saúde – SUS. Entre 1974 e 1979, diversas experiências institucionais tentam colocar em prática algumas diretrizes da reforma sanitária, como descentralização, participação e organização. É nesse momento que a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fundação Oswaldo Cruz se incorpora como espaço de atuação da abordagem marxista da saúde. Vários projetos de saúde comunitária – como clínica de família e pesquisas comunitárias – começaram a ser elaborados, e pessoas que faziam política em todo o Brasil foram treinadas. Quando a ditadura chegou ao seu esgotamento, o movimento já tinha propostas. Assim, esse movimento conseguiu se articular em um documento chamado Saúde e Democracia, que foi um grande marco, e enviá-lo para aprovação do Legislativo. Uma das coisas mais importantes, segundo Arouca, era transferir o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps) para o Ministério da Saúde. O movimento da reforma sanitária cresceu e formou uma aliança com parlamentares progressistas, gestores da saúde municipal e outros movimentos sociais. De 1979 em diante, foram realizadas reuniões de técnicos e gestores municipais, e em 1980 constituiu-se o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Em 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saúde aprovou o conceito da saúde como um direito do cidadão e delineou os fundamentos do SUS, com base no desenvolvimento de várias estratégias que permitiram a coordenação, a integração e a transferência de recursos entre as instituições de saúde federais, estaduais e municipais. Essas mudanças administrativas estabeleceram os alicerces para a construção do SUS. Posteriormente, durante a Assembleia Nacional Constituinte (198788), o movimento da reforma sanitária e seus aliados garantiram sua aprovação, apesar da forte oposição de um setor privado poderoso e mobilizado. A Constituição de 1988 foi proclamada numa época de instabilidade econômica, durante a qual os movimentos sociais se retraíam, a ideologia neoliberal proliferava e os trabalhadores perdiam poder de compra. Simultaneamente a essa reforma, as empresas de saúde se reorganizavam para atender às demandas dos novos clientes, recebendo subsídios do governo e consolidando os investimentos no setor privado.
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CAPÍTULO
11
O rim nas doenças sistêmicas
Nefropatia diabética A nefropatia diabética (ND) é a causa mais comum de insuficiência renal crônica terminal (IRCT) em pacientes que iniciam tratamento dialítico em países desenvolvidos, contribuindo com aproximadamente 30% dos casos, entretanto, em países latino-americanos, essa cifra é de 20%. A ND é mais comum nos portadores de diabetes mellitus (DM) tipo 1 (ocorre em 30 a 40% dos casos) do que entre os portadores de DM tipo 2 (incide em 5 a 20% dos casos). No entanto, como o DM tipo 2 é responsável por 90% dos casos de diabete, sua contribuição como causa de IRCT é semelhante a do tipo 1 (50%). Estágios da nefropatia diabética (DM tipo 1) Estágio I – Fase inicial Hipertrofia renal e hiperfiltração glomerular Estágio II – Fase silenciosa Microalbuminúria apenas após exercícios Estágio III – Fase de nefropatia incipiente Microalbuminúria persistente Estágio IV – Fase de nefropatia clínica Proteinúria no exame sumário de urina (albuminúria) Hipertensão arterial Estágio V – Fase de doença renal em estágio terminal Proteinúria + hipertensão CC < 10 mL/min Tabela 11.1 CC: clearance de creatinina.
A definição de microalbuminúria consiste em uma pequena quantidade de albumina eliminada pela urina, incapaz de ser mensurada pelos métodos convencionais, porém acima dos valores normais. Considera-se microalbuminúria a presença de 30-300 mg de albumina na urina de 24 horas ou 20 a 200 µg/min. A sua detecção pode ser feita de modo confiável em uma amostra aleatória de urina do paciente, medindo-se a relação albumina/creatinina. Considera-se positivo um valor maior do que 0,03. Um novo biomarcador desponta como altamente sensível para o diagnóstico precoce da nefropatia diabética, trata-se da dosagem do angiotensinogênio urinário.
Fisiopatologia A ND é caracterizada por deposição excessiva de proteínas da matriz extracelular (ECM) nos glomérulos. O TGF-b é o principal medidor do acúmulo de proteínas da ECM na ND, por meio de up-regulation dos genes que codificam tais proteínas, assim como down-regulation dos genes das enzimas que degradam as proteínas da ECM. Além das alterações morfológicas, a hemodinâmica glomerular e a composição química dos componentes glomerulares encontram-se alteradas. Entre os mecanismos de lesão renal relacionados com a hiperglicemia crônica estão a glicação não enzimática, aumento da atividade na via dos polióis e aumento
153 11 O rim nas doenças sistêmicas do diacilglicerol (DAG). Os produtos finais de glicação avançada (AGE) podem promover alterações quantitativas e qualitativas nos componentes da ECM, contribuindo para a ocorrência final de oclusão glomerular. Na via dos polióis, a glicose é reduzida a sorbitol sob a ação da aldose redutase. O acúmulo do sorbitol causaria dano celular por meio dos seguintes mecanismos: estresse hiperosmótico para as células, diminuição do mioinositol intracelular e redução da atividade da ATPase Na+/K+-dependente. Por fim, o aumento do conteúdo de DAG ativa a proteinoquinase C (PKC), principalmente as isoformas b e δ.
Fatores que podem aumentar transitoriamente a UAE Duração do diabetes* Microalbuminúria* Fatores genéticos* Mau controle glicêmico** Hipertensão arterial** Tabagismo** Hipercolesterolemia** Obesidade (?)** Obstrução urinária*** Infecção urinária crônica de repetição*** Uso de fármacos nefrotóxicos***
Os fatores determinantes da progressão da fase de microalbuminúria para proteinúria franca são principalmente a hiperglicemia e a HAS.
Tabela 11.2 *Fator de risco para surgimento. ** Fator de risco para surgimento e progressão. ***Fator de risco para progressão.
Fatores que podem aumentar transitoriamente a UAE Diabete descompensado Infecções Ingestão proteica excessiva Insuficiência cardíaca Hipertensão não controlada Febre Exercícios Litíase urinária Tabela 11.3 UAE: excreção urinária de albumina. Progressão da nefropatia diabética no DM Tipo 1, sem intervenção terapêutica* (%) Progressão e Tempo Anormalidades estruturais Anormalidades funcionais de DM anormalidade Estágio I Presente no (80%) Tamanho renal Hipertrofia diagnóstico TFG Glomerular Hiperfiltração Pressão capilar Área de filtração Estágio II 2-3 anos (35-40%) Espessamento das membranas basal e meLesões renais TFG sangial Ausência de sinais clínicos Pressão capilar Estágio III 7-15 anos (80-100%) Esclerose glomerular Nefropatia incipiente TFG** UAE** = 30-300 mg/dia normal ou em declínio Estágio IV 10-30 anos (75-100%) Glomeruloesclerose difusa ou nodular* Nefropatia, clínica TFG em declínio UAE > 300 mg/dia Estágio V 20-40 anos TFG < 15 mL/min Glomeruloesclerose disseminada Doença renal em estágio final Cs ≥ 10 mg/dL Tabela 11.4 (*) Síndrome de Kimestel-Wilson (Glomeruloesclerose nodular): Proteinúria, edema e hipertensão arterial; esta é a lesão mais característica da nefropatia diabética, enquanto a glomeruloesclerose difusa é a lesão mais comum. Se considerarmos 4 estágios, o estágio de nefropatia incipiente passa a ser o estágio II. (**) TFG: taxa de filtração glomerular; Cs: creatina sérica; UAE: excreção urinária de albumina. Estágios da doença renal diabética, segundo a classificação da National Kidney Foundation Estágio e descrição RFG (mL/min/1,73 m2) > 90 1 Dano renal com RFG normal ou aumentado 2 Dano renal com RFG levemente diminuído 60 a 89 3 RFG moderadamente diminuído 30 a 59 4 RFG intensamente diminuído 15 a 29 5 Insuficiência renal
< 15 ou diálise Tabela 11.5 RFG: ritmo de filtração glomerular.
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154 Nefrologia Dentre as inúmeras classificações existentes para ND a mais atual está descrita na tabela a seguir: Classificação da doença renal diabética (DRD) Estádios Características Normoalbuminúria EUA normal, hiperfiltração e nefromegalia. Microalbuminúria EUA 20 a 200 mcg/min. DRD incipiente
DRD clínica
DRD avançada
DRD terminal
EUA persistente, aumento da PA, micro-hipertensão, hipertensão induzida pelo exercício. EUA > 200 mcg/min ou proteinúria > 500 mg/24 horas, franca hipertensão. Proteinúria progressiva, hipertensão, queda do ritmo de filtração glomerular. Uremia, síndrome nefrótica, necessidade de diálise ou transplante.
Tabela 11.6 EUA: excreção urinária de albumina.
Diagnóstico e Tratamento Definições de anormalidade na excreção urinária de albumina (UAE) Amostra Amostra de Amostra Categoria de 24 h 12 h isolada Normal < 30 mg < 20 µg/min < 30 mg/g de Micro30-300 mg 20-200 µg/min creatinina albuminúria > 300 mg > 200 µg/min 30-300 mg/g Albuminúria de creatinina > 300 mg/g de creatinina Tabela 11.7
Nefropatia diabética incipiente Antes do aparecimento da insuficiência renal declarada, manifestada por proteinúria macroscópica e elevação da ureia e da creatinina no sangue, o rim diabético passa por uma fase de nefropatia incipiente. Nesse estágio, os parâmetros sanguíneos são normais, contudo, a excreção de albumina pela urina está elevada para cerca de 0,03 a 0,3 g/24 horas. Esse grau de excreção de albumina pela urina é denominado microalbuminúria, por causa da quantidade relativamente baixa da proteinúria e da elevada seletividade, sobretudo para a albumina. A microalbuminúria não é detectada pelo exame de rotina da urina pelo dipstick. Quando esse exame se torna positivo, isso indica que a proteinúria está acima de 150 mg/L. Por conseguinte, ainda que o dipstick deva ser efetuado inicial-
mente, para detectar a macroalbuminúria um teste negativo justifica uma colheita de urina nas 24 horas e uma técnica de radioimunoensaio específica, para quantificar o grau de excreção de albumina na urina. Já que a colheita de urina nas 24 horas geralmente é incômoda, a microalbuminúria também pode ser indexada pela creatinina urinária, em uma colheita no início da manhã, e a proporção geralmente se situa entre 30 e 300 mg/g de creatinina. Novos produtos de dipstick, como Microbumitest (Ames, Elkhart, IN) e Micral (Boehringer-Mannheim; Indianapolis, IN) foram introduzidos, para detectar níveis mais baixos de albumina na urina, contudo, suas especificidades são baixas e não comparáveis ao teste de radioimunoensaio. É importante lembrar que há vários fatores que podem aumentar a microalbuminúria, como doenças agudas, infecção do trato urinário, descompensação cardíaca, exercícios extenuantes e deficiente controle glicêmico. Esses fatores devem ser detectados pela história médica, pelo exame físico e por exames laboratoriais, para que se evite a interpretação errônea dos resultados.
Uma vez detectada a microalbuminúria, devem-se obter duas amostras, no período de três a seis meses (Atenção!). Caso ambas sejam positivas, o paciente precisa de tratamento. Se o teste para microalbuminúria for negativo, os pacientes precisam ser novamente testados, anualmente. No DMDI, os pacientes pós-púberes com diabetes mellitus por mais de cinco anos devem ser testados para microalbuminúria. Os pacientes com DMNDI devem ser submetidos à triagem logo que for efetuado o diagnóstico, já que, geralmente, é impossível datar o aparecimento da glicemia. Ambos os grupos de pacientes devem ser submetidos a triagem anual, desde que não apresentem elevação da creatinina sérica ou da pressão arterial, caso em que é desejável uma monitorização mais frequente. A presença de microalbuminúria permite prever o aparecimento de nefropatia diabética declarada. Entre os pacientes com DMNDI, essa presença
também permite prever a instalação de morbidez cardiovascular e mortalidade precoce. Assim, é prudente retardar o aparecimento da microalbuminúria e controlar o seu grau. O Controle do Diabete e a Investigação de suas Complicações (DCCT) mostrou que o regime de tratamento intensivo, administrado seja com bomba de insulina, seja por meio de múltiplas injeções (três ou mais por dia), e a aquisição de uma faixa de glicemia quase que normal podem retardar e diminuir a velocidade de progressão das complicações microvasculares diabéticas. Nessa investigação, a ocorrência de microalbuminúria (30 a 300 mg de albumina por dia) foi reduzida para 39%, e a proteinúria declarada (> 300 mg/dia) para 54%, entre os pacientes no grupo de tratamento intensivo.
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155 11 O rim nas doenças sistêmicas Esse declínio na incidência de nefropatia foi atribuído a um controle metabólico mais estrito, sendo mostrado que coincide com níveis mais baixos de hemoglobina glicosilada. É razoável concluir que os mecanismos por intermédio dos quais a hiperglicemia leva a complicações vasculares são, provavelmente, semelhantes em ambas as formas de diabete. Os pacientes diabéticos com microalbuminúria devem ser tratados com inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA), independentemente das pressões sanguíneas. Tem sido mostrado que os inibidores da ECA retardam a progressão para nefropatia diabética declarada. Esses efeitos
benéficos parecem ser independentes das pressões sanguíneas sistêmicas e do tipo de diabete. Além disso, dois a cinco anos após o aparecimento da microalbuminúria, a maioria dos pacientes com DMDI apresentou, eventualmente, hipertensão e necessitou de tratamento subsequente. Há prevalência mais elevada de hipertensão sistêmica nos pacientes com nefropatia diabética incipiente, em comparação com os grupos para idade e sexo combinados. A hipertensão piora a velocidade de progressão da nefropatia diabética, enquanto o controle da pressão arterial melhora o curso da insuficiência renal. Os inibidores da ECA precisam ser considerados como o tratamento de primeira linha, devido a seus efeitos independentes sobre a microalbuminúria, bem como a seus efeitos neutros sobre o controle glicêmico e o metabolismo lipídico. Quando a monoterapia falha, podem ser acrescentados bloqueadores do canal do cálcio (BCC) ou alfa-agonistas. Entre os BCC, somente as diidropiridinas mostraram-se capazes de agravar a excreção de albumina e, por isso, devem ser evitadas. Ambas as classes de anti-hipertensivos não possuem efeitos metabólicos nem lipídicos adversos. Sabe-se que os diuréticos tiazídicos e os betabloqueadores podem piorar o controle glicêmico e alteram, desfavoravelmente, os perfis lipídicos. A alta ingestão de proteína resulta em aumento do índice de filtração glomerular (IFG) e em sobrecarga renal, que, por sua vez, agrava a proteinúria. Isso foi demonstrado mesmo em pacientes não diabéticos. Parece, segundo essas investigações, que a restrição moderada de proteínas pode beneficiar os pacientes com microalbuminúria. Para evitar a desnutrição proteica após dieta de restrição rígida, aconselha-se uma restrição proteica moderada de 0,8 g/kg a 1 g/kg de peso corporal por dia.
Nefropatia diabética declarada Quando a nefropatia diabética incipiente progride até o estágio em que o paciente apresenta parâmetros sanguíneos anormais (elevação da ureia e da creatinina) ou testes dipstick de rotina moderadamente positivos (microalbuminúria), a doença já piorou até a fase de nefropatia declarada. A maioria dos pacientes com nefropatia declarada progride para IRC terminal, e isso ocorre, particularmente, entre os pacientes com diabetes mellitus tipo 1. A velocidade de progressão da nefropatia diabética pode ser diminuída com o controle da hipertensão (prioridade nesta fase). A declaração de consenso da American Diabetes Association e da National Kidney Foundation sugeriu que a pressão arterial deva ser reduzida para menos de 130 x 80 ou para uma pressão média de 92 mmHg. Há, contudo, a possibilidade de provocar uma hipotensão ortostática ou de piorar a função renal, com pressões mais baixas. Às vezes, poderá ser necessário admitir pressões sanguíneas ligeiramente mais altas, para evitar essas complicações. Os inibidores da ECA diminuem a proteinúria e a progressão da insuficiência renal no diabetes mellitus. Além disso, esses medicamentos parecem aumentar
a sensibilidade à insulina, o que pode promover melhor controle metabólico. Parece que eles não têm efeitos sobre os níveis de lipídios, portanto é possível que não piorem os riscos cardiovasculares. Os inibidores da ECA precisam ser usados com cautela em pacientes com doença macrovascular. Os pacientes com estenose renal bilateral podem apresentar rápida diminuição da função renal. Da mesma forma, nos pacientes com significativa doença do parênquima, nos quais os néfrons restantes requerem a presença de angiotensina II para manter o IFG, o bloqueio do sistema renina-angiotensina pode diminuir ainda mais o IFG. Além disso, os pacientes diabéticos são propensos a apresentar hipercalemia, que pode ser agravada pelos inibidores da ECA. Por conseguinte, é prudente determinar os níveis séricos de creatinina e potássio, cerca de uma semana após o início do tratamento, podendo ser necessários ajustes das doses, para corrigir qualquer anormalidade desses níveis. Mesmo os pacientes supostamente estáveis poderão necessitar de monitorização pelo menos três a quatro vezes por ano. Os inibidores da ECA precisam ser usados com cautela em mulheres em idade de procriação já que têm sido associados a morbidez e mortalidade do feto. Os BCC são agentes anti-hipertensivos eficazes, tanto em pacientes diabéticos quanto em não diabéticos. Esses medicamentos são estruturalmente
diferentes, porém constantes em sua eficácia na redução da pressão arterial. Têm diferentes efeitos hemodinâmicos que precisam ser considerados quando uma disfunção do ventrículo esquerdo ou distúrbios de condução complicam o curso clínico do paciente. Esses agentes são úteis na nefropatia diabética, já que po-
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156 Nefrologia dem reduzir a microalbuminúria, exceto no caso das diidropiridinas que, como foi mostrado, aumentam a excreção urinária de proteínas. Não tem sido mostrado que os BCC alteram o controle metabólico no diabetes mellitus. Há na literatura opiniões discordantes que implicam a nifedipina como um agente capaz de baixar os níveis de insulina e, por conseguinte, capaz de aumentar os níveis de glicemia. Os BCC não parecem afetar desfavoravelmente o metabolismo lipídico, porém há publicações que mostram que eles podem estar relacionados com maior mortalidade cardiovascular. Esses me-
dicamentos são bem tolerados e raramente produzem hipotensão postural. Alguns pacientes podem queixar-se de cefaleia, congestão facial, edema de pés e constipação intestinal, que poderão requerer a interrupção do tratamento. Os betabloqueadores estão sendo atualmente recomendados como medicação de primeira linha para o controle da pressão arterial, devido à significativa redução da morbidez e da mortalidade em grandes investigações aleatórias. Eles também têm se mostrado capazes de prevenir a morte súbita e o infarto miocárdico recorrente. Além disso, alguns estudos têm mostrado que esses medicamentos são úteis na prevenção primária da doença coronariana.
Estudos selecionados de DMNDI hipertensos têm mostrado que os betabloqueadores são eficazes na redução da pressão arterial. Contudo, podem piorar o controle da glicemia, provavelmente por diminuírem tanto o nível de insulina quanto a sensibilidade a ela. As várias áreas de preocupação em relação ao uso de betabloqueadores em diabéticos incluem a incapacidade de os pacientes reconhecerem a hipoglicemia e a demora na recuperação desses episódios. Esses efeitos são mais pronunciados com o uso do propranolol, em comparação com o atenolol e o metoprolol. Além disso, sabe-se que os betabloqueadores afetam, de forma adversa, os níveis lipídicos. Esses medicamentos podem aumentar os níveis de lipoproteínas de baixa densidade e de triglicerídios, enquanto diminuem as lipoproteínas de alta densidade. Isso aumenta a preocupação de que
os benefícios decorrentes do controle da pressão sanguínea possam ser ofuscados pelo aumento do risco cardiovascular, ocasionado por um meio lipídico desfavorável. Além disso, sabe-se que os betabloqueadores agravam a doença vascular periférica, que é uma patologia comórbida comum em diabéticos. Os alfabloqueadores e os betabloqueadores, como o labetalol, produzem alterações metabólicas e efeitos adversos semelhantes, contudo, não se sabe se agravam a doença vascular periférica. Não foi comprovado se o labetalol oferece prevenções primária e secundária contra a doença da artéria coronária.
Nas últimas décadas, os diuréticos têm sido usados com segurança e se mostrado eficazes agentes anti-hipertensivos, tanto para diabéticos quan-
to para não diabéticos. Em estudos prospectivos a longo prazo, esses medicamentos pareceram reduzir tanto a mortalidade quanto a morbidez cardiovascular e cerebrovascular.
Devido a esses efeitos benéficos, esses agentes têm sido recomendados pelo Joint National Committee on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure para o uso como medicamentos de primeira linha. A elevação do sódio total do organismo em diabéticos hipertensos torna os diuréticos tiazídicos uma escolha ainda melhor. Contudo, o tratamento com diuréticos não é destituído de reações adversas. Esses agentes causam alterações metabólicas, como modestas elevações dos níveis de glicemia, hiperinsulinemia e aumento da resistência à insulina. Distúrbios eletrolíticos, como hipocalemia e hipomagnesiemia, que podem precipitar os distúrbios de condução, não são efeitos colaterais raros do uso prolongado do diurético. Além disso, os diuréticos tiazídicos podem afetar negativamente o perfil lipídico, provocando um aumento dos níveis de colesterol total, triglicerídios e lipoproteínas de baixa densidade. Updike resumiu as vantagens dos diuréticos, que incluem: (1) a redução da expansão do volume plasmático, que geralmente acompanha a hipertensão; (2) o sinergismo com os inibidores da ECA; (3) a redução da hiperfiltração glomerular; e (4) a boa relação custo-benefício. Doses mais baixas produzem menores graus de distúrbios metabólicos. Portanto, no caso da hidroclorotiazida, deve-se iniciar com doses de 12,5 mg. Essas doses raramente devem exceder 25 mg/dia. Conduta terapêutica na nefropatia diabética Estágios I e II – Controle glicêmico adequado Não fumar Controle da HAS (DM tipo 1) Tratamento da obesidade e dislipidemia (DM tipo 2) Evitar dieta hiperproteica
Estágios III e IV Controle glicêmico Não fumar Tratamento da HAS Uso de inibidores da ECA (mesmo em normotensos) Redução da pressão intraglomerular por meio da dilatação da arteríola eferente Relaxamento da musculatura lisa mesangial Diminuição da permeabilidade dos capilares glomerulares Inibição da angiotensina II como um fator de crescimento renal Ingestão proteica diária de 0,6-0,8 g/kg Correção da hiperlipidemia Uso da aminoguanidina Estágio V
Diálise peritoneal, hemodiálise ou transplante (creatinina ≥ 8 mg/dL)
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Tabela 11.8 Resumo.
157 11 O rim nas doenças sistêmicas Mais recentemente, o estudo AVOID demonstrou que a combinação de um BRA, o losartan, com um inibidor direto da renina, o aliskireno, promove redução adicional de 20% na albuminúria em pacientes diabéticos com ND quando comparada à monoterapia com losartan. Embora ainda sejam necessários estudos de desfecho, essa combinação poderá ser útil promover redução na excreção renal de proteínas e maior proteção renal.
Novas perspectivas no tratamento da ND incluem inibidores da PKC (p. ex.: mesilato de ruboxistaurina), glicosaminoglicanos (p. ex.: sulodexide), aminoguanidina (inibidor da formação de produtos finais de glicação avançada), pentoxifilina e, mais recentemente, antagonistas da endotelina. Estas drogas mostram benefícios em reduzir a proteinúria e estabilização do RFG superior aos placebos. O futuro próximo dará importância devida a cada uma delas.
Indicação de biópsia renal na nefropatia diabética Quando a glomerulopatia se instala no paciente diabético obedecendo à cronologia da sua história natural, pouco se duvida do diagnóstico de nefropatia diabética. Um dado importante de raciocínio é a presença de retinopatia, que é concordante com nefropatia diabética em 85 a 99% dos pacientes do tipo I e 63% do tipo II. Portanto, o achado de etinopatia em paciente com alterações glomerulares renais sugere nefropatia diabética. A hematúria microscópica de baixa intensidade pode ser encontrada em até 50% dos pacientes com nefropatia diabética. No entanto, a biópsia renal deve ser indicada quando dados clínicos ou laboratoriais são discordantes dos habitualmente encontrados em pacientes com nefropatia diabética, como listados a seguir:
História de diabete menor que cinco anos;
Aumento rápido da proteinúria;
Albuminúria na ausência de retinopatia;
Perda da função renal na ausência de proteinúria;
Sedimento urinário com hematúria;
Perda de função renal sem explicações.
Exame sumário de urina Proteína (–)
Proteína (+) = nefropatia clínica
Há condições que alterem a AUE?
(1) Determinar proteinúria das 24 horas e (2) Fazer controle rígido da glicemia, PA e lípides
Não
Sim
Aguardar resolução
Pesquisa de microalbuminúria
Negativa
Positiva
Repetir exame anualmente
Repetir exame mais 2 vezes, em 3-6 meses
Não
MA persistente?
(1) Melhorar controle da glicemia, lípides e PA (2) Usar IECA, se MA persistir Sim
Iniciar tratamento
Figura 11.1 Resumo da investigação recomendada pela ADA para detecção e tratamento da nefropatia diabética.
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158 Nefrologia
Nefrosclerose hipertensiva Forma benigna As características histopatológicas principais da nefrosclerose benigna são hipertrofia da camada muscular das artérias, duplicação da lâmina elástica interna e espessamento da camada íntima, algumas vezes com deposição de material ialino na região subintimal. Por conta do estreitamento da luz das arteríolas renais aferentes e eferentes, ocorre envolvimento glomerular e tubulointersticial.
Especula-se que os depósitos hialinos sejam resultado do aumento da permeabilidade dos vasos sanguíneos. Como consequência, macromoléculas difundidas a partir do plasma se acumulariam na região subintimal. Essa seria a causa da deposição de imunoglobulinas que se observa nas paredes das arteríolas de pacientes com nefrosclerose benigna. Por outro lado, a exposição excessiva a fatores de crescimento oriundos da circulação também seria capaz de causar lesões proliferativas e hipertróficas. A resposta hipertrófica da camada íntima das artérias do rim pode representar uma tentativa de proteção contra os efeitos hemodinâmicos da pressão arterial sobre as arteríolas e os capilares renais. Finalmente, a esclerose global ou focal pode ser consequente à isquemia glomerular. O comprometimento focal é acompanhado de hipertrofia glomerular que pode estar envolvida na natureza progressiva da doença renal. Este estágio da doença, que se associa com lesão tubulointersticial crônica, recebe o nome de nefrosclerose benigna descompensada. Em geral, a creatinina sérica supera 2 mg/dL e a sobrevida renal é pior do que nas glomerulopatias primárias.
Forma maligna A elevação acentuada e sustentada da pressão arterial (hipertensão acelerada) acelera a progressão da doença renal, de tal sorte que a insuficiência renal crônica terminal sobrevém ao final de alguns poucos anos. Alguns autores separam a hipertensão acelerada da hipertensão maligna. Nesta última, o quadro clínico e as alterações histopatológicas decorrem de uma elevação acentuada e relativamente aguda da pressão arterial, que determina sofrimento agudo dos órgãos-alvo da hipertensão (cérebro, retina, rins, coração e grandes vasos). Atualmente é comum não fazer distinção tão nítida entre os dois quadros. Doenças vasculares dos rins ocorrem a partir da faixa de 130 mmHg de pressão diastólica sustentada.
Patologia A elevação exagerada e prolongada da pressão arterial se acompanha por hiperplasia e fibrose da camada íntima que termina por estreitar o lúmen arterial. Nos vasos de médio calibre ocorre estreitamento da luz vascular devido à grande expansão da camada íntima. O padrão de lesão intimal, juntamente com a duplicação da lâmina elástica interna, dá origem a um aspecto histopatológico concêntrico característico que recebe o nome de bulbo de cebola. Essas alterações histológicas típicas são semelhantes, senão indistinguíveis, das lesões observadas.
Diagnóstico A doença renal hipertensiva manifesta-se por elevação da creatinina sérica ou proteinúria, que, via de regra, é moderada. Uma das características da nefrosclerose benigna, que pode ser reflexo da diminuição do fluxo sanguíneo renal, é a elevação do ácido úrico independentemente do uso prévio de diuréticos. A proteinúria não costuma exceder 1 g em 24 horas. Pacientes com proteinúria são mais propensos a evoluir com perda da função renal, talvez como consequência da hiperfiltração glomerular. O diagnóstico da nefrosclerose benigna baseia-se na história e na evolução da doença. A hipertensão deve preceder a doença renal. A presença de retinopatia hipertensiva também auxilia no diagnóstico. A biópsia renal normalmente não é necessária, a não ser em pacientes sem antecedentes de doença hipertensiva.
Figura 11.2 Hipertensão arterial. Hiperplasia e fibrose da camada íntima resultando no aspecto de camadas concêntricas conhecido pelo nome de lesão em bulbo de cebola. Guarde!
Quadro clínico Com frequência, em pacientes com níveis tensionais previamente elevados, a hipertensão maligna instala-se como uma complicação, alterando um curso
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159 11 O rim nas doenças sistêmicas anteriormente benigno. Nesses casos, deve-se procurar sempre um fator de agudização, como a doença renovascular aterosclerótica ou o uso insuficiente ou inapropriado de medicação. Fatores genéticos, como polimorfismo do gene das ECA e HLA-DR3 (em indivíduos de raça negra), parecem aumentar o risco para transformação maligna da HAS. Ocasionalmente, observam-se situações em que a hipertensão maligna desenvolve-se em pacientes previamente hígidos (de novo), acometidos por uma elevação aguda e grave da pressão arterial (por exemplo: na glomerulonefrite aguda, na eclâmpsia ou mesmo na hipertensão essencial). O prognóstico da hipertensão maligna em pacientes sem antecedentes de hipertensão não difere dos casos clássicos. Além da hipertensão e da piora gradativa da função renal, pacientes com nefrosclerose arteriolar maligna apresentam proteinúria, raramente em níveis nefróticos. Um quadro mais raro é a insuficiência renal aguda, que se instala ao longo de vários dias ou poucas semanas. Nesses pacientes, a ultrassonografia renal revela rins de tamanho e ecogenicidade praticamente normais. A biópsia renal é a única forma de confirmar a hipertensão maligna como responsável pela disfunção renal aguda. Entretanto, existem duas limitações.
Primeiramente, a hipertensão grave é uma contraindicação para a execução da biópsia, que só poderá ser feita após o controle adequado da pressão arterial. O segundo problema é a semelhança histopatológica entre a hipertensão maligna e as microangiopatias trombóticas. Muitas vezes é preciso conjugar dados da patologia com o quadro clinicolaboratorial, a fim de obter um diagnóstico definitivo. Os efeitos sistêmicos da hipertensão grave também se evidenciam pelo comprometimento dos vasos da retina. A retinopatia hipertensiva caracteriza-se por hemorragias retinianas, exsudatos de material plasmático extravasado e, nos casos com encefalopatia hipertensiva, edema da papila. Este último, quando presente, revela a gravidade do quadro hipertensivo agudo, mas não tem relação com o prognóstico do quadro geral. Clinicamente, o paciente com hipertensão maligna apresenta cefaleia e sinais neurológicos flutuantes. As complicações incluem convulsões, déficits neurológicos fixos, coma e, eventualmente, morte. Inicialmente, o comprometimento do cérebro resulta da elevação da pressão craniana (que pode evoluir para edema cerebral difuso) e de isquemia focal. As complicações podem decorrer de acidentes vasculares encefálicos (AVE) isquêmicos (incluindo infartos lacunares) ou hemorrágicos. As características clínicas que ajudam a diferenciar a encefalopatia hipertensiva simples do quadro de AVE incluem a ausência de comprometimento focal,
o início insidioso e os sintomas de comprometimento encefálico difuso (vômitos, cefaleia, perda da memória etc.). A tomografia cerebral é o exame de escolha para afastar um AVE, com a ressalva de que são necessárias pelo menos 48 horas para que um acidente isquêmico seja revelado na tomografia.
Tratamento Para que o fluxo cerebral possa ser mantido nas primeiras 24 horas, objetiva-se uma redução moderada da pressão arterial, que deve estabilizar-se em níveis moderadamente elevados. Uma diminuição excessiva da pressão arterial pode trazê-la para valores médios inferiores à capacidade de autorregulação do fluxo sanguíneo cerebral e resultar em dano isquêmico. O tratamento inicial de pacientes com hipertensão maligna depende da situação clínica. Quando o paciente apresenta comprometimento agudo da função dos órgãos-alvo (deterioração visual, encefalopatia, insuficiência renal aguda, edema agudo de pulmão), indica-se o tratamento com drogas de ação rápida, por via intravenosa. No nosso meio, a droga de escolha é o nitroprussiato de sódio, que possui efeito imediato e correlação linear entre a dose infundida e o efeito anti-hipertensivo. Outra droga parenteral vasodilatadora, já aprovada pelo FDA para uso clínico, é o fenoldopam, um agonista seletivo do receptor dopaminérgico do tipo 1 (DA1). Essa droga tem a vantagem de possuir efeito natriurético e possível proteção renal, além de ser isenta do risco de intoxicação pelo cianeto e não ser fotossensível. Durante a retirada da infusão venosa ou em pacientes sem tanta gravidade, pode-se iniciar o tratamento com bloqueadores de canal de cálcio ou com inibidores da enzima conversora de ação rápida (por exemplo: nifedipina e captopril). Muitos utilizam a via sublingual para obter efeito imediato, o que não deve ser estimulado, ou seja deve ser proscrito. A via oral é eficaz sem os inconvenientes da via sublingual. Após as primeiras 24/48 horas, inicia-se a terapia definitiva com drogas orais, que pode incluir os bloqueadores de canal de cálcio e inibidores da enzima conversora, eventualmente com meia-vida mais longa, juntamente com outras drogas hipotensoras. A sobrevida em dez anos é de 45 a 50%, e em renal basal ocorre progressão para IRC. A longo prazo, o controle pressórico é o fator mais importante para impedir a progressão da nefropatia.
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160 Nefrologia
Lúpus eritematoso sistêmico Cerca de 50-75% dos pacientes cursam com nefropatia lúpica. Sua presença constitui um sinal de mau
prognóstico, embora o tipo e a gravidade sejam variáveis para cada paciente. Em geral, se desenvolve durante os primeiros anos da doença. O diagnóstico ou formação in situ de imunocomplexos DNA anti-DNA sobre a membrana basal glomerular e a consequente ativação do complexo imune compõem a sequência patogênica, cujo resultado final é a lesão lúpica do glomérulo (principal alvo renal). A síndrome nefrótica, frequentemente associada à insuficiência renal, corresponde à manifestação clínica mais comum, ocorrendo em dois terços dos pacientes com lesão renal. A presença de dano renal está fortemente relacionada com a detecção no soro do anticorpo anti-DNA nativo e consumo do complemento. Embora se observe que a literatura em geral costuma dar ênfase às alterações glomerulares, as lesões intersticiais, em alguns casos, podem dominar o quadro histológico e ter expressão clínica exuberante. O melhor indicador clínico de um prognóstico ruim é a insuficiência renal, manifestada por uma creatinina sérica persistentemente >2 mg%, em vigência de tratamento e na ausência de outras causas de azotemia. Na evolução, 40% dos casos apresentam síndrome nefrótica, com função renal ainda normal, ou variados graus de insuficiência renal. Em cerca de 5% dos casos, a primeira manifestação do LES é unicamente a glomerulonefrite, e longa evolução pode decorrer até o aparecimento de manifestações extrarrenais e sorologia positiva. Insuficiência renal aguda como primeira manifestação é rara quando ocorre, e o início com oligúria é geralmente acompanhado de manifestações sistêmicas importantes e elevados títulos de autoanticorpos; nesses casos a ocorrência histológica é compatível com glomerulonefrite proliferativa difusa ou doença intersticial.
A classe IV ou glomerulonefrite proliferativa difusa (GNPD) corresponde quase à metade dos casos de envolvimento renal no LES e é o tipo de lesão renal de pior prognóstico.
Na forma mesangial (classe II) as alterações do sedimento urinário são mínimas, e o prognóstico é bom. Na forma proliferativa focal (classe III), a proteinúria está quase sempre presente, embora a evolução para síndrome nefrótica seja rara; hematúria é encontrada com relativa frequência, e a preservação da função renal se mantém por muito tempo. Na forma proliferativa difusa (classe IV), a síndrome nefrótica é comum e se acompanha de hematúria e/ou cilindro hemático, HAS e redução da taxa de filtração glomerular em 50% dos casos no momento do diagnóstico (cerca de 90% acabam
desenvolvendo síndrome nefrótica em algum momento evolutivo da doença). A insuficiência renal ocorre em 75% dos pacientes.
A forma membranosa (classe V) se apresenta quase sempre como síndrome nefrótica pura, sem
alterações de sedimento urinário (sem cilindros hemáticos), com preservação da função renal, que só se deteriora ao longo dos anos. Segue a seguir, tabela de resumo do quadro clinicolaboratorial da nefrite lúpica.
Classificação de nefrite lúpica – OMS 1994 Classe Achados patológicos I
Nenhum
II
Lesão mínima ou mesangial
III
Proliferação glomerular focal (15%)
IV
Proliferação glomerular difusa (43%)
V
Membranosa (15%)
VI
Esclerose glomerular crônica Tabela 11.9
Classificação da nefrite lúpica (NL) proposta pelo consenso ISN/RPS Classe I: NL mesangial mínima Classe II: NL proliferativa mesangial Classe III: NL focal (< 50% glomérulos envolvidos) A: lesões ativas (NL proliferativa focal) A/C: lesões ativas e crônicas (NL proliferativa focal e esclerosante) C: lesões crônicas e inativas com áreas cicatriciais glomerulares (NL focal e esclerosante) Classe IV: NL difusa (> 50% de envolvimento glomerular) S (A): lesões ativas (NL proliferativa difusa segmentar) G (A): lesões ativas (NL proliferativa difusa global) S (A/C): lesões ativas e crônicas (NL proliferativa difusa segmentar e esclerosante) G (A/C): lesões ativas e crônicas (NL proliferativa difusa global e esclerosante) S (C): lesões crônicas e inativas com áreas cicatriciais (NL difusa segmentar e esclerosante) G (C): lesões crônicas e inativas com áreas cicatriciais (NL difusa global e escrerosante) Classe V: NL membranosa Classe VI: NL esclerosante avançada Tabela 11.10
OMS Sedimento Proteinúria Síndrome Disfunção urinário nefrótica renal ativo I 0 0 0 0 II < 25% 25-50% 0 < 15% III 50% 65% 25-30% 10-25% IV 75% 95-100% 50% > 50% V 50% 95-100% 90% 10-20% Tabela 11.11
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161 11 O rim nas doenças sistêmicas A informação mais decisiva acerca do estado da doença renal é formada pelo exame de um espécime de biópsia renal pela microscopia ótica e eletrônica, assim como pela coloração imunofluorescente. A utilidade da biópsia renal no tratamento dos pacientes tem sido amplamente discutida. O motivo mais convincente para a realização de uma biópsia renal é estadiar a doença com precisão, portanto a decisão de realizar uma biópsia renal deve ser individualizada para cada paciente, de acordo com a possibilidade de influenciar o tratamento. O índice de atividade-cronicidade tem valor considerável como parâmetro prognóstico e guia para o tratamento. A indicação da biópsia é especialmente útil nos casos suspeitos de nefrite proliferativa difusa.
A GNPD está presente em quase todos os pacientes com LES que evoluem para insuficiência renal. Caracteriza-se pelo envolvimento de mais de 50% do glomérulo, com hipercelularidade mesangial generalizada, evoluindo para obliteração e esclerose das alças capilares. Clinicamente, os pacientes quase sempre apresentam proteinúria e hematúria e, não raramente, diminuição da função renal. A HAS é comum no momento do diagnóstico.
Outras formas de nefrite lúpica Nefrite intersticial ocorre em 60-70% dos casos e usualmente se correlaciona com o envolvimento glomerular. Tromboses glomerulares são vistas, às vezes, associadas às classes IV e V de glomerulonefrite lúpica e parecem estar associadas à presença de anticoagulante lúpico, na maioria dos casos. Amiloidose, em geral, com infecção crônica coexistente ou doença linfoproliferativa.
Nefrite lúpica e gestação A gravidez na vigência do LES é, por definição, uma situação de alto risco. Para o feto, isso é devido à frequência de problemas como perda fetal, prematuridade, LES neonatal (incluindo bloqueio A-V congênito) e mortalidade neonatal aumentada. Para a mãe, parece haver exacerbação do LES, sendo na maioria das vezes de ocorrência no terceiro trimestre ou no pós-parto. Pode haver morte materna, em geral por evolução rápida de nefrite lúpica. O bloqueio cardíaco congênito é muito raro, mas está associado a Ac anti-Ro e HLA-DR3 na mãe. Orientação terapêutica na nefrite lúpica
Índices patológicos de atividade e cronicidade Índice de cronicidade
Índice de atividade
Esclerose glomerular Crescentes fibrosos Atrofia tubular Fibrose intersticial
Proliferação celular Necrose fibrinoide Crescentes celulares Trombo hialino Infiltrado leucocitário glomerular Infiltração celular mononuclear no interstício Tabela 11.12
Classe I (rins normais): nenhuma orientação terapêutica. Classe II (nefrite mesangial): nenhuma orientação terapêutica. Se surgirem indícios clínicos, repetir a biópsia para avaliar mudança de classe. Classe III (proliferativa focal): se a lesão for branda, iniciar corticoide. Se a lesão for grave, proceder o protocolo da classe IV. Classe IV (proliferativa difusa): corticoides em altas doses e citotóxicos (ciclofosfamida), micofenolato de mofetil. Classe V (membranosa): corticoide para a remissão da síndrome nefrótica. Se não houver remissão, iniciar citotóxicos. Tabela 11.13
Mais recentemente, os dados clínicos e histológicos foram revisados por Austin et al., que concluíram que os achados associados com aumento da probabilidade de dobrar a creatinina sérica em cinco anos foram: 1. creatina sérica > 2,4 mg%; 2. hematócrito < 26%; 3. raça negra; 4. crescentes celulares e fibrose intersticial. Atenção: do ponto de vista laboratorial, os dados mais sugestivos de nefrite lúpica ativa são: títulos elevados de anti-DNA e consumo de complemento (CH50 e C3).
Esclerose sistêmica As estruturas renais primariamente acometidas na ESP são as artérias interlobulares e arteríolas, e a lesão característica é uma endarterite proliferativa, caracterizada pela proliferação celular da camada íntima, adelgaçamento da média e deposição de colágeno na adventícia. As alterações glomerulares são geralmente inespecíficas e secundárias à isquemia. O acometimento difuso e progressivo das pequenas artérias renais
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162 Nefrologia provoca isquemia renal, estimulando a secreção de renina e consequente HAS (achado clínico comum). A crise renal esclerodérmica é um evento agudo potencialmente reversível e que ocorre em 5 a 15% dos pacientes com ESP forma difusa (Scl-70 positivo). A patogênese desta crise está associada a um vasoespasmo (Raynaud) renal severo, principalmente das arteríolas interlobulares, levando à isquemia cortical difusa, com consequente ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, uma forma periférica de HAS renovascular. Do ponto de vista histopatológico, encontra-se nefrosclerose arteriolar acelerada, semelhante à observada na hipertensão arterial maligna. Os rins encontram-se reduzidos de tamanho, e a presença de infartos corticais e hemorragias petequiais são frequentes. As arteríolas interlobares encontram-se estreitadas por depósitos de fibrina, e a atrofia isquêmica e o infarto distal são habituais. Com o advento dos IECA (droga de escolha para coibir a evolução da crise renal), a mortalidade pela doença renal foi suplantada pelo acometimento pulmonar (alveolite fibrosante como principal causa de óbito nesta população). O uso de 25 mg de captopril de oito em oito horas com aumento progressivo nos dias subsequentes até normalização da pressão arterial é a recomendação seguida para controle da doença renal. A piora da função renal após normalização da PA pode ocorrer (é frequente), e a continuação dos IECA é fundamental para a recuperação total da função renal. Para os pacientes que evoluem para uremia, a diálise é recomendada com a manutenção do IECA (essas medidas conseguem recuperar a maioria dos pacientes). Crise renal esclerodérmica 1. Hipertensão arterial acelerada 2. Elevação das escórias nitrogenadas (IRA rapidamente progressiva) 3. Hemólise microangiopática (esquizócitos no sangue periférico) 4. Plaquetopenia Tabela 11.14
Artrite reumatoide O acometimento renal na AR pode ser feito de três formas: 1) Acometimento direto pela doença (glomerulone-
frite membranosa, glomerulonefrite proliferativa mesangial, glomerulonefrite crescente e necrotizante e por vezes vasculite necrotizante, principalmente na AR grave, marcada de altos títulos de FR e nódulos subcutâneos).
2) Acometimento renal por amiloidose (amiloidose secundária, com apresentação sob a forma de síndrome nefrótica e evolução para IRC). 3) Acometimento renal secundário ao uso de medicamentos. 3.1) Sais de ouro: glomerulopatia membranosa, doença de lesão mínima, necrose tubular aguda. 3.2) Penicilamina: glomerulonefrite membranosa, glomerulonefrite em crescente, doença de lesão mínima. 3.3) AINEs: NTA, nefrite intersticial, doença de lesão mínima. 3.4) Ciclosporina: alteração isquêmica crônica. 3.5) Analgésicos: nefrite intersticial crônica e necrose de papila.
Síndrome de Sjögren O acometimento renal na síndrome de Sjögren ocorre em cerca de 10-15% dos pacientes, sendo a lesão mais comum a nefrite tubulointersticial (síndrome de Fanconi, acidose tubular renal tipo I, diabetes insipidus nefrogênico). Um percentual menor dos pacientes pode apresentar uma forma rara de glomerulonefrite por imunocomplexos (associada à Sjögren secundária, principalmente associada a LES).
Síndrome do anticorpo antifosfolípide Do ponto de vista nefrológico, a síndrome antifosfolipídeo causa manifestações, predominantemente trombóticas, em quase toda a circulação renal. Podem ocorrer infartos renais, uni ou bilaterais, por oclusão da artéria renal principal ou seus ramos. Trombose bilateral da veia renal também já foi observada. Estenose da artéria renal, algumas vezes reversível após anticoagulação, é outra manifestação descrita recentemente. Alguns pacientes desenvolvem uma microangiopatia trombótica semelhante à síndrome hemoliticourêmica, em que lesões obliterativas arteriolares coexistem com trombose glomerular. Esses pacientes podem cursar com hipertensão grave e evoluir para a insuficiência renal crônica terminal. Pode ocorrer ainda proteinúria nefrótica, mas o substrato histopatológico dessa manifestação ainda não está bem definido. Os anticorpos antifosfolipídeos podem ser retirados com plasmaférese, mas recorrem logo a seguir. A resposta aos corticosteroides e imunossupressores também é pobre. Pacientes com manifestações trombóticas renais (assim como em qualquer outro órgão nobre) devem usar anticoagulantes orais (varfarina) para o resto da
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163 11 O rim nas doenças sistêmicas vida. As manifestações renais da síndrome exigem anticoagulação, que deve ser suficiente para manter o INR acima de 3,0.
Envolvimento renal nas vasculites A prevalência de doença renal nas vasculites sistêmicas ocorre em 50 a 90% dos casos. A forma de glomerulonefrite crescêntica necrotizante pauci-imune corresponde a aproximadamente 50% de todas as glomerulonefrites rapidamente progressivas. Na nefrite pauci-imune, por volta de 80% dos pacientes têm vasculites sistêmicas e até 85% têm sorologia positiva para o ANCA. Na população geral, vasculites dos vasos de pequeno calibre afetam principalmente a faixa etária acima dos 50 anos, mas podem também atingir pessoas mais jovens. Classificação das vasculites (de acordo com a Conferência Internacional de Chappel Hill) 1- Vasculites de grandes vasos Arterite Temporal Arterite de Takayasu Envolvimento renal infrequente: hipertensão renovascular, nefropatia isquêmica 2- Vasculites de vasos de médio calibre Poliarterite Nodosa Clássica Envolvimento renal vascular: hipertensão renovascular, nefropatia isquêmica Doença de Kawasaki Envolvimento renal extremamente raro 3- Vasculites de pequenos vasos Granulomatose de Wegener* Afeta capilares, vênulas e arteríolas: comum ocorrência de glomerulonefrite necrotizante e positividade do ANCA (c-ANCA) Poliangeíte Microscópica Afeta capilares, vênulas e arteríolas: comum ocorrência de glomerulonefrite necrotizante e positividade do ANCA (c-ANCA) Síndrome de Churg-Strauss** Afeta capilares, vênulas e arteríolas: envolvimento renal infrequente; positividade do ANCA (c-ANCA) Púrpura de Henoch-Schönlein Comum ocorrência de glomerulonefrite mesangial com depósitos de IgA Vasculite da crioglobulinemia Comum ocorrência de glomerulonefrite membranoproliferativa Angeíte Cutânea Leucocitoclástica Envolvimento renal muito raro Tabela 11.15 (*) granulomatose com poliangeíte. (**) granulomatose com eosinofilia.
Patogênese O mecanismo mais frequentemente envolvido na injúria vascular renal é o do processo inflamatório mediado por anticorpos; a imunopatogênese das vasculites, entretanto, ainda não é bem conhecida.
A via final comum da inflamação inclui o recrutamento de neutrófilos e macrófagos na parede vascular, à qual essas células aderem e na qual penetram e liberam os radicais livres de oxigênio e as enzimas proteolíticas, tais como: elastase, catepsinas, proteínase-3 (PR3) e mieloperoxidase (MPO). Vários mecanismos imunológicos têm sido propostos para explicar a reação inflamatória vascular: 1) deposição de imunocomplexos circulantes; 2) formação in situ de imunocomplexos; 3) interação de anticorpos com antígenos do endotélio; 4) ativação de neutrófilos mediada pelo ANCA.
Patologia O aspecto histológico dominante no parênquima renal de pacientes com vasculites é o da glomerulonefrite necrotizante focal e segmentar pauci-imune sem depósitos de imunoagregados ou evidências de proliferação celular intraglomerular.
Em 80% dos casos ocorre a formação de crescentes epiteliais agudos ou em vários estágios de evolução. Em geral, há boa correlação entre a creatinina sérica inicial e o percentual de glomérulos comprometidos com os crescentes. Nas doenças por imunocomplexos, o aspecto histológico inclui a proliferação mesangial, o infiltrado celular à custa de neutrófilos e monócitos e a típica imunofluorescência nas diferentes entidades: o predomínio de IgA na púrpura de Henoch-Schönlein, os depósitos maciços de agregados de IgM na crioglobulinemia e a fluorescência rica com todos os isótipos de imunoglobulinas e componentes do complemento no lúpus eritematoso sistêmico. Na granulomatose de Wegener pode ser encontrada ocasionalmente formação de granuloma periglomerular. Infiltrado intersticial é achado frequente na vasculite renal e geralmente acompanha a nefrite crescêntica grave. Granulomas necrotizantes intersticiais, com células gigantes multinucleadas, raramente são observadas na granulomatose de Wegener. O envolvimento vascular extraglomerular é pouco frequente: em apenas 30 a 50% das biópsias as arteríolas podem estar envolvidas pela vasculite. Este fato provavelmente decorre de um erro de amostragem da biópsia renal, uma vez que vasculite arteriolar pode ser encontrada em praticamente todos os casos que vão para a necrópsia. A lesão vascular renal predominante é a da inflamação dos pequenos vasos com infiltrado perivascular à custa de neutrófilos, linfócitos e monócitos.
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164 Nefrologia Ocorre também necrose fibrinoide da parede e ruptura das lâminas internas e externas, com exsudação de proteínas no interior da parede vascular e no tecido perivascular. Alguns pacientes com vasculites ANCA-positivas, especialmente granulomatose de Wegener, apresentam lesões necrotizantes segmentares nos capilares peritubulares e nos vasos retos da medula renal. Granuloma de células gigantes e monócitos também podem ser observados em situação perivascular.
Tratamento A sobrevida média dos pacientes com vasculite necrotizante, antes do advento da terapêutica imunossupressora, era de no máximo seis meses. Atualmente, várias séries da literatura têm apontado para sobrevida de até 70% em cinco anos, com o uso intensivo de corticosteroides e ciclofosfamida. A corticoterapia isolada não previne as recidivas, que frequentemente ocorrem nas vasculites necrotizantes, especialmente no que se refere à granulomatose de Wegener. O tratamento das vasculites renais inclui duas importantes fases: a da indução e a da manutenção terapêutica a longo prazo. Nas fases de indução, a droga de escolha é a metil-prednisolona, administrada sob a forma de pulsos intravenosos (1 g por três dias consecutivos), seguida de prednisona por via oral na dose de 0,5-1 mg/kg/dia. Ciclofosfamida deve ser acrescentada a este esquema, preferencialmente por via oral, na dose de 1 a 3 mg/kg/dia, dependendo da função renal e da contagem de leucócitos. Em casos de vasculite extrarrenal grave, ou mesmo na perda rápida da função renal até o nível dialítico, tem sido proposto o uso de plasmaférese intensiva, com sete a dez trocas diárias de quatro litros de plasma e substituição por albumina. Este método envolve alto custo e não está isento de complicações de ordem infecciosa. Após a fase da indução terapêutica da doença aguda, que dura 8-12 semanas, inicia-se a fase do tratamento de manutenção (12 a 24 meses) com ciclofosfamida oral, 1 a 2 mg/kg/dia, acompanhada de prednisona, 10 a 20 mg/dia. Uma forma alternativa de tratamento na fase de manutenção é o uso da ciclofosfamida intravenosa sob forma de pulsos mensais na dose de 0,75-1 g/ m2 de superfície corporal, por um período variável, de 6 a 12 meses. Azatioprina na dose de 2 mg/kg/dia também tem sido proposta como droga eficaz e menos tóxica que os agentes alquilantes na fase de manutenção, associada a doses baixas de prednisona. Novas modalidades de tratamento das vasculites renais têm sido recentemente sugeridas, tais como gamaglobulina endovenosa em altas doses e uso de anticorpos monoclonais. O real benefício desses proce-
dimentos na doença renal grave ainda não foi demonstrado. Alguns pacientes com granulomatose de Wegener, tratados com sulfatrimetoprim, têm menor índice de recidivas da doença, provavelmente pelo efeito profilático desta associação no controle das infecções do trato respiratório, que podem desencadear a atividade das vasculites necrotizantes. Na avaliação da resposta terapêutica a longo prazo, devem ser cuidadosamente pesquisados os sinais e sintomas clínicos da atividade sistêmica e renal. Dentre os testes de laboratório usuais, a proteína C reativa, a velocidade de hemossedimentação, o sedimento urinário, a proteinúria quantitativa e a creatinina sérica devem ser habitualmente solicitados no seguimento. Na granulomatose de Wegener, a negativação do ANCA tem boa correlação com as fases inativas da doença, se bem que ANCA positivo pode ocorrer em até 25% dos pacientes que estão evoluindo assintomáticos. Nos pacientes que sobrevivem, a
recuperação da função renal pode ocorrer após certo período de tratamento dialítico, que varia de quatro até doze meses. Tão logo a função renal se recupere, é comum a ocorrência de proteinúria maciça e síndrome nefrótica, que a seguir remite lentamente, com o passar do tempo. As recidivas nas vasculites associadas ao ANCA são relativamente frequentes e estão diretamente relacionadas com a menor intensidade e a menor duração do tratamento imunossupressor na fase de manutenção. A histologia renal mais frequente nas vasculites sistêmicas é a glomerulonefrite necrotizante segmentar focal paci-imune, com formação em crescentes. As vasculites associadas ao ANCA são a GW (C-ANCA), a poliangeíte microscópica e a síndrome de Churg-Strauss (P-ANCA).
Síndrome de Goodpasture (SG) A glomerulonefrite antimembrana basal glomerular (anti-MBG), embora rara, é importante cau-
sa de uma forma grave de nefropatia que se manifesta, com alto índice de morbidade e mortalidade. Apresenta-se, comumente, como síndrome de Goodpasture (GP), caracterizada por um quadro de insuficiência renal com hemorragia pulmonar. Em outras situações, ainda que a lesão renal seja do tipo rapidamente progressiva (GNRP), com crescentes epiteliais à biópsia, não há comprometimento pulmonar. Formas leves de hematúria microscópica, sem manifestações clínicas, são raramente vistas. A síndrome de Goodpasture acomete indivíduos em qual-
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165 11 O rim nas doenças sistêmicas quer idade, com dois picos distintos de prevalência, na segunda e na quinta décadas de vida. Esta síndrome predomina em jovens do sexo masculino, enquanto em mulheres acima de 50 anos a forma GNRP, sem acometimento pulmonar, é mais frequente. SG: glomerulonefrite rapidamente progressiva com evolução para deterioração rápida da função renal.
Patogênese O fator que desencadeia a formação do anticorpo não é conhecido (anti-MBG). O primeiro paciente descrito por Goodpasture era portador de influenza, mas posteriormente essa associação não foi verificada. A doença ocorre, ocasionalmente, em pintores e em pessoas que têm contato com poluentes orgânicos. Os indivíduos HLA DR2 são mais suscetíveis a desenvolver esta doença, porém não existe uma nítida relação com sua ocorrência em grupos familiares.
Quadro clínico Exceto quando há hemorragia pulmonar, sugerindo a síndrome de Goodpasture, o quadro clínico difere de outras formas de GNRP. A oligúria é quase uma constante, com a insuficiência renal instalando-se em poucos dias, com 75% dos pacientes vindo a necessitar de diálise. A anemia do tipo ferropriva é muito comum, provavelmente por causa do sangramento intra-alveolar. O fumo e inalantes hidrocarbonados podem precipitar a hemorragia pulmonar. A queda de função renal habitualmente acompanha esses fenômenos hemorrágicos. A hematúria microscópica, com dimorfismo eritrocitário, é a alteração mais frequente, podendo, raramente, ser a única manifestação da doença. A proteinúria é discreta, sendo incomuns a síndrome nefrótica e a hipertensão. Alguns pacientes com envolvimento pulmonar exclusivo foram descritos, exigindo um diagnóstico diferencial com a hemossiderose pulmonar idiopática. Outras glomerulonefrites, acompanhando doenças sistêmicas, podem cursar com hemorragia pulmonar. Entre elas, o lúpus eritematoso sistêmico (LES) e as vasculites (granulomatose de Wegener, púrpura de Henoch-Schönlein). O diagnóstico diferencial da glomerulonefrite antimembrana basal glomerular (GN anti-MBG), com as vasculites, compreende a detecção de anticorpo antimembrana basal no soro de pacientes com GN anti-MBG e do anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) em pacientes com granulomatose de Wegener e poliangeíte microscópica (P-ANCA).
Alterações patológicas Do ponto de vista anatomopatológico, a imunofluorescência (IF) é o principal indicador do diagnóstico da GN anti-MBG pelo característico padrão linear do depósito de IgG ao longo da parede capilar glomerular. As imunoglobulinas IgA e IgM
são raramente vistas. O mesmo padrão linear de IgG pode ser encontrado na membrana basal tubular. Depósito de C3 ocorre em dois terços dos pacientes, sendo geralmente linear, às vezes descontínuos ou de aspecto granular. Depósitos de fibrina são vistos nos crescentes epiteliais e em alças capilares. Outras patologias podem apresentar o padrão linear à IF, como é o caso de depósito de albumina e IgG no diabetes mellitus e de IgG no LES. A microscopia ótica revela, geralmente, uma glomerulonefrite proliferativa com crescentes epiteliais, sendo habitual os glomérulos estarem no mesmo estágio de lesão. A presença de leucócitos e macrófagos pode ser abundante na luz capilar, e raramente há proliferação de células mesangiais. Edema e infiltrado inflamatório no interstício são vistos com frequência. A microscopia eletrônica mostra ausência de imunodepósitos, alargamento da membrana basal glomerular à custa de substância lucente na lâmina rara interna, presença de fibrina nos capilares e nos crescentes e ruptura de segmentos da membrana basal glomerular e da cápsula de Bowman.
Prognóstico e tratamento O tratamento da glomerulonefrite anti-MBG depende da precocidade do diagnóstico e da gravidade da lesão à biópsia renal. Os casos leves, sem déficit de função renal, podem prescindir de uma terapêutica específica. Diversos autores são unânimes em afirmar que pacientes anúricos com creatinina > 6 mg/dL dificilmente poderão se beneficiar da medicação imunossupressora, dado o caráter de rápida colagenização dos crescentes glomerulares. A plasmaférese é a terapêutica de escolha, especialmente quando ocorrer hemorragia alveolar, e tem a finalidade de remover o autoanticorpo circulante. A troca de plasma diária (4 L/dia) deve ser mantida por um período mínimo de dez dias. Geralmente, em oito semanas de tratamento, o anticorpo torna-se indetectável. A prednisona, como anti-inflamatório, e a ciclofosfamida (2 mg/kg/dia), que tem o efeito de inibir a síntese do anticorpo, devem ser associadas, a fim de se manter a remissão. Na fase inicial do tratamento, poderá ser utilizada a metilprednisolona (MP) endovenosa na dose de 15 a 20 mg/kg/dia, em três dias consecuti-
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166 Nefrologia vos. Após a terceira dose, a corticoterapia deve ser mantida por via oral, com dose inicial de 1 mg/kg/ dia e redução de acordo com a resposta terapêutica.
A hemorragia pulmonar é também um grande limitante da sobrevida. Quando isolada, poderá ser tratada com pulsos endovenosos de MP e plasmaférese. Não há contraindicação ao transplante para pacientes com síndrome de Goodpasture, que evoluem para insuficiência renal crônica terminal, devendo-se tomar o cuidado de não realizá-lo enquanto houver o anticorpo anti-MBG detectado na circulação.
Mieloma múltiplo e doença de cadeias leves Aproximadamente 65% dos pacientes com mieloma múltiplo excretam proteínas de Bence Jones, que são filtradas ao nível glomerular, relacionando-se com a alta incidência de comprometimento tubulointersticial. Proteinúria ocorre em 90% dos pacientes, e 55% têm insuficiência renal ao diagnóstico. A causa do envolvimento renal é multifatorial e inclui hipercalcemia (esta é a causa mais comum de IRA) e hipercalciúria, hiperuricemia, infecção do trato urinário, infiltração renal por células plasmáticas e o chamado rim do mieloma (principal causa de IRC). Em 15% dos casos, a porção variável da cadeia leve monoclonal, ou esta, mais a cadeia leve intacta, deposita-se no rim como substância amiloide, constituindo a amiloidose AL. Nesses depósitos, as proteínas adquirem conformação betapregueada, característica das fibrilas amiloides, com predomínio da cadeia leve lambda, sendo indistinguível da amiloidose primária e recebendo a denominação de proteína amiloide AL. O quadro clínico é de Síndrome Nefrótica. Outro tipo de comprometimento glomerular é a doença de deposição de cadeias leves, na qual o depósito glomerular é de cadeia leve intacta e, às vezes, de cadeia pesada. Esses depósitos são mais frequentemente de cadeias leves kapa e não assumem a estrutura fibrilar do amiloide AL, não apresentando, também, a birrefringência verde-maçã quando corado com vermelho-congo e visto por luz polarizada. Em uma das séries estudadas, a doença de deposição de cadeias leves ocorreu em 13% dos pacientes com mieloma múltiplo. As cadeias leves depositam-se na membrana basal glomerular e tubular, assim como no mesângio, resultando em lesão glomerular e tubular. A lesão glomerular mais característica é a glomeruloesclerose nodular, em 50% dos pacientes, muito semelhante a da nefropatia diabética.
Causas de insuficiência renal crônica no mieloma múltiplo (Atenção) Rim do mieloma: lesão renal pelas cadeias leves da imunoglobulina (mais comum) Nefrocalcinose – lesão renal por depósito de fosfato de cálcio Síndrome Nefrótica Amiloidose primária (AL)* Crioglobulinemia tipo I – menos comum Causas de insuficiência renal aguda no mieloma múltiplo Hipercalcemia: mais comum Desidratação – azotemia pré-renal Nefropatia por contraste iodado Tabela 11.16 (*) Principal causa de síndrome nefrótica no MM.
Macroglobulinemia de Waldenström Nesta condição clínica, a proteína monoclonal patogênica é a IgM, sendo o quadro clínico diferente do mieloma múltiplo e relacionado à hiperviscosidade sanguínea, com fadiga, perda de peso, sangramentos e distúrbios visuais, em indivíduos com idade média de 67 anos. Seu curso é lento e progres-
sivo, com anemia, hepatomegalia e linfoadenopatia.
O envolvimento renal é raro, sendo o achado mais frequente o depósito de material eosinofílico nas luzes capilares, que, à imunofluorescência, mostra-se ser a IgM. Alguns autores observam que 10 a
20% dos pacientes apresentam proteinúria de Bence Jones, sendo a quantidade excretada em geral menor do que 500 mg/dia. Há pacientes ocasionais com glomeruloesclerose nodular, semelhante a da doença de deposição de cadeias leves, além de glomerulonefrite mesangiocapilar e doença de lesões mínimas, que se acompanha de síndrome nefrótica.
Crioglobulinemia (tipo II ou mista essencial) O envolvimento renal na crioglobulinemia mista ocorre em 20 a 25% dos pacientes, em geral após vários anos do início das manifestações extrarrenais. O quadro clínico mais frequente é o de síndrome nefrótica e nefrítica (glomerulonefrite membranoproliferativa), com proteinúria moderada, hipertensão grave e disfunção renal. Em outras situações, entretanto, a evolução pode ser mais protraída, caracterizada por proteinúria persistente, hipertensão e hematúria. O diagnóstico laboratorial
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167 11 O rim nas doenças sistêmicas pode ser firmado pela demonstração de crioglobulinas circulantes do tipo IgM monoclonal-IgG policlonal, pela presença de fator reumatoide em altos títulos (IgM) e por hipocomplementemia, à custa de consumo dos componentes iniciais da via clássica (C4↓).
Amiloide A: proteína amiloide A (AA); a proteína precursora é a SAA. Acompanha as formas de amiloidose secundária (doenças infecciosas e inflamatórias crônicas, neoplasias, febre familiar do Mediterrâneo e síndrome de Muckle-Wells).
O vírus da hepatite C tem sido considerado o principal fator etiológico da vasculite associada à crioglobulinemia mista, antigamente rotulada de essencial. Em pacientes com a doença ativa, tem sido relatada positividade de até 80% nos testes de replicação para vírus C, sendo igualmente detectados antígenos e anticorpos específicos no crioprecipitado.
Outras proteínas: transtiretina, gelsolina, apolipoproteína, beta-2-microglobulina, calcitonina, polipeptídio amiloide da ilhota de Langerhans, fator atrial natriurético, proteína Scrapie, cistatina C. Todas essas proteínas acompanham diversas patologias de menor frequência.
As lesões glomerulares da crioglobulinemia podem ter vários padrões de glomerulonefrites: aguda e exsudativa, membranoproliferativa focal e segmentar, sendo frequente o encontro de depósitos eosinofílicos sob a forma de trombos na luz dos capilares glomerulares e que correspondem a crioglobulinas precipitadas. Tendo em vista a frequente
ocorrência de remissões espontâneas do envolvimento clínico renal, torna-se difícil avaliar a eficácia de esquemas terapêuticos a longo prazo. Corticosteroides, agentes alquilantes e plasmaférese têm sido indicados nos surtos de reagudização, com resultados aparentemente favoráveis no que se refere à reversão da insuficiência renal provocada pela deposição maciça de agregados de IgGIgM em capilares glomerulares.
Crioglobulinemia mista essencial tipo II tem como principal agente etiológico o vírus C de hepatite (75-80%).
Amiloidose Trata-se de uma doença caracterizada pela deposição de substância amorfa, com aspecto fibrilar betapregueado à microscopia eletrônica, corando-se com vermelho-congo e tioflavina-T, resultando cor verde-maçã sob luz polarizada com o primeiro corante e intensa fluorescência verde-amarelada com o segundo. A amiloidogênese é vista como um proces-
so em que determinado estímulo provoca alteração na concentração e/ou na estrutura de uma proteína sérica que, após clivagem proteolítica anômala, passa por uma sequência de polimerização e deposição tecidual. Dentre as proteínas envolvidas na gênese do depósito amiloide podemos incluir:
Cadeia leve de imunoglobulina: proteína amiloide AL: a proteína precursora é uma cadeia leve de imunoglobulina, geralmente do tipo lambda. Podem ocorrer discrasias de células plasmáticas (especialmente mieloma múltiplo e amiloidose sistêmica primária).
No rim, os depósitos geralmente se iniciam no mesângio, de forma segmentar e focal, com os seguintes padrões de deposição: nodular mesangial, mesangiocapilar, perimembranoso e hilar.
Amiloidose primária (AL) É assim considerada quando não se associa a outra doença sistêmica. A proteinúria está presente em 80% dos casos, em nível nefrótico em 30% destes. O tamanho dos rins geralmente apresenta-se aumentado.
O diagnóstico de amiloidose primária deve ser considerado em paciente com síndrome nefrótica ou insuficiência renal de causa não definida, na faixa etária acima dos quarenta anos, pesquisando-se a presença de proteína monoclonal em soro e urina por imunoeletroforese. Praticamente dois terços dos pacientes com amiloidose primária apresentam proteína monoclonal no soro, e em 20% dos casos se detectam proteínas de Bence Jones. Cadeias leves do tipo lambda (65%) são mais comuns que as do tipo kapa (35%), e o inverso ocorre no mieloma múltiplo. Os depósitos teciduais podem ser revelados por reatividade, com anticorpos anticadeia leve, sendo negativos quando se utiliza anticorpo antiproteína amiloide A (AA). Além do rim, há depósitos no coração, na língua, nos nervos periféricos, nos vasos sanguíneos e no trato digestivo. A doença que mais se associa à amiloidose primária é mieloma múltiplo.
Amiloidose secundária (AA) Geralmente está associada a estímulo inflamatório crônico, acompanhando doenças infecciosas, inflamatórias e neoplasias. O envolvimento renal sob a forma de síndrome nefrótica é a apresentação mais comum.
A proteína AA tem sido demonstrada como um polipeptídeo de 76 aminoácidos e peso molecular de 8.500 dáltons, que possui um componente sérico antigenicamente relacionado à proteína sérica amiloide
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168 Nefrologia A (SAA); esta se apresenta de forma solúvel, ligada à lipoproteína HDL 3, com peso molecular de 12.500 daltons, exibindo terminal NH2 homólogo à proteína AA. Esta proteína é sintetizada no fígado, elevando-se o seu nível cerca de mil vezes o valor basal em resposta a determinado estímulo inflamatório agudo ou necrose tecidual. A regulação da síntese de SAA é altamente complexa, estando envolvidos, sob certas circunstâncias, interleucina 6, interleucina 1, fator de necrose tumoral e corticosteroides em várias combinações. Na artrite reumatoide, níveis séricos de SAA estão igualmente aumentados em pacientes com e sem amiloidose, indicando que algum fator adicional necessita intervir para sua deposição. Uma possibilidade explicativa seria a diferença na degradação de SAA para AA. O tipo e o tamanho dos fragmentos podem determinar o potencial amiloidogênico e o local de deposição.
Tem-se sugerido que, neste grupo, podem ser consideradas duas patologias distintas: a glomerulonefrite fibrilar propriamente dita e a glomerulopatia imunotactoide. Na glomerulonefrite fibrilar (65% dos casos), a imunofluorescência em geral é positiva para IgG, C3 e cadeias leves. Os depósitos podem ser tão intensos, que chegam a simular um quadro de glomerulonefrite antimembrana basal glomerular. Em alguns casos, não se detectam imunoglobulinas nos depósitos, o que sugere um caráter heterogêneo para esta doença. Na glomerulopatia imunotactoide as fibrilas são ainda maiores (30 a 40 nm de diâmetro), com aspecto de microtúbulos dispostos de modo ordenado. Em algumas casuísticas, a glomerulopatia imunotactoide tem sido associada a patologias linfoproliferativas e/ ou a paraproteínas circulantes, porém os mecanismos envolvidos nessas associações são desconhecidos. Glomerulopatias Fibrilares
Amiloidose renal hereditária É uma doença rara, em que a deposição de amiloide é preferencial no rim. Os pacientes pare-
cem ter uma variante de cadeia semelhante a do fibrinogênio. Não se conhece o mecanismo pelo qual o depósito é preferencial em tecido renal. Há, ainda, uma outra forma de amiloidose renal hereditária, em que a proteína é uma variante da apolipoproteína A, a principal apolipoproteína da HDL. Nessa forma, o depósito é preferencialmente peritubular e intersticial, poupando-se os glomérulos, não havendo, habitualmente, proteinúria patológica.
Vermelho-Congo Positivo Amiloide
As glomerulonefrites fibrilares se caracterizam histologicamente pela deposição de fibrilas que não se coram, como o depósito amiloide (vermelho-congo negativas), essas lesões têm sido relatadas com frequência crescente nas biópsias renais, especialmente quando se realiza de rotina o estudo dos fragmentos por microscopia eletrônica, já que essas estruturas dificilmente são diagnosticadas apenas pela microscopia ótica. Nesse tipo de exame, os achados são inespecíficos e podem simular qualquer forma de glomerulopatia primária (proliferativa mesangial, nodular, membranoproliferativa ou membranosa). Os pacientes se apresentam com proteinúria geralmente em nível nefrótico, hematúria microscópica, hipertensão e insuficiência renal. A alteração típica desta entidade é vista à microscopia eletrônica, que mostra fibrilas no mesângio e na parede capilar glomerular, claramente distintas da amiloidose, uma vez que são maiores (20 a 40 nm de diâmetro) e não se coram com o vermelho-congo ou com a tioflavina-T.
Não amiloide
Derivado de imunoglobulinas Glomerulopatia imunotactoide (glomerulonefrite fibrilar)
Outros Diabetes mellitus nefropatia do colágeno, sindrome unha-patela (?)
Lúpus eritematoso sistêmico
Disproteinemias
Crioglobulinemia
Glomerulonefrites fibrilares
Vermelho-Congo Negativo
Mieloma múltiplo, LLC, Essencial
Gamopatia Monoclonal Benigna, mieloma múltiplo, LLC, doença da deposição de cadeias leves
Figura 11.3 Algoritmo para avaliação de pacientes com acúmulo anormal de estruturas fibrilares glomerulares.
Nefropatia da anemia falciforme Pacientes homozigotos para a anemia falciforme (SS) e, em menor grau, os portadores do traço falcêmico (AS) podem apresentar comprometimento renal como parte do espectro de manifestações associadas a essa condição. A doença falcêmica renal também pode acometer pacientes com hemoglobina S e uma outra hemoglobina anormal (duplo heterozigoto). Os mais encontrados são pacientes com doença SC, cujas hemácias possuem 50% de hemoglobina S. Em pacientes com
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169 11 O rim nas doenças sistêmicas doença SC, a tendência ao afoiçamento e à gravidade do acometimento renal é intermediária entre os pacientes homozigotos (SS) e heterozigotos (AS).
Etiopatogenia Tal como ocorre em outros territórios vasculares, a morbidade da nefropatia da anemia falciforme decorre de fenômenos trombóticos na microcirculação. A região mais acometida é a medula renal, onde a tendência trombótica é agravada pela baixa tensão de oxigênio e pelo aumento da osmolaridade. Nos vasa recta medulares, a desidratação das hemácias provoca aumento na concentração relativa da hemoglobina S, facilita o afoiçamento, obstrui a microcirculação e acaba por resultar em trombose.
A doença microvascular renal da anemia falciforme pode causar esclerose ou necrose papilar. Pacientes homozigotos apresentam complicações a partir da segunda década de vida. Nos heterozigotos (SC e AS), as anormalidades desenvolvem-se mais tardiamente. Como esperado, estudos microrradiográficos confirmam que os indivíduos homozigotos (SS) apresentam maior comprometimento da vasculatura renal do que os portadores da doença SC e do traço falcêmico (AS). Os vasa recta radiados que convergem para a medula renal são praticamente ausentes nos doentes com anemia falciforme (SS) e bastante pobres nos pacientes heterozigotos (SC e AS).
Manifestações clínicas A trombose dos vasa recta provoca alterações na função tubular, notadamente defeitos de concentração da urina (isostenúria) e acidose renal do tipo distal. Graus variáveis de comprometimento da capaci-
dade de concentração urinária são detectados virtualmente em todos os portadores da hemoglobina S.
A maioria dos pacientes apresenta apenas poliúria e nictúria, mas alguns homozigotos chegam a desenvolver diabetes insipidus nefrogênico. Curiosamente, na anemia falciforme, a função do túbulo proximal é supranormal. Esses indivíduos apresentam aumento na absorção de fosfato (provocando hiperfosfatemia leve) e aumento na secreção de creatinina (elevando a concentração da creatinina urinária e alterando o cálculo da sua taxa de depuração). A causa do fenômeno é desconhecida. A alteração clínica mais comum em pacientes com hemoglobina S é a hematúria indolor, frequentemente macroscópica. Nem todos os pacientes apresentam necrose de papila. Aparentemente, a intensa congestão nos capilares peritubulares pode levar ao extravasamento de sangue para os túbulos. Quando ocorre, a necrose da papila costu-
ma ser unilateral e assintomática. Cerca de um terço dos pacientes com doença falcêmica desenvolve proteinúria na faixa de 1 a 2 g/dia. A proteinúria em níveis nefróticos (maior que 3 g/dia) é mais rara. O substrato patológico em muitos desses casos é a glomeruloesclerose segmentar focal, possivelmente associada ao hiperfluxo glomerular.
Uma minoria apresenta glomerulopatia com depósitos imunes granulares. As lesões histopatológicas mais frequentes são a nefropatia membranosa e a glomerulonefrite membranoproliferativa. Esta última parece ser uma glomerulonefrite mediada por imunocomplexos. Os antígenos implicados seriam proteínas autólogas, oriundas do epitélio tubular renal, possivelmente liberadas em consequência da isquemia medular que caracteriza a doença. Um relato recente descreve a ocorrência de glomerulopatia imunotactoide. Mesmo após a necrose de uma ou mais papilas renais, a filtração glomerular tende a permanecer na faixa normal. No entanto, com o passar dos anos, pode ocorrer progressão da doença renal. Além da doença da microcirculação medular, a deterioração progressiva pode ser causada pela superposição da glomeruloesclerose por hiperfluxo ou por uma glomerulopatia de origem imunológica. O carcinoma medular renal, neoplasia maligna raríssima, é quase exclusivo de pacientes SS ou AS. Glomeruloesclerose segmentar focal é a mais frequente síndrome nefrótica em pacientes com anemia falciforme. Carcinoma medular renal é uma condição muito rara, mas que, quando diagnosticada, é quase que exclusivamente documentada em pacientes falcêmicos.
Tratamento Pacientes com hematúria devem ser tratados inicialmente com repouso, transfusões para diminuir a concentração de hemoglobina S, hemodiluição com soluções hipotônicas e alcalinização urinária. A urina contém uroquinase, uma enzima fibrinolítica que dissolve os coágulos urinários e perpetua o sangramento. No passado, os casos refratários acabavam resultando em nefrectomia. Atualmente empregam-se substâncias antifibrinolíticas, como o ácido épsilon-aminocaproico (EACA). Por ser excretado em altas concentrações na urina, o EACA antagoniza a ação fibrinolítica da uroquinase. Raramente pacientes que recebem EACA podem desenvolver tromboses sistêmicas. Uma complicação comum é a obstrução do trato urinário por coágulos. Não existe tratamento efetivo para as glomerulopatias por imunocomplexo. Como os bloqueadores da enzima conversora da angiotensina podem ajudar
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170 Nefrologia a controlar a hiperfiltração glomerular, é possível que eles sejam úteis na prevenção da progressão para a insuficiência renal. A insuficiência renal terminal ocorre em cerca de 5% dos falcêmicos, sendo uma importante causa de morte em pacientes com doença de longa duração. O prognóstico de pacientes falcêmicos tra-
tados com diálise aparenta ser semelhante ao de pacientes não diabéticos. No curto prazo, a sobrevida após transplante é semelhante a de outros pacientes com insuficiência renal, mas decai ao longo dos anos. Apesar disso, o transplante propicia resultados superiores ao tratamento com diálise.
Neoplasias A glomerulonefrite, associada ou não à síndrome nefrótica, ocorre em alguns pacientes com doenças malignas, especialmente tumores sólidos dos tratos respiratório, gastrointestinal e urogenital e, também, em algumas doenças linfoproliferativas. As neoplasias que com frequência se acompanham de glomerulopatias, sobretudo a glomerulonefrite membranosa, são os carcinomas broncogênicos, de cólon e reto, rim, mama e estômago. De modo geral, a síndrome nefrótica se manifesta ao mesmo tempo da instalação da neoplasia, mas, em algumas ocasiões, ela ocorre precedendo o diagnóstico clínico do tumor, especialmente nos linfomas. A lesão glomerular subjacente é a glomerulonefrite membranosa, em mais de 60% dos pacientes com tumores sólidos. Em contrapartida, a lesão renal mais comumente associada à doença de Hodgkin é a nefropatia de lesões mínimas, sendo a glomerulonefrite membranoproliferativa a forma mais encontrada na leucemia linfocítica crônica. Glomerulopatia membranosa é a lesão glomerular dos carcinomas ocultos. Glomerulopatia de lesão mínima é a lesão glomerular dos linfomas. Glomerulopatia membranoproliferativa é a lesão glomerular da LLC.
O tratamento das glomerulopatias associadas às neoplasias depende do tipo e do estadiamento da condição maligna. A remissão da proteinúria pode ocorrer em pacientes com neoplasias sólidas tratadas cirurgicamente, porém não se pode afastar nestes casos uma remissão espontânea da própria doença glomerular, fato bastante conhecido na evolução da glomerulonefrite membranosa. Em relação à doença de Hodgkin com síndrome nefrótica, o tratamento radioterápico e/ ou quimioterápico guarda uma boa correlação de ordem temporal com a remissão da proteinúria. A recidiva da síndrome nefrótica, nestes casos, pode ser entendida como um parâmetro precoce de recidiva da neoplasia.
Glomerulopatias em doenças hepáticas Infecção por vírus C Quando são considerados os grupos de risco para infecção por vírus C (homossexuais, 4 a 8%, e consumidores de droga injetável, 60%), também são estes os grupos com maior prevalência da doença glomerular. Essa pode ocorrer mesmo sem doença hepática evidente, assim como algumas casuísticas têm mostrado: em pacientes com glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP) e vírus C positivo, apenas 20% apresentam manifestações clínicas de hepatite, mas 60 a 70% mostram transaminases elevadas. Na história natural da infecção pelos vírus C, após dez a quinze anos de replicação viral persistente, mais de 50% dos indivíduos infectados evoluem com quadro de hepatite crônica ativa e, ocasionalmente, podem instalar-se manifestações de autoimunidade e de outras formas de hipersensibilidade humoral, tais como artrite, síndrome sicca e crioglobulinemia mista tipo II, que se manifesta por vasculite cutânea e glomerulonefrite membranoproliferativa. O achado de crioglobulinemia também traz repercussões laboratoriais importantes, tais como a presença de fator reumatoide e hipocomplementemia à custa de consumo de fatores da via clássica (particularmente C4). As manifestações renais predominantes são de síndrome nefrótica com insuficiência renal leve a moderada. O achado histológico mais frequente é da glomerulonefrite membranoproliferativa tipo I, que se distingue da forma idiopática pela representatividade maior de imunoglobulinas IgG, IgM e C3. Quando ocorre crioglobulinemia, a forma histológica pode ser a da GNMP crioglobulinêmica, que se caracteriza pela presença de pseudotrombos hialinos nos capilares glomerulares e pela infiltração de monócitos. Outras formas menos frequentes de nefropatia por vírus C são a glomerulonefrite membranosa e a glomerulonefrite proliferativa mesangial. A patogênese da lesão é explicada pela deposição renal de imunocomplexos, contendo antígeno HCV-anticorpo anti-HCV e fator reumatoide, nos casos de crioglobulinemia. É possível, portanto, nesta última situação, a detecção de HCV-RNA no crioprecipitado. O tratamento proposto é ainda muito discutível, porque seus resultados não são constantes. Esquemas com corticosteroides e/ou imunossupressores não são eficazes na doença renal e podem, por outro lado, agravar a viremia e a hepatopatia. O esquema terapêutico para a glomerulopatia associada ao HCV tem por objetivo negativar a carga viral, para reduzir a produção de crioglobulinas e, portanto, reduzir a formação dos crioprecipitados nefritogênicos.
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171 11 O rim nas doenças sistêmicas Para tanto, ultimamente tem sido utilizada a associação de interferon-alfa com ribavirina, que resulta em negativação da carga viral em 60 a 70% dos pacientes infectados pelo HCV. As maiores limitações desta associação se referem aos seus efeitos colaterais e à elevada taxa de recidiva quando as drogas são suspensas.
Infecção por vírus B A glomerulonefrite associada ao vírus da hepatite B é uma entidade bem reconhecida. Em áreas endêmicas, 20 a 50% das crianças com síndrome nefrótica mostram sorologia positiva para vírus B. Essa positividade é ainda maior, ao redor de 85%, quando são destacados os casos de glomerulonefrite membranosa (GNM) com comprovação histológica. De modo geral, a população pediátrica que apresenta esta lesão glomerular evolui de forma benigna, com remissão em 64% dos pacientes em quatro anos e mais de 80% em dez anos. Tal remissão ocorre habitualmente no prazo de seis meses do clareamento do HBeAg (viragem espontânea). Esta constatação sugere uma forte associação causal entre o vírus e a doença renal mediada por imunocomplexos, já que uma vez depurado o agente viral, a doença renal pode remitir. Em adultos, a evolução costuma ser arrastada, não havendo dados precisos sobre remissão, mesmo após a viragem sorológica. Manifestações extra-hepáticas e extrarrenais, como a artrite e a crioglobulinemia, são descritas, porém pouco frequentes. A doença hepática, com ou sem hipertensão portal, habitualmente é sintomática, porém lesões glomerulares já foram descritas sem nenhuma evidência de lesão hepatocelular.
A manifestação clínica da nefropatia do vírus B é a proteinúria, com ou sem síndrome nefrótica. Várias séries da literatura associam a hepatite crônica ativa do vírus B com a glomerulonefrite membranosa e, raramente, com a forma membranoproliferativa. Os achados de imunofluorescência mostram presença de IgG, IgM, C3 e, ocasionalmente, IgA. O tratamento da nefropatia por vírus B é controverso. Em crianças, como o índice de remissão é alto, o tratamento é sintomático. Nos adultos, os corticoides e imunossupressores estariam contraindicados, pela possibilidade de predisporem a maior replicação viral. Aventou-se recentemente o uso de interferon-alfa e/ ou lamivudina, porém os dados disponíveis não são consistentes. Alguns casos esporádicos tratados com esquemas antivirais apontam para possível melhora da nefropatia, porém não se pode descartar, nesta situação, a possibilidade de ocorrerem remissões espontâneas da proteinúria.
Cirrose hepática O depósito glomerular de IgA é um achado comum em cirrose hepática pós-alcoólica e ocorre em até um terço dos pacientes. Aventa-se que a predisposição para a deposição de IgA renal seja secundária a uma remoção deficiente dos complexos contendo IgA pelas células de Kupffer hepáticas.
A observação de que a IgA pode estar também depositada na pele e nos sinusoides hepáticos é compatível com esta hipótese. Apesar da alta frequência dos depósitos de IgA glomerular, a maioria dos adultos não demonstra sinais de doença glomerular, sendo a suspeita clínica feita pelo achado de hematúria e proteinúria discreta. Não há síndrome nefrótica e nem hematúria macroscópica. O acometimento histológico mais frequente ocorre sob forma de lesão proliferativa mesangial, com depósitos de IgA. A dissociação entre os achados e as manifestações clínicas pode estar relacionada à falta de depósito concomitante de IgG, minimizando, portanto, a ativação do complemento e a inflamação local. Outro acometimento renal na cirrose alcoólica, menos frequente, é o da glomeruloesclerose cirrótica, em que ocorre uma lesão esclerótica difusa glomerular, obrigando a um diagnóstico diferencial com outras formas de glomeruloesclerose (diabete, amiloide, nefropatia da cadeia leve etc.). Esta lesão glomerular é geralmente silenciosa, manifestando-se apenas por proteinúria leve. A imunofluorescência frequentemente revela IgA em mesângio, além de IgM e IgG. Outras glomerulopatias podem estar incidentalmente presentes em pacientes com cirrose alcoólica. Já foram descritas glomerulonefrite membranoproliferativa, glomerulonefrite membranosa e glomerulonefrites focais. Casuísticas em crianças mostram uma associação entre glomerulopatias e doença hepática avançada secundária à deficiência de α-1-antitripsina ou atresia biliar. Pacientes acometidos por cirroses de outras etiologias, como as pós-hepatites, poderão desenvolver glomerulopatias secundárias aos vírus B e C, como já foi abordado. Na apostila de Hepatologia descrevemos as manifestações extra-hepáticas dos vírus das hepatites, valorize esse tópico.
Doenças infecciosas Glomerulonefrite da endocardite bacteriana A endocardite bacteriana pode comprometer o rim de várias maneiras: 1) Ocorrendo septicemia, pode instalar-se insuficiência renal aguda, abscessos ou infartos renais por embolia séptica;
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172 Nefrologia 2) Pode ocorrer glomerulonefrite por deposição
de vários imunocomplexos; 3) Pode ocorrer nefrite intersticial aguda por causa da ação de medicamentos.
A glomerulonefrite da endocardite, bem como a nefrite do shunt atrioventricular, segue o padrão das síndromes nefríticas pós-infecciosas, cujo quadro clínico é caracterizado por hematúria microscópica, edema, grau variável de hipertensão arterial e de redução da função renal, tendo um curso evolutivo para a cura, na maioria dos casos. O exame de urina mostra hematúria com hemácias dismórficas e cilindros hemáticos, leucocitúria e proteinúria. A síndrome nefrótica não é comum na endocardite e ocorre em até 30% dos pacientes com nefrite do shunt. A natureza imunológica é bem determinada: em 90% dos pacientes encontram-se imunocomplexos circulantes, a crioglobulinemia é achado frequente e ocorre hipocomplementemia de CH50, C3 e C4, indicando ativação pela via clássica. Os principais agentes infecciosos são o Staphylococcus viridans, na endocardite subaguda; o Staphylococcus aureus, na endocardite aguda; o Staphylococcus epidermidis, na nefrite do shunt. A prevalência da glomerulonefrite por endocardite bacteriana vem diminuindo em função do uso adequado e precoce de antibióticos. A lesão histológica habitual é do padrão proliferativo, que pode ser focal ou difuso. Este último
está comumente associado à etiologia estafilocócica. Quando presentes, os crescentes não atingem mais que 50% dos glomérulos. A imunofluorescência é sempre difusa, positiva para a IgG, IgM e C3. A microscopia eletrônica revela a presença dos imunodepósitos subepiteliais (humps) e menores depósitos em posição subendotelial ou mesangial. Não há necessidade de tratamento específico para a glomerulonefrite da endocardite. A maioria dos casos reverte com o tratamento antimicrobiano, ocorrendo, entretanto, perda da função renal de modo irreversível, se a terapêutica antibiótica for instituída muito tardiamente, ou se próteses valvares infectadas não forem prontamente removidas.
Nefropatia do HIV A nefrotoxicidade da terapêutica e as alterações hemodinâmicas e eletrolíticas, muito frequentes nos pacientes com AIDS, foram responsáveis pelas primeiras descrições de insuficiência renal aguda que, com frequência, era irreversível. A nefropatia associada ao vírus HIV é a forma mais comum de doença renal crônica em pacientes HIV-positivos e vem se constituindo em um grande problema epidemiológico. Este tipo de lesão glome-
rular se refere a uma forma especial de glomeruloesclerose segmentar e focal, geralmente associada à síndrome nefrótica e perda progressiva da função renal (forma colapsante). Glomerulonefrites proliferativas por imunocomplexos também podem estar asssociadas ao HIV. Glomeruloesclerose segmentar focal colapsante (forma maligna de evolução) é a síndrome nefrótica mais comum em pacientes com AIDS.
Alterações patológicas As lesões renais associadas ao HIV habitualmente podem ser descritas dentro dos seguintes tipos: 1) Glomeruloesclerose focal, forma colapsante; 2) Glomerulonefrites proliferativas, mediadas
por imunocomplexos; 3) Nefropatia tubulointersticial, mais frequentemente relacionada ao envolvimento glomerular. O termo nefropatia associada ao HIV é reservado para a típica forma da glomeruloesclerose focal colapsante, com oclusão da luz capilar, segmentar ou global, cujos achados mais comuns são os seguintes (Atenção!): 1) Acentuada hipertrofia das células epiteliais e endoteliais do glomérulo, com formação de coroa podocitária; 2) Dilatação microcística dos túbulos, com presença de cilindros proteicos, degeneração celular e necrose; 3) Alterações tubulointersticiais severas, sem relação com o grau de glomeruloesclerose, com infiltrado de linfócitos CD8, monócitos e linfócitos B. À imunofluorescência, observa-se deposição segmentar de IgM e C3 em mesângio e alça capilar. Imunoglobulinas e albumina podem ser vistas nos cilindros, no espaço de Bowman e nos vacúolos citoplasmáticos das células epiteliais.
A microscopia eletrônica traz, como colaboração ao diagnóstico, a presença de inclusões tubulorreticulares no interior de células endoteliais, que, embora não específicas, são muito sugestivas de infecção viral. Depósitos eletrondensos são infrequentes e, quando presentes, são pequenos e esparsos. Notam-se os vacúolos citoplasmáticos nas células epiteliais com numerosos lisossomos, fusão de pedicelas e espessamento de membrana basal glomerular à custa de neoformação de membrana, ocupando o espaço subepitelial. Nos túbulos, os precipitados são pouco densos, homogêneos, finamente granulares, contrastando com os verdadeiros cilindros, que contêm a proteína de Tamm-Horsfall.
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173 11 O rim nas doenças sistêmicas As alterações anatomopatológicas descritas, quando isoladas, têm pouco significado diagnóstico, mas a combinação de glomeruloesclerose segmentar e focal colapsante, com alterações importantes nas células epiteliais glomerulares, dilatação tubular, infiltrado intersticial com fibrose e presença de estruturas tubulorreticulares intracitoplasmáticas, sugerem fortemente o diagnóstico da nefropatia do HIV. A ocorrência de glomerulonefrites por imunocomplexos, durante a infecção por HIV, é variável, de acordo com as regiões e a população acometida, podendo ocorrer em até 35% dos pacientes com HIV positivo e doença renal. Dentre essas lesões devem ser destacadas a glomerulonefrite membranoproliferativa, a glomerulonefrite membranosa e a nefropatia da IgA. Não existe nenhuma comprovação que vincule diretamente esses tipos histológicos à infecção pelo HIV. Deve ser destacado que pacientes com infecção por HIV são muito suscetíveis a infecções virais, bacterianas e parasitárias e que poderiam desencadear reações de hipersensibilidade com formação de imunocomplexos solúveis e consequente fixação nos glomérulos.
Patogênese A lesão histológica renal mais frequente na infecção pelo HIV é a glomeruloesclerose segmentar e focal. Como se sabe, esta lesão ocorre associada a muitas outras situações clínicas e em nenhuma delas a etiopatogenia está esclarecida. Com o grande acúmulo de conhecimentos adquiridos sobre os efeitos das infecções virais nos tecidos, podemos admitir atualmente que a nefropatia do HIV decorre de uma desregulação na interação entre vírus e hospedeiro, com algumas consequências já identificadas: 1) O HIV pode infectar diretamente as células mesangiais e epiteliais, exercendo efeito citopático e estimulando a expressão de citocinas e fatores de crescimento, propiciando a produção de matriz e a esclerose mesangial; 2) A infecção pelo HIV pode alterar a regulação do ciclo celular com intensificação da apoptose, desdiferenciação e alterações da polaridade celular, o que poderia explicar a dilatação tubular microcística característica desta nefropatia.
Quadro clínico O quadro clínico do paciente com nefropatia do HIV (HIVAN) é semelhante, seja ele portador da forma clássica de glomeruloesclerose ou das formas proliferativas. O paciente apresenta-se, comumente, já com déficit da função renal e com síndrome nefrótica instalada. O edema pode ser insidioso ou abrupto, mas sua presença não é constante. Casos com hematúria microscópica e proteinúria não nefrótica, com
ou sem insuficiência renal, são ocasionais, em geral, não há hipertensão arterial, ainda que a progressão para uremia ocorra inevitavelmente. Os níveis séricos do complemento e de suas frações estão normais, e as imunoglobulinas podem estar aumentadas, com padrão policlonal. A HIVAN é
normalmente uma complicação tardia da infecção pelo HIV, sendo isso evidenciado pela diminuição dos linfócitos CD4 circulantes ou por uma história de infecção oportunista prévia. A imagem por ultrassonografia não é específica, mostrando rins hiperecogênicos no estado nefrótico. As dimensões renais podem permanecer aumentadas, mesmo na fase de insuficiência renal crônica.
Tratamento O tratamento da nefropatia associada ao HIV está exclusivamente baseado na terapêutica múltipla antirretroviral, que teve grandes progressos na última década. No passado, foram relatadas algumas tentativas de remissão da proteinúria com corticosteroides, inibidores da enzima conversora de angiotensina, ciclosporina etc., porém todas falharam e não mudaram a sobrevida renal. A negativação da carga viral, propiciada pelas drogas combinadas, mudou inteiramente a história natural da HIVAN, a ponto de ser muito raro nos dias atuais o encontro de pacientes com proteinúrias elevadíssimas e rápida evolução para a insuficiência renal. Pacientes com nefropatia tratados tardiamente, em geral, têm remissão parcial da proteinúria e, devido às lesões esclerosantes mesangiais já instaladas, podem evoluir de modo lento para a insuficiência renal crônica, em tudo semelhante a outros pacientes com esta síndrome. Nestas circunstâncias, será necessário o tratamento de suporte e, eventualmente, o posterior encaminhamento para a terapêutica dialítica e o transplante renal.
Nefropatia da Esquistossomose Dentre as cepas de esquistossomo patogênicas para o homem, três delas têm sido mais frequentemente referidas, em diferentes regiões: o Schistosoma japonicum, na Ásia, que pode causar doença gastrointestinal e acometer o sistema nervoso central; o Schistosoma haematobium, na África, que afeta o trato urinário inferior, e o Schistosoma mansoni, na América do Sul. A região Nordeste do Brasil é zona endêmica de esquistossomose mansônica, mas focos vêm sendo descritos em outras regiões do país. Os primeiros casos de nefropatia secundária à esquistossomose foram referidos no Brasil, na década de 1960, por pesquisadores da Bahia, que descreveram as manifestações clínicas, laboratoriais e histológicas.
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174 Nefrologia Alterações patológicas e patogênese Cinco tipos de lesão glomerular são mais comumente descritos na nefropatia da esquistossomose: Classe I: lesão glomerular incipiente: associada à hematúria microscópica, microalbuminúria e, eventualmente, proteinúria subnefrótica. Classe II: glomerulonefrite exsudativa: proteinúria franca e síndrome nefrótica. Este tipo de lesão é frequentemente associada à salmonelose septicêmica prolongada (esquistossomose com salmonelose). Classe III: glomerulonefrite membranoproliferativa tipo I: é a lesão mais frequente. Manifesta-se por síndrome nefrótica, hematúria microscópica, hipertensão arterial e lenta evolução para IRC. Classe IV: glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF): apresenta as mesmas manifestações clínicas e repercussão funcional observadas na classe III. Classe V: amiloidose secundária (AA): o quadro clínico é marcado por síndrome nefrótica, rins aumentados de tamanho e evolução inexorável para IRC. Tabela 11.17
À microscopia ótica, todas as lesões têm o mesmo padrão das formas idiopáticas. A GNMP é a lesão renal mais comumente descrita, sobretudo no estágio hepatoesplênico da doença. A glomerulonefrite mesangial é mais comum na fase hepatointestinal, podendo ser encontrada em indivíduos assintomáticos. A GESF é considerada por alguns autores como a segunda forma mais frequente da nefropatia esquistossomótica, tendo sido também descrita em modelos experimentais. A imunofluorescência (IF) revela, com frequência, depósitos de IgM e C3 no mesângio, nos três tipos de lesão glomerular anteriormente descritos, o que coincide com o padrão da forma idiopática da GESF, mas não coincide com o padrão das formas idiopáticas da glomerulonefrite mesangial e da GNMP, nas quais a IgG é a imunoglobulina mais frequentemente depositada. Nestas últimas, há também depósitos imunes em alça capilar. A IF pode ser utilizada para detectar a presença de antígeno esquistossomótico do verme adulto. A microscopia eletrônica revela proliferação mesangial e, de modo variável, fusão segmentar e difusa de pedicelos, expansão da matriz mesangial, duplo contorno da membrana basal glomerular, depósitos eletrondensos subendoteliais, mesangiais e, ocasionalmente, subepiteliais. Outras doenças infectoparasitárias e rim Mycobacterium leprae: a lesão histológica mais comum é a amiloidose; ocasionalmente tem sido observado quadro de síndrome nefrótica semelhante ao de glomerulonefrite pós-estreptocócica. Treponema pallidum: síndrome nefrótica pode ocorrer em 0,5% dos pacientes com sífilis secundária e em até 8% dos pacientes com sífilis congênita; as lesões mais descritas são de nefropatia membranosa ou várias formas de GN proliferativas. Plasmodium malariae: manifesta-se por síndrome nefrótica em crianças que residem em áreas endêmicas; lesões histológicas são heterogêneas, incluindo formas proliferativas ou membranoproliferativas. A proteinúria pode persistir, mesmo após a erradicação da parasitose. Outras: relatos isolados de glomerulopatias associadas a infecções bacterianas (Pneumococcus, Klebsiella, Staphylococcus), virais (citomegalovírus, varicela, sarampo) e parasitárias (filária, toxoplasma). Tabela 11.18
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175 11 O rim nas doenças sistêmicas
Figura 11.4 Microscopia óptica: o exame histológico mostra cortical renal com 20 glomérulos. Estes apresentam a estrutura dos tufos em grande parte substituída por substância eosinofílica, negativa à pesquisa de substância amiloide pela técnica do vermelho-congo. Alguns glomérulos têm o aspecto lobulado, com espessamento das alças capilares às custas de depósitos desta substância. O interstício está dissociado por fibrose que compromete cerca de 40% do compartimento. Nestas áreas, os túbulos estão atróficos. Foram representadas 3 artérias interlobulares e 9 arteríolas. Uma das artérias apresenta fibrose intimal. Imunofluorescência: fragmento de tecido renal representado pela cortical com 10 glomérulos. Imunofluorescência negativa. Microscopia eletrônica: o exame ultraestrutural mostra cortical renal com 2 glomérulos. Esses apresentam depósitos de substâncias elétrondensas com caracteres fibrilares, dispostas desordenadamente em meio à matriz mesangial. O processo obstrui as luzes de algumas alças capilares glomerulares. Diagnóstico final: glomerulonefrite fibrilar.
Figura 11.5 Microscopia óptica: o exame histológico mostra cortical renal com 8 glomérulos, um dos quais está totalmente fibrosado. Os demais apresentam expansão focal da matriz mesangial, em certos campos esboçando arranjo em nódulos acelulares. Na periferia destes nódulos há alças capilares dilatadas (microaneurismas). Duas arteríolas aferentes mostram lesões de hialinose subendotelial. O interstício está dissociado por fibrose, que compromete cerca de 80% do compartimento, onde há túbulos atróficos. Foram representadas 1 artéria arqueada, 1 interlobular e 4 arteríolas. As arteríolas apresentam lesões de hialinose subendotelial. Imunofluorescência: fragmento de tecido renal representado pela cortical com 4 glomérulos. Observam-se depósitos granulares de IgM (1+/3+), distribuídos de forma segmentar e focal sobre o mesângio. Conclusão diagnóstica: glomeruloesclerose nodular; arterioesclerose hialina (ver nota). Nota: a pesquisa de substância amiloide pelo vermelho-congo e de cadeias Kappa e Lambda pela imunohistoquímica mostrou-se negativa. O quadro histológico e os achados à imunofluorescência são compatíveis com Nefropatia diabética, forma nodular.
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176 Nefrologia
Figura 11.6 Microscopia óptica: o exame histológico mostrou cortical renal com 14 glomérulos. Sete destes apresentaram a estrutura geral preservada, com celularidade normal e capilares de luz patente. Os demais mostraram graus variados de proliferação mesangial e expansão da matriz mesangial, que em certos tufos exibia aspecto de mesangíolise. Dois glomérulos apresentavam ainda sinéquias. O interstício estava dissociado por focos de fibrose, em meio aos quais há túbulos atróficos. Foram representadas 4 artérias interlobulares e 5 arteríolas. Uma das artérias tem a luz obliterada por trombo em organização. Três das arteríolas mostram lesões de hialinose subendotelial. Imunofluorescência: fragmento renal representado pela cortical com quatro glomérulos. Observam-se depósitos granulares mesangiais de IgA (1+/3+), IgG (1+/3+), IgM (1+/3+), fatores C3 e C1q do complemento (1+/3+), com distribuição segmentar e focal. Sobre a parede de uma arteríola e de uma artéria, há depósitos de fibrina (2+/3+). Conclusão diagnóstica: nefrite lúpica, forma proliferativa mesangial (classe II da OMS); microangiopatia trombótica em cronificação. Nota: os achados anatomopatológicos são compatíveis com alterações encontradas na síndrome do anticorpo antifosfolipíde. A: glomérulos com graus variados de proliferação mesangial, expansão da matriz e sinéquias. Interstício dissociado por fibrose, com túbulos atróficos. Arteríola com hialinização da parede (Tricrômico de Masson). B: depósitos de fibrina em parede de arteríola (Imunofluorescência).
Estudar a doença sem livros é navegar um mar inexplicável, enquanto estudar os livros sem pacientes é não navegar de forma alguma. – Sir. William Osler
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CAPÍTULO
12
Vitalidade fetal
Introdução Entende-se por vitalidade o estudo do bem-estar fetal. A avaliação de vitalidade é reservada para investigar o feto em situações nas quais haja suspeita de que ele esteja recebendo aporte insuficiente de oxigênio, não sendo necessário seu uso rotineiro em gestações de baixo risco. Doenças maternas, doenças próprias da gestação e doenças fetais podem provocar hipóxia fetal. Deve-se conhecer a viabilidade dos neonatos no meio em que se trabalha para definir em qual idade gestacional faz sentido iniciar o estudo da vitalidade fetal, o que geralmente varia entre 24 e 26 semanas. Além dos movimentos fetais, são métodos utilizados para avaliar a vitalidade: a cardiotocografia (CTR), o perfil biofísico fetal (PBF) e a dopplervelocimetria.
Cardiotocografia - CTR A cardiotocografia, em inglês non stress test, é também chamada NST e consiste de um aparelho eletrônico com sensor para batimentos cardíacos fetais (BCF) chamado cardiógrafo, e um sensor para con-
trações uterinas chamado actotocógrafo. É a forma de avaliação da vitalidade fetal mais popular, de menor custo e maior facilidade de execução, embora apresente alterações tardiamente e possua baixa especificidade. Tanto os batimentos cardíacos fetais como as contrações uterinas são plotados em papel milimetrado específico, dividido em três bandas, uma superior onde se registram os batimentos cardíacos (banda cardiográfica), uma central com especificações de velocidade e data, e uma inferior em que se registram as contrações uterinas e a movimentação fetal (banda actotocográfica). O sensor cardiográfico deve ser colocado no foco fetal, isto é, no local do abdome materno em que há maior audibilidade dos batimentos cardíacos fetais. O sensor tocográfico deve ficar no fundo uterino, onde se iniciam as contrações. O tempo mínimo para se obter traçado satisfatório é de 10 minutos, sendo mais usado o traçado de 20 minutos.
Tipos de CTR
CTR basal.
CTR estimulada (estímulo sonoro ou mecânico).
CTR com sobrecarga (testes da ocitocina e da estimulação papilar).
101 12 Vitalidade fetal
Parâmetros analisados na CTR Esses parâmetros podem ser avaliados, a princípio, tomando-se por base a análise da banda cardiográfica, sendo que a banda actotocográfica será auxiliar na diferenciação dos tipos de desaceleração.
Linha de base.
Variabilidade.
Acelerações transitórias.
Desacelerações.
Linha de base É a média dos batimentos cardíacos fetais no momento de repouso, em local do traçado onde estão ausentes as acelerações e desacelerações. A linha de base deve situar-se entre 110 e 160 batimentos por minuto [bpm]. Níveis inferiores a 110 bpm caracterizam bradicardia, e acima de 160 evidenciam taquicardia fetal. As principais causam dessas variações são citadas no quadro abaixo, e nem sempre indicam sofrimento fetal. Deve-se analisar os parâmetros em conjunto. Taquicardia Bradicardia
Hipóxia fetal crônica, febre materna e infecção ovular. Hipóxia fetal grave, estados pré-óbito, BAVT, pós-datismo e betabloqueador. Tabela 12.1
Variabilidade A variabilidade é definida como oscilação da frequência cardíaca fetal a partir da linha de base, ou seja, a diferença entre a maior e a menor freqüência cardíaca fetal encontrada na área do traçado correspondente à linha de base. Uma vez que muda a cada batimento é determinada pela interação dos sistemas simpático, o qual estimula o aumento da FCF, e parassimpático que, por sua vez, desempenha mecanismo oposto. Quando sua amplitude apresenta valores entre 10 e 25 bpm, diz-se normal ou oscilatório. Entre 10 e 5 bpm, diminuída ou comprimida, embora alguns autores considerem normais variabilidades acima de 5 bom, e para valores inferiores a 5 bpm, tem-se o ritmo silente ou silencioso. A variabilidade estará aumentada se apresentar amplitude superior a 25 bpm, dita saltatória, como nos casos de compressão funicular ou hipoxemia aguda. A variabilidade pode ainda apresentar o padrão sinusoidal quando tiver ondas em forma de sino, com amplitude de 5 a 15 bpm, monótonas, ritmo fixo e regular, comum em fetos gravemente anêmicos, como os vitimados por aloimunização Rh grave ou parvovirose.
Variabilidade Compressões funiculares e hipoxemia aumentada aguda. Hipoxemia crônica, betabloqueador, Variabilidade pré-óbito, sulfato de magnésio, narcódiminuída ticos, barbitúricos, atropina. Padrão Anemia grave, aloimunização grave e sinusoidal insuficiência cardíaca. Tabela 12.2
200
200
200
180
180
180
160
160
160
140
140
140
120
120
120
100
100
100
80
80
80
60
60
60
10
10
10
8
8
8
6
6
6
4
4
4
2
2
2
0
0
0
200 180 160 140 120
Figura 12.1 Taquicardia.
100 80
240
240
210
210
180
180
150
150
120
120
90
90
60
60
30
30
100
100
75
75
50
50
25
25
0
0
Figura 12.2 Bradicardia.
60 100 80 60 40 20 0
Figura 12.3
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Variabilidade aumentada.
102 Obstetrícia FRH
240
bpm
FRH
240
210
210
180
180
150
150
120
120
90
90
60
60
30
30
16:30
bpm
16:40
UA
UA
Figura 12.4 Variabilidade silente. 240
240
210
210
180
180
150
150
120
120
90
90
60
60
30
30 100
2500
80
2000
60
1500
40
1000
20
500
0
0
Figura 12.5 Padrão sinusoidal.
Acelerações transitórias São ascensões transitórios da frequência cardíaca fetal com amplitude de pelo menos 15 bpm, com duração maior ou igual a 15 segundos. É o melhor indicador de bem-estar fetal, sendo o primeiro a desaparecer em casos de hipóxia gradual. Em situações ideais, deve haver ao menos uma aceleração transitória a cada dez minutos.
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103 12 Vitalidade fetal AT
As desacelerações tardias (DIPII) são quedas graduais da FCF com amplitude negativa, não inferior a 15 bpm, com duração maior do que 15 segundos e menor do que três minutos, que se iniciam depois do início da contração, de modo que o ápice desta localiza-se mais de 20 segundos antes do nadir da desaceleração, ao que se chama decalage. Apresentam formato de “U”.
AT 200 180 160 140 120 100
80 60
Figura 12.6 Aceleração transitória.
As DIP tipo II são o resultado da redução do fluxo sanguíneo placentário que ocorre durante a contração uterina em fetos com baixa reserva de oxigênio, e significam insuficiência placentária. Sua persistência denota sofrimento fetal. ST-mSEC
Desacelerações da FCF Desacelerações periódicas Define-se desaceleração periódica como a queda de pelo menos 15 bpm por, no mínimo, 15 segundos, da frequência cardíaca basal. As desacelerações periódicas são assim denominadas por apresentarem repetição e estarem associadas às contrações uterinas ou à movimentação fetal. Podem ser precoces, tardias ou variáveis.
240
240
210
210
180
180
120
120
90
90
60
60
30
2500
80
2000
60
1500
40
1000
20
500
0
0
15
180
12
150
9
120
6
90
3
60
0
30
150
35
75
+10
125
30
50
0
100
25
25
-10
75
0
-20
50
ABP mmHg
CVP mmHg
EMI mSEC
Figura 12.8 Desaceleração tardia. Dip I
Dip II
lat.min 160 -
Duração CFC basal
140 -
Amplitude
130 100 -
mm Hg -
40
FCF mínima
Intervalo
Decalagem
Intensidade Pressão máxima
20 0
Tono minutos
Figura 12.9 Classificação da desaceleração precoce (DIP I) e da desaceleração tardia (DIP II).
30
100
210
+20
20
Pressão amniótica
150
18
100
60 150
240
40
TEMP ºC
Frequência cardíaca fetal
As desacelerações precoces, também chamadas de DIP I ou desacelerações vagais, são quedas de frequência que ocorrem com a contração. Correspondem a uma resposta parassimpática determinada pela compressão do polo cefálico durante a contração uterina. Considera-se evento fisiológico se acompanhadas de membranas ovulares rotas ou período expulsivo do parto, mas deve-se alertar o obstetra para possível oligodrâmnia, caso ocorram com as membranas íntegras. Na visualização gráfica, o nadir da desaceleração coincide com o pico da contração uterina, ou a diferença entre esses dois pontos não ultrapassa os 20 segundos.
NHR-BPM
21
Figura 12.7 Desaceleração precoce.
As desacelerações umbilicais (também conhecidas como DIP III, DIP variável ou DIP de cordão) são amplamente variáveis na forma e no momento de aparecimento, mas geralmente apresentam morfologia semelhante à letra V ou W. A forma depende da descida e da recuperação, da incidência no tempo e
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104 Obstetrícia em relação à contração uterina. Podem aparecer antes, durante ou depois da contração e, às vezes, independentemente da presença de contrações. São causadas pela obstrução temporária na circulação umbilical. As repercussões fetais dependem da intensidade e da duração da compressão. Não são significativas de hipóxia, a menos que apresentem os seguintes critérios de gravidade: perda da aceleração transitória inicial (aceleração ombro), recuperação lenta ou não recuperação da basal, perda da variabilidade durante e depois da desaceleração, duração maior do que 60 segundos e desacelerações geminadas (forma de w). 240
240
210
210
180
180
150
150
120
120
90
90
60
60
30
Interpretação dos resultados Como nenhum parâmetro isolado é indicador inequívoco de sofrimento ou bem estar, eles devem ser avaliados em conjunto para que se estabeleça um parecer mais preciso sobre a vitalidade. Diversos índices ou formas de se laudar cardiotocografias já foram criados, todos na tentativa de tornar a interpretação desse exame mais fidedigna das condições fetais. A OMS, em workshop de 2008, classificou as cardiotocografias em três categorias decretas abaixo. Essa classificação foi considerada para o intraparto, mas tem sido extrapolada mesmo para as gestantes sem contrações.
Categoria I - considerado traçado normal, indicativo de feto com boa equilíbrio ácido-base e boa vitalidade. Precisa ser acompanhadas dos seguintes parâmetros: Frequência cardiaca fetal (FCF) basal de 110 a 160 batimentos por minuto (bpm), variabilidade moderada da frequência cardíaca fetal basal (6-25bpm), ausência de desacelerações variáveis e tardias, desacelerações precoces podem estar presentes ou ausentes, acelerações podem estar presentes ou ausentes. Enfim, há freqüência cardíaca basal normal, boa variabilidade e estão ausentes desacelerações tardias ou variáveis.
Categoria II - traçado indeterminado, não sendo preditivo de acidose fetal mas requerendo maior vigilância. Inclui as situações que não se enciaxam em categoria I ou III, ou seja: bradicardia com variabilidade presente, variabilidade mínima sem desacelerações, taquicardia, variabilidade exacerbada, desaceleração prolongada, desaceleração tardia com variabilidade moderada, ausência de acelerações induzidas por estímulo.
Categoria III - associada a alteração do equilíbrio ácido-base e, consequentemente, sofrimento fetal. Caracteriza-se por variabilidade da FCF ausente e qualquer dos seguintes sinais: desacelerações tardias recorrentes, desacelerações variáveis recorrentes e bradicardia. A presença de padrão sinusoidal também classifica a cardiotocografia como categoria III.
30 2500 2000 1500 1000 500
0
Figura 12.10 Desaceleração variável.
Desacelerações não periódicas As desacelerações não periódicas, também chamadas de DIP 0 ou espica 0, são quedas rápidas de frequência cardíaca do feto, relacionadas à sua movimentação que produz obstruções efêmeras do cordão umbilical. Carecem de significado clínico.
Desacelerações prolongadas Em geral, decorrem de hipotensão arterial materna súbita, levando à redução do fluxo sanguíneo uterino, hipoxemia fetal aguda, hipertensão arterial fetal, reflexo vagal e queda na FCF. É agravada pela ocorrência simultânea de contração uterina. Frequentemente, é confundida com bradicardia fetal; entretanto, não costuma durar mais do que 5-6 minutos e nunca atinge 10 minutos. Como a causa mais comum é a hipotensão supina da gestante, consequente à sua permanência em decúbito dorsal horizontal, corrigindo-se a posição materna, com elevação ou lateralização do seu dorso, a FCF costuma se normalizar rapidamente.
Alternativamente utiliza-se o índice cardiotocométrico modificado de Zugaib & Behle. Índice cardiotocométrico de Zugaib & Behle Parâmetro Normal Pontuação Linha de base 120 a 160 bpm 1 Variabilidade 10 a 25 bpm 1 Acelerações ≥1 2 transitórias Desacelerações Nenhuma 1
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Tabela 12.3
105 12 Vitalidade fetal Somam-se as pontuações e, com base nesses valores, o feto é classificado em:
180 160 140
Ativo: índices 4 e 5 (normal);
Hipoativo: índices 2 e 3 (suspeito);
Inativo: índices 0 e 1 (alterado).
MF
FCF 120 bpm
MF
100 80
Apenas o traçado ativo é considerado normal. Quando hipoativo ou, por vezes, inativo, o feto deve ser submetido a cardiotocografia estimulada .
Cardiotocografia estimulada –
0
1
2
3
4
5
6
7
Tempo (minuto)
Figura 12.12 ardiotocografia não reativa suspeita. Ausência da aceleração da frequência cardíaca fetal quando da movimentação do concepto (MF). Macrooscilação ondulatória. 180
Teste da Estimulação Sônica (TES)
160
Desaceleração
Utiliza-se fonte sonora polifônica, como uso de buzinas, ou seja, lança-se mão de estímulo sonoro. O objetivo da estimulação sônica é despertar o feto, colocando-o em estado de vigília, e provocar respostas motoras e cardíacas. Executa-se o teste após o traçado basal para caracterizar hipoatividade ou inatividade, ou ainda categoria II da OMS, aplicando-se a fonte sonora com leve pressão sobre o abdome, no local do polo cefálico, emitindo-se o som por três segundos. O resultado é interpretado com base na resposta cardiocirculatória do feto, seja apresentando em seguida um traçado compatível com a categoria I, seja como mostrado abaixo. Feto reativo
Resposta cardíaca com amplitude maior que 20 bpm (pico) e duração superior a três minutos. Padrão normal. Feto Amplitude inferior a 20 bpm e/ou duhiporreativo ração inferior a três minutos. Padrão duvidoso. Feto Quando não se identifica resposta carnão reativo díaca fetal. Padrão alterado.
60
140 FCF 120 bpm
EA
100
EA
80 0
1
2
3
4
5
6
7
60
Tempo (minuto)
Figura 12.13 Cardiotocografia não reativa terminal. Ausência de acelerações da frequência cardíaca fetal quando do estímulo acústico (EA). Macro-oscilação lisa. Desaceleração desfavorável.
Sendo o feto hiporreativo, matem-se o traçado para verificar se a resposta a seguir é bifásica ou monofásica. Classifica-se ainda como resposta bifásica quando, após o término da resposta, aparecem acelerações transitórias, e resposta monofásica, quando isto não ocorre. Considera-se normal o feto com resposta bifásica. Traçados monofásicos, inativos ou não reativos são chamados anormais, mas é importante ressaltar que a especificidade do exame é baixa, havendo muitos falsos positivos. Especialmente em prematuros, seria adequado outras provas de vitalidade antes do estabelecimento de conduta resolutiva.
Tabela 12.4 180 Aceleração
160 140 MF
FCF 120 bpm
MF
Cardiotocografia com sobrecarga
100 80 0
1
2
3
4
5
6
7
60
Tempo (minuto)
Figura 12.11 Cardiotocografia reativa. Observar as acelerações da frequência cardíaca fetal quando da movimentação do concepto (MF).
Os testes de sobrecarga restringem-se aos casos em que se detectam desacelerações mal definidas no traçado basal, e tem o intuito de melhor relacioná-las com as contrações. Apresenta muito pouca aplicabilidade clínica atualmente. São duas as modalidades de cardiotocografia com sobrecarga: Teste da ocitocina e Teste da estimulação papilar.
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106 Obstetrícia
Teste da ocitocina (prova de Pose) Consiste em obter contrações uterinas de modo semelhante à indução de trabalho de parto. Infunde-se ocitocina diluída em soro glicosado até o início das metrossístoles.
Cardiotocografia anteparto Aceleração da fcf (1) à movimentação fetal (AMF) Amplitude > 15 bpm Duração > 15 s Presente
Aceleração da FCF ao estímulo vibroacústico. Amplitude > 20 bpm Duração > 3 min
Teste da estimulação papilar (TEP) Estimulação papilar executada pela própria gestante, com liberação de ocitocina endógena.
200
200
180
180
160
160
140
140
120
120
100
100
80
80
60
60
100
100
80
80
60
60
40
40
20
20
0
0
Ausente
Presente
Ausente
Reativa
Não-reativa
Macro-oscilação ondulatória e/ou desaceleração favorável
Macro-oscilação comprimida e/ou desaceleração desfavorável
Macro-oscilação lisa
Suspeita
Grave
Terminal
Figura 12.15 Interpretação dos resultados da cardiotocografia anteparto. (1)fcf: frequência cardíaca fetal.
Figura 12.14
O teste de sobrecarga é positivo quando há desacelerações tardias (DIP II) em pelo menos 30% das contrações, indicando baixa reserva de O2 fetal; negativo, quando não há desacelerações, indicando boa reserva fetal de O2; insatisfatório, quando não é possível analisar o traçado, por contrações inadequadas ou registro inadequado da frequência cardíaca fetal; e inconclusivo, quando há desacelerações em menos de 30% das contrações.
Cardiotocografia com sobrecarga Positivo Desacelerações tardias (DIP II) em pelo menos 30% das contrações. Negativo Não há desacelerações. Insatisfatório Não é possível analisar o traçado, por contrações inadequadas ou registro inadequado da frequência cardíaca fetal. Inconclusivo Desacelerações em menos de 30% das contrações. Tabela 12.5
Cardiotocografia anteparto Reativa
Repetir em 7 dias
Não reativa Suspeita
Grave
Terminal
– Abreviar o intervalo do exame. – Solicitar Doppler e/ou PBF (1)
– Solicitar Doppler e/ou PBF – Programar a interrupção da gestação
- Interrupção imediata da gestação - Prognóstico sombrio
Figura 12.16 Conduta sugerida ante os resultados da cardiotocografia anteparto. (1) PBF – perfil biofísico fetal.
Perfil biofísico fetal Método propedêutico de bem-estar fetal, que associa atividades biofísicas fetais e o volume de líquido amniótico. Fundamenta-se no fato de que as atividades biofísicas fetais são reflexos do sistema nervoso central, refletindo o estado de oxigenação deste.
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107 12 Vitalidade fetal Por esse método buscam-se marcadores agudos e crônicos de hipóxia fetal. O tempo máximo de realização da parte ultrassonográfica do exame será de 30 minutos. Este é o período máximo que se espera para que apareçam as atividades físicas fetais procuradas, que denotariam seu bem-estar.
Atividades biofísicas e suas áreas de controle Ativida- Área de Idade gestacional des controle – amadurecimento biofísicas em semanas Tônus Córtex 7,5 a 8,5 MCF Núcleo cortical 8a9 MRF Assoalho do IV 11 ventrículo CTR (AT) Hipotálamo poste- 20 rior e medula
Marcadores agudos Correspondem a parâmetros que têm seu comportamento controlado pelo SNC, com alterações rápidas, em harmonia com as atividades centrais que sofrem influências de vários fatores intrínsecos e extrínsecos. Esses parâmetros são: frequência cardíaca fetal (FCF), movimentos respiratórios fetais (MRF), movimentos corpóreos fetais (MCF) e tônus (T). Frequência cardíaca fetal (FCF): considerado normal feto com duas ou mais acelerações à cardiotocografia. Movimentos respiratórios fetais (MRF): uma salva de 30 segundos durante 30 minutos de observação é suficiente para satisfazer este parâmetro. Movimentos corpóreos fetais (MCF): para normalidade, são necessários três ou mais movimentos corpóreos ou de membros.
Tabela 12.6
Marcador crônico É o volume de líquido amniótico. Considera-se normal pelo menos 1 bolsão de líquido amniótico medindo no mínimo 2 cm em 2 planos perpendiculares. A queda do líquido amniótico indica que a placenta esta insuficiente em manter o fluxo fetal. O pouco sangue que chega é centralizado aos órgãos nobres, reduzindo-se a irrigação renal e menos urina, que compõe o liquido, é produzida. O processo é progressivo e se intensifica com a piora da função placentária. Por ser um marcador que hipoxemia gradual e crônica é o único que, isoladamente alterado, poderia indicar resolução da gestação (em fetos termo).
Tônus fetal: indicada por um movimento rápido de extensão e flexão.
Índices do PBF
A sensibilidade desses centros à hipóxia respeita sentido inverso do desenvolvimento embrionário, obedecendo à teoria da hipóxia gradual. Portanto, a FCF é o primeiro parâmetro a se alterar, seguido pelo MRF, MCF e tônus.
A cada parâmetro do perfil biofísico dá-se nota zero (se alterado) ou dois (se normal), de modo que não existe nota ímpar para PBF. O escore final é a soma da pontuação de todos os parâmetros e a conduta está descrita na Figura 12.8.
Parâmetros biofísicos fetais
Normal (escore = 2)
Anormal (escore = 0)
MRs
Pelo menos 1 episódio de MRF por, pelo menos,30 segundos em 30 minutos.
Ausência de MRF ou nenhum episódio > 30 s em 30 minutos.
MCFs
Pelo menos 3 movimentos distintos tipo corpo/ membros em 30 minutos.
Dois ou menos episódios tipo corpo/membros em 30 minutos.
TF
Pelo menos um episódio de extensão ativa e fle- Extensão vagarosa com retorno à flexão parcial ou xão (flexão de tronco ou membro). extensão completa e mantida.
RCF reativo
Pelo menos dois episódios de AT de 15 bpm ou Menos de dois episódios de AT ou aceleração menor mais e por 15 s associados com MF em 30 minutos. de 15 bpm em 30 minutos.
Volume de LA
Pelo menos um lago de LA medindo 2 cm em dois planos perpendiculares. Tabela 12.7
Ausência de LA ou lago menor de 2 cm em dois planos perpendiculares.
PBF fetal: escore, técnicas e interpretação.
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108 Obstetrícia Escore 10/10 8/10 (LA normal) 8/8 (MAP não realizado) 8/10 (oligodrâmnio)
Interpretação Risco de asfixia fetal extremamente raro
Mortalidade Manejo perinatal* 1/1.000 Sem indicação de intervenção
Suspeita de asfixia fetal crônica
89/1.000
6/10 (LA normal)
Possível asfixia fetal
Variável §
6/10 (oligodrâmnio) 4/10 2/10 0/10
Provável asfixia fetal Alta probabilidade de asfixia fetal Asfixia fetal muito provável Asfixia fetal certa
89/1.000
Repetir 1 a 2 vezes por semana Parto, se membranas íntegras e tecido renal funcionante Se feto maduro: parto. Nos fetos imaturos, repetir em 24 horas. Se na repetição < 6, parto. Se na repetição > 6, observar e repetir como no caso anterior Parto
91/1.000 125/1.000 600/1.000
Parto Parto Parto
Tabela 12.8 Interpretação e manejo clínico recomendado do PBF. *Mortalidade perinatal em uma semana, sem intervenção.
O fenômeno no qual a frequência aparente de uma fonte sonora é maior quando se aproxima e menor quando se afasta de um ponto fixo é chamado de efeito Doppler. Partindo-se de tal princípio, pode-se estimar a velocidade e o fluxo dos vasos sanguíneos, uma vez que a coluna de hemácias reflete a onda sonora emitida pelo transdutor, que nada mais é do que um cristal pizolétrico. O mesmo transdutor recebe a onda sonora refletida, processando-a e interpretando-a. Gera-se uma representação gráfica de tal fluxo, conhecida com o nome de espectro de onda, pela qual é possível calcular a resistência ao fluxo no referido vaso, por meio de índices, sendo os mais usados e conhecidos o de pulsatilidade e o de resistência, mostrados na Figura 11.17. Assim, a ultrassonografia com Doppler é exame que permite avaliar qualitativa e quantitativamente o fluxo sanguíneo em vasos insonados.
O Doppler venoso ainda mostra a corrente de sangue dada pela contração atrial (onda a).
VM D
Tempo (s) s: velocidade sistólica máxima D: velocidade diástolica final VM: velocidade média
Índice de Pulsatilidade IP = S - D VM (Gosling & King, 1975)
Relação Sístole/Diástole S = A D B (Stuart et al., 1990)
Índice de Resistência IR = S - D S (Pourcelot, 1974)
Figura 12.17 Índice Doppler velocímetro.
Onda de velocidade de fluxo venoso
Espectro da onda
S
Velocidade (cm/s)
O pico da onda do sonograma a seguir representa a velocidade máxima da corrente sanguínea que ocorre na sístole (S), enquanto, no final da diástole, verifica-se a velocidade mínima (D). O contorno dessa onda representa a velocidade de fluxo sanguíneo no centro do vaso insonado, local onde ela é máxima por sofrer menor atrito.
S
Velocidade (cm/s)
Dopplervelocimetria
D
VM a
Tempo (s)
S: sístole ventricular D: diástole ventricular a: sístole atrial VM: velocidade média
Índice de Pulsatilidade de veias IPV = S - a VM (Hecher, 1994)
Figura 12.18 Índices doppler velocimétrios.
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109 12 Vitalidade fetal
Tipos de Doppler
Principais territórios avaliados pela dopplervelocimetria obstétrica (cont.) Circulação fetal
Doppler contínuo O transdutor, neste caso, apresenta dois elementos ou cristais. O primeiro emite a onda sonora de forma contínua, e o segundo capta a onda refletida. Pode vir acoplado ou não ao aparelho de ultrassom em tempo real. Esse tipo de Doppler tem a desvantagem de receber todos os sinais que estejam em seu campo de ação, sem discriminar qual estrutura vascular está produzindo o traçado (“Doppler cego”). Ele tem a vantagem de emitir baixa energia sonora, de ser barato e de fácil execução. No entanto, vem sendo substituído gradativamente pelo Doppler pulsátil.
Doppler pulsátil Ao contrário do anterior, o mesmo cristal emite e recebe os sinais sonoros de forma pulsátil. Permite a análise de regiões específicas, selecionando o vaso a ser estudado. O feixe de ultrassom é direcionado, e a janela de insonação é controlada pelo operador. É mais caro que o contínuo e necessita de transdutor setorial eletrônico. É sempre acoplado ao ultrassom dinâmico (Doppler dúplex).
Doppler colorido Existe a emissão de dois tipos de onda que se sobrepõem à imagem ultrassonográfica. De acordo com a direção do fluxo, a imagem é representada por uma cor. O fluxo que vem em direção ao transdutor geralmente é codificado em vermelho, e o fluxo em sentido contrário é sinalizado em azul, embora isso possa ser invertido pelo operador. Fluxo turbulento apresenta-se como mosaico. A identificação de pequenos vasos é facilitada por sua individualização mediante o processo de coloração do vaso.
Power Doppler Tecnologia mais recente, mais sensível do que o Doppler colorido na identificação de vasos de baixo fluxo. O mapeamento é realizado pela quantidade de hemácias em movimento e não por sua velocidade. Independe da direção de fluxo e do ângulo de insonação. Principais territórios avaliados pela dopplervelocimetria obstétrica Circulação uteroplacentária Circulação feto placentária
Artérias uterinas • Artérias umbilicais • Veia umbilical
Arterial • Artéria cerebral média • Aorta Venosa • Veia cava inferior • Ducto venoso Tabela 12.9
Embora uma gama de vasos sanguíneos fetais e maternos possa ser acessada à ultrassonografia com Doppler, quatro apresentam interesse prático maior, são eles: artérias uterinas, artérias umbilicais, artérias cerebrais médias e ducto venoso.
Artérias uterinas As artérias uterinas devem ser insonadas próximo à emergência em relação à artéria hipogástrica (artéria ilíaca interna) ou no falso cruzamento com a artéria ilíaca externa. O transdutor tem de ser posicionado 2 a 3 cm da espinha ilíaca anterossuperior e direcionado para a parede lateral do útero na altura de seu istmo. Seu padrão normal em não grávidas e na gestação precoce é caracterizado por presença de incisura protodiastólica ou notch no início da diástole, que desaparece até a 24ª-26ª semanas, quando se completa a 2ª onda de invasão trofoblástica. O trofoblasto invasor destrói a camada elástica dos ramos da uterina nutridores da placenta, reduzindo-se a resistência local de modo a desaparecer o notch. Assim, resistência uterina persistentemente elevada indica má plantação que, por sua vez, está relacionada a maior risco de pré-eclâmpsia e restrição de crescimento fetal. A utilidade da avaliação da artéria uterina isoladamente antes da 26ª semana é controversa, mas é possível afirmar que nesta época a sua resistência é um dos parâmetros para cálculo de risco de pré-eclâmpsia. Por outro lado, após este período é importante avaliar se a resistência baixou ou permanece elevada, por meio de índices dopplervelocimétricos, e se a incisura protodiastólica é persistente. Consideram-se valores normais após a 26ª semana: índice de resistência menor do que 0,56, relação A/B (sístole/diástole) menor do que 2,7 e ausência de incisura protodiastólica, demonstrando que o processo de placentação ocorreu de maneira adequada.
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110 Obstetrícia Incisura protodiastólica
Figura 12.19 Fluxograma da artéria uterina mostrando incisura protodiastólica. Representação esquemática.
manas. A partir de então, ele passa a ser positivo e aumenta com a idade gestacional (desenvolvimento dos vasos vilositários). As artérias umbilicais são vasos que se caracterizam pelo transporte de sangue desoxigenado do feto para a placenta, onde tal vaso sofrerá ampla ramificação para que as trocas gasosas sejam realizadas. Pela enorme quantidade de ramos que possui, a artéria umbilical normalmente apresenta baixa resistência. Havendo insuficiência de parte do território placentário ocorre redução do número de ramos funcionantes da umbilical o que resulta em aumento da resistência na mesma, com redução do fluxo diastólico. Alteração visível de sua resistência somente será possível com perda de mais de 50% da função da placenta. A resistência pode se tornar tão alta a ponto de impedir o fluxo diastólico (diástole zero), ou torná-lo reverso (diástole reversa).
Figura 12.20 Fluxograma da artéria uterina sem incisura. Representação esquemática.
Valores normais da relação A/B da dopplerfluxometria da artéria umbilical Idade gestacional
Relação A/B
20 semanas
< 4,6
25 semanas
< 4,2
30 semanas
< 3,8
35 semanas
< 3,4
40 semanas
< 3,0 Tabela 12.10
Figura 12.21 Artérias uterinas no segundo trimestre de gestação: 1: fluxo normal. 2: fluxo alterado: pico sistólico agudo, incisura protodiastólica e fluxo reduzido na diástole.
Artérias umbilicais A artéria umbilical é o vaso que tem apresentado resultados mais expressivos no diagnóstico de comprometimento fetal. Como é responsável por levar o sangue para a placenta, alterações de sua resistência evidenciam comprometimento placentário, como explicado adiante. Deve ser insonada, de preferência, próxima à inserção na placenta. Ambas as artérias serão avaliadas em virtude da possibilidade de discrepância entre elas, fato relacionado à presença de infartos placentários. Como outras, a onda de velocidade de fluxo (OVF) caracteriza-se por ter um pico de maior velocidade durante a sístole cardíaca (onda S ou A) e uma velocidade menor relacionada com a diástole (onda D ou B). O componente diastólico é ausente até 15 se-
Figura 12.22 Fluxograma normal da artéria umbilical. Representação esquemática.
Diástole zero Figura 12.23 Fluxograma da artéria umbilical mostrando diástole zero. Representação esquemática.
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111 12 Vitalidade fetal
Artéria cerebral média Deve ser insonada junto à sua emergência, perto do polígono de Willis; as medidas têm de ser tomadas no hemisfério cerebral mais próximo do transdutor e durante inatividade e apneia fetal. Normalmente é vaso de alta resistência, pois SNC não consome muita energia e, por isso, não necessita de fluxo intenso. Mas, na hipóxia fetal o fluxo é direcionado para órgãos nobres, como o cérebro, de modo que a artéria cerebral média sofre vasodilatação e, consequentemente, há queda na sua resistência.
Diástole reversa Figura 12.24 Fluxograma da artéria umbilical mostrando fluxo diastólico reverso. Representação esquemática. 1
.40 m/s .10 ()
L /R
HR RANGE
.50
2
m/s 0.0
.50
Pela aorta passa mais 50% do débito cardíaco; portanto, ela reflete a distribuição do fluxo uteroplacentário para os órgãos abdominais e membros fetais. A porção examinada é a torácica descendente, distalmente ao ducto arterioso. Ela permite estudar a resistência vascular periférica, quando os mecanismos de redistribuição da circulação fetal promovem vasoconstrição dessas regiões.
Veia cava inferior
0.0
.40
Aorta fetal
3
m/s
/
Seu estudo também avalia a probabilidade de anemia, pois nessa ocorre elevação da velocidade do fluxo.
RUN/STOP 4
m/s .10
Figura 12.25 opplervelocimetria da artéria umbilical. 1: fluxo normal; 2: fluxo alterado – aumento da resistência vascular (fluxo baixo); 3: fluxo alterado – diástole zero ou ausente; 4: fluxo alterado – diástole reversa.
A veia cava inferior é analisada na porção imediatamente junto à sua entrada no átrio direito. A onda de velocidade de fluxo caracteriza-se por padrão trifásico e bidirecional. O 1º pico da onda corresponde à sístole ventricular (onda S), o 2º, à diástole ventricular (onda D), e o fluxo reverso, à contração atrial (onda A). Considera-se anormal quando há aumento do fluxo reverso (> 10% no 3º trimestre), fato observado quando ocorre comprometimento da hemodinâmica cardíaca fetal.
Ducto venoso
Veia umbilical A veia umbilical leva o sangue ricamente oxigenado da placenta ao feto. O local de amostragem é na sua porção intra-abdominal. O padrão normal da OVF é uma onda contínua, sem pulsações. A ocorrência de pulsações a partir do 2º trimestre da gestação é considerada anormal e está relacionada à falência cardíaca. Representa prognóstico perinatal ruim. Essas pulsações devem coincidir com a diástole do ciclo cardíaco para diferenciar das pulsações provocadas pelos movimentos respiratórios fetais.
Ducto venoso é uma comunicação direta da veia umbilical à veia cava inferior antes da sua desembocadura no átrio direito. Ele é identificado efetuando-se um corte transversal do abdome fetal superior. Sua OVF característica possui padrão trifásico e unidirecional sempre positivo, ou seja, ao contrário da veia cava inferior, sua onda “a” é positiva. Quando ocorre hipoxemia, inicialmente aumenta-se o fluxo neste vaso, promovendo maior aporte de sangue para a oxigenação cardíaca e cerebral. Com o agravamento da hipoxemia, há
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112 Obstetrícia um aumento da resistência vascular pela vasoconstrição periférica, além de posterior elevação na pressão diastólica final dos ventrículos cardíacos, promovendo aumento do fluxo retrógrado na veia cava inferior, durante a contração atrial. Como a resistência no sistema é alta ela é refletida ao ventrículo esquerdo, consequentemente ao átrio esquerdo e desse ao direito pelo forame oval, de modo que na contração desse átrio o sangue não consegue seguir adiante (ao átrio esquerdo) e retorna ao ducto venoso (onda a reversa). Contribui para esse fato a falência cardíaca decorrente de lesão hipóxica. Dessa forma, sua alteração sinaliza falência miocárdia fetal e indica, assim, sofrimento fetal grave.
mal. A cardiotocografia e o PBF são normais. Na centralização hipoxêmica, agrava-se o quadro. O feto exibe acidemia e hipoxemia. No último estágio, os mecanismos compensatórios entram em falência, evoluindo com descompensação cardíaca e edema cerebral. A avaliação laboratorial mostra hipercapnia. As provas biofísicas de bem-estar fetal apresentam-se comprometidas. Não sabemos ao certo qual o intervalo entre a centralização e o padrão terminal na cardiotocografia. Geralmente ele varia de 2 a 15 dias, podendo durar só algumas poucas horas, ou até mesmo semanas. De qualquer forma, tendo o feto centralizado mais de 34 semanas, indica-se resolução, senão pode-se fazer avaliação diária de ducto venoso e artéria umbilical, resolvendo-se a gravidez caso o primeiro se mostre alterado ou haja diástole reversa na artéria umbilical.
Centralização
Dopplervelocimetria umbilical Diástole zero/reversa
O fenômeno de centralização reflete os mecanismos de adaptação do feto perante estados hipóxicos. Esse fenômeno acontece quando, tendo sua oxigenação diminuída, o mesmo desvia o fluxo sanguíneo preferencialmente para órgãos considerados nobres, como coração, suprarrenal e cérebro (vasodilatação seletiva), em detrimento de órgãos menos nobres, como pele, fígado, baço, pulmões, intestinos, rins (vasoconstrição), de modo a tornar a resistência ao fluxo sanguíneo cerebral (que normalmente é maior que da umbilical), menor que ao fluxo umbilical. A centralização foi descrita pela 1ª vez por Wladimiroff, em 1986. Seu diagnóstico é feito pela relação umbílico-cerebral > 1. Segundo Arbeille et al. (1987), ou quando o índice de pulsatilidade da artéria cerebral média está alterado em comparação com as curvas de normalidade pela idade gestacional, segundo Arduini & Rizzo (1990).
>20 e <28
Internação e repouso
≥28 e ≤34
Vitalidade normal
>34
Vitalidade alterada ou ILA ≤3
Dopplervelocimetria e ILA a cada 24-72h
Maturidade ausente
Vitalidade alterada: considerar resolução quando IG > 26 sem e PF > 500g
Repetir 7-14d
Parto
Provas de maturidade Maturidade completa ou intermediária
Internação e repouso. CTG, PBF, ILA - 12/24h. Doppler em 24-72h
Figura 12.26 Conduta sugerida ante os resultados da Dopplervelocimetria umbilical. CTG: cardiotocografia; IG: idade gestacional; PF: peso fetal; PBF: perfil biofísico fetal; ILA: índice de líquido aminiótico.
Como a centralização preserva a oxigenação do sistema nervoso central, as atividades biofísicas são mantidas. Com o agravamento da hipoxemia, a vasoconstrição periférica se intensifica, elevando a resistência vascular. Consequentemente, aumenta a pressão diastólica final das câmaras cardíacas direitas, o que se reflete no sistema venoso, ocorrendo diminuição do fluxo durante a contração atrial. Em casos graves, observam-se fluxo reverso no ducto venoso e pulsações na veia umbilical. Com o tempo surgirão outros sinais de sofrimento fetal agudo, na cardiotocografia e no perfil biofísico fetal (fase de descentralização, explicada adiante). Em 1994, Montenegro et al. classificaram a resposta fetal perante fenômenos hipoxêmicos em três estágios: centralização normoxêmica, centralização hipoxêmica e descentralização. No 1º estágio ocorre acúmulo de ácido láctico produzido pela respiração anaeróbica nos territórios com menor aporte de oxigênio. Há acidemia, mas a pressão de oxigênio é nor-
Figura 12.27 Ondas de velocidade de fluxo (OVF) da artéria cerebral média: (A) normal e (B) com baixa resistência, alterada.
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113 12 Vitalidade fetal
Figura 12.28 Ondas de velocidade de fluxo (OVF) de veia cava inferior: (A) normal e (B) alterada.
Figura 12.29 Ondas de velocidade de fluxo (OVF) do ducto venoso: (A) normal e (B) alterado.
Descentralização de fluxo Precedendo a morte fetal ocorre vasoplegia generalizada e modificações hemodinâmicas irreversíveis, período chamado de descentralização do fluxo. O edema cerebral é resultante do acúmulo de ácido lático, produzido durante o período de hipóxia e respiração anaeróbica, alterando a permeabilidade da membrana celular e aumentando a pressão osmótica intracelular, com aparecimento de necrose e edema. Existe, então, em virtude do edema, dificuldade de perfusão cerebral, com o aparecimento de OVF de alta resistência nas artérias cerebrais médias, até mesmo sem o componente diastólico. Concomitantemente, persistem as alterações no território umbilical, podendo ocorrer falsa normalização nesse território, enquanto persistem as alterações no território venoso.
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CAPÍTULO
15
Reanimação neonatal
Introdução As condutas relativas à reanimação neonatal a seguir são adotadas pelo Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria desde 2011. Essas orientações são baseadas nas recomendações do Consenso Internacional de Reanimação Neonatal, feitas pelo ILCOR (International Liaison Committee on Ressucitation) em 2010 e publicadas pela Academia Americana de Pediatria. Segundo dados da OMS, no ano de 2004 houve aproximadamente 1 milhão de óbitos neonatais na população mundial em decorrência da asfixia. No mundo, a asfixia perinatal é causa de 23% dos óbitos neonatais, o que acontece também no Brasil. Considerando-se que apenas um em cada dez nascidos vivos necessita de assistência ventilatória para iniciar a respiração ao nascimento, um em cada cem neonatos necessita de intubação e/ou massagem cardíaca e somente um em cada mil nascidos necessita de intubação, massagem e medicações, observa-se que o atendimento neonatal precisa ser aprimorado e direcionado para redução da morbimortalidade decorrente da asfixia perinatal.
Preparo para reanimação Anamnese
história materna, intercorrências clínicas, pré-natais e perinatais;
idade gestacional;
presença de mecônio.
Equipamentos
fonte de calor radiante;
fonte de O2 e vácuo;
material para aspiração;
material para ventilação;
material para intubação;
medicações;
sala com aquecimento a 26 ºC.
160 Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia
Equipe Pelo menos um profissional habilitado a iniciar todos os passos da reanimação e com responsabilidade apenas pelo atendimento do RN presente ao nascimento.
Ausência de mecônio
Precauções universais
avental;
máscara;
gorro;
luvas;
óculos.
Caso o RN necessite de procedimentos de reanimação, temos de considerar duas situações: ausência ou presença de líquido amniótico meconial.
Em caso de prematuros ou RN com respiração irregular/ausente ou hipotonia, seguem-se os passos iniciais.
Passos iniciais
Princípios da reanimação Airway - via aérea pérvia: manter a via aérea pérvia
por meio do posicionamento adequado da cabeça e pescoço, da aspiração da boca, nariz e, se necessário, da traqueia.
prover calor;
posicionar cabeça em leve extensão;
aspirar boca e nariz;
secar e desprezar os campos úmidos;
reposicionar a cabeça.
Breathing - respiração: garantir a respiração por meio da ventilação com pressão positiva. Circulation - circulação: manter a circulação por
meio de massagem cardíaca e medicações ou fluidos.
A indicação dos diferentes passos da reanimação dependerá da avaliação de dois sinais clínicos: frequência cardíaca (FC) e respiração.
A frequência cardíaca é o principal parâmetro que indica as manobras de reanimação. A avaliação da mesma pode ser feita pela palpação do pulso da artéria umbilical ou pela ausculta cardíaca, devendo-se dar preferência a essa última, contando os batimentos por 6 segundos e multiplicando-se o valor por 10, obtendo, assim, o número de batimentos em 1 minuto. O ritmo da respiração pode ser avaliado pela observação do tórax do RN, não sendo levada em consideração a frequência respiratória. O boletim de Apgar não deve ser utilizado para determinar o início da reanimação nem para determinar condutas em relação aos procedimentos a serem realizados na sala de parto. Ele é útil para avaliar a resposta do recém-nascido às manobras realizadas. Após o nascimento, imediatamente depois do clampeamento do cordão, o pediatra deve conhecer a resposta para quatro perguntas iniciais: a gestação é de termo? Ausência de mecônio? O RN está respirando ou chorando? Tônus bom? Em caso de gestações a termo, ausência de mecônio, RN respirando e/ou chorando com tônus bom deve o RN ser colocado sobre o abdome e/ou tórax materno, usando o corpo da mãe como fonte de calor.
Figura 15.1 Passos iniciais em fonte de calor.
O primeiro passo no atendimento ao recém-nascido na sala de parto é a manutenção da temperatura corporal com campos aquecidos e calor radiante. A secagem, além de contribuir para a manutenção da temperatura, serve como estímulo tátil para o início da respiração. A recomendação da Organização Mundial de Saúde é que a temperatura na sala de parto seja, no mínimo, de 26 °C. Em prematuros com idade gestacional inferior a 29 semanas e/ou peso inferior a 1.500 g, recomenda-se, atualmente, a utilização de filme plástico poroso ou saco de polietileno para evitar a perda de calor. Logo depois de posicionar o recém-nascido sob a fonte de calor radiante e antes de secá-lo, envolve-se o corpo, exceto a face, com o plástico e realizam-se as manobras necessárias a seguir. Todos os procedimentos, incluindo a intubação, a massagem cardíaca e a inserção do cateter vascular, podem ser executados com o paciente envolvido em plástico a fim de manter a temperatura em torno de 36,5 °C. Além dessa estratégia, pode-se utilizar ainda colchão aquecido abaixo dos campos, toucas de lã e transportá-lo em incubadora pré-aquecida a fim de evitar hipotermia.
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161 15 Reanimação neonatal A posição do pescoço do RN durante todo o atendimento deve ser em leve extensão, visando manter as vias aéreas pérvias, podendo ser utilizado um coxim sob os ombros.
blender em sala de parto e ajusta-se a necessidade de oxigênio conforme a saturação esperada. Caso não se tenha a possibilidade de mistura de gases através de um blender, continuar a VPP com 100% de O2.
A aspiração de vias aéreas pode ser feita com o bulbo ou sonda traqueal nº 8 ou 10. Deve-se aspirar primeiro a boca e depois as narinas, com movimentos suaves, utilizando pressão negativa de aproximadamente 100 mmHg. Os passos iniciais devem ser executados em no máximo 30 segundos.
Em relação aos recém-nascidos com idade gestacional ≤ 34 semanas, recomenda-se iniciar o primeiro ciclo de VPP com uma concentração de 40% de oxigênio, reduzindo ou aumentando a fração de oxigênio conforme saturação.
Após os passos iniciais deve-se realizar a avaliação dos parâmetros: frequência cardíaca e respiração. A avaliação da coloração da pele e mucosas do RN não é mais utilizada para decidir procedimentos em sala de parto. Estudos recentes têm mostrado que a avaliação da cor das extremidades, tronco e mucosas, rósea ou cianótica, é subjetiva e não tem relação com a saturação de oxigênio ao nascimento. Caso o RN apresente respiração regular, frequência cardíaca > 100 bpm, seja de termo (idade gestacional 37-41 semanas), com bom tônus em flexão, não necessita de qualquer manobra de reanimação. Se o paciente, após os passos iniciais, não apresentar melhora, indica-se a ventilação com pressão positiva,
Ventilação A ventilação pulmonar é o procedimento mais simples, importante e efetivo de toda a reanimação. As indicações da ventilação com pressão positiva (VPP) são apneia/respiração irregular e/ou FC < 100 bpm após os passos iniciais. Esta precisa ser iniciada nos primeiros 60 segundos de vida (The Golden Minute). Para discutir a VPP, é necessário entender qual a concentração de oxigênio complementar a ser utilizada. Se o RN ≥ 34 semanas, deve-se iniciar a ventilação com ar ambiente. Uma vez iniciada a ventilação, recomenda-se o uso da oximetria de pulso, que deverá ser realizada no pulso ou na palma da mão direita, e guiar-se pela saturação conforme a tabela a seguir: Recém-nascido de alto risco SatO2 pré-ductal Até 5 70-80% 5-10 80-90% >10 85-95% Tabela 15.1 Valores de SatO2 pré-ductais conforme a idade.
Quando o RN ≥ 34 semanas não melhora e/ou não atinge os valores desejáveis de SatO2 com a VPP em ar ambiente, recomenda-se o uso de oxigênio suplementar, inicialmente a 40%, quando se possuir um
A VPP inicialmente é realizada com balão e máscara. Utiliza-se o balão autoinflável com capacidade de 200 mL a 750 mL (250 mL para prematuros e 500 mL para termos). O balão deve ter uma válvula de escape ajustada em 30-40 cm de H2O para segurança e estar conectado à fonte de oxigênio com fluxo de 5 L/min, além de conter reservatório de oxigênio para que forneça, dessa maneira, FiO2 aproximada de 100%. Os ventiladores mecânicos manuais podem ser utilizados para a ventilação com pressão positiva, principalmente para os prematuros com menos de 32 semanas de idade gestacional. Esses aparelhos permitem administrar uma pressão inspiratória com PEEP constantes. As máscaras podem ser redondas ou anatômicas, com coxim e feitas de material maleável transparente ou semitransparente. A redonda é mais apropriada ao prematuro, e a anatômica, ao termo. Estão disponíveis em três tamanhos: para termo, para prematuro e para prematuro extremo. O tamanho adequado deve ser aquele que cubra a ponta do queixo, da boca e do nariz do RN. A frequência utilizada deve ser 40-60 movimentos por minuto, podendo seguir a regra prática do “aperta, solta, solta...”. Durante a VPP é importante observar a adaptação da máscara à face do RN, a permeabilidade das vias aéreas e a expansibilidade pulmonar. Os principais sinais de VPP efetiva são o aumento da FC e o início da respiração regular, respectivamente. Após 30 segundos de VPP com balão e máscara, os parâmetros devem ser reavaliados. Caso apresentem melhora, ou seja, FC > 100 bpm e respiração regular, suspende-se a VPP mantendo apenas O 2 inalatório até sua suspensão gradativa, caso o RN esteja recebendo VPP com oxigênio suplementar. Caso o RN não melhore (FC < 100 ou respiração irregular), a primeira e principal conduta é reavaliar a técnica da VPP. As principais causas de falha na VPP são a má adaptação da máscara à face do RN, vias aéreas não pérvias (posição inadequada da cabeça, secreções e boca fechada) e pressão insuficiente. Após verificar a técnica, deve-se corrigir os erros e realizar novo ciclo de VPP com técnica correta por 30 segundos. Se após esse ciclo com técnica correta o RN não apresentar melhora, considera-se VPP ineficaz ou prolongada e procede-se à intubação traqueal.
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162 Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia
Indicações de intubação traqueal (IOT)
Necessidade de aspiração traqueal em neonatos deprimidos com líquido amniótico meconial.
Ventilação com máscara facial ineficaz, ou seja, se após a correção de possíveis problemas técnicos relacionados ao seu uso não há melhora clínica do recém-nascido.
Ventilação com máscara facial prolongada.
Necessidade de massagem cardíaca ou adrenalina.
Suspeita ou presença de hérnia diafragmática.
ou seja, 3 três movimentos de massagem para um movimento respiratório, totalizando 90 movimentos de massagem cardíaca e 30 movimentos respiratórios, ou 120 movimentos em um minuto. Na prática, pode-se seguir o ritmo “1 e 2 e 3 e ventila, 1...”. A única situação em que se pode considerar aplicação de 15 compressões cardíacas, intercaladas com duas ventilações, é a do paciente com cardiopatia congênita ou falência miocárdica.
Além das indicações citadas anteriormente, a intubação traqueal deve ser considerada em prematuros extremos, que receberão surfactante exógeno profilático. Quanto à escolha do tamanho da cânula traqueal, segue uma tabela relacionando o número da cânula com a idade gestacional e o peso de nascimento do RN. Idade gestacional/peso de nascimento < 28 semanas ou P < 1.000 g 28-34 semanas ou peso entre 1.000-2.000 g 34-38 semanas ou peso entre 2.000-3.000 g 38 semanas ou P > 3.000 g Tabela 15.2
Número da cânula 2,5 mm 3 mm 3,5 mm 3,5 – 4 mm
Os maiores indicativos de ventilação efetiva e posição correta da cânula são:
melhora da FC e da cor;
expansão torácica simétrica;
ausência de distensão gástrica;
MV torácico bilateral;
presença de condensação de água na cânula.
A frequência da ventilação é mantida em 40-60 movimentos por minuto. Após 30 segundos de VPP com balão e cânula traqueal, deve-se reavaliar o RN: se FC > 100 bpm e respiração regular, pode-se considerar a extubação. Caso o RN não melhore, verificam-se a técnica e a posição da cânula, e, se necessário, repete-se mais um ciclo de VPP. Se o neonato não melhorar e a FC se mantiver menor que 60 bpm, inicia-se massagem cardíaca. A indicação de massagem cardíaca é, portanto, FC < 60 bpm após ter sido realizada a VPP com balão e cânula corretamente. A massagem cardíaca deve ser sempre acompanhada de ventilação com pressão positiva. As compressões cardíacas devem ser feitas com os dois dedos polegares abraçando o tórax da criança e com uma profundidade de compressão que englobe cerca de um terço do diâmetro anteroposterior do tórax de maneira a produzir um pulso palpável. A proporção da massagem é 3:1,
Figura 15.2 Massagem cardíaca no RN com a técnica dos dois polegares e dois dedos.
Como nas outras manobras, realiza-se a conduta por 30 segundos e reavaliam-se os parâmetros: FC e respiração. Se FC > 60 bpm suspende-se a massagem cardíaca e prossegue-se a VPP até FC > 100 bpm. Caso após 30 segundos de massagem não ocorra melhora, deve-se atentar para a técnica, e, se esta estiver correta, e a FC ainda < 60 bpm, está indicada adrenalina.
Medicações Atualmente as medicações utilizadas na reanimação são adrenalina e expansor de volume.
Adrenalina:
Utilizar sempre a adrenalina diluída 1:10.000 em soro fisiológico.
A primeira dose de adrenalina pode ser feita endotraqueal (apenas a primeira dose); a dose é de 0,3 a 1 mL ET; ventilar após instilação da droga.
A partir da segunda dose, a adrenalina deve ser feita endovenosa.
A via de escolha é a veia umbilical, que deve ser cateterizada na sala de parto.
A dose endovenosa é 0,1 a 0,3 mL/kg de adrenalina diluída (1:10.000).
Pode ser repetida a cada 3 a 5 minutos se FC se mantiver < 60 bpm.
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163 15 Reanimação neonatal
Expansores de volume:
Soro fisiológico 0,9% ou Ringer lactato.
Dose: 10 mL/kg em 5 a 10 minutos.
Indicado na suspeita de resposta inadequada aos procedimentos de reanimação, perda de sangue ou sinais de choque hipovolêmico como palidez, má perfusão e pulsos débeis.
O uso de bicarbonato de sódio tem sido desencorajado, sendo utilizado de modo excepcional nos casos de reanimação prolongada em que não se observa melhora após outras medidas terapêuticas, estando certo de que a ventilação e a massagem estão sendo realizadas com técnica correta. Nas raras ocasiões em que o bicarbonato estiver indicado, a dose recomendada é de 2 mEq/kg da solução a 4,2% (0,5 mEq/mL), por via endovenosa em veia calibrosa com infusão por um período superior a 5 minutos. A naloxona (antagonista de opioide) só deve ser considerada em casos de mães que receberam opioides no período anteparto cujo RN tenha nascido com depressão respiratória e após ter sido priorizada e realizada uma ventilação adequada.
Questões éticas As questões relativas às orientações para não iniciar a reanimação neonatal e/ou interromper as manobras são controversas e dependem de um contexto nacional, social, cultural e religioso. De modo geral, os princípios éticos que regem a reanimação neonatal não devem diferir daqueles aplicados a pacientes de outras faixas etárias. Em condições nas quais o prognóstico é incerto e a chance de sobrevida com sequelas muito graves é grande, o desejo dos pais deve ser considerado.
Deve-se considerar a interrupção da reanimação após a realização de todos os procedimentos com a técnica adequada e o RN permanecer em assistolia por mais de 10 minutos.
Presença de mecônio Caso haja presença de líquido amniótico meconial, não há indicação de aspiração das vias aéreas superiores pelo obstetra ao desprender o polo cefálico. Se o RN estiver vigoroso ao nascimento, ou seja, com movimentos respiratórios rítmicos e regulares, tônus muscular adequado ou FC > 100, deve-se levá-lo à mesa de reanimação e realizar os passos iniciais normalmente. Quando houver líquido amniótico meconial logo após o nascimento e o RN apresentar APNEIA OU RESPIRAÇÃO IRREGULAR E/OU HIPOTONIA E/OU FC < 100, deverá, PRIMEIRAMENTE, ser feita aspiração do mecônio residual da hipofaringe e traqueia sob visualização direta através da cânula traqueal conectada a um dispositivo de aspiração de mecônio e à fonte de vácuo. Esse procedimento não deve exceder 3 a 5 segundos e deve ser repetido até que haja pouco mecônio na traqueia ou que o RN necessite ser ventilado. Após essa aspiração, o RN deverá ser secado e então ter uma avaliação da FC e RESPIRAÇÃO, recebendo a reanimação conforme a indicação de cada procedimento. Vale ressaltar que o TÔNUS só é utilizado como parâmetro para definir um procedimento de reanimação na sala de parto apenas nos casos de presença de líquido amniótico meconial.
Material necessário para reanimação do RN na sala de parto Mesa de reanimação com Fonte de calor radiante Fonte de oxigênio umidificado com fluxômetro Aspirador a vácuo com manômetro Material para aspiração Bulbo Sondas traqueais números 6, 8 e 10 Sondas gástricas números 6 e 8 Dispositivo para a aspiração de mecônio Seringa de 20 mL Material para ventilação Balão autoinflável com capacidade máxima de 750 mL, dispositivo de segurança (válvula de escape com limite máximo de 30-40 cm H2O e/ou manômetro) e reservatório de oxigênio aberto Máscaras para prematuros e RNs a termo Material para intubação traqueal
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164 Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia Material necessário para reanimação do RN na sala de parto (Cont.) Laringoscópio com lâmina reta números 0 e 1 Cânulas traqueais sem balão, de diâmetro uniforme números 2,5-3 – 3,5-4 Material para fixação da cânula Pilhas e lâmpadas sobressalentes Fio guia esterilizado (opcional) Medicações Adrenalina diluída em soro fisiológico 0,9% 1/10.000 (0,1 mg/mL) em 1 seringa de 5 mL para administração traqueal única Adrenalina diluída em soro fisiológico 0,9% 1/10.000 (0,1 mg/mL) em 1 seringa de 1 mL para administração venosa Expansores de volume (SF 0,9% ou Ringer lactato) Uso excepcional: Bicarbonato de sódio a 4,2% (0,5 mEq/mL) e Naloxona (0,4 mg/mL) Material para cateterismo umbilical 1 pinça tipo Kelly reta de 14 cm Cabo de bisturi com lâmina nº 21 Porta-agulha de 11 cm Sonda traqueal sem válvula n° 4 ou 6 ou cateter umbilical Campo fenestrado estéril Cadarço de algodão e gaze Fio agulhado mononáilon 3.0 Outros Luvas e óculos de proteção Compressas e gazes esterilizadas Estetoscópio neonatal Saco de polietileno de 30x50 cm para proteção térmica do prematuro Seringas de 20 mL, 10 mL, 5 m e 1 mL Agulhas Relógio de parede com segundos Opcional: respirador manual e detector de CO2 expirado Tabela 15.3 NASCIMENTO
4 PERGUNTAS
Gestação a termo? Ausência de mecônio? Respirando ou chorando? Tônus muscular bom?
NÃO
PASSOS INICIAIS
30 SEGUNDOS
RESPIRANDO / FC>100 CIANOSE CENTRAL
AVALIAR FC, COR, RESPIRAÇÃO
CONSIDERAR O2 INALATÓRIO
APNEIA OU FC<100
30 SEGUNDOS
VENTILAR COM PRESSÃO POSITIVA (VPP) NÃO MELHOROU
30 SEGUNDOS
CIANOSE PERSISTENTE
CONSIDERAR IOT FC<60
30 SEGUNDOS
FC>60
INICIAR MASSAGEM CARDÍACA
FC<60 CIANOSE PERSISTENTE FALHA NA VENTILAÇÃO
FC<60 ADRENALINA
• VERIFICAR A EFETIVIDADE DA VENTILAÇÃO, MASSAGEM, IOT E ADRENALINA • CONSIDERAR HIPOVOLEMIA
CONSIDERAR: MALFORMAÇÃO DE VIAS AÉREAS PROBLEMAS PULMONARES CARDIOPATIA CONGÊNITA
Figura 15.3 Fluxograma dos procedimentos em reanimação.
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165 15 Reanimação neonatal Medicações ao recém-nascido na sala de parto Medicação
Concentração
Preparo
Doses
Peso (kg)
Dose total (mL)
Velocidade/precauções
Adrenalina
1:10.000 Diluir em água destilada
1 mL
0,1-0,3 mL/kg EV/ET
1 2 3 4
0,1-0,3 0,3-0,6 0,3-0,9 0,4-1,2
Infundir rapidamente
Expansores de volume
SF 0,9% Ringer lactato
40 mL
10 mL/kg EV
1 2 3 4
10 20 30 40
Infundir em 5 a 10 minutos
20 mL
2 mEq/kg
1 2 3 4
4 8 12 16
Infundir em, no mínimo, 2 minutos Ventilar adequadamente
1 2 3 4
0,25 0,50 0,75 1
Infundir rapidamente EV/ET
Sangue total Bicarbonato de sódio
4,2%-0,5 mEq/mL Diluir em água destilada
Naloxome
0,4 mg/mL
EV 1 mL
0,1 mg/kg EV/ET
Tabela 15.4
Asfixia A asfixia perinatal é caracterizada pela deficiência no suprimento de oxigênio tecidual. São dois os mecanismos patogênicos: hipoxemia (diminuição do oxigênio circulante) e isquemia (diminuição da perfusão tecidual). Noventa por cento dos insultos asfíxicos acontecem nos períodos anteparto ou intraparto, como consequência da insuficiência placentária. O remanescente ocorre no pós-parto, normalmente secundário a insuficiência pulmonar, cardiovascular ou neurológica. De acordo com a Academia Americana de Pediatria, para o diagnóstico de asfixia perinatal são necessários os seguintes critérios:
Apgar de 0 a 3 por mais de cinco minutos.
acidemia metabólica ou mista profunda (pH < 7) em sangue do cordão umbilical.
manifestações neurológicas no período neonatal (convulsão, hipotonia, coma etc.).
disfunção orgânica multissistêmica (alterações renais, cardiovasculares, respiratórias etc.). Fatores de risco para a asfixia
Antenatais
Intraparto
Diabetes materno Doença hipertensiva da gestação Hipertensão crônica Sangramentos no 2º e 3º trimestres Infecção materna Oligo/Poli-hidrâmnio Gestação múltipla Gestação prolongada Anemia ou isoimunização Uso de drogas Malformação fetal
Trabalho de parto prolongado Trabalho de parto prematuro Rotura prolongada de membranas Fisometria Apresentação pélvica Mecônio Descolamento prematuro da placenta Placenta prévia Prolapso de cordão Anestesia geral Narcóticos 4 horas antes do parto Tabela 15.5
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166 Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia
Fisiopatologia: sequência de eventos 1- Hipoxemia inicial. 2- Alterações adaptativas circulatórias e hemodinâmicas
aumento do fluxo direita-esquerda através do forame oval;
Síndrome da hipertensão pulmonar persistente: a hipoxemia, hipercapnia, acidose e hipotensão geradas pela asfixia aumentam a resistência vascular pulmonar, favorecendo a persistência do padrão fetal circulatório e causando um shunt direita-esquerda por meio do canal arterial e forame oval, que intensificam ainda mais a hipoxemia, caracterizando o quadro de hipertensão pulmonar persistente.
redistribuição do fluxo a fim de manter as circulações cerebral e miocárdica;
redução do fluxo sanguíneo aos órgãos não vitais;
aumento da resistência vascular periférica e da pressão arterial inicialmente;
Síndrome do desconforto respiratório neonatal: a asfixia prejudica a síntese de surfactante pulmonar, pois a alteração do pH dificulta a via de incorporação da colina por alteração na atividade enzimática. Além disso, a vasoconstrição pulmonar, decorrente da acidose e hipercapnia, pode resultar em isquemia e lesão das células produtoras de surfactante.
falência miocárdica, cursando com queda no débito cardíaco e na pressão arterial na persistência do processo.
Síndrome de aspiração meconial: líquido amniótico meconial pode estar presente na vigência do processo asfíxico, facilitando o desenvolvimento dessa síndrome.
3- Alteração no ritmo respiratório: apneia primária seguida de apneia secundária. 4- Piora da hipoxemia, acidose lática e hipercapnia: a hipoxemia persistente impossibilita o metabolismo celular aeróbico, com formação de ácido lático e consequente redução do pH. A hipercapnia é agravada pela acidose e vasoconstrição periférica. 5- Esgotamento dos mecanismos adaptativos: redução da oferta de oxigênio aos órgãos vitais. 6- Disfunção de múltiplos órgãos.
Repercussões circulatórias A hipóxia conduz inicialmente a diminuição da atividade metabólica do miocárdio (redução do metabolismo aeróbico), cursando com queda na frequência cardíaca por ativação vagal e estímulo de barorreceptores periféricos, sendo seguida pela ativação transitória do sistema nervoso autônomo simpático, que gera taquicardia transitória e fugaz. Após o esgotamento dessa fase, há redução progressiva da reserva de glicogênio miocárdico (consumido pela glicólise), evoluindo com queda progressiva da frequência cardíaca e débito cardíaco. Ocorre, então, lesão tecidual com liberação de enzimas do músculo cardíaco e repercussões na repolarização. O esgotamento energético sobrevém do choque cardiogênico que, associado ao efeito direto da hipoxemia sobre o SNC, resulta em hipotensão com comprometimento do retorno venoso, aumento da permeabilidade vascular, hipovolemia e lesão dos demais órgãos e sistemas.
Repercussões pulmonares Apneia: pode surgir pela depressão do centro respiratório, secundária à hipoxemia no SNC.
Repercussões renais Necrose tubular aguda: a persistência da vasoconstrição renal gerada pela asfixia leva a isquemia tecidual, que, associada à presença de mioglobina liberada pelas fibras musculares, pode causar necrose tubular aguda. Trombose de veia renal: pode ocorrer pela coagulopatia e hipotensão decorrentes da asfixia.
Repercussões gastrointestinais Enterocolite necrosante: a vasoconstrição persistente na circulação mesentérica favorece o surgimento da enterocolite necrosante.
Repercussões hematológicas CIVD: é consequente à hipoxemia, que, associada à acidose e à hipotensão, resulta em lesão vascular, com aumento da permeabilidade e exposição de fatores ativadores da cascata de coagulação.
Repercussões endocrinológicas Síndrome da secreção inapropriada de ADH: pode estar relacionada ou não a lesão do SNC. Caracteriza-se por oligúria, hiperosmolaridade urinária, hiposmolaridade sérica e hiponatremia dilucional. Hipotiroxinemia transitória; hiperinsulinismo transitório; hiperaldosteronismo transitório; deficiência do hormônio de crescimento na infância.
Repercussões metabólicas Acidose metabólica: resultante da redução do pH sanguíneo e dos níveis de bicarbonato séricos e elevação da concentração sérica de lactato.
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167 15 Reanimação neonatal Hipoglicemia: é o distúrbio mais frequente e resultante do consumo dos estoques de glicogênio pelo metabolismo anaeróbico. Pode estar associada ao hiperinsulinismo transitório e à deficiência do hormônio de crescimento. Hipocalcemia: o estresse estimula a liberação de calcitonina, que é potencializada pela liberação de catecolaminas, cortisol e glucagon, que estimulam sua liberação. Hiponatremia: pode surgir acompanhada de hiposmolaridade sérica nos casos de síndrome de secreção inapropriada de ADH.
Repercussões neurológicas Encefalopatia hipóxico-isquêmica A encefalopatia hipóxico-isquêmica é uma síndrome clínica com manifestações de intensidade variável, pois suas repercussões dependerão do tempo, da gravidade e da duração da agressão do insulto hipóxico-isquêmico no cérebro do recém-nascido. Tem como principal causa a asfixia perinatal. O oxigênio e a glicose são os substratos necessários para a produção de energia que mantém o bom funcionamento da bomba de sódio, essencial para a estabilização do potencial elétrico da membrana citoplasmática dos neurônios. O fornecimento de glicose para o SNC é feito pela circulação sanguínea, visto que as reservas de glicose do SNC são praticamente inexistentes. Com a exaustão das reservas energéticas, ocorre falência nos mecanismos de manutenção dos potenciais de membrana, levando à despolarização e à liberação de neurotransmissores excitatórios (glutamato). A presença desses neurotransmissores na fenda sináptica leva à ativação de receptores de membrana, que permitem o influxo de cálcio para o interior da célula neuronal. O aumento do cálcio intracelular associado à reperfusão desencadeia alguns eventos bioquímicos, como ativação de enzimas degradativas e geração de radicais livres. O acúmulo do cálcio citosólico é o principal fator dentre as múltiplas lesões e a cascata de eventos irreversíveis que causam a morte celular decorrente da hipóxia-isquemia e da reperfusão.
motricidade ocular intrínseca e extrínseca (anisocoria, abolição do reflexo fotomotor). A ultrassonografia de crânio transfontanela e o EEG são exames complementares de importância ao diagnóstico. Não existe tratamento eficaz até o momento, exceto a prevenção.
Tratamento Primeiro passo (intervenção pós-natal imediata) Ocorre na sala de parto, onde é fundamental a reanimação efetiva e rápida do recém-nascido asfixiado. Nesse momento deve-se evitar a perda de calor excessiva, assim como evitar a hipertermia; estabelecer a respiração e expansão pulmonar. A necessidade de concentração de oxigênio de 100% durante a ventilação de recém-nascidos asfixiados vem sendo questionada, uma vez que o oxigênio está diretamente relacionado com a formação de radicais livres implicados com a lesão neurológica e de outros sistemas. Segundo o Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria, se após o nascimento o RN necessitar de ventilação com pressão positiva, esta deve ser realizada com oxigênio a 21%. Se a opção for iniciar com ar ambiente, o oxigênio deve estar disponível e ser utilizado caso o paciente não apresente melhora nos primeiros 30 segundos de ventilação com pressão positiva.
Segundo passo Devem ser tomadas medidas de suporte vital, como manutenção da oxigenação, da perfusão e da temperatura corpórea; equilíbrio metabólico (glicose), hidroeletrolítico (especialmente os íons cálcio, sódio e potássio) e acidobásico; além de medidas para evitar e minimizar edema cerebral e tratamento das convulsões.
Estágio 2: RN com letargia, hipotonia discreta, hipoatividade ou abolição dos reflexos arcaicos e ocorrência de crises convulsivas.
1. Ventilação/oxigenação: deve-se tentar manter os níveis de PaO2 e PaCO2 o mais próximos do normal. Evitar tanto a hipóxia como a hiperoxia e que a PaCO2 se situe abaixo de 35 mmHg. A hiperoxia pode promover redução no fluxo sanguíneo cerebral (FSC) ou potencializar a lesão de reperfusão causada pelo acúmulo de radicais livres. A hiperventilação também é contraindicada, pois a hipocapnia excessiva (PaCO2 < 25 mmHg) pode reduzir o FSC. A encefalopatia hipóxico-isquêmica frequentemente é acompanhada de doenças pulmonares. A síndrome de aspiração de mecônio e a hipertensão pulmonar persistente devem ser tratadas, quando ocorrerem, para evitar um agravamento do processo hipóxico cerebral.
Estágio 3: RN em coma, com hipotonia global ou posturas anormais (descerebração, decorticação), ausência de reflexos arcaicos e miotáticos e alterações da
2. Perfusão: é importante manter a pressão de perfusão cerebral (PPC), que consiste na diferença entre a pressão arterial média sistêmica (PAM) e a pressão
O quadro clínico neurológico é variado: Estágio 1: RN hiperalerta, com tremores grosseiros de extremidades, hiperatividade dos reflexos miotáticos, baixo limiar para o reflexo de Moro e tônus muscular preservado.
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168 Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia intracerebral (PIC) (PPC = PAM - PIC). A PIC do recém-nascido com EHI não é monitorada habitualmente na prática clínica. A perda da autorregulação cerebrovascular faz com que a PPC seja reflexo direto da PAM, e a manutenção da PPC requer uma PAM no mínimo entre 45 e 50 mmHg. A oxigenação do sistema nervoso central depende da PaO2 e da perfusão tecidual. A cardiopatia isquêmica causada pela lesão asfíxica causa diminuição da contratilidade cardíaca e do débito cardíaco. Para que o débito cardíaco seja mantido em níveis adequados e que se tenha uma pressão de perfusão efetiva, faz-se necessário o uso de drogas vasopressoras. 3. Temperatura: a importância da manutenção da temperatura corpórea dentro de uma faixa fisiológica é uma medida básica de suporte vital. Deve-se evitar a hipotermia e a hipertermia. 4. Glicose: a glicemia deve ser mantida em níveis fisiológicos, ou seja, 50 mg/dL a 80 mg/dL. A hipoglicemia é uma condição agravante, pois, além de reduzir reservas energéticas (ATP) e iniciar a cascata de eventos bioquímicos, pode potencializar os aminoácidos excitatórios (aspartato e glutamato) e aumentar o tamanho da área de hipóxia-isquemia cerebral. Por outro lado, não adianta manter níveis de glicose elevados como estratégia terapêutica. A hiperglicemia pode causar elevação do lactato cerebral, aumento da lesão celular e do edema intracelular e vários distúrbios na regulação do tônus vascular cerebral.
7. Tratamento de convulsões: ocorrem precocemente na evolução clínica da EHI, são focais ou multifocais. Recém-nascidos que têm pH < 7 no sangue de cordão e que mantenham acidose metabólica 2 horas após o nascimento apresentam crises convulsivas frequentemente nas primeiras 24 horas de vida. As crises convulsivas estão relacionadas com o aumento do metabolismo cerebral que ocorre na EHI. Os barbitúricos são preferíveis porque reduzem o metabolismo cerebral, promovendo a preservação de energia. Quando a convulsão é clinicamente bem-definida, a realização do EEG pode ser retardada, mas se o recém-nascido está em ventilação mecânica e paralisado com pancurônio, o EEG torna-se obrigatório. A distinção clínica entre convulsões multifocais e movimentos mioclônicos rítmicos segmentares é muito difícil e, portanto, o EEG é fundamental. A primeira escolha no tratamento das convulsões secundárias à encefalopatia hipóxico-isquêmica é o fenobarbital. Emprega-se dose de ataque de 40 mg/ kg, podendo ser administrados inicialmente 20 mg/kg seguidos de mais 20 mg/kg se necessário. Se as convulsões persistirem, é necessária a associação de fenitoína (20 mg/kg dose de ataque e manutenção de 4 a 8 mg/ kg/dia). As convulsões são difíceis de controlar nos estágios precoces da EHI (primeiras 72 horas), devendo-se atingir o nível máximo terapêutico do fenobarbital, quando necessário, para controle das crises.
5. Balanço hidroeletrolítico: cálcio: os níveis plasmáticos de cálcio devem ser mantidos em 7 mg/dL a 11 mg/dL. Hipocalcemia é uma alteração metabólica comum no recém-nascido asfixiado. Como os mecanismos que promovem lesão neuronal da EHI estão relacionados com o aumento do cálcio intracelular, a utilização de níveis de cálcio abaixo do normal com bloqueadores dos canais de cálcio poderia ser interessante, desde que não causasse efeitos cardiovasculares adversos, como o comprometimento da contratilidade miocárdica, além do maior risco de crises convulsivas secundárias à hipocalcemia; sódio e potássio: hiponatremia pode ocorrer por SSIHA ou por NTA. Hipercalemia é frequente nos recém-nascidos com insuficiência renal aguda decorrente de asfixia. A monitoração desses eletrólitos e sua correção, quando alterados, se fazem necessárias. 6. Edema cerebral: o recém-nascido que sofre uma agressão hipóxico-isquêmica tem predisposição à sobrecarga hídrica, principalmente em função da redução do débito urinário (oligúria) comum na EHI. Anúria ou oligúria (diurese inferior a 1 mL/kg/ hora) pode ocorrer por SSIHA (secreção inapropriada do hormônio antidiurético) ou por NTA (necrose tubular aguda). Ambas as situações devem ser manejadas com restrição hídrica (oferta de 60 mL/kg/dia). No manejo do recém-nascido asfixiado, no entanto, pode ser necessária a expansão volumétrica com soro fisiológico para manutenção da PAM e da PPC.
Terceiro passo (intervenções preventivas) 1. Barbitúricos: os barbitúricos em altas doses podem promover redução do metabolismo cerebral e da área de lesão isquêmica, especialmente o fenobarbital. O tratamento com fenobarbital antes do desenvolvimento das manifestações clínicas da EHI tem sido estudado como estratégia de neuroproteção. Estudo realizado com um número pequeno de recém-nascidos a termo gravemente asfixiados em que foi utilizado fenobarbital (40 mg/kg dose única, sem dose de manutenção) com uma idade média de 6 horas de vida e antes do início de crises convulsivas mostrou que aos três anos de idade havia uma diferença significativa entre os dois grupos com relação ao desenvolvimento neuropsicomotor, sendo o prognóstico mais favorável no grupo tratado. Porém o uso profilático ainda permanece controverso. 2. Bloqueadores dos canais de cálcio: o cálcio é o mediador central de uma série de eventos bioquímicos que causam a morte neuronal. É possível que a redução dos níveis de cálcio no citosol no momento da agressão hipóxico-isquêmica seja benéfica, mas os efeitos adversos cardiovasculares desses bloqueadores não compensam os eventuais benefícios da terapêutica. De momento, não existe indicação do uso de bloqueadores do canal de cálcio em recém-nascidos asfixiados.
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169 15 Reanimação neonatal 3. Varredores de radicais livres: os efeitos neuroprotetores dos varredores de radicais livres podem ser exercidos pela inibição da liberação do glutamato. Sabe-se que o influxo de cálcio é necessário para a liberação de glutamato nas terminações nervosas pré-sinápticas, levando à maior produção de radicais livres, e estes, por sua vez, exercem ações sobre a liberação de mais glutamato (importante aminoácido excitotóxico em células neuronais). Os inibidores da produção de radicais livres são: o alopurinol, que inibe a enzima xantina-oxidase; a indometacina, que inibe a ciclo-oxigenase; o ferro quelato, que reduz a produção do radical hidroxila; e o magnésio, que inibe a peroxidação lipídica. Todas essas ações são neuroprotetoras, mas a droga mais promissora para utilização como intervenção neuroprotetora é o alopurinol. 4. Sulfato de magnésio: não há indicações definidas para a administração de sulfato de magnésio em recém-nascidos a termo com EHI. Suas possíveis ações neuroprotetoras devem-se ao bloqueio do receptor NMDA, ação antioxidante, anticitocina e antiplaquetária. O efeito mais conhecido do magnésio é melhorar a perfusão fetal, promovendo vasodilatação e aumento do fluxo sanguíneo uteroplacentário. É muito empregado em gestações com risco fetal iminente, antes do nascimento. Entretanto, o efeito do magnésio administrado à mãe antes do parto como neuroprotetor fetal e neonatal é discutível e, portanto, não está indicado para uso clínico com esse objetivo. 5. Hipotermia protetora: há diversos estudos que empregam duas técnicas de resfriamento corpóreo, a fim de inibir, reduzir e melhorar a evolução da lesão cerebral e sequelas neurológicas decorrentes da EHI. A temperatura de resfriamento deve ser entre 32 °C e 34 °C; temperaturas inferiores a 32 °C são menos neuroprotetoras e, abaixo de 30 °C, foram observados efeitos adversos sistêmicos graves. Os modelos experimentais evidenciaram que a janela terapêutica é até 5,5 horas a 6 horas da agressão hipóxico-isquêmica. Na prática clínica, tem sido recomendado o início da hipotermia imediatamente após a lesão e mantida por 72 horas. O resfriamento corpóreo total deve ser iniciado antes de 6 horas, com até 72 horas de duração, mantendo-se temperatura retal entre 32 °C e 34 °C. A hipotermia tem sido efetiva em reduzir sequelas neurológicas, principalmente em recém-nascidos com encefalopatia hipóxico-isquêmica moderada e em melhorar o prognóstico em longo prazo dos recém-nascidos com EHI. Hoje, já é sabido que a hipotermia neuroprotetora é a atitude mais eficaz na redução de danos e sequelas no futuro para os RN com EHI. 6. Efeitos das citocinas na neuroproteção: os níveis elevados da IL-6 e do TNF-alfa no liquor de recém-nascidos a termo com EHI, principalmente quando relacionados com seus níveis plasmáticos, sugerem produção cerebral desses mediadores, em especial do TNF-alfa. Uma nova modalidade terapêutica poderá ser o emprego de bloqueadores cerebrais do TNF-alfa.
Convulsões no período neonatal O diagnóstico de crise convulsiva no período neonatal, apesar de muito importante, se torna difícil muitas vezes devido à utilização de fármacos curarizantes, manifestações clínicas muitas vezes sutis e pela presença de crises convulsivas eletroencefalográficas sem manifestações clínicas. A maioria das convulsões neonatais é identificada pela observação clínica, uma vez que em nosso meio não há disponibilidade de recursos diagnósticos na maioria dos serviços. Os tremores muitas vezes podem ser confundidos com convulsões; entretanto, algumas características os diferenciam:
ausência de movimentos oculares anormais;
ocorrem principalmente quando o recém-nascido é estimulado;
interrupção quando é feita a contenção suave ou flexão passiva;
os tremores são rítmicos, não tendo componentes rápidos e lentos;
os tremores não são acompanhados por bradicardia, taquicardia ou aumento da pressão arterial.
Além das convulsões neonatais que são diagnosticadas pela clínica e pelo eletroencefalograma simultâneo, existem também a convulsão clínica, que não apresenta correlação eletroencefalográfica, e a convulsão elétrica, que não é acompanhada por alterações clínicas. Foi demonstrado que 13% dos RNs apresentam apenas convulsões elétricas, 26% apresentam convulsões clínicas e elétricas e 58% evoluíram com manifestações clínicas sem correlação elétrica. Com base nesses achados, os autores propuseram uma classificação de convulsão de acordo com achados eletroclínicos. Classificação das convulsões neonatais Movimentos oculares Movimentos orobucolinguais Movimentos estereotipados de membros (pedalar, nadar, boxear) Clônica Focal Multifocal Tônica Focal Generalizada Mioclônica Focal Multifocal Generalizada Tabela 15.6 Sutis
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170 Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia Classificação das convulsões de acordo com achados eletroclínicos Convulsão clínica com sinal eletrocortical consistente Sutil (RNPT) Clônica focal e multifocal Tônica focal Mioclônica generalizada e focal Convulsão clínica sem sinal eletrocortical consistente Mioclônica focal e multifocal Tônica generalizada Sutil (RNT) Convulsão elétrica sem atividade clínica convulsiva RNPT: recém-nascido prematuro; RNT: recém-nascido a termo Tabela 15.7
Atualmente, os autores consideram que as convulsões elétricas sem atividade clínica convulsiva geralmente são encontradas nos RNs que estão fazendo uso de anticonvulsivantes, suprimindo então as manifestações clínicas. Segundo Volpe, todas as convulsões clínicas são de origem epiléptica, e aquelas que não são acompanhadas por atividade elétrica no eletroencefalograma (EEG) têm origem em estruturas cerebrais profundas (ou no diencéfalo ou no tronco cerebral) e, portanto, não são detectadas no EEG de superfície.
Etiologia A incidência relativa a várias causas de convulsão no período neonatal apresentou mudanças nos últimos anos devido a medidas preventivas pré-natais e pós-natais, novas técnicas de diagnóstico, identificação de etiologias pouco conhecidas e mudanças na população de risco (aumento da sobrevida dos prematuros). As convulsões no período neonatal podem ser secundárias a uma doença sistêmica ou a doença primária do SNC, e, em algumas situações, encontra-se uma etiologia multifatorial. A identificação da etiologia é importante para estabelecer o tratamento apropriado e determinar o prognóstico neurológico. A encefalopatia hipóxico-isquêmica é responsável por aproximadamente 65% das convulsões no período neonatal. Estas ocorrem nas primeiras 24 horas de vida, frequentemente nas primeiras 12 horas, podendo ser do tipo clônica multifocal, clônica focal ou sutil. A severidade e a frequência das convulsões são proporcionais ao grau da encefalopatia. As meningites bacterianas, principalmente causadas pelo estreptococo do grupo B e Escherichia coli, e as encefalites virais, causadas pelo vírus her-
pes simples, toxoplasmose e citomegalovírus, são responsáveis por 5% a 10% das convulsões neonatais. As meningites geralmente ocorrem no fim da primeira semana de vida, enquanto as encefalites por herpes, na segunda semana. Dentre os distúrbios metabólicos, a hipoglicemia é a causa mais frequente de convulsão no RN, acometendo principalmente os pré-termos, os pequenos para idade gestacional, os filhos de mãe diabética e aqueles que sofreram asfixia perinatal. As convulsões iniciam-se no segundo dia de vida e geralmente são focais. Quanto à hipocalcemia, as convulsões também são precoces e, em 50% dos casos, estão associadas às malformações cardíacas, sendo pouco frequentes. A hiponatremia pode resultar em convulsão quando estiver associada à síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético (SSIHA). Os erros inatos do metabolismo estão associados com encefalopatia e convulsão e devem sempre ser suspeitados em qualquer RN sadio com deterioração clínica após início da alimentação. O tratamento consiste na identificação e na correção do defeito metabólico o mais precocemente possível. As hemorragias intracranianas, do tipo subaracnóidea e subdural, frequentemente estão associadas ao trauma de parto no RN a termo e podem evoluir com convulsões nas primeiras 48 horas de vida. A hemorragia peri-intraventricular é uma lesão característica do RN pré-termo, que se apresenta nos primeiros três dias de vida. Nesses casos, as convulsões são do tipo tônica generalizada ou sutil e, geralmente, só ocorrem quando existe um envolvimento parenquimatoso cerebral importante. A disponibilidade da ressonância magnética do cérebro permite diagnosticar infarto cerebral secundário ao tromboembolismo, sendo este uma causa de convulsão do tipo clônica focal no RN. A administração inadvertida de anestésicos locais no couro cabeludo do recém-nascido no momento do parto pode levar a convulsões tônicas nas primeiras horas de vida, fazendo diagnóstico diferencial com encefalopatia hipóxico-isquêmica. A presença de pupilas fixas e dilatadas e a ausência do reflexo oculocefálico sugerem intoxicação pelo anestésico. A deficiência de piridoxina é responsável por convulsões severas, clônicas multifocais refratárias ao tratamento habitual. As convulsões aparecem nas primeiras horas de vida, e até convulsões intrauterinas têm sido relatadas. Na suspeita desse distúrbio, deve ser realizado um teste terapêutico com piridoxina endovenosa (EV).
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171 15 Reanimação neonatal Causas mais frequentes de convulsões em diferentes grupos etários
gasometria arterial, ureia e amônia;
ultrassonografia transfontanelar, tomografia computadorizada do cérebro e ressonância magnética;
eletroencefalografia.
Neonatal (nascimento a 28 dias de idade) Asfixia Hemorragia intracraniana Hipocalcemia
Estado de mal epiléptico
Hipomagnesemia Hipoglicemia
Definição e classificação
Hiponatremia/hipernatremia Infecções (intrauterinas, pós-natais) Malformações congênitas do sistema nervoso central Erros inatos do metabolismo Síndrome de abstinência de drogas Administração acidental de anestésicos Medicamentos Lactância e primeira infância (1 mês a 3 anos) Condições crônicas provenientes do período neonatal Infecções (meningites, encefalites) Traumas - Distúrbios metabólicos Neoplasias
O estado de mal epiléptico (EME) foi descrito pela primeira vez por Calmeil, em 1824, na sua tese de Epilepsie. Atualmente, é definido pela Liga Internacional Contra a Epilepsia e pela Organização Mundial de Saúde como a situação na qual uma convulsão persiste por um tempo suficientemente prolongado, ou é repetida com frequência de forma a produzir uma condição epiléptica fixa e duradoura. Esse tempo suficientemente prolongado tem sido considerado como 30 minutos. A definição de EME se refere a qualquer tipo de convulsão, com ou sem manifestação motora, que ocorra com tal frequência que não permita a recuperação da consciência entre as crises. Há várias classificações de EME, e, portanto, tantos tipos de EME quanto há de convulsões.
Transtornos degenerativos Complicações sistêmicas do estado de al epiléptico generalizado
Idiopáticas Medicamentos Infância e adolescência Condições crônicas provenientes do período neonatal Infecções (meningites, encefalites) Traumas
Sistema nervoso central Hipóxia/anóxia cerebral Edema cerebral Hemorragia cerebral Trombose venosa central Sistema cardiovascular Infarto do miocárdio Hipo/hipertensão Disritmias Parada cardíaca Choque cardiogênico
Distúrbios metabólicos Neoplasias Transtornos degenerativos Idiopáticas
Sistema respiratório Apneia/hipopneia Insuficiência respiratória Pneumonia aspirativa Hipertensão pulmonar e edema Embolia pulmonar
Medicamentos Uso de drogas Tabela 15.8
Abordagem diagnóstica As convulsões neonatais raramente são idiopáticas; portanto, todo esforço deve ser realizado na identificação de sua etiologia. A história da gestação e do parto e os exames físico e neurológico detalhados do RN são as etapas iniciais. Posteriormente, segue-se a investigação laboratorial:
hemograma com plaquetas e proteína C reativa;
glicose, sódio, cálcio e magnésio séricos;
estudo do liquor;
sorologia para infecções congênitas;
Alterações metabólicas Desidratação Alterações eletrolíticas (por exemplo: hiponatremia, hipoglicemia, hipercalemia) Acidose metabólica Necrose tubular aguda Necrose hepática aguda Pancreatite aguda Outras Disfunção de múltiplos órgãos Coagulação intravascular disseminada Rabdomiólise Fraturas
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Tabela 15.9
172 Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia
Tratamento As convulsões neonatais representam especificamente um insulto neurológico, portanto devem ser identificadas e tratadas ao mesmo tempo em que se realiza a investigação etiológica. O tratamento das convulsões neonatais é realizado atualmente com drogas anticonvulsivantes que são bastante eficazes, pois estudos sugerem que as crises convulsivas repetitivas ou prolongadas resultam em injúria cerebral significativa. Além do tratamento etiológico e do controle das convulsões, alguns cuidados com o RN são fundamentais, tais como:
estabilizar o RN do ponto de vista respiratório e hemodinâmico;
corrigir distúrbios metabólicos e eletrolíticos; manuseio mínimo do RN e mantê-lo em um ambiente o mais tranquilo possível;
monitoração contínua (frequências respiratória e cardíaca, saturação).
Principais drogas anticonvulsivantes Fenobarbital É a droga de escolha para as crises convulsivas e a primeira a ser indicada. É eficaz no controle de 75% das crises convulsivas. 1. Dose de ataque: 20 mg/kg/dose EV, feito lentamente em 10 a 15 minutos, podendo utilizar doses adicionais de 5 a 10 mg/kg/dose, a cada 15 minutos, até completar uma dose total de 40 mg/kg/dose. Nos RNs asfixiados ou com disfunção renal ou hepática, a dose de 40 mg/kg de fenobarbital pode levar à sedação excessiva por vários dias, dificultando sua avaliação neurológica, além de desenvolver efeitos tóxicos no sistema cardiovascular. O fenobarbital EV pode levar ao colapso cardiocirculatório no prematuro extremo. 2. Dose de manutenção: 3,5 a 5 mg/kg/dia a cada 12 horas, EV, iniciada 12 horas após a dose de ataque. O nível sérico terapêutico do fenobarbital é de 20 a 40 mg/mL. A monitorização desses níveis séricos deve ser realizada na ausência de resposta ao tratamento e na suspeita de intoxicação pela droga.
Fenitoína A fenitoína está indicada quando não houver resposta ao fenobarbital, sendo então associada ao esquema terapêutico. 1. Dose de ataque: 15 a 20 mg/kg/dose EV, numa velocidade de infusão 1 mg/kg/min para evitar arritmias cardíacas ou hipotensão. 2. Dose de manutenção: 57 mg/kg/dia a cada 12 horas, iniciada 12 horas após a dose de ataque. Assim que for possível, deve-se suspender a fenitoína, mantendo o fenobarbital como única droga anticonvulsivante.
Benzodiazepínicos Os benzodiazepínicos mais utilizados são o diazepam, o lorazepam e, no nosso meio, o midazolam. Atualmente, devido a algumas restrições, o diazepam é raramente indicado nas convulsões neonatais. O lorazepam tem ação semelhante à do diazepam, porém possui meia-vida maior e leva a menores sedação, hipotensão e depressão respiratória. A dose é de 0,05 a 0,1 mg/kg EV em 2 a 3 minutos, produzindo um efeito anticonvulsivante rápido em alguns minutos. Essa dose pode ser repetida a cada 4 a 8 horas. No Brasil, não dispomos da apresentação injetável. Dentre os benzodiazepínicos, o midazolam é o mais utilizado em nosso meio, sendo indicado nos casos severos de convulsões que não respondem ao fenobarbital ou à fenitoína. Após controle das crises convulsivas, o desmame do midazolam deve ser feito lentamente, pelo risco da síndrome de abstinência.
Outras drogas O tiopental pode ser indicado nos casos mais graves, desde que o RN esteja em ventilação mecânica e com controle rigoroso dos seus efeitos colaterais. Os estudos relatam uma incidência de 10% a 30% de epilepsia posterior às convulsões neonatais. Segundo Volpe, a decisão de suspender o tratamento, seja no período neonatal, seja posteriormente, deve ser baseada no exame neurológico do RN, na etiologia da convulsão e no eletroencefalograma. Caso se opte por manter o tratamento depois do período neonatal, o fenobarbital é a droga de escolha.
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173 15 Reanimação neonatal Droga Fenobarbital
Dose de ataque IV 20-40 mg/kg
Dose de manutenção 3,5-5 mg/kg/dia EV 5-7 mg/kg/dia VO
Difenil-hidantoína
15-20 mg/kg EV
5-7 mg/kg/dia EV
Midazolam
0,2-0,5 mg/kg EV
0,1-0,5 mg/kg/hora EV contínuo
Tiopental
10 mg/kg EV
0,5-5 mg/kg/hora EV contínuo Tabela 15.10
Manejo geral do estado de mal epiléptico ABC Avaliação e controle da via aérea Avaliação da ventilação e circulação Oxímetro de pulso Oxigênio por máscara ou cânula nasotraqueal Se for necessária intubação intratraqueal (considerar o paciente com estômago cheio e usar a sequência rápida de intubação) Monitorização dos sinais vitais. Se houver hipertermia, tratá-la História, exame físico e neurológico Identificar e corrigir problemas metabólicos Exames: glicemia, níveis de drogas antiepilépticas, dosagem de cálcio e magnésio, provas de funções hepática e renal, eletrólitos plasmáticos, exame toxicológico Acesso intravenoso Estudo inicial Ultrassonografia transfontanela Tomografia axial computadorizada (TAC) de crânio Eletroencefalograma Punção lombar, se existe dúvida de infecção. Idealmente, deve-se realizar depois da TAC e quando cessarem as convulsões Tabela 15.11
Prognóstico A etiologia e a gravidade do processo neurológico responsável pela convulsão neonatal são o fator determinante do prognóstico neurológico do RN. Este é reservado para encefalopatia hipóxico-isquêmica grave, erro inato do metabolismo, encefalopatia por herpes, hemorragia parenquimatosa e malformações do SNC. A normalidade do exame neurológico e do EEG intercrises relaciona-se com uma evolução neurológica favorável.
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CAPÍTULO
2
Crescimento da criança
As crianças são quase sempre felizes, porque não pensam na felicidade. Os velhos são muitas vezes infelizes porque pensam demasiadamente nela. Paolo Mantegazza
Introdução A análise e a vigilância do crescimento constituem ações fundamentais do pediatra, sendo também os diagnósticos do estado nutricional e do crescimento das crianças reveladores e indicadores de saúde de uma população. A monitorização do crescimento infantil permite a detecção precoce de atrasos e desvios, os quais deverão ser seguidos por adequadas medidas corretivas e de investigação. O crescimento, componente físico (somático) das transformações da criança em desenvolvimento, é um fenômeno multifatorial, determinado por dois conjuntos de fatores: os intrínsecos e os extrínsecos. Os fatores intrínsecos, endógenos ou constitucionais são representados pela complexa integração hormonal e pela bagagem/instrução genética que o indivíduo carrega desde a sua concepção e que identifica o seu potencial para
o crescimento. Essa é uma herança direta de seus pais, mas que também se relaciona de maneira imediata com o(s) grupo(s) étnico(s) que os mesmos integram. Entretanto, e de modo mais especial, o fenômeno do crescimento é bastante sensível às influências externas, fatores considerados extrínsecos ou exógenos. Desta forma, mesmo reconhecendo a importância dos fatores da “programação pré-estabelecida”, a real evolução do crescimento acaba sendo modulada também pelo ambiente. Condições relacionadas à saúde e à nutrição da gestante, nutrição infantil e morbidade, sem dúvida alguma, influenciam no crescimento infantil. Entretanto, o ambiente deve ser entendido na sua concepção mais ampla, incluindo uma variedade de fatores e características sociais, econômicas, culturais, psicológicas e biológicas que o compõem e nos quais o indivíduo está imerso durante toda a sua vida. Assim, de uma adequada interação biológica-ambiental resulta o cresci-
12 Puericultura
Em cada etapa do crescimento humano, fatores intrínsecos e extrínsecos tomam maior ou menor importância nessa interferência no crescimento. Ao nascer, por exemplo, o peso e a estatura da criança relacionam-se melhor com as condições de vida intrauterina (ambiente) do que com a herança genética. Da mesma forma, durante o primeiro ano de vida, alimentação adequada, estímulos, carinho da família e ausência de doenças propiciam, de maneira geral, um crescimento adequado. Por outro lado, quando um adolescente preocupado com sua estatura é atendido, informações relacionadas à altura e ao desenvolvimento puberal dos pais devem, agora, necessariamente ser avaliados.
24 23 22 21 20 19
Velocidade de crescimento cm/ano
mento normal de uma criança, que, apesar dessa complexidade, até certo ponto, ocorre de maneira previsível. Espera-se, particularmente se o puericultor cumpre o seu papel de monitorar as condições ambientais mais favoráveis possíveis, que, na fase adulta, haja a expressão máxima do potencial genético.
18 17 16 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19
Idade (anos)
Etapas do crescimento Para a monitorização do crescimento esquelético, utiliza-se uma variável de avaliação evolutiva, que permite acompanhar os incrementos anuais de estatura: a velocidade de crescimento (VC), expressa na unidade “centímetros por ano”. Esses dados podem ser projetados em função da idade, resultando em uma curva de velocidade de crescimento (Figura 2.1). A análise da velocidade de crescimento se constitui como o método mais sensível para se reconhecer os desvios do crescimento normal. O crescimento apresenta fases distintas, caracterizadas por amplas variações em sua velocidade, relacionadas à oferta alimentar, às influências psicossocial e ambiental, bem como à ação hormonal predominante em cada fase. O crescimento intrauterino é composto por uma fase inicial (embrionária) com intensa proliferação celular, caracterizando um período acelerativo do crescimento, no qual o incremento estatural chega a valores da ordem de 10 cm por mês (entre o quarto e quinto meses de gestação). Segue-se uma fase de crescimento estatural menor, embora de maior incremento de peso. Assim, considera-se que a aceleração do crescimento intrauterino ocorra particularmente na primeira metade da gestação, havendo uma desaceleração no final do período gestacional. A criança nasce, portanto, expressando um movimento desacelerativo de seu crescimento estatural, que pode ser graficamente observado na curva de velocidade de crescimento pós-natal.
Figura 2.1 Curva de velocidade de crescimento expressa pela idade (VC).
A observação da curva de velocidade de crescimento permite a identificação de três momentos fundamentais do crescimento humano: Fase 1 (lactância): fase de crescimento rápido, porém desacelerado. A velocidade de crescimento do primeiro ano de vida é a mais alta da vida extrauterina e é cerca de 25 cm/ano, reduzindo-se drasticamente nos dois primeiros anos de vida. Fase 2 (infância propriamente dita): fase de crescimento lento, mas estável e constante. São comuns nos consultórios pediátricos queixas familiares do tipo “meu filho não come” e “meu filho não cresce”, por ser um momento de “baixa” velocidade de crescimento, particularmente quando comparada à fase pregressa. A VC média varia de 4 a 6 cm por ano (5 a 7 cm/ano, segundo algumas referências) e é chamada de infantil ou pré-puberal, pois somente se modificará na fase seguinte. Fase 3 (puberdade): novamente uma fase de crescimento rápido, com aceleração e posterior desaceleração, até, finalmente, o término do processo de crescimento. Os períodos de intenso crescimento são momentos de grande vulnerabilidade aos agravos exógenos, particularmente os nutricionais, que, quando ocorrem, promovem prejuízos irreparáveis. Serão momentos nos quais a vigilância deve se intensificar. Atualmente, atenção especial tem sido dedicada ao acompanhamento de crescimento na terceira fase do crescimento (adoles-
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13 2 Crescimento da criança cência); historicamente, sempre houve muita atenção e cuidado com os bebês (puericultura clássica), justificada pelo intenso crescimento que aí se processa. Não podemos desconsiderar, entretanto, que agravos que ocorram durante a puberdade (e não são raras as situações de doenças crônicas que nesse período se manifestam ou distúrbios nutricionais e transtornos alimentares, como alguns exemplos) comprometem sobremaneira a estatura final do indivíduo.
Monitorização do crescimento e os referenciais Uma das tarefas do puericultor na avaliação do crescimento de uma criança é a identificação de fatores de risco que o comprometam. Um pré-natal bem realizado já é a primeira profilaxia para agravos estaturais futuros. Em uma anamnese cuidadosa, dados de instrução e profissão dos pais, das condições habituais de vida da criança (saneamento ambiental, salubridade domiciliar), acesso aos recursos de saúde, renda familiar, condições de gestação e nascimento (doenças maternas, uso de medicamentos ou drogas, peso e comprimento ao nascer, intercorrências perinatais), passado e presente mórbido na infância, história alimentar e padrão de crescimento familiar facilitam a identificação de fatores de risco para os distúrbios de crescimento. O maior desafio que então se estabelece é a avaliação da normalidade do crescimento. Para tanto, utiliza-se a análise de parâmetros mensuráveis (antropometria clínica). Com equipamentos simples (balança, régua e fita métrica), peso, comprimento (estatura da criança deitada, obtida com a régua antropométrica horizontal, até cerca de dois anos) ou altura (estatura da criança em posição ortostática, aferida com estadiômetro vertical), perímetro cefálico, perímetro braquial, pregas cutâneas, diâmetros, relação segmento superior/inferior e outros índices podem ser facilmente obtidos. Essas medidas podem ser tomadas e analisadas de forma isolada ou, o que é preferível, de maneira sequencial (evolutiva), derivando-se o conceito de tendência e de velocidade, pois o crescimento é um processo contínuo e dinâmico. Em particular, as medidas de estatura devem ser tomadas a intervalos entre quatro a seis meses, pois, sendo o crescimento um fenômeno que sofre oscilações, medidas consideradas em intervalos muito curtos podem induzir erro de cálculo. Sendo o crescimento caracterizado basicamente pela variabilidade individual, as observações são baseadas na posição do indivíduo em relação a um grupo de referência. Portanto, para
a análise desses parâmetros, recorrem-se aos referenciais, construídos com base em amostras representativas da variabilidade de uma população. Em Pediatria, esses instrumentos são comumente conhecidos como “curvas de crescimento”. Na prática diária, os referenciais antropométricos são de extrema utilidade em Pediatria, pois ainda não se dispõe de instrumentos que permitam predizer, de maneira individualizada, qual é o padrão normal de crescimento da criança ou do adolescente avaliado. Como consequência, a única forma mais objetiva de avaliar a normalidade é comparar as medidas de cada indivíduo com as de seus pares, isto é, crianças e adolescentes de mesma idade e mesmo sexo, e analisar a evolução de seus parâmetros antropométricos em função da idade. Dessa forma, os estudos auxológicos populacionais geram curvas úteis para a avaliação do crescimento e do estado nutricional de uma população, mas também se constituem no instrumento do pediatra para avaliar o crescimento de seus pacientes individualmente. Nesses instrumentos, são identificados os pontos de corte para a interpretação da “normalidade” do parâmetro estudado. Alguns critérios são necessários para a construção de um adequado referencial de crescimento, como a utilização de indivíduos normais e sadios, amostragem randomizada, equipamentos de aferição adequados e calibrados e utilização de procedimentos estatísticos e matemáticos corretos no tratamento dos dados. O objetivo de todos esses cuidados é produzir dados precisos, acurados e confiáveis. Os dados podem ser coletados prospectivamente, ao longo do tempo, sempre da mesma amostra de crianças, mensuradas em diversas idades à medida que crescem. Esse tipo de estudo é chamado de longitudinal. Como alternativa se utilizam diversas amostras de crianças e adolescentes, de diferentes idades, medidas num mesmo momento, cujos dados são posteriormente tratados matematicamente como se fossem de uma mesma amostra acompanhada ao longo do tempo. Essa forma de elaboração de referenciais é a mais frequente na literatura e corresponde aos estudos denominados transversais. Realizados todos os cálculos com base em modelos matemáticos complexos, os valores são reunidos em tabelas e gráficos, organizados sob a forma de percentil e/ou de escore z. Na clínica pediátrica prática, o percentil é uma escala muito utilizada, devido à sua simplicidade de interpretação. Percentil é um termo estatístico e refere-se à posição ocupada por determinada observação no interior de uma distribuição. Para obtê-lo, os valores da distribuição devem ser ordenados do menor para o maior, em seguida, a distribuição é dividida em 100 partes de modo que cada observação corresponda a um percentil daquela distribuição. O percentil, indicado com a letra “p” seguida do número que lhe corresponde, portanto, situa o parâmetro estudado em relação ao grupo de 100 (cem) de seus semelhantes.
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14 Puericultura P50, por exemplo, indica que 50% das crianças estão acima dessa cifra, e 50% abaixo. No caso de uma criança que está no percentil 70 de peso para idade, interpreta-se que 70% das crianças na mesma idade têm peso inferior e que 30% têm peso maior. Assim, os valores de tendência central (próximos ao percentil 50) são também os mais frequentemente observados na população normal, enquanto os de extremos são os mais raros. Essa característica proporciona a quem utiliza a classificação em percentil uma percepção quase intuitiva do risco de anormalidade (ou de normalidade), do parâmetro observado. Quanto mais próximo dos valores extremos for o valor obtido do paciente, menor será sua chance de ser normal, embora, por definição, ainda possa sê-lo, pois todos os valores previstos no gráfico são de indivíduos supostamente normais, mesmo que alguns sejam muito pouco frequentes na população. Quando se estudam os dados antropométricos de um grupo de indivíduos, os dados dispostos em um gráfico de valor e frequência originam uma curva em forma de sino, uma curva de distribuição normal (curva de Gauss). O pico da curva corresponde à mediana (que coincide com a média) dos dados. O desvio-padrão (dp) é a forma matemática que permite quantificar o grau de dispersão dos dados em relação ao ponto central. A distância da mediana é avaliada em unidades de desvios-padrão, considerando-se que cada desvio-padrão de diferença da mediana corresponde a uma unidade de escore z. Para variáveis que seguem a distribuição gaussiana, a amplitude de valores +/−1 dp engloba aproximadamente 68% dos indivíduos. Entre +/−2 dp, encontram-se 95% dos indivíduos. Uma das metodologias utilizadas para análise de um parâmetro é o “z score” que, grosso modo, indica o “afastamento” (em dp) da média do referencial. A utilização da análise do escore Z tem sido recomendada nos gráficos atuais (em substituição a análise dos dados em percentis). O escore Z, portanto, representa a distância, medida em unidades de desvio-padrão, que os vários valores daquele parâmetro podem assumir na população em relação ao valor médio que a mesma apresenta. O escore Z de um parâmetro individual, qualquer que seja (peso, estatura, perímetro cefálico etc.) é a relação da diferença entre o valor medido naquele indivíduo e o valor médio da população de referência, dividida pelo desvio-padrão da mesma população, representado pela fórmula: ESCORE Z = (valor observado para o indivíduo) – (valor da mediana do referencial)/desvio-padrão do referencial. Um escore Z > 0 (positivo) significa que o valor da medida do indivíduo é maior do que a média da população de referência e um escore Z < 0 (negativo) corresponde a um valor menor que a média. No caso específico da antropometria, o escore Z representa o desvio do valor da média de um indivíduo (exemplo: seu peso ou sua estatura), em relação ao valor da média da população de refe-
rência, dividido pelo desvio-padrão dessa população. Exemplo: se para meninos de 7 anos a altura média é de 121,7 cm e o desvio-padrão da medida é de 5 cm, um menino que tenha uma altura de 124 cm terá um escore Z de 0,46 de altura para a idade. Média ou mediana p 50
p 0.13
p 2.28
p 15.8
p 84.2
p 10
p 97
-1.881 -1.282
-2.0
p 99.87
p 90
p3
-3.0
p 97.72
-1.0
0.0
1.282
1.0
1.881
2.0
3.0
Escore Z
Figura 2.2 Curva de Gauss evidenciando as correlações entre percentil e escore Z e sua distribuição ao redor da mediana. Esco- PerInterpretação re-z centil -3 0,1 Espera-se que em uma população saudável sejam encontradas 0,1% das crianças abaixo desse valor. -2 2,3 Espera-se que em uma população saudável sejam encontradas 2,3% das crianças abaixo desse valor. Convenciona-se que o equivalente ao escore-z -2 é o percentil 3. -1 15,9 Espera-se que em uma população saudável sejam encontradas 15,9% das crianças abaixo desse valor. 0 50,0 É o valor que corresponde à média da população, isto é, em uma população saudável, espera-se encontrar 50% da população acima e 50% da população abaixo desse valor. +1 84,1 Espera-se que em uma população saudável sejam encontradas 84,1% das crianças abaixo desse valor, ou seja, apenas 15,9% estariam acima desse valor. Convenciona-se que o equivalente ao escore-z +1 é o percentil 85. +2 97,7 Espera-se que em uma população saudável sejam encontradas 97,7% das crianças abaixo desse valor, ou seja, apenas 2,3% estariam acima desse valor. Convenciona-se que o equivalente ao escore-z +2 é o percentil 97. +3 99,9 Espera-se que em uma população saudável sejam encontradas 99,9% das crianças abaixo desse valor, ou seja, apenas 0,1% estariam acima desse valor. Tabela 2.1 Correlações entre percentil e escore Z e sua interpretação.
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15 2 Crescimento da criança A Organização Mundial da Saúde tem recomendado cada vez mais o uso do escore Z, o que permite uma padronização e uma maior comparabilidade entre as estatísticas dos diferentes países. Contudo, como historicamente o Brasil vinha adotando o sistema em percentis, será realizada uma modificação gradual entre os sistemas, sempre lembrando o seguinte quadro da relação de equivalência entre os percentis e os escores-z: Escore-z -3 -2 -1 0 +1 +2 +3
Percentil 0,1 3 15 50 85 97 99,9
Tabela 2.2 Resumo da correlação entre percentil e escore Z.
Nos últimos anos numerosos autores, de vários países, produziram diversos referenciais, gerando uma ampla discussão acerca de qual seria melhor utilizar. Para tal resposta, era entendimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) ser desejável que todas as nações tivessem seu próprio referencial antropométrico, por uma questão de identidade genética. Infelizmente, a própria OMS reconhecia que as dimensões da tarefa e dos recursos necessários para a sua elaboração e atualização contínua inviabilizam a sua realização. Em nosso meio, dois referenciais historicamente merecem ser destacados. O estudo do Center for Diseases Control e National Center of Health Statistics (CDC/NCHS – versão 2000), atualização do gráfico NCHS-1977, realizado com crianças norte-americanas, era o mais conhecido referencial internacional de crescimento, sugerido pela própria OMS, durante um tempo, para os países que não tinham referencial próprio, adequadamente confeccionado. Apesar de passível de alguns questionamentos metodológicos (um dos principais era o fato de as crianças terem recebido fundamentalmente fórmulas infantis), esse referencial é interessante pelos parâmetros que apresenta: peso, estatura, perímetro cefálico para idade e sexo, peso para estatura e também IMC (Índice de Massa Corpórea) por idade e sexo. Particularmente no estado de São Paulo, o estudo de Marcondes e cols. (1982), realizado no município de Santo André, Grande São Paulo, e conhecido como Referencial Santo André – Classe IV, foi muito utilizado, em serviços de Pediatria brasileiros. Embora se considere que um referencial, idealmente, deve ser geneticamente o mais próximo possível do correspondente à população na qual é utilizado, instituições internacionais como a OMS admitem que se possa utilizar um referencial internacional comum.
Além disso, o uso de um mesmo referencial teria a vantagem de viabilizar comparações entre diversos grupos populacionais. Desde a metade da década de 1990, um grupo de peritos, contando com apoio da OMS, trabalhou na elaboração de um referencial (ou de um padrão) de crescimento aplicável para as crianças de até cinco anos de idade. Torna-se, neste momento, importante a diferenciação entre “referencial” e “padrão”. Referencial, conforme já apresentado, representa, num determinado momento, uma “fotografia” que reflete a variabilidade de determinada população, supostamente normal, do mesmo sexo e idade, que vive em boas condições e que serve para que se façam comparações. Padrão de crescimento engloba, de maneira mais ampla e com mais “pretensão”, o crescimento que “devemos esperar” que o nosso paciente siga durante sua evolução. A construção das novas curvas para menores de 5 anos incorporou uma série de métodos estatísticos mais sofisticados, os quais permitiram lidar melhor com a variabilidade do crescimento infantil. Por isso, estas curvas são mais que uma referência, tratam-se de um padrão de crescimento. Um padrão é, portanto, um modelo a que todos devem se igualar. Logo, pode-se afirmar que todo padrão é uma referência, mas nem toda referência é um padrão. As curvas de crescimento recentemente apresentadas pela OMS, a partir de 2006 (Multicentre Growth Reference Study – MGRS), resultam de um estudo multicêntrico, com amostras de crianças saudáveis de seis países: Brasil (Pelotas, RS), Gana (Acra), Índia (South Deli), EUA (Davis, Califórnia), Noruega (Oslo) e Omã (Muscat), de diferentes etnias, vivendo em condições as mais adequadas possíveis para expressar seu potencial de crescimento, incluindo, entre estas, um padrão de aleitamento materno condizente com o preconizado pela OMS como adequado. Trata-se de um estudo semilongitudinal. A faixa etária de menores de cinco anos foi priorizada em decorrência dos maiores riscos de morbimortalidade que apresentam. O empenho da OMS e dos peritos que realizaram esse estudo foi no sentido de produzir valores prescritivos, e não apenas de referencial, já que pelos pressupostos metodológicos envolvidos na sua realização, o que se procurou elaborar foi um padrão de crescimento que fosse muito semelhante ao padrão de crescimento, biologicamente, em condições ideais. A disponibilização do referencial OMS, metodologicamente bem confeccionado, praticamente tornou obsoletas as polêmicas existentes acerca de qual o melhor referencial a ser adotado na ausência de um referencial local. Quais as consequências de sua adoção na rotina em dados de prevalência, seu impacto sobre as políticas e os programas de atenção, somente poderão ser aqui-
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16 Puericultura latadas com a experiência adquirida em decorrência do tempo de sua utilização. Este referencial, a OMS 2006, indubitavelmente tem vantagens sobre o anteriormente preconizado (CDC/NCHS 2000), inclusive por trazer referência para mais parâmetros antropométricos, além de ter referencial de índice de massa corporal também para as crianças com menos de 2 anos de idade. No endereço eletrônico da OMS (www.who.int/childgrowth/standards/en) é possível baixar livremente os gráficos.
consideradas de risco nutricional deixem de sê-lo ou vice-versa, de maneira que nunca é demais relembrar que o diagnóstico de crescimento e/ou nutricional de uma criança ou adolescente não deve nunca se basear apenas nos dados antropométricos. As medidas corpóreas, na maioria das vezes, servem apenas para uma triagem inicial ou ajudam na elaboração do diagnóstico – que, exceto em casos muito pronunciados, só pode ser confirmado por uma avaliação clínica completa.
Em decorrência do fato do novo referencial ser adotado, a OMS identificou a necessidade de oferecer outro, que pudesse ser utilizado em continuidade ao de 2006, ou seja, para os maiores de 5 anos. Assim, em 2007 a OMS propôs um novo referencial, para ser utilizado para crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos de idade. Denominado Referencial OMS 2007, contempla tabelas e gráficos de estatura para idade, de peso para idade (estes apenas até os 10 anos) e de índice de massa corporal para idade, obviamente referentes a ambos os sexos. A limitação do referencial de peso apenas até os 10 anos foi uma decisão adotada pelos peritos, principalmente em decorrência da grande variabilidade que o surto de desenvolvimento puberal exerce sobre o peso a partir dessa idade. Na realidade, o Referencial OMS 2007 pode ser considerado novo apenas por se tratar de uma reconstrução de tabelas e gráficos a partir dos dados do CDC/NCHS 1977, realizada de maneira a atenuar algumas limitações de interpretação anteriormente existentes. Após esse reprocessamento dos dados, a OMS considerou válida a utilização do referencial resultante na rotina, inclusive pelo fato de os novos dados não apresentarem grande discrepância no ponto de junção com o Referencial OMS 2006, aos 5 anos de idade. Esses gráficos também podem ser baixados livremente no endereço eletrônico da OMS.
Mas, na prática, como se comparam a curva antiga (NCHS) com a nova curva da OMS? O que se observa na comparação do crescimento que as crianças alcançaram aos cinco anos de vida é que os valores de peso e estatura são muito semelhantes entre os dois referenciais (CDC/NCHS e OMS). Entretanto, o padrão médio de evolução ponderal é completamente diferente entre os referenciais. O da OMS apresenta o que seria, pelo CDC/NCHS, uma aceleração inicial do ganho de peso, seguida por uma importante desaceleração do ganho ponderal, começando entre os 3-4 meses de idade e persistindo até os 18 meses, quando se inicia uma nova fase de ganho de peso. Quanto ao crescimento estatural, pode-se ver que a evolução de sua tendência é muito semelhante, porém apresentando inflexões de intensidade muito menor. O crescimento linear desacelera nos mesmos momentos de vida, entretanto, o faz de modo muito menos acentuado, nunca atingindo valores inferiores aos do CDC/ NCHS. Esse aspecto de que o crescimento em estatura não é afetado significativamente durante o período de desaceleração do peso sugere que o padrão observado de evolução do peso deve ser realmente o natural, caso contrário, por sua intensidade e duração, certamente comprometeria de maneira importante o comprimento da criança. A importância clínica desse fenômeno é muito grande, pois, ao se aceitar que o da OMS é o padrão normal de evolução de peso, não há necessidade de se fazer nenhuma intervenção que vá além do acompanhamento. Essa interpretação ainda está sendo esclarecida e somente será definitiva após a utilização crítica do novo referencial.
O Ministério da Saúde do Brasil adota as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto ao uso de curvas de referência para avaliação do estado nutricional. Assim, para crianças menores de cinco anos, recomenda-se utilizar a referência da OMS lançada em 2006 (WHO 2006), que já consta na Caderneta de Saúde da Criança. Para as crianças com cinco anos ou mais e adolescentes, recomenda-se o uso da referência internacional da OMS lançada em 2007 (WHO 2007). Os novos referenciais, portanto, os novos valores estimados como normais, resultam obviamente numa reclassificação de todos os casos, particularmente dos que já estavam próximos do limite da normalidade, seja superior, seja inferior. Isso implica numa análise muito cuidadosa dos resultados obtidos nestas fases iniciais de sua utilização. É muito provável que crianças
Em resumo, a utilização dos gráficos permite, em um determinado momento, classificar uma criança em relação a uma população eutrófica de referência. Entretanto, a comparação deve ser, se possível, prospectiva, observando-se o processo evolutivo de crescimento. Em condições normais, uma criança seguirá, com pequenas oscilações, um canal de crescimento que será seu padrão individual. Grandes oscilações, que modifiquem essa tendência, devem alertar o pediatra quanto à necessidade de investigação de fatores interferentes no processo de crescimento. É importante lembrar, entretanto, que existe ampla variabilidade no crescimento normal nos primeiros dois anos de vida e, durante a adoles-
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17 2 Crescimento da criança cência, períodos em que podem ocorrer mudanças fisiológicas no canal de crescimento. A curva de crescimento representa um instrumento para a monitorização desse fenômeno. A interpretação correta, contudo, além de depender da confiabilidade no referencial escolhido (já discutido acima), ainda depende de outros requisitos importantes:
confiabilidade na obtenção e no registro dos dados antropométricos. A correta determinação da estatura depende de um rigor no posicionamento do paciente e da repetição das medidas. Em especial, para crianças maiores e adolescentes, os estadiômetros (réguas) de primeira escolha são os que permitem o apoio de toda a região dorsal (instrumentos de parede), em detrimento das réguas convencionais de balança;
seguimento evolutivo do crescimento da criança. Do ponto de vista antropométrico, uma única anotação de peso, por exemplo, no percentil 5, pode não significar carência nutricional; consultas subsequentes poderão mostrar que o percentil 5 é o de crescimento normal (canal de crescimento) de determinada criança;
correlação entre peso e estatura (vide parâmetro índice de massa corpórea em capítulo mais à frente).
apenas a comparação de sua estatura com a população geral, mas também relacioná-la à estatura dos pais. A estatura final, que reflete o potencial genético familiar, é definida como estatura-alvo (target height = TH) e pode ser calculada com várias fórmulas. A previsão da TH torna-se menos precisa quanto maior é a diferença de estatura entre os pais (mais que um desvio-padrão, recomenda-se cautela na interpretação). O intervalo de previsão ao redor do TH deve incluir 9 cm para mais e para menos, com o objetivo de acertar 90% das previsões. Algumas proporções corporais são características de um crescimento normal. A medida da proporção entre segmento superior (SS = diferença entre estatura e segmento inferior) e o segmento inferior (SI = medida da sínfise púbica até o chão) pode ser útil na avaliação do crescimento. Ao nascimento, a relação SS/SI é habitualmente de 1,7. Os membros crescem proporcionalmente mais que o tronco, fazendo com que a relação seja de 1,3 aos três anos de idade e se torne igual a um entre oito e dez anos.
Avaliação do perímetro cefálico (PC) O PC deve ser aferido sistematicamente nas consultas pediátricas, com fita métrica, particularmente nos lactentes, passando-se pelos pontos entre a protuberância ocipital e a região da glabela (eminência frontal). Apresenta notável crescimento até os dois ou três anos de idade. A análise do PC pode ser realizada utilizando-se a curva referencial de perímetro cefálico para idade (OMS). Valores abaixo do esperado podem decorrer de falha do crescimento neurológico ou do fechamento precoce de suturas (craniossinostose), e valores acima do esperado justificam-se por lesões expansivas intracranianas (hidrocefalia ou tumores).
Figura 2.3 A medida da estatura da criança e do adolescente deve ser realizada no antropômetro vertical, diferentemente da medida do bebê que é realizada no antropômetro horizontal.
A estatura final de um indivíduo depende de inúmeros fatores, porém se correlaciona de forma estreita com a estatura dos pais. Dessa forma, o conceito do que é uma estatura normal para determinado paciente deve considerar não
Regras práticas para avaliação do crescimento do perímetro cefálico na infância PC ao nascimento: 34 cm (p50) Crescimento no primeiro trimestre: 6 cm (2 cm/mês) Crescimento no segundo trimestre: 3 cm (1 cm/mês) Crescimento no terceiro semestre: 3 cm (0,5 cm/mês) Tabela 2.3 Avaliação do perímetro cefálico.
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18 Puericultura Portanto, no fim do primeiro ano o PC está em torno de 46 cm (uma velocidade de crescimento espantosamente alta, de 10 a 12 cm/ano). Entre um e três anos, o crescimento é de cerca de 0,25 cm/mês (3 cm/ano) e entre quatro e seis anos é de 1 cm/ano.
algumas crianças iniciam dentição por volta dos cinco meses ou perto do primeiro aniversário, sem que isso represente qualquer implicação patológica. Regras práticas para a avaliação do crescimento em Pediatria
O PC é um pouco maior que o perímetro torácico (PT) ao nascimento. Esses geralmente se igualam no quinto mês de vida, a partir do qual o PT torna-se progressivamente maior. A fontanela anterior, ou bregmática, em forma de losango, tem em média, ao nascimento, 2 cm (sentido coronal) e 3 cm (sentido sagital). Até os nove meses 50% e até um ano e meio 100% das crianças não mais a apresentam. A fontanela posterior (lambdoide) é bem menor, presente em 40% dos bebês, com cerca de uma polpa digital e, em geral, se fecha até os dois meses de idade. No RN termo, acavalgamento de suturas pode ocorrer na primeira semana em função do amoldamento da cabeça no canal de parto. Após esse período, as suturas devem estar justapostas.
Peso Primeiros dias: perda de cerca de 10% do peso de nascimento Ganho ponderal no primeiro ano de vida:
1º trimeste: 25-30 g/dia (800 g/mês)
2º trimestre: 20 g/dia (600 g/mês)
3º trimestre: 15 g/dia (400 g/mês)
4º trimestre: 10-12 g/dia (350 g/mês)
1-3 anos: 240 g/mês
Pré-escolar: 3 kg/ano
Peso de nascimento dobra no 4º mês (+/− 6 kg) Peso de nascimento triplica no 1º ano (+/− 10 kg) Peso de nascimento quadruplica com 2 anos (+/− 12 kg) Cálculo do peso (1 a 6 anos): idade (anos) × 2 + 8 Estatura
Figura 2.4 A aferição do perímetro cefálico é etapa obrigatória do exame físico antropométrico de todos os lactantes.
Estatura ao nascimento: em torno de 50 cm
Velocidade de crescimento do primeiro ano: 25 cm (15 cm no primeiro semestre)
Cresce entre 1 e 3 anos cerca de 10 cm/ano (atinge 1 metro com cerca de 4 anos)
3-10 anos (infância): velocidade de crescimento pré-puberal: 4 a 6 cm/ano
Cálculo da estatura-alvo (TH) na menina:
(altura do pai - 13) + altura da mãe
Dentição
2
A dentição decídua (de leite) inicia-se por volta dos sete meses (com a erupção dos incisivos centrais inferiores e, a seguir, dos incisivos medianos superiores) e termina aos trinta meses, com número total de vinte dentes. Aos 6-7 anos, começa a queda dos dentes de leite e a erupção dos dentes definitivos, iniciada pelo molar dos 6 anos. Também existe para esse parâmetro de crescimento uma grande variabilidade:
Cálculo da estatura-alvo (TH) no menino:
altura do pai + (altura da mãe + 13) 2
Cálculo da altura (2-12 anos): idade (anos) × 6 + 77
Tabela 2.4 Regras práticas para a avaliação do crescimento em Pediatria.
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CAPÍTULO
2
Laboratório em reumatologia
Introdução A estratégia do diagnóstico nas doenças reumatológicas é complexa. Os exames laboratoriais devem ser interpretados em associação com os achados da anamnese e do exame físico. Por vezes, somente a evolução no decorrer de meses ou anos elucidará o diagnóstico definitivo da doença subjacente. Portanto, o valor dos achados laboratoriais, nas doenças reumáticas, depende da sensibilidade, especificidade, praticidade, do custo e da precisão dos testes utilizados. Abordaremos neste capítulo os principais exames laboratoriais utilizados na investigação das doenças reumáticas.
Provas de atividade inflamatória
Velocidade de hemossedimentação (VHS)
Proteína C reativa (PCR)
Mucoproteínas (α1 glicoproteína ácida)
Complemento
As principais proteínas produzidas pelo fígado em processos inflamatórios agudos e crônicos são a
proteína C reativa (PCR), o fibrinogênio, a alfa1-antitripsina, as haptoglobinas, proteína sérica amiloide e componentes do complemento (principalmente C3). Os testes mais comumente usados na avaliação clínica de uma inflamação em curso são a VHS e a PCR. Esses testes são inespecíficos, mas bons detectores de quebra da homeostase interna, sendo, portanto, delatores de doenças subjacentes, no entanto, quando normais, não excluem diagnóstico.
2
Velocidade de hemossedimentação (VHS) A VHS é a medida da distância em milímetros que as hemácias percorrem dentro de um tubo específico (Westergren ou Wintrobe) no decorrer de 1 hora. Trata-se de uma medida indireta das alterações nos reagentes da fase aguda da inflamação (fibrinogênio, haptoglobina, por exemplo), sintetizados no fígado em resposta à inflamação e na análise quantitativa das imunoglobulinas. A interleucina-6 (citocina inflamatória) é o mediador mais potente que estimula a produção das proteínas da fase aguda pelo fígado (fibrinogênio e outras proteínas da fase aguda). Portanto, qualquer
condição que curse com aumento na concentração dessas substâncias da fase aguda, ou caso a presença de hipergamaglobulinemia seja policlonal ou monoclonal (calazar; mieloma múltiplo), causará elevação na VHS devido ao aumento da constante dielétrica do plasma. Esta última acarreta uma dissipação das forças repulsivas inter-hemácias e leva à agregação íntima destas, causando uma queda mais rápida das hemácias. Antes de passar à interpretação da VHS, é igualmente importante saber como é realizado o teste e como foram produzidos os valores normais para este. Como foi dito anteriormente, os métodos de Westergren e Wintrobe são os mais comumente usados. Os resultados de um método não são intercambiáveis com os do outro e a faixa de valores normais depende do método.
No método Westergren, 2 mL de sangue venoso são coletados em 0,5 mL de solução de citrato de sódio. Um tubo Westergren cilíndrico é preenchido com sangue até o nível de 200 mm e colocado verticalmente em um suporte. Ao fim de uma hora, mede-se a distância do alto da coluna de sangue à camada inferior de hemácias. Essa distância é a velocidade de sedimentação, a qual é expressa em mm/h. Com o método Wintrobe não se usa diluente. O sangue anticoagulado é colocado em um tubo graduado e marcado de 100 mm, sendo examinado em uma hora. Aqui a distância do alto da coluna à camada superior de hemácias também é medida, sendo a velocidade expressa em mm/h. O método Westergren tem sido mais amplamente utilizado e endossado pelo International Committee for Standardization in Hematology. As
desvantagens do método Wintrobe incluem uma limitação da magnitude de qualquer anormalidade da VHS e problemas de confiabilidade. O tubo Wintrobe tem apenas 100 mm, de modo que uma VHS de mais de 60 mm/h raramente pode ser medida, porque a aglutinação das hemácias impede maior deposição. Ocorre, também, que o estreito calibre do tubo Wintrobe pode, por vezes, causar resultados não reproduzíveis. Fontes técnicas de erro para ambos os métodos foram descritas em outros trabalhos. Alguns laboratórios tentaram corrigir os resultados da VHS quanto à anemia, contudo, a utilidade desses fatores de correção está sujeita à controvérsia.
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Valores normais para velocidade de hemossedimentação Idade Idade < 50 anos > 50 anos Método Westergren (mm/h) < 20 < 15 Masculino < 30 < 25 Feminino Método Wintrobe (mm/h) > 20 Masculino < 10 < 25 Feminino < 15 Tabela 2.1 Uma regra grosseira relaciona a idade ao limite superior de normalidade da VHS. Homem: Idade/2; Mulher: (idade + 10)/2.
Fatores que influenciam a VHS Aumento Diminuição Policitemia Anemia Anemia falciforme Gravidez Retardo na realização do Temperatura alta exame Paraproteinemia Hipoalbuminemia Hipercolestero- Insuficiência cardíaca congestiva lemia Hipofibrinogemia Tabela 2.2
Causas de VHS extremamente alta (> 100 mm/ 1ª hora) Infecções bacterianas Doenças reumáticas, particularmente: Arterite de células gigantes* LES Polimialgia reumática Vasculites Malignidades Linfomas Mieloma múltiplo Outras (15%) Causas de VHS extremamente baixa (0 mm / 1ª hora) Afibrinogenemia / Alterações na forma das disfibrinogenemia hemácias (por exemplo: doença SS) Agamaglobulinemia Retardo na realização do Policitemia vera exame Insuficiência cardíaca Hipoalbuminemia Tabela 2.3 Condições não inflamatórias e/ou infecciosas que justificam VHS elevada: idade avançada (VHS em torno de 40 mm na primeira hora), sexo feminino e gravidez. * De todas as doenças da Medicina Interna, a VHS tem maior sensibilidade para arterite temporal ou arterite de células gigantes.
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46 Reumatologia
Significado clínico em reumatologia
Proteína C-reativa (PCR)
A determinação da VHS, por ser um teste inespecífico, tem valor relativo no acompanhamento do processo
É uma proteína produzida pelo fígado como reagente da fase aguda, em resposta à interleucina-6 e outras citocinas, e se constitui de cinco su-
inflamatório, assim como da resposta terapêutica das doenças reumatológicas clássicas. Os valores desse teste mostram-se elevados na maioria das vasculites sistêmicas, mas não é incomum que eles estejam normais nas púrpuras de Henoch-Schönlein, na tromboangeíte obliterante e na vasculite isolada do SNC. Entre todas as doenças do colágeno, a VHS é particularmente útil no diagnóstico e no acompanhamento de arterite de células gigantes, ou arterite temporal, assim como na polimialgia reumática, nas quais os valores encontram-se muito elevados, quase sempre acima de 100 mm na primeira hora. Uma informação relevante é que nos pacientes com arterite temporal que cursam com respostas inflamatórias extremamente fortes, com sintomas sistêmicos de febre, perda de peso, anemia e VHS > 100 mm/hora, estão associados a menor risco de perda visual. Por outro lado, 5 a 10% dos pacientes com artrite reumatoide ativa têm VHS normal. A VHS tem um valor limitado em pacientes com síndrome nefrótica ou doença renal em estágio final, porque virtualmente todos têm uma VHS elevada (alguns > 100 mm/hora), provavelmente em decorrências dos altos níveis de fibrinogênio.
Uma sugestão de como proceder diante de uma VHS elevada Conduta a ser tomada em um paciente com um teste de VHS elevada • História clínica adequada x Impressão diagnóstica • Hemograma completo • Bioquímica • Enzimas hepáticas • Urina tipo I Se necessário Repetir VHS Persistindo elevada Dosar fibrinogênio Eletroforese de proteínas (Hipergamaglobulinemia) Proteína C reativa Não havendo diagnóstico Reavaliar o paciente com exame físico e VHS em 1-3 meses. Mais de 80% dos pacientes normalizarão a VHS
Figura 2.1
bunidades ligadas não covalentemente e arranjadas em simetria cíclica em um plano único. Sua função é ligar-se aos componentes da parede celular no componente do complemento C1q e aos receptores em neutrófilos e monócitos, para ajudar a iniciar e facilitar a resposta inflamatória. A linha da base média para adultos jovens é de 0,8 mg/L e o percentil 90 é de 3,0 mg/L. Sua elevação ocorre 4 horas após o início do processo inflamatório (em comparação com outras proteínas que, em geral, aumentam após 24 horas), atingindo um pico máximo em 24-72 h. Sua medida é realizada pelo método Elisa e radioimunodifusão. Mais recentemente, um imunoensaio turbidimétrico com partículas de látex tem sido utilizado para a detecção de proteína C-reativa de alta sensibilidade (PCRas), com limiar de detecção de 0,01 mg/ dL. Essa metodologia permitiu reconhecer o notável valor de predição da PCR-as (ultrassensível) em níveis persistentemente elevados, em doenças coronárias e em AVC, o que parece refletir a existência de um processo inflamatório de menor intensidade, mas constante, ou de possíveis efeitos pró-inflamatórios ou pró-trombóticos da proteína por si só. Causas de elevação da proteína C-reativa Exercício vigoroso Frio Gravidez Gengivite Convulsão < 1 mg/dL Depressão Diabetes melito Obesidade Idade Infarto do miocárdio Neoplasias Pancreatite 1-10 mg/dL Infecção de mucosa (bronquite, cistite) Artrite reumatoide Infecções bacterianas agudas > 10 mg/dL Grandes traumas Vasculite sistêmica Tabela 2.4 Nas doenças reumáticas, a PCR é o teste mais sensível para indicação de febre reumática em atividade (coreia e eritema marginato são exceções). No LES (exceto na presença de serosite e/ou sinovite),
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2 na dermatomiosite, na esclerodermia e na osteoartrite são observados valores pouco elevados, ou normais, e nessas doenças a PCR é útil como marcador de infecção, quando seus valores séricos se encontrarem maiores do que 8-10 mg/dL (atenção!). Na doença de Still, a síntese de proteína C-reativa pode estar substancialmente elevada (acima de 20 mg/ dL), da mesma forma que a ferritina sérica. Na AR, valores persistentemente altos de PCR estão associados com uma taxa maior de progressão radiológica, desenvolvimento de osteoporose e piora funcional (atenção!). Quando pedir PCR em vez de VHS? Os dois testes medem componentes de resposta da fase aguda e são úteis em avaliar inflamação generalizada. O teste da VHS é afetado por múltiplas variáveis e, assim, impreciso, sendo, contudo, de baixo custo e fácil de realizar. O teste PCR mede um reagente da fase aguda especificamente e, portanto, é mais específico, além de aumentar rapidamente e cair mais rapidamente (decresce cerca de 50% em 24 horas) do que a VHS, que tende a permanecer elevada por um longo tempo (decresce cerca de 50% em uma semana). A PCR atualmente é também utilizada como um excelente parâmetro bioquímico na diferenciação entre pancreatite edematosa e necrotizante. Após 24 horas do início da necrose, atinge valores acima de 120 mg/L em 95% dos casos.
Mucoproteínas Duas classes são de interesse em abordagem diagnóstica:
Alfa-1 glicoproteína ácida
Alfa-2 macroglobulina
A alfa-1 tem como função ligar-se e neutralizar uma série de enzimas proteolíticas. Encontra-se elevada na presença de destruição celular e distúrbios inflamatórios. A alfa-2 funciona como proteína carreadora e está elevada na síndrome nefrótica, nos distúrbios inflamatórios agudos e na lise celular.
47 Laboratório em reumatologia
SAA-4, todas de função biológica ainda desconhecida. Durante a fase aguda de um processo inflamatório, SAA-1 e SAA-2 são sintetizadas pelos hepatócitos e podem compreender mais de 2% das proteínas totais sintetizadas, resultando em um aumento de sua concentração no plasma de 1 a 5 µg/mL para 1 mg/mL. Citocinas pró-inflamatórias induzem aumento na síntese das A-SAA. Essa resposta se caracteriza por ser mais lenta e mais sensível a pequenas lesões teciduais quando comparada àquela observada com a proteína C-reativa, mas com intensidade semelhante. A SAA sérica é a precursora da proteína amiloide-A que compõe os depósitos amiloides teciduais secundários vistos nas doenças crônicas. Atualmente, o método de escolha para a dosagem de SAA é o imunoensaio nefelométrico de aglutinação de partículas de látex com limite de normalidade acima de 5 mg/L.
Eletroforese de proteínas Por meio da análise eletroforética de fluidos biológicos, pode-se determinar as frações proteicas, documentando-se o aumento dessas frações como resposta a um processo inflamatório agudo ou crônico. Desse modo, o aumento na concentração da fração alfa-1 globulina e, algumas vezes, também de alfa2 sugere resposta inflamatória aguda, enquanto a elevação das gamaglobulinas é altamente sugestiva de um processo inflamatório crônico. Nas doenças reumáticas autoimunes e doenças infecciosas crônicas o aumento das gamaglobulinas é geralmente policlonal, diferentemente do que se observa nos distúrbios plasmocitários (exemplo: mieloma múltiplo), nos quais o pico é monoclonal. Outra alteração que pode ser encontrada na eletroforese de pacientes com processos inflamatórios de longa duração é a hipoalbuminemia, por falência do hepatócito.
A utilização dessas proteínas na investigação diagnóstica é bastante limitada em função da falta de especificidade, não tendo interesse particular em qualquer doença reumatológica, exceto na fase aguda da FEBRE REUMÁTICA, quando sua normalização constitui o melhor critério de alta.
Substância amiloide sérica Trata-se de uma proteína da família das apoliproteínas, que fazem parte das proteínas da fase aguda da inflamação e são denominadas substância amiloide sérica A (SAA), SAA-1 e SAA-2 e forma constitutiva
Figura 2.2 Eletroforese sérica em gel de agarose. A: perfil normal. B: mieloma múltiplo.
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48 Reumatologia O sistema complemento é constituído por uma série de proteínas produzidas pelo fígado, as quais, na presença de ligantes, complexos imunes circulantes ou micro-organismos, são ativadas de maneira sequencial via C1q (via clássica) ou, diretamente, via C3 (via alternada). Há, ainda, a des-
Figura 2.3 Eletroforese em gel de agarose de paciente com mieloma múltiplo.
Complemento sérico O sistema complemento é composto por várias proteínas séricas sintetizadas pelo fígado, capazes de causar lise nas bactérias, quando ligadas com anticorpos específicos. Para a maioria das aplicações clínicas, utiliza-se a dosagem da atividade de complemento total (CH50 ou CH100) e dos complementos C3 e C4. Pela dosagem dos três componentes, você pode avalizar a atividade das vias clássica e alternativa, assim como triar deficiências de complemento. No consumo de complemento pela via clássica
(imunocomplexos), todos os componentes estão diminuídos. Se o complemento é ativado pela via alternativa (como é observado na glomerulonefrite), C3 e CH50 estão diminuídos, mas C4 (via clássica) permanece normal. Como o CH50 requer todos os complementos para estar presente, torna-se útil para triar deficiência de complemento. Quando a dosagem de CH50 é indetectável, então torna-se bastante sugestiva de deficiência hereditária de complemento. Complemento sérico pode estar diminuído como resultado de: 1) Produção diminuída, devido à deficiência hereditária ou doença hepática (os componentes do complemento são sintetizados no fígado); 2) Aumento no consumo devido à ativação do complemento. A principal causa do consumo do complemento é o aumento nos níveis dos imunocomplexos circulantes.
O sistema complemento O processo no qual o anticorpo, após combinar-se com o antígeno, inicia a atividade de mais de 18 diferentes proteínas plasmáticas é conhecido como complemento e envolve três vias: clássica, alternativa e da lectina.
crição mais recente de ativação do complemento por uma terceira via, independente de imunoglobulina e de C1. Essa via envolve um novo componente da imunidade inata: a lectiva, que se liga a açúcares tipo manose (mannose-binding lectin ou MBL), presentes na parede da célula microbiana, e que apresenta características moleculares comuns às do C1q. Essa interação resulta na ativação da serina protease-2 associada à MBL (MASP-2) com atividade enzimática similar à C1r/C1s, levando à ativação do complemento. A avaliação in vitro tanto da atividade hemolítica do complemento como da determinação dos níveis séricos de alguns dos seus componentes (C2, C3, C4 e MBL) contribui significativamente para evidenciar o desenvolvimento de processos inflamatórios in vivo mediados pela formação de complexos imunes ou de deficiências seletivas de um de seus componentes. Método: a análise funcional do sistema de complemento só pode ser feita com soro fresco e consiste na determinação da sua atividade lítica utilizando hemácias sensibilizadas com anticorpos específicos (hemolisinas). Os resultados são expressos em unidades de hemólise (CH50), que correspondem à diluição do soro teste que produz 50% de lise das hemácias. A determinação dos níveis séricos da MBL é feita por Elisa, e dos componentes C3 e C4 por imunodifusão radial ou nefelometria, utilizando antissoros monoespecíficos. Significado clínico: a diminuição da atividade hemolítica se reflete, em geral, no consumo de complemento in vivo pelo desenvolvimento de processo inflamatório envolvendo formação de complexos imunes circulantes. No lúpus, o complemento é um excelente parâmetro para monitorização da atividade de doença e resposta terapêutica, em especial naqueles pacientes com acometimento renal. Por outro lado, atividade hemolítica reduzida pode sugerir também deficiências seletivas de complemento, em particular aquelas dos componentes C2 e C4, as quais podem estar associadas ao lúpus ou à síndrome Lúpus-like, que com frequência se apresenta com FAN negativo. Por outro lado, existem evidências de que níveis baixos de C1q no LES podem eventualmente resultar da presença de autoanticorpos específicos para este componente e que são fortemente associados à hipocomplementemia e atividade da nefrite lúpica. Além disso, concentrações baixas de MBL, além de indicarem consumo durante a atividade de doença, podem refletir polimorfismos genéticos. Sua deficiência associada a mutações ge-
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2 néticas, de modo similar às dos componentes C4 e C2, tem impacto negativo nas doenças inflamatórias crônicas e parece estar associada a maior risco de desenvolvimento de doenças autoimunes, particularmente LES. Existem ainda outras condições que podem cursar com o complemento baixo sem evidência de formação de complexos imunes, como choque séptico, falência hepática e pancreatite. Condições clínicas associadas a deficiências hereditárias do complemento Componentes do Doença complemento Precoces (C1, C2, Doença LES-like GlomeruloneC4) frite Infecções piogênicas recorrentes Médios (C3, C4) Doenças LES-like Infecções recorrentes (especialTerminais (C5, C9) mente gonocócica e meningocócica) Angioedema (hereditário ou adRegulador (C1 INH) quirido) Tabela 2.5
Doenças autoimunes e adquiridas associadas à hipocomplementenemia Doenças reumáticas LES Vasculites sistêmicas (especialmente poliarterite nodosa, urticária) Crioglobulinemia tipo II Artrite reumatoide com manifestações extra-articulares (forma grave de doença) Doenças infecciosas Endocardite infecciosa subaguda Sepse bacteriana Viremias (por exemplo: HIV) Parasitemias (por exemplo: Plasmodium malariae)
Tipo I
II III
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Doenças autoimunes e adquiridas associadas à hipocomplementenemia (cont.) Glomerulonefrites Pós-estreptocócica Membranoproliferativa Crioglobulinemia mista Nefrite lúpica proliferativa difusa Tabela 2.6 Atenção!
Crioglobulinas Correspondem a um grupo de imunoglobulinas que possui uma característica particular: sob baixas temperaturas (geralmente abaixo de 25ºC) formam agregados insolúveis que se precipitam, formando gel, e tendem a se dissolver sob posterior aquecimento (geralmente a 37ºC). De acordo com as características do crioprecipitado, podemos classificar as crioglobulinas em três tipos: Crioglobulina tipo I: caracteriza-se pela presença exclusiva de imunoglobulina monoclonal (IgG, IgM ou IgA e raramente proteína de Bence-Jones), não possui atividade de fator reumatoide e tampouco fixa complemento. Crioglobulina tipo II: é constituída de imunoglobulinas monoclonais, geralmente IgM, que formam um imunocomplexo com uma IgG policlonal, em geral com atividade de fator reumatoide e níveis baixos de complemento, particularmente C1q e C4 com níveis relativamente normais de C3. Esta forma costuma se apresentar sob a forma de vasculite sistêmica e se associa à viremia pelo HCV (em aproximadamente 75% dos casos). Crioglobulina tipo III: apresenta imunoglobulinas somente com componente policlonal e, quase sempre, uma delas com atividade de fator reumatoide. As crioglobulinemias dos tipos II e III são classificadas como mistas, pois possuem uma “mistura” de imunoglobulinas dos tipos IgM e IgG. No tipo II é mais comum o FR ser IgM e no tipo III ser IgG.
Crioglobulinemias: classificação e associações clínicas Alterações laboratoriais Alterações clínicas Doenças associadas Pico monoclonal, hiper- Acrocianose, Raynaud, neMieloma, macroglobulinemia, viscosidade, FR negativo crose linfoma, idiopática (extremidades), síndrome de hiperviscosidade Hepatite C, LLC, síndrome de FR Monoclonal FR, ↓C4, Púrpura, artralgia/artrite, (IgM) e policlonal ↑ transaminases, neuropatia e nefrite Sjögren e LES IgG FR positivo FR Policlonal (IgG) e FR positivo Púrpura, artralgia/artrite, Hepatite C, outras infecções policlonal IgG neuropatia e nefrite crônicas e síndrome de Sjögren e LES Composição Monoclonal (IgG, IgM, IgA, cadeia leve)
Tabela 2.7
FR: fator reumatoide; HCV: hepatite por vírus C; LLC: leucemia linfocítica crônica.
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50 Reumatologia derivadas de uma linha celular tumoral epitelial humana), que é a mais utilizada atualmente. Na inter-
Autoanticorpos Célula LE (célula do LES) O fenômeno das células LE refere-se ao achado de leucócitos polimorfonuclear contendo material eosinofílico fagocitado. Foi descrito inicialmente em pacientes com LES e, durante as décadas de 1950 e 1960, foi o principal método para pesquisar anticorpos antinucleares. Devido à técnica complexa e à baixa sensibilidade, é um exame em desuso e atualmente a pesquisa de anticorpos antinucleares tem sido realizada pela imunofluorescência indireta. Entretanto, as células LE apresentam alta especificidade para o diagnóstico de LES, podendo serem solicitadas em casos selecionados. Existem relatos na literatura internacional do achado de células LE em líquido pleural, sinovial e biópsia renal de pacientes com LES. Célula LE Falso-negativo LE induzido por droga Uso de heparina Artrite reumatoide Leucopenia acentuada Hepatite aguda e crônica Uso de imunossupressor Hipersensibilidade a drogas Tabela 2.8 Célula LE Falso-positivo
Fator antinuclear (FAN) ou anticorpo antinuclear Autoanticorpos são imunoglobulinas que reconhecem antígenos presentes nas células e nos órgãos do próprio indivíduo. Fator antinuclear (FAN) é a denominação dada ao teste de imunofluorescência indireta (IFI) para a pesquisa de autoanticorpos que reagem com componentes presentes não só no núcleo das células, mas também no nucléolo, no citoplasma e no aparelho mitótico. Hoje, há uma tendência para substituir esse nome para pesquisa de anticorpos contra antígenos celulares (PAAC). Um FAN deve ser solicitado sempre que a avaliação clínica do paciente sugerir a presença de doença autoimune, podendo ser utilizado como um teste de triagem. É importante destacar que este exame também pode ser encontrado em indivíduos sadios em uma prevalência de 1,1 a 13,3%. O méto-
do indicado para detecção de FAN é a imunofluorescência indireta (IF), técnica que se baseia na ligação dos anticorpos a vários substratos celulares, como o fígado/rim de rato ou células de cultura de tecido humano (HEp2 - uma linha de células proliferativas
pretação dos resultados, é importante a avaliação de parâmetros quantitativos, como o título de FAN encontrado, bem como a distribuição espacial de um determinado autoanticorpo na célula HEp-2, conhecido como padrão de IFI. A interpretação do FAN deve ser feita com cautela, devido à possibilidade de reações falso-positivas e falso-negativas. Um ponto a ser considerado é o título do PAAC-IFI em HEp-2: em geral, os pacientes autoimunes tendem a apresentar títulos moderados (1/160 e 1/320) e elevados (≥ 1/640), enquanto os indivíduos sadios com PAAC-IFI em HEp-2 positivo tendem a apresentar baixos títulos (1/80). Entretanto, em ambas as situações pode haver exceções. PAAC-IFI-HEp-2 Títulos baixos : ≤ 1/80 Títulos moderados : 1/160 a 1/320 Títulos altos: ≥ 1:640 Outro ponto a se considerar é que o nível de autoimunidade fisiológica, ou basal, pode flutuar na dependência de sobrecargas a que o sistema imunológico seja exposto. Está bem demonstrada a presença de autoanticorpos desencadeada transitoriamente por infecções, por medicamentos e por neoplasias. Tem sido demonstrada claramente alta prevalência de autoanticorpos em pacientes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e por outros vírus linfotrópicos. Portanto, outra consideração a ser feita ante um paciente com um achado positivo de PAAC-IFI em HEp-2 refere-se à possibilidade de infecções virais recentes, uso de medicamentos e processos neoplásicos várias evidências demonstram que os autoanticorpos frequentemente precedem a eclosão clínica das doenças autoimunes. Um teste de PAAC-IFI em HEp-2 positivo pode preceder o aparecimento clínico do LES em até nove anos. Cerca de 80% dos pacientes com LES apresentam PAAC-IFI em HEp-2 positivo antes do aparecimento dos primeiros sintomas. O mesmo é válido, embora em menor porcentagem, para os vários autoanticorpos específicos dessa enfermidade, como anti-d NA nativo e anti-Sm. Portanto, outra possibilidade a se considerar em presença de um achado clinicamente inconsistente de PAAC-IFI em HEp-2 positivo é a de que o paciente poderá vir a desenvolver uma doença autoimune nos próximos anos. No entanto, alguns indivíduos podem seguir décadas com autoanticorpos circulantes sem desenvolver qualquer sinal de enfermidade autoimune. Diante um resultado positivo de PAAC-IFI em HEp-2 é imprescindível que se caracterize essa reatividade, buscando a presença de anticorpos peculiares de condições autoimunes através de técnicas específicas. Essa avaliação deve ser subsidiada por evidência clínica ou laboratorial de doença autoimune sistêmica. Além
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Os padrões de FAN referem-se aos padrões de fluorescência nuclear observada ao microscópio de imunofluorescência. Certos padrões de fluorescência são associados a determinadas doenças e autoanticorpos, embora essas associações não sejam específicas. Os diferentes padrões refletem as
do exame clínico apurado, é importante verificar possíveis alterações em hemograma, urina I, proteína C-reativa e velocidade de hemossedimentação (vHS), que podem ser considerados extensões do exame clínico. Em alguns casos, pode ser válido investigar enzimas hepáticas e musculares. Sintomas vagos, como artralgia e astenia, com exames laboratoriais gerais normais não são suficientes para oferecer subsídio para um achado laboratorial de PAAC-IFI em HEp2 em título baixo e com padrão de fluorescência pouco específico. Nesses casos, o exercício do bom senso com o acompanhamento da situação clínica do paciente em consultas regulares pode ser a melhor conduta.
diferenças nos anticorpos antinucleares contidos nos diferentes soros. Interpretações dos padrões de FAN têm sido substituídas amplamente pela identificação dos anticorpos antinucleares específicos por meio do perfil do FAN.
Mais recentemente, testes Elisa têm se mostrado disponíveis para detectar anticorpos antinucleares, mas apresentam alta sensibilidade e baixa especificidade, causando um grande número de exames falso-positivos.
O padrão nuclear pontilhado fino denso é o mais detectado em indivíduos sadios ou com doenças neoplásicas e infecciosas, nas quais a natureza dos antígenos-alvo ainda não foi identificada.
Padrões de fatores antinucleares mais comumente observados em conectivopatias e seus correspondentes autoantígenos Doença Padrão predominante (IFI/HEp-2) Autoantígeno alvo Homogêneo dsDNA, cromatina, histona Nuclear: Pontilhado grosso U1-snRNP, SM LES Pontilhado fino Ro/SS-A, La/SS-B Pontilhado fino denso e Citoplasmático misto: Proteína P ribossomal nucleolar homogêneo Lúpus induzido por Histona Nuclear homogêneo droga DMTC Nuclear pontilhado grosso U1-snRNP Lúpus neonatal Nuclear pontilhado fino Ro/SS-A, La/SS-B Síndrome de Sjögren Nucleolar aglomerado Fibrilarina/U3-nRNP) NOR 90, RNA pol I Esclerose sistêmica Nuclear pontilhado Misto: nuclear homogêneo e nucleolar pontilhado Scl70 Nuclear pontilhado centromérico CENP-A, B e C CREST Citoplasmático pontilhado fino Jo1 Polimiosite PM/Scl Sobreposição PM/ES Nucleolar homogêneo Tabela 2.9 CREST: calcinose, Raynaud, esofagopatia, esclerodactilia, telangiectasia; DMTC: doença mista do tecido conjuntivo; ES: esclerose sistêmica; FR: fator reumatoide; LES: lúpus eritematoso sistêmico; PM: polimiosite.
O IV Consenso Brasileiro para pesquisa de autoanticorpos em células HEp-2 realizado no dia 18 de setembro de 2012 inclui nas recomendações para a utilização de FAN na prática clínica os seguintes padrões:
Padrão citoplasmático em anéis e bastões: os alvos antigênicos reconhecidos são a inosina monofosfato deidrogenase 2 (IMPDH2) e a citidina trifosfato sintase 1 (CTPS1). Trata-se de enzimas essenciais na via de biossíntese da citidina trifosfato e da guanosina trifosfato, respectivamente. A CTP está envolvida na biossíntese de ácidos nucleicos (DNA, RNA) e fosfolipídios, com importante função na proliferação celular. A IMPDH2 catalisa a oxidação NAD-dependente da inosina monofosfato em xantosina monofosfato, processo essencial na biossíntese da guanosina monofosfato, portanto atividade
também estreitamente relacionada ao mecanismo de proliferação celular. A partir da inibição farmacológica da CTPS1 (6-dia-zo-5-oxo-L-norleucina e Acivicina) e da IMPDH2 (Ribavirina), evidenciou-se a indução dose-dependente de estruturas em anéis e bastões citoplasmáticos em substratos de células neoplásicas, incluindo-se as células HEp-2. Este marcador foi documentado em 38% de 342 pacientes com HCV, em tratamento com ribavirina e interferon alfa.
Padrão pontilhado quasi-homogêneo (QH): é um padrão distinto dos padrões nuclear homogêneo e nuclear pontilhado fino denso, em que não se verifica uma especificidade
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52 Reumatologia antigênica única, mas sim uma miscelânea de alvos antigênicos reconhecidos. O perfil clínico associado ao padrão pontilhado fino quasi-homogêneo situa-se de forma intermediária entre o padrão pontilhado fino denso e o padrão homogêneo. Portanto, a identificação desse padrão sugere a continuidade da investigação do diagnóstico clínico, porque pode estar relacionado a doenças reumáticas autoimunes sistêmicas.
Padrão misto do tipo CENP-F: caracterizado por fluorescência pontilhada fina de intensidade variável na matriz nuclear nas células em interfase e nucléolos geralmente negativos. Observa-se ainda neste padrão uma delicada decoração rendilhada dos cinetócoros, predominantemente visível na prófase e na metáfase. O aparelho mitótico apresenta ainda marcação pontual na região central da ponte intercelular nas células em telófase. Finalmente, as figuras em prófase exibem delicada coloração do envelope nuclear. Trata-se de um padrão complexo, ocasionado por anticorpos contra uma proteína de 350 kDa, conhecida como CENP-F ou mitosina. Esta proteína tem função importante na organização do sistema de microtúbulos citoplasmáticos, metilação de histona H3, regulação de alguns fatores de transcrição e progressão do ciclo celular para mitose. Rattner e colaboradores identificaram o padrão no soro de um paciente com câncer de pulmão e posteriormente em câncer de mama. Cassiano e colaboradores relataram positividade para o padrão em diferentes doenças neoplásicas, doenças hepáticas crônicas, rejeição crônica de aloenxerto renal e doença de Crohn. Foi relatada a presença do padrão CENP-F em um paciente com carcinoma colorretal. Como um todo, a literatura aponta para a suspeita de doença neoplásica em pacientes com este padrão. Padrão misto do tipo anti-DNA topoisomerase: o IV Consenso chamou a atenção para o padrão composto relacionado à presença de anticorpos anti-DNA topoisomerase I (Scl-70). A descrição clássica na literatura do padrão associado a anticorpos anti-DNA topoisomerase I restringe-se ao núcleo e ao nucléolo, não havendo especificidade neste achado.
Uma vez que o teste FAN se defina como positivo, o seu significado clínico vai depender do contexto clínico. Ao final deste capítulo você poderá analisar a tabela que expõe os padrões de PAAC-IFI em HEp-2 e os diversos autoanticorpos e associações clínicas mais frequentes. A inclusão dessa tabela tem por objetivo deixar esse universo de conhecimentos disponível, principalmente para aqueles com interesse na especialidade.
Drogas indutoras de FAN positivo Drogas comuns Drogas incomuns Procainamida; Hidrala- Mais de 60 drogas diferenzina; Fenotiazinas; Dife- tes têm sido implicadas nil-hidantoína; Isoniazida; como causas não usuais de Quinidina; Alfametildopa; FAN positivo. D-Penicilamina; Clorpromazina; Carbamazepina; Labetolol. Tabela 2.10 Definidas: hidralazina, procainamida e minociclina. A síndrome clínica de LE induzido por drogas ocorre somente em uma porcentagem pequena de pacientes com anticorpos antinucleares induzidos por drogas, podendo o FAN ficar positivo meses e até anos após a suspensão da droga. Os anticorpos antinucleares usualmente dirigem-se contra o epítopo formado pelo complexo DNA-H2A-H2B (este é o marcador mais específico de LE induzido por drogas, anticorpo anti-histona), embora a hidralazina cause anticorpos primariamente contra o dímero H3-H4 histona. Causas de FAN positivo 1- Doenças reumáticas LES Polimiosite Síndrome de Sjögren Esclerodermia Vasculites Artrite reumatoide 2- Indivíduos sadios Mulheres > Homens Idosos > Jovens Mulheres grávidas (?) 3- Induzidos por drogas (Tabela 2.9) 4- Doenças hepáticas Hepatite crônica ativa Cirrose biliar primária Doença alcoólica do fígado 5- Doenças pulmonares Fibrose pulmonar idiopática Fibrose induzida por asbestos Hipertensão pulmonar primária 6- Infecções crônicas 7- Malignidades Linfoma (principalmente) Leucemia Melanoma Tumores sólidos (ovário, pulmão, rim, mama) 8- Doenças hematológicas Púrpura trombocitopênica idiopática Anemia hemolítica autoimune
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2 Causas de FAN positivo (cont.) 9- Miscelânea Desordens endócrinas (diabetes mellitus tipo I, doença de Graves) Doença neurológica (esclerose múltipla) Insuficiência renal terminal Pós-transplante Tabela 2.11
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que contém no seu cinetoplasto um DNA circular que funciona como “um dsDNA puro”, sem associação com proteínas. Alternativamente, a técnica pelo método Elisa, por sua natureza quantitativa, poderá ser útil para o acompanhamento das flutuações dos anticorpos anti-dsDNA, desde que a presença deste tenha sido confirmada por um teste específico. Os anti-DNAs, principalmente do subtipo IgG, também apresentam alta especificidade para o diagnóstico de LES, e a sua detecção foi incluída como critério do ACR para classificação de LES. Ocasionalmente, infecções (sífilis e endocardite infecciosa), neoplasias (mieloma múltiplo) e doenças autoimunes (hepatite autoimune e artrite reumatoide) podem apresentar anti-dsDNA, geralmente em baixos títulos, sem que haja importância clínica específica.
Atenção!
Figura 2.4 Padrões de reatividade dos anticorpos antinucleares por imunofluorescência indireta em células HEp-2: (A) nuclear homogêneo, (B) nuclear pontilhado, (C) nucleolar, (D) centromérico e (E) citoplasmático.
Níveis crescentes ou altos títulos de anticorpo anti-DNA, associados a baixos níveis de complemento, quase sempre significam exacerbação da doença ou doença em atividade. A associação desse
anticorpo com o envolvimento renal no lúpus é marcante (valorize esta informação). Outros anticorpos incluídos no perfil do FAN são marcadores da doença, porém não variam com a atividade da doença.
Anticorpo Anti-DNA de cadeia simples (ssDNA) São anticorpos diretos contra as bases púricas e pirimídicas e estão presentes em 50% dos pacientes com LES, mas sem especificidade para nenhuma doença.
Figura 2.5 IV Consenso FAN 2012. Citoplasmático em bastões e anéis.
Anticorpo anti-DNA de cadeia dupla ou nativo (dsDNA) Encontrado em cerca de 50 a 70% dos pacientes com lúpus ativo. É o único autoanticorpo claramente implicado na patogênese do LES, com formação de imu-
nocomplexos, deposição renal, inflamação local e glomerulonefrite. Sua presença em títulos elevados está associada com maior probabilidade de acometimento renal e doença grave. O método de escolha para sua detecção é a técnica de imunofluorescência indireta, empregando-se como substrato o hemoflagelado Crithidia luciliae,
Condições que cursam com ssDNA positivo LE induzido por droga (75%) Hepatite crônica ativa (50%) Mononucleose infecciosa (40%) Artrite reumatoide (55%) Glomerulonefrites crônicas (10%) Cirrose biliar primária (12%) Tabela 2.12
Atenção! O anticorpo anti-ssDNA possui baixa especificidade e, portanto, tem pouco valor na avaliação das doenças autoimunes, mas pode ser útil em pacientes com suspeita de LES com FAN persistentemente negativo (1-10% dos casos).
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Anticorpos anti-histona
Anticorpos antiproteínas nucleares (Cont.)
As histonas são proteínas que contêm grande proporção de aminoácidos, encontradas em células eucariotas associadas ao DNA genômico. As subunidades DNA-histona reconhecidas são: H1, H2A, H2B, H3 e H4. Anti-histonas ocorrem mais comumente no LE induzido por drogas (> 95%), sendo, portanto, o melhor marcador dessa condição; uma exceção importante é o LE induzido pela minociclina, só uma minoria positiva este autoanticorpo podem ocorrer em 20% dos casos de artrite reumatoide, 30-70% dos casos de LES, 5-50% na ES e 20% na dermatopolimiosite. O método para detecção desses
anticorpos é o Elisa, utilizando preparações purificadas de histonas. Os anticorpos anti-histonas mais frequentemente reativos no LE induzido por drogas são: H2A, H2B e H3H4 (este último associado a LE induzido por hidralazina). De todas as drogas relacionadas (Tabela 2.10), a procainamida é a droga mais comumente envolvida na síndrome. Cerca de
10-20% dos pacientes em uso desse medicamento desenvolvem doença autoimune sintomática.
Anticorpos contra antígenos nucleares extraíveis (anti-ENA) Vários antígenos presentes nas células podem ser extraídos a partir de tecidos homogeneizados em soluções salinas. Os ENA são, na verdade, antígenos celulares extraíveis e não apenas antígenos nucleares. Inicialmente, a denominação ENA referia-se apenas aos antígenos Sm e RNP. Entretanto, vários outros autoantígenos foram posteriormente identificados nos extratos salinos celulares, podendo ser considerados ENAs (Tabela 2.12). Anticorpos antiproteínas nucleares LES, AR, Sjögren, anti-RNP Altos títulos são diagnóstico de DMTC (> 1:1.600) anti-Sm Específico para LES, mas com sensi(Smith) bilidade baixa de apenas 25 a 30% Mais frequentemente associado à anti-Ro/SSA, síndrome de Sjögren primária; enanti-La/SSB contrado também na AR e no LES Esclerose sistêmica difusa anti-Scl-70
anti-PM-Scl
Síndrome de sobreposição polimiosite-esclerodermia, mas também pode ser encontrado nestas doenças isoladamente; está associado a bom prognóstico
anti-Jo1
Presente em 30% dos pacientes com poliomiosite, sendo raro em pacientes com dermatomiosite; é considerado o marcador da poliomiosite, especialmente quando associado à alveolite fibrosante
anti-Ku
Encontrados na esclerodermia e na síndrome de sobreposição esclerodermia-poliomiosite (25-55%). Atualmente relacionado com HP (hipertensão pulmonar) primária
anti-Ki
LES associado com sinovite, pericardite, hipertensão pulmonar e alta prevalência de envolvimento do SNC
anti-Mi-2
Exclusivamente na dermatomiosite, sensibilidade de 20%, e pode ser visto na DM do adulto, juvenil ou associada à neoplasia
anticorpo anti-RANA
Na artrite reumatoide, particularmente em associação com Sjögren
anti-RA33
Parece ser bastante específico para a artrite reumatoide, sendo encontrado em 36% dos casos
É detectado em 3% dos pacientes com LES e, apesar de específico, não PCNA mostra associação com nenhuma ca(proliferating racterística clínica; caracteriza-se cell nuclear por um padrão pontilhado heterogêantigen) neo em aproximadamente 50% das células Autoanticorpos contra proteínas presentes no citoplasma; cerca de 10% dos casos de LES apresentam anticorpo anesse anticorpo, associado ao surgitiribossomal P mento de síndromes psicóticas e de(rRNP-P) pressão severa; é específico para LES, com doença neurológica e renal Tabela 2.13 Atenção!
Anticorpo anti-R NP Os anticorpos anti-U1-RNP são descritos em 25 a 47% dos pacientes com LES, principalmente nos pacientes que apresentam fenômeno de Raynaud. Atenção: alguns estudos descreveram uma baixa prevalência de envolvimento renal em pacientes com LES e anti-RNP, sugerindo um papel protetor para a nefrite. Altos títulos de anti-RNP (> 1:1.600) são fortemente sugestivos de doença mista do tecido conjuntivo (DMTC), podendo flutuar com o tempo, mas não se correlacionam à atividade ou à gravidade da doença.
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Anticorpo anti-Sm
Anticorpo anti-Jo-1
Os anticorpos anti-Sm (de Smith, nome do primeiro paciente em que foi reconhecido) são encontrados em uma frequência de 10 a 30% dos pacientes com LES, sendo mais frequentes em indivíduos da raça negra. O achado do anti-Sm está associado com uma alta especificidade para o diagnóstico de LES, sendo incluído como critério de classificação do ACR. Apesar de a maior prevalência de anti-Sm ter sido descrita em pacientes com LES em atividade, com nefrite e envolvimento do SNC, ainda é controversa a validade dessa associação.
Este anticorpo é direcionado para a enzima histidil-T-RNA sintetase e está presente em mais de 30% dos pacientes com polimiosite, sendo rara em pacientes com dermatomiosite (10%). É marcador miosite específico, e nesta condição aumenta o risco para alveolite fibrosante.
Anticorpo anti-SSA/Ro e anti-SSB/La Os anti-SSA/Ro são anticorpos contra o antígeno Ro, uma proteína citoplasmática ligada ao RNA, cuja função é desconhecida. O antígeno SSB/La é uma proteína celular ligada a RNAs pequenos e parece participar como cofator para a RNA polimerase. O anti-SSA/ Ro está presente em cerca de 90% dos pacientes com síndrome de Sjögren primária. Já na Sjögren associada a AR, ocorre em 10-15% dos casos. No LES, é detectado em 30% dos casos, marcando as seguintes formas clínicas: lúpus eritematoso neonatal, lúpus eritematoso subcutâneo, deficiência homozigota de C2 e C4 e LES com pneumonite intersticial. A presença de anti-SSB/La está fortemente associada à síndrome de Sjögren, ocorrendo em cerca de 2/3 dos pacientes e no LES em 15%. E nesta última condição parece exercer um efeito nefroprotetor.
Anticorpo anti-Scl-70 São anticorpos contra uma proteína 70 KD que foi recentemente identificada como DNA topoisomerase I. O anti-Scl-70 é encontrado quase que exclusivamente em paciente com ES, sendo descrito em 40 a 70% dos pacientes com a forma difusa e em 10 a 18% com a forma limitada. Além da boa especificidade, o anti-Scl-70 é útil na avaliação do prognóstico dos pacientes com ES. Cerca de 50% dos pacientes com envolvimento pulmonar apresentam anti-Scl-70, com fibrose pulmonar mais grave e declínio mais rápido da capacidade vital forçada, descrito por outros autores. Além disso, a presença de anti-Scl-70 esteve associada com maior mortalidade após 5 anos em estudo com 280 pacientes com ES.
Anticorpo anti-Ku São anticorpos dirigidos contra um par de proteínas chamadas P70/80, de alta afinidade pelo DNA. São encontrados na esclerodermia (14-40%), LES (1%19%) e particularmente na síndrome de sobreposição esclerodermia-polimiosite (25-55%). Mais recentemente, foram identificados em 23% dos pacientes com hipertensão pulmonar primária.
Anticorpo antiproteína P ribossomal O autoanticorpo anti-P mais comum tem como alvo três fosfoproteínas: P0, P1 e P2 de 38, 19 e 17 KDa, respectivamente. Estes anticorpos apresentam padrão citoplasmático difuso na imunofluorescência indireta em células HEp2 e são detectados pela técnica de imunoblot ou por Elisa, utilizando-se a fração microssomal ou a proteína recombinante como fonte de antígenos, respectivamente. Anticorpos anti-P são altamente específicos para o LES e detectados em cerca de 10% da população com a doença. Entretanto, essa frequência aumenta até 40% em pacientes com doença ativa e em até 75% naqueles com nefrite lúpica (particularmente nefrite membranosa). Há uma forte associação entre esses anticorpos e algumas manifestações da doença, incluindo distúrbios neuropsiquiátricos como psicose e depressão, além de hepatite e nefrite lúpica.
Anticorpo antinucleossomo A cromatina presente nas células eucarióticas é formada por um conjunto de subunidades denominado nucleossomo, que contém aproximadamente 200 pares de bases de DNA envolvidos por proteínas denominadas histonas. Anticorpos antinucleossomos (AN) podem ser encontrados em 50 a 90% dos pacientes com LES e aparentemente correspondem aos anticorpos antigamente detectados pela técnica das células LE. Os
AN também parecem ser específicos do LES, especialmente quando em títulos moderados ou altos. Entretanto, pacientes com hepatite autoimune (40 a 50% dos casos), síndrome dos anticorpos antifosfolipídios, esclerose sistêmica e síndrome de Sjögren também podem apresentar antinucleossomo. Na maioria dos es-
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56 Reumatologia tudos com pacientes com LES e em modelos animais, a presença de AN teve correlação com a nefrite. Outras associações clínicas, como manifestações hematológicas, artrite e rash malar, também foram descritas. Além de apresentarem boa correlação com os níveis de anti-DNA ds, os AN podem estar presentes em 11 a 51% dos casos de LES com pesquisa de anti-DNA ds negativa. Apesar de alguns autores terem encontrado correlação entre os títulos de anticorpos antinucleossomos e atividade da doença, ainda são necessários novos estudos longitudinais. Atualmente são pesquisados pela técnica de Elisa, com preparações purificadas de nucleossomos, agregando as vantagens de maior sensibilidade e menor possibilidade dos erros metodológicos inerentes à técnica das células LE.
Fator reumatoide O fator reumatoide (FR) descreve um autoanticorpo direcionado contra determinantes antigênicos no fragmento Fc da imunoglobulina G. O fator reumatoide pode ser de qualquer isotipo: IgM, IgG, IgA ou IgE. O FR IgM é o mais encontrado; título maior ou igual a 1:160 é usualmente considerado significante quando feito pelo teste de aglutinação no látex. Atualmente, muitos laboratórios usam a técnica de nefelometria e Elisa para dosar FR IgM; no entanto, os métodos mais utilizados são os de aglutinação passiva, tanto de hemácias sensibilizadas com IgG de coelho (técnica de Waaler-Rose, mais específica), como de partícula de látex ou bentonita cobertas com IgG humana agregada (técnica de Singer e Plotz). O fator reumatoide é encontrado em 80 a 85% dos pacientes com AR, sendo a sua presença critério de classificação da AR pelo Colégio Americano de Reumatologia. No entanto, uma vez diagnosticado AR, pacientes que apresentam altos títulos de FR tendem a ter doença mais grave, com manifestações extra-articulares, incluindo nódulos subcutâneos, doença pulmonar e vasculite sistêmica. O tratamento
com algumas drogas, principalmente a D-penicilamina, diminui os níveis de FR e pode correlacionar-se com melhora clínica em alguns pacientes. Assim, o FR é útil para o diagnóstico e prognóstico da AR (80% dos pacientes com artrite reumatoide do adulto). Distúrbios associados com um teste positivo para fator reumatoide Distúrbios autoimunes Artrite reumatoidea Síndrome de Sjögren primáriaa Doença mista do tecido conectivoa Polimiosite / dermatomiosite Esclerodermia Vasculite associada à ANCAa Poliarterite nodosa Cirrose biliar primáriaa
Distúrbios associados com um teste positivo para fator reumatoide (cont.) Infecções crônicas Endocardite bacteriana subagudaa Tuberculose Hanseníase Sífilis Hepatite Ca (com e sem crioglobulinemia mista) Hepatite Ba Outras infecções virais Infecções parasitárias Condições variadas Sarcoidose Fibrose pulmonar idiopática Silicose Asbestose Processo maligno Idade ≥ 65 anos Tabela 2.14 (a) Prevalência do fator reumatoide > 50% na maioria das séries. ANCA, anticitoplasma de neutrófilos.
Atenção! Indivíduos saudáveis, idosos em particular, podem apresentar títulos de FR positivo, e em 20% dos casos o FR tem título maior que 1:160. Frequência de FR positivo em indivíduos normais de diferentes idades Idade Frequência de FR 20-60 anos 2-4% 60-70 anos 5% > 70 anos 10-25% Tabela 2.15
Anticorpos antiprofilagrina e filagrina Os anticorpos antifilagrina ocorrem em cerca de 45% dos pacientes com artrite reumatoide e têm especificidade próxima a 100% para esta enfermidade. Os anticorpos antiprofilagrina (apf), também chamados antifator perinuclear, ocorrem em cerca de 75% dos pacientes com artrite reumatoide e têm especificidade de cerca de 85% para esta enfermidade. Títulos acima de 1/40 têm especificidade próxima a 100%. Podem ocorrer precocemente no curso da mesma, quando ainda não surgiram fatores reumatoides. Os anticorpos antifilagrina e antiprofilagrina fazem parte de um sistema de anticorpos dirigidos a resíduos citrulinados, que podem ser detectados em três tipos de testes: antifilagrina, antiprofilagrina (apf) e antipeptídeo citrulinado cíclico.
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Anticorpos antipeptídeos cíclicos citrulinados (anti-CCP) No final da década de 1990, após intensa investigação, foi descrito um grupo de autoanticorpos dirigidos para proteínas contendo resíduos de citrulina, ou seja, peptídeos citrulinados que apresentavam alta especificidade para o diagnóstico de AR. Esse exame tem sensibilidade de 50 a 70% e especificidade de 95-96% para diagnóstico de artrite reumatoide do adulto. O estabelecimento de um teste de Elisa empregando peptídeos sintéticos cíclicos citrulinados apresentou bom desempenho diagnóstico na AR, não sendo encontrados em indivíduos saudáveis ou em outras doenças infecciosas e reumatológicas. A relevância do anticorpo anti-CCP parece residir no seu valor diagnóstico, principalmente nas formas precoces da doença e naqueles pacientes com fator reumatoide negativo. Pacientes com hepatite C podem apresentar fator reumatoide positivo e não o anti-CCP, indicando-se o anti-CCP nesses pacientes quando apresentar em artrite, para diferenciar a artrite secundária à hepatite C e a artrite reumatoide em pacientes com o vírus da hepatite C. A presença de anti-CCP também foi associada a um pior prognóstico na AR.
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Além disso, existe ainda boa correlação entre os níveis séricos de c-ANCA e atividade clínica da GW. No entanto, reatividade c-ANCA pode ser também detectada, porém, em menor frequência, nos pacientes com poliangiite microscópica e síndrome de Churg-Strauss (atenção!). Doenças associadas a ANCA c-ANCA p-ANCA Granulomatose de Wegener Poliangeíte microscópica (GW) Glomerulonefrite pauciVasculite de Churg-Strauss imune (rara) Churg-Strauss S. de Goodpasture (títulos Colite ulcerativa baixos) Colangite esclerosante primária HIV Neoplasias (rara) Tabela 2.16 Na GW os títulos de c-ANCA correlacionam-se à atividade da doença e têm sido usados para predizer reativação da doença.
Anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) Anticorpos específicos direcionados contra antígenos específicos presentes no citoplasma de neutrófilos têm sido utilizados para o diagnóstico de vasculite necrotizante sistêmica. Há dois tipos diferentes de ANCA. O ANCA que reage com mieloperoxidade (MPO), elastase ou lactoferrina e determina um padrão perinuclear na imunofluorescência de neutrófilos fixados com etanol e é chamado perinuclear ou p-ANCA. Anticorpos antisserina proteinase 3 determinam co-
loração citoplasmática difusa na imunofluorescência e são chamados citoplasmáticos ou c-ANCA.
Os anticorpos ANCA-padrão c-ANCA são de particular interesse em doenças reumatológicas, pois são altamente específicos para granulomatose de Wegener, constituindo-se em um marcador sorológico para esta doença, além de apresentarem uma boa correlação entre os seus níveis e a atividade da doença. A especificidade do teste para a doença é de 98%, e sua sensibilidade de 63 a 91%; c-ANCA constitui-se, assim, em um marcador sorológico para essa doença, estando presente em 90% dos indivíduos em atividade.
Figura 2.6 Técnicas de imunofluorescência. Anticorpo anticitoplasma de neutrófilo na GW é usualmente IgG. A técnica de coloração granular difusa do citoplasma (c-ANCA) corresponde ao anticorpo dirigido contra serina proteinase 3. O perinuclear (p-ANCA) resulta do anticorpo dirigido geralmente contra mieloperoxidase, mas que pode ser dirigido contra lactoferrina, elastase e catepsina G. p-ANCA tem sido identificado em uma variedade de glomerulonefrites, nas vasculites de Churg-Strauss e poliangiite microscópica.
Anticorpos antifosfolipídios Incluem-se nesse grupo os anticorpos anticardiolipina aCL (anticorpos que reagem ao fosfolipídio cardiolipina, um componente da membrana celular) e
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58 Reumatologia o anticoagulante lúpico (AL), que reage aos fatores da coagulação. Esses anticorpos aparecem em pacientes com doenças crônicas ou infecciosas. Na reumatologia, esses anticorpos estão associados à síndrome do anticorpo antifosfolípide primária ou secundária, esta última mais frequentemente associada ao LES. A síndrome caracteriza-se, dentre outras manifestações clínicas, como trombose venosa, arterial e pelos episódios recorrentes de perda fetal (três ou mais perdas fetais). Mais detalhes sobre esses autoanticorpos serão descritos no capítulo sobre SAAF (Capítulo 5).
Anticorpos anticardiolipina Método. O ensaio imunoenzimático (Elisa) com preparações purificadas do fosfolipídio cardiolipina na presença de soro bovino como fonte de cofator p-GPI é o teste padronizado internacionalmente para a detecção dos anticorpos da classe IgG (o mais comum), IgM e IgA em soro ou plasma. Níveis elevados de aCL estão relacionados com alto risco de trombose e abortos de repetição. O va-
lor diagnóstico desses anticorpos se baseia nos critérios laboratoriais estabelecidos: presença de aCL IgG/ IgM, com níveis moderados a altos em duas ou mais ocasiões, com intervalo de pelo menos 6 semanas e detectados por Elisa, segundo condições padronizadas internacionalmente. Ainda não está comprovada a utilidade do teste no acompanhamento contínuo desses pacientes; contudo, já se demonstrou que os títulos desses anticorpos podem cair na vigência de trombose. Nesse sentido, casos ainda sem diagnóstico devem ter exame repetido 1 a 3 meses após o quadro.
Anticoagulante lúpico Método: a identificação do anticoagulante lúpico (LA) no plasma requer uma análise sequencial que compreende três fases. Inicialmente, determina-se a capacidade de coagulação do plasma (tempo de tromboplastina parcial ativada [TTPA], tempo de coagulação por kaolin [KCT], ou tempo de protrombina ativada [TPA]). Se for identificada alteração no tempo de coagulação, a amostra deve ser submetida à avaliação para a presença de inibidor do processo. Assim, o plasma do paciente é misturado com plasma normal em diferentes proporções. A não restauração da atividade adequada de coagulação sugere atividade do LA, e sua dependência do fosfolípide deve ser identificada em uma fase seguinte. Para tanto, podem ser realizados dois procedimentos de restauração da atividade de coagulação, o que implica na adição de plaquetas ou do fosfolípide isoladamente. A detecção de aCL por Elisa deve ser feita concomitantemente, embora haja concordância desses dois anticorpos somente em 60% dos casos.
A detecção do LA no plasma, similarmente aos anticorpos aCL, mostra uma associação bastante significativa com eventos de trombose, trombocitopenia e abortos espontâneos de repetição observados na síndrome do anticorpo antifosfolípide. O anticoagulante lúpico está presente transitoriamente em um grande número de situações clínicas aloimunológicas em doenças infecciosas ou tumorais. Por outro lado, atividade LA é observada persistentemente em doenças autoimunes, síndrome primária do anticorpo antifosfolípide ou secundária (associada ao LES ou a outra doença do colágeno) e, especialmente nesses casos, tem estreita relação com as manifestações clínicas dessas doenças.
anti-bβ2-glicoproteína Corresponde ao mais novo anticorpo incluído nos critérios laboratoriais da SAF. Cerca de 5% da população em geral apresenta anticorpos séricos anti-beta-2-glicoproteína I. Os níveis desses anticorpos nesse grupo populacional geralmente são baixos. Há casos de falso-positivos e transitórios, também em níveis baixos em casos de comorbidades infecciosas, inflamatórias ou como reação cruzada com alguns medicamentos. O Consenso recomenda que os casos positivos, independente do epítpo utilizado (IgG ou IgM) sejam repetidos, com nova coleta de sangue, após 12 semanas do primeiro teste, para confirmação laboratorial da presença desses anticorpos. A especificidade do teste é maior quanto maiores forem os níveis de anticorpos encontrados. Um fato relevante, a ser considerado é que em 10% dos casos de síndrome de anticorpos antifosfolípides, somente os anticorpos anti-Beta-2-Glicoproteína I estão presentes no sangue periférico dos pacientes, assim eles podem ser considerados mais específicos que os anticorpos anticardiolipina.
Artrocentese e análise do líquido sinovial A principal razão para realizar uma artrocentese é suspeita de infecção articular, artropatia mono ou poliarticular de etiologia incerta. Contraindicações relativas Diátese hemorrágica Celulite na topografia da articulação Alergia a lidocaína e antissépticos Terapia com anticoagulante
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Complicações da artrocentese Infecção (risco menor que 1 em 10.000/mm3) Sangramento/hemartrose Síncope vasovagal Dor Lesão da cartilagem Tabela 2.17
Figura 2.9 Posicionamento da agulha para a artrocentese de (A) cotovelo e (B) joelho. Figura 2.7
Articulação móvel. Estrutura anatômica.
Figura 2.8 Pesquisa do sinal de abaulamento* da articulação para a detecção de derrame articular. (*) Também pesquisado pelo sinal da tecla ou rechaço da patela.
Figura 2.10 Punção articular em um quadro de monoartrite, evidenciando líquido sinovial não purulento.
Após a coleta do líquido sinovial (LS), esse deve ser colocado em tubos estéreis a vácuo e levado para análise.
Testes laboratoriais
Volume: a quantidade de líquido contido nas articulações em geral é pequena. O joelho normalmente contém até 4 mL de líquido. O volume do aspirado geralmente é registrado no prontuário, porém alguns laboratórios também podem incluir o volume em seus relatórios.
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Cor e limpidez: o líquido sinovial normal é incolor e límpido. Outros aspectos podem indicar vários estados de doença. Líquidos sinoviais amarelos/límpidos são típicos de derrames não inflamatórios, já líquidos sinoviais amarelos/turvos geralmente envolvem processos inflamatórios. Um líquido sinovial branco/ turvo pode conter cristais, e líquido sinovial vermelho, castanho ou xantocrômico é indicativo de hemorragia articular. Além disso, o líquido sinovial pode conter vários tipos de inclusões. Agregados tissulares livres, em suspensão, apresentam aspecto de corpos de arroz. Corpos de arroz são observados na artrite reumatoide (AR) e são resultantes da degeneração da membrana sinovial, enriquecidos com fibrina. Resíduos ocronóticos são fragmentos de próteses articulares metálicas ou plásticas. Esses resíduos assemelham-se à pimenta moída. A figura 2.11 apresenta uma comparação entre líquido sinovial normal e hemorrágico, e a figura 2.12 ilustra o aspecto de inclusões no líquido sinovial.
Viscosidade: o líquido sinovial é bastante viscoso devido à elevada concentração de hialuronato polimerizado. Um teste do fio pode ser utilizado para avaliar o grau de viscosidade do líquido sinovial. Após remover a agulha ou vedação da seringa, o líquido sinovial é gotejado em um tubo de ensaio. O líquido sinovial normal formará um “fio” de aproximadamente 5 cm de comprimento antes de romper-se. Além disso, o líquido pode aderir às paredes do tubo de ensaio ao invés de escorrer para o fundo. Líquidos sinoviais com baixa viscosidade formam fios mais curtos (< 3 cm) ou escorrem da seringa pelas paredes do tubo de ensaio, como “água”. A baixa viscosidade do líquido sinovial indica a presença de processo inflamatório. A figura 2.13 ilustra a realização de um teste de fio para avaliação da viscosidade do líquido sinovial.
Coagulação: a coagulação do líquido sinovial pode ocorrer quando há a presença de fibrinogênio. O fibrinogênio pode penetrar na cápsula sinovial quando ocorrem danos na membrana sinovial ou como resultado de uma punção traumática. A presença de coágulos na amostra interfere na realização de contagens de células. A inoculação de parte da amostra em um tubo heparinizado pode impedir a coagulação do líquido sinovial.
Coágulo de mucina: o teste de coagulação de mucina, também conhecido como teste de Ropes, consiste em uma estimativa da integridade do complexo proteína-ácido hialurônico
(mucina). O líquido sinovial normal forma um coágulo firme e viscoso após a adição de ácido acético. O procedimento de coagulação de mucina varia entre os laboratórios, conforme evidenciado pelas diferentes proporções entre líquido e ácido apresentadas em vários textos. Os laboratoristas devem realizar o procedimento adotado por seus laboratórios. A tabela 2.17 demonstra esta variabilidade. Em todos os casos, a interpretação da formação de coágulo é a mesma. Um coágulo firme de mucina indica integridade adequada do hialuronato. Um coágulo frouxo de mucina, facilmente rompível, está associado à destruição ou diluição de hialuronato.
Figura 2.11 Líquido sinovial. (A) Normal. (B) Hemorrágico.
Figura 2.12 Inclusões de líquido sinovial. (A) Resíduos ocronóticos semelhantes à “pimenta moída”. (B) “Corpos de arroz”, fragmentos de membrana sinovial enriquecidos com fibrina.
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probabilidade de infecção. A contagem de leucócitos totais e o diferencial ajudam a distinguir entre condições inflamatórias e não inflamatórias. A microscopia de luz polarizada deve ser realizada para pesquisar a presença de cristais patogênicos. A dosagem de glicose, proteínas totais e desidrogenase lática dificilmente fornece informações além daquelas obtidas com os exames citados e não deve ser necessariamente realizada de rotina. Classificação do líquido sinovial (LS) Tipo Figura 2.13 Teste do fio, ilustrando a viscosidade do líquido sinovial normal.
Procedimento de coagulação de mucina de acordo com os textos referenciados Volume de líVolume e concentraAutor quido ção de ácido acético sinovial Brunzel Ross e Neely McBride Strasinger
Uma parte Uma parte Duas partes Não especificado
Quatro partes, 2% Quatro partes, 2% Uma parte, 3%
Tabela 2.18
Exames mais relevantes na prática clínica:
Contagem de leucócitos totais e diferencial;
Coloração pelo Gram;
Culturas;
Pesquisa de cristais.
O líquido destinado à cultura e à coloração pelo Gram deve ser transferido sob condições assépticas para um tubo seco. O LS destinado à pesquisa de cristais deverá ser colocado também em um tubo seco. Já o LS destinado à citologia deverá ser colocado em um tubo de hemograma. A demora de mais de 6 horas para sua realização pode alterar os resultados e as possíveis alterações incluem: diminuição do número de leucócitos (ruptura celular), diminuição do número de cristais (sobretudo de pirofosfato de cálcio diidratado) e aparecimento de artefatos, simulando cristais. Pelo fato de que a principal indicação da análise do líquido sinovial é a presença de infecção, deve-se realizar a coloração de Gram e culturas das amostras obtidas, inclusive de articulações com baixa
Normal
Aparência
Leucócitos
Claro, amare0-200/mm3 lo pálido
%PMNs < 10%
Grupo 1 De claro a (não inflapouco turvo matório)*
200-2.000/mm3
< 20%
Grupo 2 (inflamatório)
2.000-50.000/ mm3
20-70%
> 50.000/mm3
> 70
Levemente turvo
Grupo 3** De turvo a (pioartrose) muito turvo
Tabela 2.19 *Osteoartrite – Atenção! ** Os germes mais prevalentes são: S. aureus e Neisseria gonorrhoeae. A contagem de leucócitos em geral está entre 50 mil e 300 mil/mm3; a porcentagem de polimorfonucleares está entre 75 e 100% e a glicose está <50% do nível sérico. Esses dados podem direcionar o diagnóstico, mas ainda não afastam os casos de sinovite cristalina e artrite reumatoide. Estudos recentes demonstraram que os valores da adenosina deaminase no líquido sinovial pode ser um novo marcador para diferenciar a artrite séptica da artrite reumatoide e da induzida por cristais.
Figura 2.14 Elementos celulares normais encontrados no líquido sinovial incluem (A) neutrófilos, (B) linfócitos, (C) monócitos/histiócitos, e (D) células de revestimento sinovial. Poucas hemácias estão quase sempre presentes em derrames articulares (Wright-Giemsa).
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62 Reumatologia Causas de hemartrose Trauma Escorbuto Diátese hemorrágica Iatrogênica (hemofilia) Tumores Fístula arteriovenosa Sinovite Doença inflamatória acenvilonodular pigmentada tuada Articulação de Charcot Hemangiomas (neuropática) Tabela 2.21 Figura 2.15 Líquido sinovial com inflamação aguda apresentando pleocitose neutrofílica. Achados da microscopia de luz polarizada do LS de uma articulação com Gota e uma com Pseudogota Gota Pseudogota Pirofosfato de cálcio Cristal Urato diidratado Romboide ou Formato Agulha retangular Birrefrigência Negativa Positiva Cor dos cristais para- Azul Amarela lelos ao compensador Tabela 2.20 Atenção!
Biópsia sinovial A principal indicação para biópsia sinovial é artrite crônica (mais de 6 a 8 semanas) não traumática, inflamatória (líquido sinovial com contagem de leucócitos maior que 2.000 células/mm³), limitada a uma ou duas articulações para a qual o diagnóstico não pode ser realizado por meio da história, do exame físico, dos exames laboratoriais ou da análise do líquido sinovial com cultura (incluindo fungos e microbactérias). Como obter tecido sinovial Método Biópsia com agulha (agulha de Parker-Pearson ou outra) Artroscopia com agulha Artroscopia Biópsia por cirurgia aberta
Tamanho da Incisão Furo de 1 agulha 14 (1,6 mm) 1,8 mm 4,5 mm Alguns centímetros
Tabela 2.22 Devem ser obtidas de 5 a 8 amostras e enviadas para exame.
Líquido sinovial
Contagem de células Pesquisa de cristais Cultura e coloração pelo Gram
Figura 2.16 Gota aguda: cristais de urato em forma de agulha com birrefrigência fortemente negativa. Não inflamatório (< 2.000 células/mm³)
Inflamatório (> 2.000 células/mm³)
Hemorrágico
Osteoartrite
Figura 2.17 Pseudogota: cristais romboides de pirofosfato de cálcio diidratado com birrefrigência fracamente positiva.
Cristal +
Cultura -
Gota Pseudogota
AR LES EA APs
Coloração pelo Gram + Artrite séptica
Tumor TB Trauma
*
Figura 2.17 Algoritmo para a análise do líquido sinovial. EA: espondilite anquilosante; APs: artrite psoriática; AR: artrite reumatoide; LES: lúpus eritematoso sistêmico; TB: tuberculose. *Geralmente > 50.000/mm3 leucócitos e > 70% PMN.
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Atenção! Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes Relevâncias clínicas Padrões Descrição por autoanticorpos O padrão é caracterizado por uma fluores- Anticorpo contra proteínas do envecência em toda a membrana nuclear (po- lope nuclear. Cirrose biliar primária, dendo ser emitida com informação adicio- hepatites autoimunes, raramente assonal em aspecto contínuo ou pontilhado). ciado a doenças reumáticas. Algumas Não observamos fluorescência em nuclé- formas de lúpus eritematoso sistêmiolos e citoplasma; a célula em divisão em co e esclerodermia linear, síndrome do todos os estágios apresenta-se não fluores- anticorpo antifosfolípide. Esse padrão cente. Não confundir com o antigo padrão pode ser observado em indivíduos sem Nuclear tipo periférico observado em fígado de rato evidência aparente de autoimunidade, membrana nuclear onde o DNA de dupla hélice se encontrava principalmente quando em baixos títuancorado às proteínas da membrana nucle- los. Anticorpo anti-gp210 é específiar, dando seu aspecto característico. co para cirrose biliar primária. Outros autoanticorpos associados a esse padrão: anti-p62 (nucleoporina), anti-lamin A, anti-lamin B, anti-lamin C, anti-LBP.
Nuclear homogêneo
Nucleoplasma fluorescente de forma homogênea e regular. Não é possível distinguir a área de nucléolo e este é considerado não reagente. Placa metafásica cromossômica intensamente corada, de aspecto hialino, com decoração homogênea dos cromossomos, também positiva na anáfase e telófase. Citoplasma normalmente não fluorescente.
Anticorpo anti-DNA nativo. Marcador de lúpus eritematoso sistêmico. Anticorpo anti-histona. Marcador de lúpus eritematoso sistêmico induzido por drogas, lúpus eritematoso sistêmico idiopático, artrite reumatoide, artrite idiopática juvenil, importante associação com uveíte na forma oligoarticular, síndrome de Felty e hepatite autoimune. Anticorpo anticromatina (DNA/Histona, nucleossomo). Lúpus eritematoso sistêmico.
Nucleoplasma com grânulos de aspecto grosseiro, heterogêneos em tamanho e brilho, sendo que sobressaem alguns poucos grânulos maiores e mais brilhantes (1 a 6/núcleo) que correspondem ao Nuclear pontilhado grosso corpo de Cajal, rico em ribonucleo proteínas do spliceossomo. Nucléolo, célula em divisão e citoplasma não fluorescentes.
Nuclear pontilhado fino
Anticorpo anti-Sm. Marcador para lúpus eritematoso sistêmico. Anticorpo anti-RNP. Critério obrigatório no diagnóstico da doença mista do tecido conjuntivo, também presente no lúpus eritematoso sistêmico e esclerose sistêmica.
Nucleoplasma com granulação fina. Nucléo- Anticorpo anti-SS-A/Ro. Síndrome de lo, célula em divisão e citoplasma não fluo- Sjögren primária, lúpus eritematoso sisrescentes. têmico, lúpus neonatal, e lúpus cutâneo subagudo, esclerose sistêmica, polimiosite e cirrose biliar primária. Anticorpo anti-SS-B/La. Síndrome de Sjögren primária, lúpus eritematoso sistêmico, lúpus neonatal.
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64 Reumatologia Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes (cont.)
Nuclear pontilhado fino denso
Nuclear pontilhado pontos isolados
Nuclear pontilhado centromérico
Nuclear pontilhado pleomórfico
Nucleoplasma da célula em intérfase apresenta-se como um pontilhado peculiar, de distribuição heterogênea, nucléolo não fluorescente. A célula em divisão apresenta decoração em pontilhado intenso e grosseiro dos cromossomos na placa metafásica, com citoplasma não fluorescente.
Anticorpo antiproteína p75 (cofator de trascrição) denominado LEDGF/p75. É um dos padrões mais frequentes encontrados na rotina, cuja correlação clínica ainda não está bem estabelecida, sendo frequentemente encontrado em indivíduos sem evidência objetiva de doença sistêmica. Encontrado raramente em doenças reumáticas autoimunes, processos inflamatórios específicos e inespecíficos. Existem relatos na literatura do encontro desse padrão em pacientes com cistite intersticial, dermatite atópica, psoríase e asma.
Nucleoplasma apresenta-se com pontos fluorescentes isolados (podendo ser fornecida como informação adicional o número de pontos maior ou igual a 10 ou menos do que 10 pontos por núcleo). Nucléolo, célula em divisão e citoplasma não fluorescentes.
Anticorpo anti-p80 coilina. Não possui associação clínica definida.
Nucleoplasma da célula em intérfase, apresentando-se pontilhado com um número constante de 46 pontos. Nucléolo normalmente não fluorescente, célula em divisão apresenta concentração dos pontos na placa metafásica. Citoplasma não fluorescente.
Anticorpo anticentrômero (proteínas CENP-A, CENP-B e CENP-C). Esclerose sistêmica forma CREST (calcinose, fenômeno de Raynaud, disfunção motora do esôfago, esclerodactilia e telangiectasia), cirrose biliar primária e síndrome de Sjögren. Raramente observado em outras doenças autoimunes. Pode preceder a forma CREST por anos.
O nucleoplasma apresenta-se totalmente não fluorescente na célula em fase G1 da intérfase, passando a pontilhado com grânulos variando de grosso, fino a fino denso na medida em que a célula evolui para as fases S e G2. Nucléolo e citoplasma não fluorescentes. Esse padrão é sugestivo de anticorpos anti-PCNA.
Anticorpo contra núcleo de células em proliferação (Anti-PCNA). Encontrado especificamente em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico.
Anticorpo anti-Sp100 – anti-p95. Descrito principalmente na cirrose biliar primária.
Nucléolo homogêneo, célula em divisão e Anticorpo anti-To/Th. Ocorre na esclecitoplasma não fluorescentes. rose sistêmica. Anticorpo antinucleolina. Muito raro, descrito no lúpus eritematoso sistêmico, doença enxerto versus hospedeiro e na mononucleose infecciosa.
Nucleolar homogêneo
Anticorpo anti-B23 (nucleofosmina). Descrito na esclerose sistêmica, alguns tipos de câncer síndrome do anticorpo antifosfolípide e doença enxerto versus hospedeiro.
Nucleolar aglomerado
O nucléolo se apresenta com grumos de intensa fluorescência (como cachos de uva). Citoplasma e núcleo não fluorescentes. A célula em divisão apresenta-se amorfa, com coloração delicada em volta dos cromossomos da placa metafásica.
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Anticorpo antifibrilarina (U3-nRNP). Associado à esclerose sistêmica, especialmente com comprometimento visceral grave, entre elas a hipertensão pulmonar.
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Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes (cont.) Anticorpo anti-NOR 90. Inicialmente descrito na esclerose sistêmica. Atualmente descrito em outras doenças do tecido conjuntivo, porém sem relevância clínica definida. Nucleolar pontilhado
Decoração pontilhada nucleolar e 5 a 10 pontos distintos e brilhantes ao longo da placa metafásica cromossômica. Núcleo e citoplasma não corados.
Anticorpo anti-RNA polimerase I. Esclerose sistêmica de forma difusa com tendência para comprometimento visceral mais frequente e grave. Anticorpo anti-ASE (anti-sense to ERCC-1). Frequentemente encontrado em associação a anticorpos anti-NOR-90. A associação mais frequente parece ser o lúpus eritematoso sistêmico.
Citoplasmático fibrilar linear
Anticorpo antiactina. Encontrado em hepatopatias: hepatite autoimune, cirroFibras de estresses que constituem o cise. toesqueleto decoradas de forma retilínea, cruzando toda a extensão da célula e não Anticorpo antimiosina. Hepatite C, herespeitando os limites nucleares. Núcleos patocarcinoma, miastenia gravis. Quando e nucléolos não fluorescentes. em títulos baixos ou moderados podem não ter relevância clínica definida.
Citoplasmático fibrilar filamentar
Anticorpo antivimentina e antiqueratina. Anticorpo anti-queratina é Decoração de filamentos com acentuação o anticorpo mais importante em doenuni ou bipolar em relação à membrana nu- ça hepática alcoólica. Descritos em václear. Núcleos e nucléolos não fluorescentes. rias doenças inflamatórias e infecciosas. Quando em títulos baixos ou moderados podem não ter relevância clínica definida.
Citoplasmático fibrilar segmentar
Apenas segmentos curtos das fibras de estresse se encontram fluorescentes. Núcleo e nucléolos negativos. Nas células em divisão, podemos observar eventualmente múltiplos grânulos intensamente fluorescentes que correspondem à forma globular das proteínas do citoplasma.
Antialfa-actinina, antivinculina e antitropomiosina. Anticorpos encontrados na miastenia gravis, doença de Crohn e colite ulcerativa. Quando em títulos baixos ou moderados podem não ter relevância clínica definida.
Esse também é um laudo obrigatório, pois evidencia cisternas do aparelho de Golgi. A decoração é apenas citoplasmática em pontos agrupados de situação perinuclear, normalmente em apenas um pólo nuclear. Núcleo, nucléolo e célula em divisão não fluorescentes.
Anticorpo antigolginas (cisternas do aparelho de Golgi). Raro no lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Sjögren primária e outras doenças autoimunes sistêmicas. Relatado em ataxia cerebelar idiopática, degeneração cerebelar paraneoplásica e infecções virais pelo vírus Epstein Barr (EBV) e pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Quando em títulos baixos ou moderados podem não ter relevância clínica definida.
Citoplasmático pontilhado polar
Anticorpo anti-EEA1 e antifosfatidilserina. Não há associações clínicas Pontos definidos de número variável por bem definidas. Citoplasmático pontilhado toda a extensão do citoplasma. Núcleo, pontos isolados nucléolo e célula em divisão não fluores- Anticorpo anti-GWB. Associado à síncentes. drome Sjögren primária, embora observado também em diversas outras condições clínicas.
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66 Reumatologia Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes (cont.) Fluorescência de pontos finos, densos e confluentes, chegando à quase homogeneidade. O núcleo não está corado, mas pode ou não apresentar uma leve decoCitoplasmático pontilhado ração homogênea na área do nucléolo. A fino denso célula em divisão é não fluorescente. No caso de haver fluorescência concomitante de citoplasma e nucléolo, o padrão é classificado como misto.
Citoplasmático pontilhado fino
Anticorpo anti-PL7/PL12. Esse padrão de fluorescência pode raramente estar associado a anticorpos encontrados na polimiosite. Anticorpo antiproteína P-ribossomal. Esse padrão ocorre no lúpus eritematoso sistêmico e está particularmente associado ao anticorpo antiproteína P-ribossomal.
Pontos definidos em grande número e Anticorpo anti-histidil t RNA sintetase densidade, célula em divisão e nucléolo (Jo1). Anticorpo marcador de polimiosite não fluorescentes. no adulto. Descrito raramente na dermatomiosite. Outros anticorpos anti-tRNA sintetases podem gerar o mesmo padrão.
Fluorescência em múltiplos pontos dispostos sob forma de retículo irradiando a partir da periferia do núcleo por todo Citoplasmático pontilhado o citoplasma. Núcleo, nucléolo e célula reticulado em divisão não fluorescentes.
Anticorpo antimitocôndria. Marcador da cirrose biliar primária. Raramente encontrado na esclerose sistêmica. Devido ao encontro relativamente comum de padrão assemelhado e não relacionado a anticorpos antimitocôndria, é fundamental a confirmação por teste específico.
Ponto fluorescente isolado no citoplasma em um pólo na célula em repouso (intérfase) que se divide em dois e migra ao pólo oposto do núcleo à medida que a célula entra em divisão.
Anticorpo antialfa-enolase. Em baixos títulos não têm associação clínica definida. Em altos títulos pode estar associado à esclerose sistêmica.
Antígenos que formam a união entre células mãe/filha ao final da telófase. Podem ser observados com fluorescência intensa na ponte citoplasmática que sofrerá clivagem ao final da divisão celular.
Anticorpo antibeta-tubulina. Podem ser encontrados no lúpus eritematoso sistêmico e na doença mista do tecido conjuntivo. Outros anticorpos ainda não bem definidos podem gerar o mesmo padrão. Associado a diversas condições autoimunes com baixa especificidade tendo relevância clínica somente em altos títulos.
Células em intérfase se encontram não fluorescentes em todas as suas estruturas. Há decoração extensa e grosseira nos pólos mitóticos das células em metáfase e as pontes intercelulares são positivas na telófase. Citoplasma não fluorescente.
Anticorpo anti-HsEg5/NuMA-2. Associado a diversas condições autoimunes com baixa especificidade, tendo relevância clínica somente em altos títulos.
As células em intérfase apresentam o núcleo corado como um pontilhado bem fino, geralmente em alto título. Células mitóticas em metáfase e anáfase apreMisto do tipo nuclear ponsentam colocação bem definida e delicada tilhado fino com fluoresda região pericentrossômica e das partes cência do aparelho mitótico proximais do fuso mitótico. Na telófase já se vê novamente a coloração pontilhada dos núcleos neoformados e não se vê coloração da ponte intercelular.
Anticorpo anti-NuMa1. Associado à síndrome de Sjögren, podendo ocorrer também em outras condições autoimunes ou inflamatórias crônicas. Quando em títulos baixos ou moderados, pode não estar associado à evidência objetiva de doença inflamatória sistêmica.
Células em intérfase apresentam o núcleo corado como pontilhado grosso e o nucléolo corado de forma homogênea. Na metáfase há coloração ao redor da placa metafásica.
Anticorpo anti-KU. Marcador de superposição, polimiosite e esclerose sistêmica. Podem ocorrer no lúpus eritematoso sistêmico e esclerodermia.
Aparelho mitótico tipo centríolo
Aparelho mitótico tipo ponte intercelular
Aparelho mitótico tipo fuso mitótico (NuMa-2)
Misto do tipo nuclear pontilhado grosso e nucleolar homogêneo
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67 Laboratório em reumatologia
Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes (cont.) Células em intérfase apresentam o núcleo Anticorpo anti-DNA topoisomerase I Misto do tipo nuclear e corado de forma pontilhada fina e o nuc- (Scl-70). Associado a esclerose sistêminucleolar pontilhado fino léolo sobressai também com padrão pon- ca forma difusa, em que indica formas de com placa metafásica cotilhado fino. Na metáfase, a placa metafá- maior comprometimento visceral. Mais rada sica apresenta padrão pontilhado fino. raramente pode ocorrer na síndrome CREST e superposição. Células em intérfase apresentam o núcleo Anticorpos anti-RNA polimerase I e corado de forma pontilhada fina delica- II. Esses dois autoanticorpos usualmente da e sobressaindo o nucléolo corado com aparecem em combinação, sendo a RNA Misto do tipo nuclear padrão pontilhado (pontos individuais). po lI responsável pela distribuição nuclepontilhado fino e nucleo- O citoplasma não é corado. Na metáfase, olar e em NOR, enquanto a RNA pol II observam-se 5 a 10 pontos isolados e bri- responde pela distribuição nuclear. Antilar pontilhado lhantes na placa metafásica, correspon- -RNA po lI é considerado marcador de esdentes às regiões organizadoras de nuclé- clerose sistêmica e anti-RNA pol II apareolo (NOR). ce em diversas condições autoimunes. O núcleo é totalmente não corado e o nu- Anticorpo anti-rRNP (antiproteína P Misto do tipo cléolo é corado fracamente. O citoplasma ribossomal). Marcador de lúpus eritemacitoplasmático pontilhado apresenta intensa coloração com pontilha- toso sistêmico e mais frequentemente refino denso a homogêneo e do muito fino e muito denso, quase homo- lacionado à psicose lúpica. Também parece nucleolar homogêneo gêneo. As células mitóticas não são coradas. estar associado à atividade da doença. Tabela 2.22
Considerando o crescente número de pedidos indiscriminados do teste FAN-HEp-2 e de outros autoanticorpos na prática clínica, os conflitos diante de resultados positivos do FAN-HEp-2 com dados clínicos inconsistentes são obviamente comuns. A tabela abaixo sintetiza as possibilidades de interpretação de um teste positivo de FAN-HEp-2 e que também pode ser extrapolado para a interpretação de outros autoanticorpos.
Possibilidade de interpretação de um teste positivo de FAN-HEp-2 Associação evidente com uma condição autoimune Nenhuma associação evidente com uma condição autoimune – Incidentaloma? – Autoanticorpos associados a doenças inflamatórias crônicas? – Distúrbio autoimune transitório? Infecção? Drogas? Câncer – Traço familiar de autoimunidade? – Manifestação mínima de um espectro de condições autoimunes? – Manifestação precoce de uma doença autoimune incipiente?
Aprendemos a fazer, fazendo. Aristóteles
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