Super Clinica Médica

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SUPER CLÍNICA MÉDICA

MATERIAL DIDÁTICO


CAPÍTULO

4

Neoplasias da pele

Carcinoma basocelular O carcinoma basocelular (epitelioma basocelular) é uma neoplasia maligna da pele constituída por células morfologicamente semelhantes às células basais da epiderme, que apesar de malignidade local, já que tem alto poder infiltrativo e destrutivo (pode infiltrar cartilagens e ossos), muito raramente ocasiona metástases a distância (relatos raríssimos na literatura), sendo considerada a neoplasia maligna da pele de melhor prognóstico, pois a cirurgia com margens cirúrgicas livres é curativa. É o câncer maligno de pele mais frequente, representando cerca de 50% a 70% de todas as neoplasias malignas. Sua ocorrência é mais comum após os 40 anos de idade (90% dos casos após os 40 anos), nas pessoas de pele clara, e seu surgimento tem relação direta com a exposição cumulativa da pele à radiação solar durante a vida. Exposição a substâncias

como arsênico inorgânico e alcatrão também pode ser apontada como fator causal. Determinadas síndromes genéticas apresentam elevada frequência do tumor, sendo possível identificar um gene supressor do tumor no cromossomo 9q22, cuja perda do alelo resulta em aparecimento de tumor. A grande maioria das lesões aparece na face, em seu terço superior. O epitelioma basocelular pode se manifestar de diversas formas, mas, em sua apresentação mais típica, inicia-se como pequena lesão papulosa consistente, de cor rósea ou translúcida e aspecto “perolado”, liso e brilhante, com finos vasos sanguíneos na superfície (teleangiectasias) que crescem progressiva e lentamente. Na sua evolução pode ulcerar. Não há linfadenopatia ou comprometimento sistêmico, como já dito. Na histopatologia, destaca-se a organização das células tumorais em blocos com retração conjuntiva ao redor.


46 Dermatologia

Formas clínicas

Figura 4.1  Carcinoma basocelular nodular e ulcerado, com discretas telangiectasias (A). Lesão perolada pigmentada, fazendo diagnóstico diferencial com melanoma maligno (B) e lesão terebrante e região frontal com grande destruição tecidual (C).

Papulonodular (ou carcinoma de células basais clássico): trata-se da apresentação clínica mais comum, responsável por 50% a 80% de todos os carcinomas de células basais.

Ulcerada: a ulceração não faz a lesão perder sua principal característica, a borda perolada.

Terebrante (ulcus rodens): trata-se da forma ulcerada com invasão rápida, provocando grande destruição do maciço central da face, globo ocular ou calota craniana.

Plano cicatricial: lesão superficial e de crescimento centrífugo em extensão, preferencialmente na região orbitária. A porção central apresenta aspecto cicatricial e a borda é ligeiramente perolada.

Superficial ou pagetoide: área geralmente oval, eritematoescamosa ou superficial, com borda nítida. É mais frequente no tronco e extremidades e tem correlação com a ingestão de arsênico.

Esclerodermiforme: assemelha-se a uma placa de esclerodermia, a borda é pouco nítida e dificilmente perolada. É rara e com alto poder infiltrativo e pior prognóstico.

Pigmentado: mais comum em negros, diagnóstico diferencial com melanoma. Há grande quantidade de melanina nas massas tumorais à histopatologia.

Vegetante: forma muito rara de carcinoma basocelular. A forma vegetante é mais comumente vista em lesões do tipo espinocelular.

Cístico: apresenta aparência cinza-azulada ou clara e exsuda fluido claro após incisão. Se localizado em área peri-orbital, pode ser confundido com hidrocistoma. Presença de espaço cístico dentro dos nódulos tumorais, geralmente, devido à necrose ou presença de mucina.

Fibroepitelioma de Pinkus: variante rara do CBC que se apresenta como pápula ou placa rosada, na porção inferior do tronco. Tem como principal diagnóstico diferencial o melanoma amelanótico. Na histologia padrão reticulado de células basaloides anastomosados finas em um estroma frouxo; várias conexões com a epiderme.

Metatípico (carcinoma basoescamoso): aspectos histopatológicos mistos dos carcinomas espinocelular e basocelular. Esta variante representa 1% de todos os carcinomas cutâneos não melanomas.

Quanto à evolução das lesões, tumores localizados nas linhas de fusão da pele têm mais chances de recidivar que os demais.

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47 4  Neoplasias da pele

História natural O CBC apresenta evolução crônica, crescendo progressivamente, e tende a tornar-se ulcerativo. São lesões friáveis, frequentemente recobertas por crostas que, quando retiradas, determinam sangramento. Algumas lesões tendem a involuir espontaneamente e formam cicatriz conforme se estendem. A disseminação periférica pode produzir placas de configuração serpiginosa. A ulceração acentuada pode chegar até os tecidos subcutâneos profundos e, até mesmo, à cartilagem e ao osso, causando destruição extensa e mutilação. Pelo menos metade dos óbitos que ocorrem no CBC resulta da extensão direta do tumor para estruturas vitais, e não de metástases.

Metástases As metástases são extremamente raras, ocorrendo em 0,0028% a 0,55% dos casos de carcinoma de células basais. Acredita-se que essa baixa incidência se deve ao fato de que as células tumorais precisam de um estroma de apoio para sobreviver. Os seguintes critérios são aceitos para o diagnóstico de CBC metastático: 1. O tumor primário deve se originar na pele. 2. Deve-se demonstrar a presença de metástases longe do tumor primário, não sendo relacionadas com simples extensão do tumor. 3. Deve haver uma similaridade histológica entre o tumor primário e as metástases. 4. As metástases não devem estar misturadas com carcinoma de células escamosas. O CBC metastático é duas vezes mais comum nos homens do que nas mulheres. A imunossupressão não parece aumentar o risco de metástase. A maioria dos tumores que apresenta metástase se localiza na cabeça e no pescoço, sendo geralmente tumores grandes que apresentam recorrência, a despeito dos vários procedimentos cirúrgicos ou radioterápicos. O achado histológico de CBC perineural ou intravascular aumenta o risco de metástases. Os linfonodos regionais são os locais mais comuns para o aparecimento de metástases, seguidos por pulmões, ossos, pele, fígado e pleura. A disseminação ocorre tanto pela via hematogênea quanto pela linfática. O tempo entre o diagnóstico do tumor primário e a metástase é de aproximadamente 9 anos, mas o intervalo varia de 1 a 45 anos. Apesar de o tumor primário poder estar presente por muitos anos antes que haja uma metástase, depois que esta ocorre, a evolução é muito rápida. Menos de 20% dos pacientes sobrevivem por 1 ano e menos de 10% vivem mais de 5 anos após a metástase.

Associação a tumores malignos internos Frisch et al. relataram uma série de 37.674 pacientes com CBC acompanhados por 14 anos. A comparação com a taxa de câncer da população em geral foi impressionante, pois esses pacientes apresentaram 3.663 novos carcinomas, enquanto o grupo-controle desenvolveu 3.245. O melanoma maligno e os carcinomas de lábio foram os mais frequentes; entretanto, notou-se a incidência excessiva de carcinomas internos envolvendo glândulas salivares, laringe, pulmões, mama, rins e órgãos linfáticos (linfoma não Hodgkin). A frequência do linfoma não Hodgkin estava particularmente aumentada. Os pacientes com diagnóstico de CBC antes dos 60 anos de idade apresentaram maior incidência de câncer de mama, câncer testicular e linfoma não Hodgkin.

Imunossupressão A imunossupressão para transplante de órgãos aumenta em 10 vezes o risco de desenvolver CBC. Acredita-se que a infecção pelo HIV e o uso de medicamentos imunossupressores para outras finalidades também aumentem a incidência deste câncer. Os pacientes com leucemia linfocítica crônica também apresentam risco maior para desenvolver CBC. História de queimaduras solares com formação de vesículas na infância nos pacientes imunossuprimidos representa fator de risco muito grande para o desenvolvimento dessa afecção após a instituição de imunossupressão.

Tratamento O tratamento do carcinoma basocelular deve ser individualizado. Classicamente, a cirurgia é considerada meio de abordagem mais curativo, já que a determinação de margens cirúrgicas livres no exame histopatológico considera a lesão como tratada definitivamente. Preconiza-se margem cirúrgica de 5 mm para lesões de basocelular, entretanto muitas vezes lesões palpebrais e de outras localizações nobres não permitem tal amplitude. A cirurgia micrográfica de Mohs pode ser opção nestes casos (há retirada de lesão com margem mínima e estudo histopatológico imediato por congelação com ampliação das margens, até a congelação mostrar ausência de neoplasia no material examinado). Muitas vezes faz-se necessário enxerto ou retalho de pele para reconstituição do leito cirúrgico. A cirurgia micrográfica de MOHS também está indicada para lesões recidivantes.

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48 Dermatologia Inicialmente, Frederic Mohs desenvolveu esta técnica na Universidade de Wiscosin nos anos 1930. A técnica original usava pasta de cloreto de zinco para fixar o tecido in vivo, e era feita a excisão cirúrgica. O Dr. Theodore Tromovitch e o Dr. Samuel Stegman modificaram essa técnica nos anos 1970, utilizando análise dos tecidos a fresco por congelação, variante que continua a ser usada hoje em dia. Enquanto os princípios cirúrgicos básicos da cirurgia micrográfica de Mohs são similares aos usados na excisão-padrão, existem desafios únicos encontrados na cirurgia de Mohs. Uma compreensão completa da patologia, anatomia, oncologia cutânea, reconstrução cirúrgica avançada e controle de complicações cirúrgicas são essenciais para um resultado bem sucedido para o paciente. Qualquer dermatologista que realize a cirurgia micrográfica de Mohs deve ser bem treinado nesta técnica e em todos os desafios que cercam os cuidados cirúrgicos e pós-operatórios. A excisão cirúrgica micrográfica de Mohs é uma técnica poupadora de tecido que emprega o controle de 100% da margem cirúrgica através de cortes congelados. Esta avaliação da margem cirúrgica total usando secções horizontais (e não verticais, como usadas no seccionamento-padrão), combinada com mapeamento preciso, permite um alto índice de cura para as neoplasias cutâneas. Além disso, o fato de poupar os tecidos normais adjacentes pode melhorar a cosmética e diminuir o risco de defeitos funcionais em locais anatômicos sensíveis. Todo tumor com padrão de crescimento contíguo deve ser candidato para excisão cirúrgica micrográfica de Mohs. Existem múltiplas indicações para a excisão cirúrgica micrográfica de Mohs. A cirurgia de Mohs provê índices de cura de 99% de CBCs primários e 95% para CBCs recorrentes. Os CECs na pele e nos lábios tratados com a cirurgia de Mohs têm taxa de recorrência em 5 anos de 3,1% (versus 10,9% para outras modalidades). O CEC na orelha tratado com a cirurgia de Mohs tem taxa de recorrência em 5 anos de 5,3% (versus 18,7% para outras modalidades). O CEC localmente recorrente também tem índice de recorrência reduzido quando tratado com cirurgia de Mohs, se comparado com outras modalidades (10% versus 23,3%). Outros tumores que podem ser tratados com sucesso pela cirurgia de Mohs incluem dermatofibrossarcoma protuberante, fibroxantoma atípico e carcinoma adnexial microcístico.

Indicações para cirurgia de MOHS Câncer de pele não melanoma recorrente ou não completamente excisado Tumores com subtipos histológicos agressivos (i. e.: infiltrativos, semelhantes à morfeia, micronodulares, com comprometimentos perivascular ou perineural) Tumores com margens clínicas mal definidas

Indicações para cirurgia de MOHS (cont.) Localização de alto risco > 0,4 cm (zona H da face, olhos, orelhas e nariz) Tumores grandes (> 1 cm na face; > 2 cm no tronco ou extremidades) Áreas cosmeticamente e funcionalmente importantes, incluindo as áreas genital, anal e perianal, mãos, pés e unhas Tumores surgindo em pacientes imunossuprimidos Tumores surgindo em pele previamente irradiada ou em cicatriz Doenças genéticas com risco aumentado de neoplasias (i. e.: síndrome do carcinoma basocelular nevoide ou xerodermia pigmentosa) Tabela 4.1

A criocirurgia com nitrogênio líquido é boa e versátil opção terapêutica para os tumores cutâneos. Com aparelhos especiais consegue-se crionecrose dos tecidos, obtida com temperaturas que variam de -30°C a -60°C, e a morte celular ocorre por formação de gelo intra e extracelular. Ocorrem também fenômenos imunológicos. Algumas indicações e vantagens da criocirurgia são: a) tratamento de lesões tumorais localizadas em áreas anatômicas com mobilidade mínima do tecido, tais como nariz, pavilhões auriculares, região frontal e dorso das mãos; b) áreas com possibilidade de ocorrerem cicatrizes e retrações indesejáveis, tais como pálpebras e região pré-esternal. A criocirurgia não deve ser utilizada em pacientes com história clínica de sensibilidade ao frio, com doença ou fenômeno de Raynaud ou que tenham exames alterados para crioglobulinas e crioaglutininas.

Quimioterapia citotóxica local Utilizam-se, principalmente, duas substâncias, o 5-fluorouracil tópico e, mais recentemente, imiquimod. A indicação maior é para lesões pré-cancerosas, mas também para o carcinoma basocelular plano superficial, embora possa ocorrer recidiva.

Terapêutica fotodinâmica (PDT) Baseada na ação citotóxica e da destruição celular do ácido delta-aminolevulínico ou pelo cloridrato de aminolevulinato de metila, sob radiação de luz com um comprimento de onda específico. Indicação para carcinoma basocelular superficial.

Síndrome de Gorlin A síndrome do carcinoma de células basais nevoide (SCCBN), ou síndrome do nevo de células basais, é um distúrbio autossômico dominante caracteriza-

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49 4  Neoplasias da pele do pelo desenvolvimento de múltiplos carcinomas de células basais; cistos odontogênicos na mandíbula; pequenas depressões nas mãos e nos pés; anomalias ósseas nas costelas, coluna e crânio; e outros múltiplos distúrbios. Cistos de queratina são vistos com frequência, podendo haver a presença de depósitos de cálcio na pele, principalmente no couro cabeludo. O paciente apresenta uma fácies característica com protuberância frontal, hipoplasia do maxilar, raiz nasal alargada e hipertelorismo ocular verdadeiro.

Tumores cutâneos Os carcinomas de células basais se iniciam muito cedo e em qualquer idade como lesões múltiplas, normalmente numerosas. Eles normalmente aparecem entre os 17 e 35 anos de idade. Apesar de qualquer parte do corpo poder ser afetada, há preferência pelo envolvimento da área central da face, especialmente as pálpebras, região periorbital, nariz, lábio superior e região malar. Qualquer tipo de CBC pode estar presente. As crianças podem apresentar pápulas pigmentadas semelhantes a pólipos.

Cistos mandibulares Os cistos mandibulares afetam 70% dos pacientes. Tanto a mandíbula quanto o maxilar podem apresentar defeitos císticos na radiografia, sendo que o envolvimento mandibular é 2 vezes mais frequente. O paciente pode queixar-se de dor e de que a mandíbula está dolorida, bem como febre, dificuldade para fechar a boca e edema da mandíbula. Os cistos são uni ou multiloculares, podendo ocorrer em qualquer época, sendo que aparecem com mais frequência na 1ª década de vida. Eles podem apresentar revestimento queratinizado e alguns são ameloblastos.

Depressões nas palmas e solas Depressões incomuns nas palmas das mãos e solas dos pés são a manifestação característica da doença. Elas normalmente se tornam aparentes na 2ª década de vida. Até 87% dos pacientes com a síndrome do carcinoma de células basais nevoide apresentarão tais depressões. O exame histológico mostra uma proliferação basaloide, mas as lesões não progridem e nem se comportam como um CBC.

Defeitos esqueléticos Diversos defeitos esqueléticos são facilmente detectados pelas radiografias. Tais defeitos incluem espinha bífida, costelas bífidas, fundidas, ausência de costelas ou costelas alargadas; escoliose e cifose. Uma manifestação interessante é o encurtamento do quarto metacarpo e do metatarso. O encurtamento do

quarto metacarpo causa, clinicamente, uma depressão sobre a quarta articulação metacarpofalangiana (sinal de Albright). A evidência radiológica de lesões múltiplas é altamente sugestiva dessa síndrome, e já que a maioria está presente congenitamente, as radiografias podem ser úteis no seu diagnóstico em pacientes muito novos para manifestar outras anormalidades. Setenta a 75% dos pacientes apresentam anormalidades do esqueleto. Foram encontradas transparências no formato de chamas nas falanges, nos ossos do metacarpo e do carpo em 30%, em um total de 105 pacientes. Outras características radiológicas nessa série incluem costelas bífidas (26%), hemivértebra (15%) e fusão de corpos vertebrais (10%).

Distúrbios do sistema nervoso central Os sinais radiológicos importantes incluem calcificação da foice do cérebro (65%), do tentório cerebelar (20%) e da ponte da sela turca (68%). À tomografia computadorizada (TC), a calcificação da foice do cérebro é distintamente lamelar. Os pacientes podem apresentar problemas mentais variáveis.

Outros defeitos Anormalidades oftalmológicas e cistos mesentéricos, ovarianos e mamários, assim como fibromas uterinos, lipomas, cistos epiteliais, milia e cálculos renais ocorrem, ocasionalmente, nesses pacientes. Fibromas ovarianos multinodulares calcificados são característicos.

Etiologia Esse é um distúrbio genético com uma herança autossômica dominante. A penetrância pode ser de até 95%. Mutações no gene supressor de tumor Patch 1 (PTCH1) e, mais raramente, nos genes sonic hedgehog (SHH) ou smoothened (SMOH) são responsáveis por essa síndrome.

Histopatologia A histopatologia do CBC que se desenvolve nos pacientes com a síndrome é idêntica àquela que se desenvolve nos pacientes que não são portadores da síndrome, sendo que os tipos sólido e superficial são os mais comuns.

Tratamento O aconselhamento genético é essencial. É recomendado restringir a exposição ao sol e fazer uso de proteção solar máxima, semelhante às recomendações para o xeroderma pigmentoso. O tratamento envolve

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50 Dermatologia o monitoramento regular e biópsia de lesões suspeitas. O tratamento tópico com tazaroteno e imiquimod pode ter um papel preventivo ao tratar os tumores superficiais. O tratamento cirúrgico é usado para a maioria das lesões. Um caso com lesões intratáveis respondeu à quimioterapia sistêmica com o paclitaxel. O tratamento oral com retinoide reduz a frequência de novas lesões de CBC.

Carcinoma espinocelular O carcinoma espinocelular é um tumor maligno da pele, com capacidade de invasão local e de metastatizar, representando cerca de 20% a 25% dos cânceres da pele. Origina-se de células epiteliais do tegumento (pele e mucosas) com certo grau, maior ou menor, de diferenciação para produção de queratina. É mais frequente no sexo masculino (54%) e de aparecimento mais tardio que o basocelular. Relaciona-se diretamente com a exposição solar e é o mais frequente dos tumores relacionados à imunossupressão, com o HIV, por exemplo, aumentando a chance de ocorrência. O arsenicismo também aumenta o risco de ocorrência e a queratose actínica aparece como lesão cutânea pré-maligna mais frequente. O tratamento com etanercept foi associado ao aparecimento deste câncer em pacientes portadores de artrite reumatoide que, também, estavam usando metotrexate. O papilomavírus (HPV-16, 18, 31 e 35) desempenha papel importante no desenvolvimento desses tumores na genitália e região periungueal. Quanto à localização, o terço inferior da face e dorso das mãos são os locais de predileção. Lábio inferior pode ter lesão de carcinoma espinocelular com frequência, especialmente quando precedido por queilite actínica. Iniciam-se como lesões pequenas e endurecidas e têm crescimento rápido, podendo chegar a alguns centímetros em poucos meses. Crescem infiltrando-se nos tecidos subjacentes e também para cima, formando lesões elevadas ou vegetantes. É frequente haver ulceração com sangramento. A classificação de Broders define o grau de diferenciação baseado na ceratinização do corte histológico:

I: expressiva diferenciação celular, com mais de 75% de corte, apresentando tendência à ceratinização, inclusive com eventuais “pérolas córneas”;

II: 50% a 75% do corte com elementos favoráveis à ceratinização;

III: 25% a 50% do corte com diferenciação;

IV: menos de 25% do corte com elementos ligados à ceratinização, mostrando grande indiferenciação.

Esta classificação é criticada por alguns dermatologistas e dermatopatologistas porque só caracteriza o grau de diferenciação, sem levar em conta o grau de invasão. O carcinoma espinocelular pode surgir em pele sadia ou previamente comprometida por algum processo, como cicatrizes de queimaduras antigas (úlceras de Marjolin), úlceras crônicas, radiodermites ou lesões decorrentes do efeito acumulativo da radiação solar sobre a pele, como as queratoses solares (ou actínicas). A doença de Bowen caracteriza-se por lesão eritemato-escamosa de crescimento centrífugo, preferencialmente localizada em áreas não fotoexpostas, e trata-se de um carcinoma espinocelular in situ. Quando localizado no pênis, recebe o nome de eritroplasia de Queyrat. O carcinoma espinocelular tem crescimento mais rápido do que o carcinoma basocelular, pode atingir as mucosas (lábios, mucosas bucal e genital) e, neste caso, apresenta maior chance de metastatizar. Quando este fenômeno ocorre, é inicialmente por via linfática e posteriormente hematogênica, comprometendo preferencialmente ossos e pulmões. A frequência de metástase de um CEC também varia de acordo com a lesão que lhe deu origem, sendo 0,5% de chance para queratose actínica, 17% para cicatriz de queimaduras, 20% para radiodermite crônica e 31% para fístula de osteomielite crônica.

Metástases A incidência de metástases no carcinoma de células escamosas varia de 0,5% a 5,2%. Deve-se dar atenção especial aos linfonodos regionais que drenam o local do tumor. Eles devem ser avaliados no exame inicial, quando a lesão suspeita é identificada, e nas consultas após o tratamento do tumor. Os fatores de risco para a recidiva local e metástases incluem: 1) modalidade de tratamento que não verifique as margens do espécime (como curetagem e dissecação, crioterapia ou radioterapia); 2) recorrência após o tratamento; 3) localização (têmporas, couro cabeludo, orelha, lábios); 4) tamanho; 5) profundidade; 6) diferenciação histológica; 7) evidência histológica de invasão perineural; 8) evidência histológica de desmoplasia; 9) outros fatores precipitantes além da luz UV; e 10) paciente imunossuprimido. Em referência às metástases, as maiores taxas estão associadas a cicatrizes (37,9%), lábio (13,7%) e orelha (8,8%). O risco de metástases aumenta para as lesões com mais de 2 cm de diâmetro, lesões cutâneas com mais de 4 mm de profundidade e lesões no lábio com mais de 8 mm de profundidade.

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51 4  Neoplasias da pele Os pacientes com disseminação perineural apresentam uma incidência de recorrência local de 47,2% e metastática de 34,8%. As chances de metástases são 6 vezes maiores no carcinoma de células escamosas desmoplásico do que nos outros padrões histológicos, excluindo as formas neurotrópicas. Os pacientes com carcinoma de células escamosas apresentam risco maior de desenvolver outros tumores malignos, como câncer dos órgãos respiratórios, cavidade oral, faringe, intestino delgado (nos homens), linfoma não Hodgkin e leucemia. O tratamento do CEC obedece aos mesmos princípios do tratamento do carcinoma basocelular.

Figura 4.2  Carcinoma espinocelular com características de corno cutâneo (A). Lesão úlcero-infiltrativa avançada (B). CEC de mucosa de glande – Eritroplasia de Queyrat (C).

Carcinoma verrucoso Trata-se de tipo especial de carcinoma espinocelular de baixo grau de malignidade, crescimento lento e que raramente metastatiza. Manifesta-se clinicamente como lesão exofítica e verrucosa, que acaba por invadir estruturas mais profundas da pele. A histopatologia revela alto grau de diferenciação, sem atipias, podendo ser erroneamente diagnosticado como verruga vulgar. Geralmente associado ao papilomavírus humano; incluem a papilomatose oral florida da boca, o condiloma gigante de Buschke-Lowenstein dos órgãos genitais e o epitelioma cuniculado das plantas. O tratamento do carcinoma espinocelular é cirúrgico, com retirada total da lesão, e deve ser realizado o mais precocemente possível, para evitar a ocorrência de metástases. Evolução para CEC pode ocorrer, sobretudo após tratamento com radioterapia. O prognóstico, entretanto, é bom.

Figura 4.3  Variações topográficas do carcinoma verrucoso: plantar ou epitelioma cuniculatum (A); urogenital ou condiloma acuminado gigante de Buscke-Loewenstein (B) e da cavidade oral ou papilomatose oral florida (C).

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52 Dermatologia

Melanoma O melanoma é um tumor de elevada malignidade, que se origina da transformação maligna dos melanócitos e envolve primariamente a pele. Sua incidência vem aumentando nos últimos anos (3% a 8% ao ano) e é maior em indivíduos de pele clara. Representa 3% de todos os tipos de câncer e com mortalidade em ascensão, representando 1% das mortes por câncer em todo o mundo e 90% das mortes associadas a tumores cutâneos. Indivíduos com grande quantidade de nevos melanocíticos comuns e aqueles com nevos congênitos e/ ou nevos atípicos apresentam maior risco de desenvolver a neoplasia. É mais frequente em homens, nos quais o prognóstico é ligeiramente melhor.

Etiologia Ocorre associado a fatores genéticos e ambientais, sendo a exposição solar intermitente e intensa o mais importante destes últimos. Pacientes que sofreram queimaduras solares na infância têm 3,6% mais chances de desenvolver melanoma do que aqueles que não se queimaram. A incidência e a mortalidade são inversamente proporcionais à latitude do domicílio e há menor chance de lesão em áreas do corpo duplamente cobertas. A história prévia de melanoma e os fototipos mais baixos (pele clara) aumentam a chance, bem como a presença de melanoma na família – 8% a 12% dos pacientes com diagnóstico de melanoma têm história familiar de melanoma. O trauma é sabidamente implicado como fator colaborador em lesões de melanoma do tipo lentiginoso acral, que apresenta maior prevalência em populações com o hábito de andar sem calçados. Imunodeficiências adquiridas podem aumentar a chance. Nevos axiais gigantes congênitos ou mutações no gene p16, protoncogene CD K4, p53 e gene APAF-1 e, recentemente, se encontrou associação entre melanoma e o polimorfismo do gene EGF, além de mutações somáticas de troca simples no oncogene BRAF (figura 4.4). A lesão do melanoma pode surgir sobre pele sã (melanoma de novo) ou sobre lesões preexistentes, principalmente os nevos melanocíticos; 1/3 dos melanomas surgem em lesões névicas prévias e o risco é maior para nevos displásicos e praticamente inexistente para nevos intradérmicos. Prurido, alterações

de pigmentação e do tamanho da lesão, inflamação, ulceração e sangramento são alterações que sugerem transformação maligna.

Perda de E-caderina e CDKN2A

Perda de p14ARF e APAF-1

Perda ou resistência à Proliferação inibição de autônoma proliferação

Evasão de apoptose

Melanoma cutâneo

Angiogênese Expressão de VEGF e remodelamento da matriz extracelular

Mutações em BRAF e sinalização via FGF-R

Invasão e metástase

αvβ3 integrinas e receptores de quimiocinas

Imortalização Aumento da atividade de telomerase

Figura 4.4  Melanoma cutânea: uma visão resumida das alterações moleculares detectadas. Hanahan & Weinberg agruparam as alterações encontradas em diferentes cânceres em seis principais categorias. Essa figura mostra os mecanismos moleculares alterados em cada uma das seis categorias e que estão associados com a progressão do melanoma. Esses mecanismo ilustram os elementos mais promissores para diagnóstico precoce e o foco da atenção da pesquisa de novas drogas para o tratamento de melanoma.

Principais formas clínicas Lentigo maligno-melanoma Lentigo maligno-melanoma é o melanoma que surge sobre a melanose maligna ou lentigo maligno. Ocorre geralmente em pacientes idosos, na face ou em outras áreas expostas ao sol, e se manifesta como mácula assintomática grande (de 2 a 6 cm), plana, acastanhada ou marrom, com pontilhado negro ou marrom espalhado irregularmente na superfície, que cresce radialmente. É uma forma de melanoma maligno superficial in situ, no qual as células névicas e os melanócitos são encontrados nas porções inferiores da epiderme. Já no lentigo maligno-melanoma, os melanócitos malignizados proliferam de maneira mais abundante na epiderme basal e podem invadir a derme. Dentre os melanomas, é o tipo menos comum (4%15%) e mais prevalente em idosos (+/- 65 anos). É quase exclusivo de áreas expostas ao sol – segmento cefálico – e é a lesão de melhor prognóstico, pela origem epidérmica dos melanócitos. A lesão geralmente é plana, com o desenvolvimento de áreas palpáveis sendo indicativo de melanoma mais invasivo.

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53 4  Neoplasias da pele

Melanoma extenso superficial Melanoma extenso superficial corresponde ao tipo clínico mais comum (70%). A lesão em geral é assintomática e bem menor que o lentigo maligno-melanoma. Localiza-se na maioria das vezes nas pernas, em mulheres, e no tronco, em homens. A idade média é de 40 anos. O paciente, em geral, procura o médico queixando-se de aumento no tamanho da lesão ou devido à sua coloração irregular. O aspecto característico da lesão é de placa com bordas elevadas e infiltradas, cujas margens são denteadas e irregulares, geralmente maiores que 6 mm, apresentando pontos cuja coloração varia desde acastanhada até negra, podendo ser esbranquiçada, acinzentada ou vermelha. Às vezes, há pequenos nódulos protuberantes de cor preto-azulada. É o tipo que mais se associa às lesões névicas prévias. Devemos valorizar, na anamnese do paciente, sinais e sintomas como prurido, ulceração e mudança da lesão. Histologicamente, a lesão se caracteriza por melanócitos atípicos por toda a epiderme, com eventual invasão dérmica. Seu prognóstico é intermediário entre o lentigo maligno-melanoma e o melanoma nodular.

aparecimento é de 55 a 65 anos. O período de evolução é de aproximadamente 2 anos e meio. Pode ser palmar, plantar ou subungueal. A lesão é castanha, marrom ou negra, com variação na cor e bordas irregulares, podendo haver pápulas e nódulos na fase de crescimento vertical com grande poder de matástase. O melanoma subungueal é raro, geralmente em hálux ou polegar, podendo se apresentar apenas como uma faixa de cor preta, geralmente maior que 6 mm de largura ou mesmo envolvendo toda a unha, por vezes hipercromia do leito ungueal proximal (pigmentação da prega ungueal posterior), correspondendo ao Sinal de Hutchinson.

Melanoma mucoso O melanoma primário das mucosas é raro, mas tipicamente demonstra um padrão de crescimento lentiginoso (juncional). Na boca, especialmente no palato, a lesão é geralmente pigmentada, podendo ser ulcerada. Na mucosa nasal, ele pode apresentar-se como um tumor polipoide. No lábio pode tomar a forma de uma úlcera indolente. O melanoma da vulva se manifesta como um tumor, geralmente ulcerado, com sangramento e prurido. Normalmente, ele é detectado depois da instalação de metástases para a virilha.

Melanoma nodular Melanoma nodular é responsável por 10% a 15% de todos os melanomas, sendo o segundo tipo mais comum. Pode aparecer em qualquer parte do corpo, sendo encontrado com maior frequência em pacientes entre os 20 e 60 anos de idade (idade média de aproximadamente 53 anos), em tronco, cabeça e pescoço. Também é assintomático, a não ser que se ulcere. O paciente, em geral, procura o médico queixando-se do aparecimento de pápulas protuberantes e escuras ou de placa escura que cresceu rapidamente com pouco aumento no sentido radial. A cor pode variar do branco perláceo ao cinza ou ao preto. Ocasionalmente, o melanoma nodular pode apresentar pouco ou nenhum pigmento. A evolução é rápida (6-18 meses), com prognose mais grave. Geralmente, surge em pele sã (melanoma de novo).

Melanoma amelanótico Merece destaque pela dificuldade e retardo de reconhecimento como lesão maligna. Suas células são incapazes de produzir melanina, sua função básica, daí o alto grau de indiferenciação e a alta malignidade, com comportamento mais agressivo que o dos melanomas melanóticos e maior capacidade de invasão. Trata-se do melanoma desmoplásico, cuja localizações mais comuns são cabeça e parte superior do tronco e 50% podem apresentar neurotropismo. Paciente de idade média de 63 anos tendo prognóstico reservado. Principais diagnósticos diferenciais são granuloma piogênico, CBC e ceratose actínica.

Diagnósticos diferenciais Melanoma lentiginoso acral Corresponde à forma mais comum de melanoma entre negros e asiáticos (60%-72% negros e 29%-46% asiáticos). É o tipo menos frequente em indivíduos de pele clara (2% a 8%). A idade média de

Os principais diagnósticos diferenciais do melanoma cutâneo são com nevo atípico, nevo de Spitz, nevo de Reed, carcinoma basocelular pigmentado, nevo azul, hemangioma trombosado, ceratose seborreica, melanoníquia estriada, hemantoma subungueal e alguns tumores anexiais raros.

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54 Dermatologia Características clínicas dos diferentes tipos de melanoma Idade História natural e características do crescimento radial Tipo de melanoma Localização comum média Melanoma Áreas de exposição solar, 70 anos Geralmente são lesões grandes (3 a 4 cm), achatadas, de colentigo maligno mais comumente cabeça loração bronzeada a preta, com lesão precursora (lentigo mae pescoço ligno) por 5 a 10 anos. Hipopigmentação do tecido ao redor. Representa 10% dos melanomas. Toda a superfície 56 anos Comumente associado com a síndrome do nevo displásico. TiMelanoma de disseminação corporal picamente, o diagnóstico é feito por mudança em uma lesão superficial preexistente. Inicialmente, vai desde lesões achatadas a levemente elevadas, com margens irregulares e coloração marrom, preta e rosa. Representa 70% dos melanomas. Melanoma Toda a superfície 49 anos Cresce mais comumente no tronco. A lesão é, em geral, escunodular maligno corporal ra e de coloração uniforme. É notável a completa ausência de anormalidades dos melanócitos na epiderme adjacente. Geralmente, não tem uma fase de crescimento radial e é associado com rápido crescimento vertical. Representa 10% a 15% dos melanomas. Melanoma Palma das mãos, sola 59 anos Na maioria dos casos, são lesões grandes, com bordas irregulentiginoso acral dos pés e subungueal lares, geralmente de coloração marrom. O subungueal mais comumente ocorre no 1º quirodáctilo ou 1º pododáctilo. Melanoma lentigi- Oral, ocular, de mucosa 56 anos Semelhante ao melanoma lentiginoso acral, ocorrendo em noso de mucosa genital uma variedade de tecido mucoso. Tabela 4.2

Figura 4.5  Melanoma extenso superficial.

Figura 4.7  Melanoma lentiginoso acral e sinal de Hutchinson.

Figura 4.6  Melanoma lentiginoso acral.

Figura 4.8  Melanoma nodular com satelitose.

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55 4  Neoplasias da pele

Detecção clínica do melanoma

Figura 4.9  Lentigo maligno-melanoma.

Deve-se realizar coleta de história clínica detalhada em busca de fatores de risco para o desenvolvimento de melanoma, obtendo informações sobre lesões suspeitas que apresentem prurido, sangramento ou mudanças de cor e tamanho. Os pacientes devem ser submetidos a exame físico completo observando-se alterações em lesões preexistentes ou o surgimento de lesões em áreas de pele sem nenhuma lesão anterior (de novo). Em relação aos nevos pigmentados que se alteram, é importante considerar alguns sinais, mnemonicamente ABCDE, que indicam provável transformação em melanoma:

Regra do ABCDE: A: Assimetria. B: Bordas irregulares. C: Cores variadas. D: Diâmetro ≥ 6 mm, ou em crescimento. E: Elevação, aumento da espessura.

Figura 4.10  Melanoma amelanótico.

Nos últimos anos, tem-se acrescido à semiologia das lesões pigmentadas a técnica da dermatoscopia, realizada através de aparelhos especiais (dermatoscópios) que, pela observação de determinados padrões de pigmentação e morfologia, aumentam a acuidade diagnóstica, porém a diagnose de certeza é feita pelo exame histopatológico. O diagnóstico clínico de melanoma está associado com uma taxa de erro no diagnóstico de 10-20%.

Biópsia A excisão completa, com margens laterais de 2 mm e profundidade até a camada superior do tecido adiposo, é o método preferível de biópsia para uma lesão com suspeita de melanoma. Apesar de a National Comprehensive Cancer Network (NCCN) recomendar que se evitem margens mais amplas para permitir um mapeamento linfático para pesquisa de nódulos sentinela, evidências sugerem que o mapeamento preciso ainda é possível após uma excisão ampla.

Figura 4.11  Melanoma maligno metastático.

Quando existe a suspeita de um melanoma se desenvolvendo a partir de um nevo pigmentado gigante, deve-se realizar uma biópsia incisional. A biópsia de um lentigo maligno é problemática, pois as lesões tendem a ser grandes e a se desenvolverem em regiões cosmeticamente relevantes. Essas lesões frequentemente contêm áreas normais, podendo levar a um diagnóstico errôneo. Áreas do tumor podem apresentar regressão liquenoide, simulando a ceratose liquenoide benigna. A colisão com outras lesões pigmentadas,

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56 Dermatologia como o lentigo solar benigno, acantoma pigmentado de células grandes e ceratose actínica pigmentada, é comum. Como existe o potencial de se biopsiar a área errada, pequenas biópsias frequentemente levam a um diagnóstico errôneo. A melhor técnica de biópsia na suspeita de lentigo maligno é geralmente a biópsia superficial tangencial ampla. Isso resulta em uma cicatriz mínima e fornece ao patologista uma ampla área da junção dermoepidérmica para ser examinada. Se a lesão for heterogênea, devem-se biopsiar diversas áreas. Se existe a suspeita de lentigo maligno ou melanoma desmoplásico, deve-se realizar uma biópsia incisional. Os erros de biópsia são mais comuns com as biópsias por punção. A PAAF é realizada nos casos de melanoma com doença em trânsito (melanoma que se dissemina para qualquer um dos gânglios linfáticos).

Histopatologia As biópsias devem ser examinadas por dermatopatologista ou patologista com experiência em lesões pigmentadas. O laudo deve incluir a espessura máxima em milímetros, conforme o método de Breslow; o nível de invasão de Clark; a presença ou ausência de ulceração; o estado das margens da exérese e presença de lesões satélites que é um forte indicador de prognóstico adverso. Outros fatores importantes incluem regressão, índice mitótico, linfócitos infiltrando o tumor, fase de crescimento (radial versus vertical), invasão angiolinfática, neurotropismo e subtipo histológico. Enquanto os nevos benignos estão bem aninhados na junção, os melanomas geralmente apresentam áreas juncionais em que predominam melanócitos fora de ninhos. Os nevos benignos apresentam dispersão de melanócitos na base da lesão, enquanto os melanomas permanecem aninhados na base. Os melanomas podem ser assimétricos, mas o melanoma metastático e nodular pode apresentar-se como esferas perfeitamente simétricas. Os nevos benignos apresentam simetria bilateral e maturação (células menores e com aspecto mais neuroide) que desce para a derme. A maioria dos melanomas não apresenta simetria bilateral e tem pouca maturação descendo para a derme. Nos nevos, os ninhos na junção tendem a ser redondos ou ovais e equidistantes. No melanoma, os ninhos juncionais geralmente são alongados ou têm um formato irregular. Eles se distribuem ao acaso e geralmente envolvem o ápice das papilas dérmicas, assim como as pontas e os locais dos cones dérmicos. Carreiras confluentes de melanócitos atípicos são vistas frequentemente na junção dermoepidérmica, normalmente se estendendo até os anexos. Nos nevos, os ninhos dérmicos são menores do que os ninhos juncionais, tornando-se progressivamente menores quanto mais profundos

na derme. No melanoma, os ninhos dérmicos não se tornam menores nas porções mais profundas da derme. Nos nevos, a pigmentação é mais proeminente na junção, reduzindo-se progressivamente nas camadas mais profundas da derme. Os melanomas geralmente retêm a pigmentação nas porções profundas da lesão. No melanoma de disseminação superficial, os melanócitos estão distribuídos na epiderme em um padrão de “tiro de escopeta”. Os tipos lentiginosos de melanoma tendem a proliferar na junção dermoepidérmica com pouca disseminação em tiro de escopeta. O melanoma invasivo está comumente associado a um infiltrado linfoide que forma uma faixa na periferia da lesão. Plasmócitos podem estar presentes em grande número. Uma fase de crescimento vertical é identificada pela presença de um ninho dérmico maior do que o maior ninho juncional, pela invasão da derme reticular ou pela presença de uma faixa elastótica solar. A profundidade do melanoma é medida a partir da camada granulosa ou da base da úlcera. Se houver invasão pela extensão folicular do tumor, a lesão é medida a partir da camada interna da raiz. As variantes raras do melanoma incluem o melanoma de células-balão e o melanoma dendrítico do “tipo equino”. Alguns tipos de nevos benignos mimetizam determinadas características dos melanomas. Os nevos de queimadura solar, acral e de Spitz podem apresentar disseminação intraepidérmica de melanócitos em tiro de escopeta. Os nevos azuis são tipicamente pigmentados na base, estendendo-se para a derme como uma projeção bulbar com pouca maturação e sem dispersão de células na base. A silhueta, estroma esclerótico e citologia branda são essenciais para o diagnóstico. A hibridização genômica comparativa mostrou que aberrações cromossômicas são comuns nos melanomas. Elas ocorrem mais cedo na progressão do melanoma acral do que nos melanomas do tronco. Em geral, os melanomas tendem a apresentar anormalidades envolvendo os cromossomas 9,10, 7 e 6. Os melanomas acrais têm maior incidência de aberrações envolvendo os cromossomas 5p, 11q, 12q e 15, tendo muitas amplificações no locus da ciclina D1. Os lentigos malignos são mais propensos a apresentar perdas nos cromossomas 17p e 13q. Aberrações cromossômicas são raras nos nevos benignos. Uma pequena porcentagem dos nevos de Spitz pode apresentar ganho isolado envolvendo o braço curto de cromossoma 11.

Metástases As metástases ocorrem por via linfática e sanguínea e são divididas em locais, regionais e sistêmicas. As metástases locais ocorrem por via linfática e podem ser lesões satélites (se até 2 cm do tumor de origem) ou metástases em trânsito (se distantes mais de

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57 4  Neoplasias da pele 2 cm do tumor). Metástases regionais, também linfáticas, são caracterizadas pelo comprometimento de linfonodos. A ulceração da lesão é o maior predisponente de envolvimento linfonodal. O risco de acometimento de linfonodo também é diretamente proporcional ao nível de Breslow, que será abordado na sequência. Metástases sistêmicas têm origem hematogênica e privilegiam órgãos como a própria pele (42%-59%), pulmão (18%36%), fígado (14%-20%), SNC (12%-20%), ossos (11%27%) e trato gastrointestinal (1%-7%).

Breslow III: 1,5 a 3 mm.

Breslow IV: 3 a 4 mm.

Breslow V: melanócitos atípicos encontrados em profundidade maior do que 4 mm.

As metástases para o SNC são a principal causa de óbito.

Prognóstico O prognóstico do melanoma está diretamente relacionado ao grau de invasão da pele. Existe correlação linear entre o grau de invasão (Breslow) e a sobrevida em 10 anos. Assim como a classificação de Breslow, os níveis elevados de desidrogenase lática e a presença de ulceração no tumor primário são considerados fatores independentes de mau prognóstico. Se houver acometimento linfonodal ou doença metastática, o prognóstico é sombrio independentemente da gravidade do acometimento da pele.

Figura 4.12  O nível de Breslow é medido do topo da camada granulosa até a célula tumoral mais profunda.

Classificação de clark I: lesão envolvendo apenas a epiderme (melanoma in situ). II: invasão da derme papilar, não alcançando a interface da derme papilar-reticular.

Classificação de breslow

Breslow Is: tumor não invasivo, in situ, não sendo encontrados melanócitos atípicos abaixo da membrana basal.

Breslow I: melanócitos atípicos não mais profundos do que 0,75 mm da superfície cutânea no corte histopatológico.

Breslow II: 0,75 a 1,5 mm.

III: invasão preenche e expande a derme papilar, mas não penetra a derme reticular. IV: invasão penetra a derme reticular, mas não penetra o tecido subcutâneo. V: invade através da derme reticular e penetra o tecido.

Estadiamento melanoma cutâneo

Classificação Tx Tis T1 T2 T3 T4

Classificação de tumor primário para melanoma Espessura do tumor Parâmetros de prognóstico adicionais Não informado Espessura do tumor ou informação sobre ulceração não disponível ou tumor primário desconhecido – Melanoma in situ, sem invasão tumoral ≤ 1 mm T1a: não ulcerado e índice mitótico < 1/mm2 T1b: com ulceração ou índice mitótico ≥ 1/mm2 1,01-2 mm T2a: não ulcerado T2b: ulcerado 2,01 - 4 mm T3a: não ulcerado T3b: ulcerado > 4 mm T4a: não ulcerado T4b: ulcerado Tabela 4.3

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58 Dermatologia Classificação de linfonodo regional para melanoma Número de linfonodos envolvidos (LN) Extensão das metástases linfonodais 0 Sem metástases em linfonodos regionais 1 N1a: micrometástases* N1b: macromatástases** N2 2-3 N2a: micrometástases N2b: macrometástases N2c: em trânsito / satelitoses / sem metástases LN N3 Clínico: ≥ linfonodos com metástase(s) em trânsito / satélites com linfono Patológico: > 4LN ou LN confluentes ou metástase em trânsito / satelitoses com LN metastáticos Tabela 4.4  *Micrometástases são diagnosticadas após a biópsia do linfonodo sentinela ou linfadenectomia (quando realizada). **Macrometástases são definidas como clinicamente evidentes e confirmadas após a linfadenectomia terapêutica ou quando a metástase apresenta extravasamento extracapsular macroscópico. Classificação N0 N1

Classificação de metástase a distância para melanoma LDH no Tipo de metástase Classificação a distância soro M0 Sem metástase a distância – M1a Metástase cutânea, subcutâ- Normal nea ou linfonodal a distância M1b Metástase em pulmão Normal M1c Metástases em outras vísNormal ceras; Qualquer metástase a Elevado distância Tabela 4.5

Estadiamento patológico (cont.) T1 – 4b N1 T1 – 4b N2 T1 – 4A N1b T1 – 4A N2b T1 – 4A N2c N1b III C T1 – 4b T1 – 4b N2b T1 – 4b N2c IV qqT N3 qq T qq N III B

M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0 M1

Tabela 4.7

Grupo 0 IA IB IIA IIB IIC III IV

Grupo 0 IA IB IIA IIB IIC III A

Estadiamento clínico T N Tis N0 T1a N0 T1b N0 T2b – T3a N0 T3b – T4a N0 T4b N0 qqT q N > N0 qqT qqN Tabela 4.6

M M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0 M1

Estadiamento patológico T N Tis N0 T1a N0 T1b – T2a N0 T2b – T3a N0 T3b – T4a N0 T4b N0 T1 – 4A N1 T1 – 4A N2

Para fins práticos, pode-se fazer uma análise prognóstica entre a sobrevida e o agrupamento dos pacientes por estádios, conforme a seguir: estádio I: T1-T2aN0M0 (sobrevida em 10 anos = 90%): estádio II: T2b-T4aN0M0 (sobrevida em 10 anos = 60%): estádio III: qqTN1-3M0 (sobrevida em 10 anos = 45%): estádio IV: qqTqqNM1 (sobrevida em 10 anos = 10%):

Estadiamento melanoma cutâneo M M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0 M0

Mudança na última diretriz: A espessura do melanoma e a presença de ulceração são utilizadas para definir o estadiamento T. Para os melanomas T1, além da ulceração do tumor, a frequência de mitoses substituiu o grau de invasão (Clark) na definição da subcategoria T1b. A presença de micrometástases pode ser detectada utilizando a imuno-histoquímica ou H&E (antes a imunohistoquímica não era utilizada).

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59 4  Neoplasias da pele

Não utilizamos um limite inferior para definir a presença de metástases nodais regionais. No consenso anterior, tumores com depósitos nodais < 0,2 mm de diâmetro não eram considerados metastáticos. Entretanto, tumores pequenos podem ser clinicamente significativos.

O LDH elevado permanece como um significativo preditor de sobrevida e pode ser utilizado para categorizar o estádio M.

Sítios de metástase a distância continuam representando primariamente um componente da categoria M.

Cintilografia, mapeamento dos linfáticos e biópsia de linfonodo sentinela (linfadenectomia) permanecem como ferramentas importantes no estadiamento do melanoma e podem ser utilizados na definição de doença oculta Estádio III em pacientes com apresentação clínica IB ou II.

A presença de microssatélites não tem boa correlação com o prognóstico e, pela classificação do Melanoma Task Force, deve ser estadiada como N2c. Melanoma metastático de sítio primário desconhecido diagnosticado em linfonodos, pele e tecido celular subcutâneo é caracterizado mais como estágio III do que IV. A sobrevida dos pacientes com metástases regionais intralinfáticas é melhor que dos outros pacientes do estádio IIIB.

Tratamento O tratamento do melanoma maligno é cirúrgico e deve ser realizado o mais precocemente possível. O diagnóstico e o tratamento precoces são fundamentais para a cura. A abordagem inicial consiste em exame clínico da lesão e, se necessário, exame dermatoscópico para determinar a necessidade de exérese da lesão. Faz-se uma biópsia excisional da lesão, com margem mínima de 2 mm, e estudo anatomopatológico. Em caso positivo para melanoma, o tratamento cirúrgico complementar com ampliação de margens cirúrgicas iniciais deve ser feito com margens proporcionais ao índice de Breslow (microestadiamento) da lesão primária, uma vez que o aumento de espessura piora o prognóstico deste tumor. AAD – American Bologna J. Dematology, Academy of 2005 dermatology Margem de Margem Breslow Histopatologia excisão de excisão In situ 0.5 cm Melanoma in situ 0,5 cm ≤ 2 mm 1 cm Melanoma < 1 mm 1 cm > 2 mm 2 cm Melanoma de 1-4 mm 2 cm Melanoma > 4 mm 3 cm Tabela 4.8

O Comitê de Melanoma da AJCC recomenda que todos os pacientes com LN regionais clinicamente negativos e que possam ser considerados para futuros ensaios terapêuticos, cirúrgicos ou adjuvantes, devem ser mapeados intraoperatoriamente, com a técnica do linfonodo sentinela, e consequente estadiamento patológico, para que haja homogeneidade dentro dos grupos tratados e melhor discernimento entre o impacto proveniente da história natural e/ou da terapêutica utilizada nos diferentes ensaios. Melanomas com Breslow acima de 1 mm de espessura ou menores com ulceração merecem a realização de um linfonodo sentinela com efeito de estadiamento e possível remoção de micrometástases.

(+)

Linfonodos clinicamente negativos

Pesquisa linfonodo sentinela (–)

Linfonodos clinicamente positivos

ECRM/Avaliar parotidectomia Seguimento

EC radical modificado/ avaliar parotidectomia

Figura 4.13

Atualmente, as indicações da pesquisa do linfonodo sentinela são bem claras:

lesões primárias com espessura maior do que 0,76 mm;

lesões com espessura menor que 0,76 mm, associadas à ulceração e/ou índice minótico diferente de zero, e/ou nível de Clark IN, e/ou regressão extensa.

O melanoma subungueal merece algumas considerações especiais: como o polegar é o sítio anatômico mais comum, sempre que possível, deve ser tratado por ressecção ao nível da articulação interfalangeana distal, para preservar a função de oponência e manter a funcionalidade do membro; em relação ao hálux, recomenda-se a desarticulação metatarso-falangeana, preservando a cabeça do primeiro metatarso, para manter a base de apoio, obtendo-se resultado funcional bastante aceitável. Para os demais dedos, a amputação em raio é recomendável na maioria das ocasiões.

Terapia adjuvante O uso de interferon-α (IFN-2b) adjuvante em altas doses mostrou melhora na sobrevida livre de recidiva em três estudos cooperativos e melhora na sobrevida global em dois deles, levando à aprovação dessa terapia para pacientes com melanomas com mais de 4 mm de espessura (IIB ou IIC) ou envolvimento de linfonodos regionais (III), sem patologias sérias preexistentes e com uma expectativa de vida maior do que 10 anos. Essa terapia com altas doses causa muitos

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60 Dermatologia efeitos colaterais (fadiga, sintomas constitucionais, cefaleia, náuseas, perda de peso, mielossupressão, depressão), frequentemente requerendo redução de doses; por isso, deve ser administrada por profissional que esteja familiarizado com a sua toxicidade. As críticas ao uso do IFN-2b estão relacionadas ao fato de ser um tratamento tóxico e sem evidências de vantagem consistente na sobrevida a longo prazo. A despeito da toxicidade, modesta eficácia e custo elevado do IFN-2b, análises retrospectivas mostram que o uso desse agente está associado com melhora na qualidade de vida e apresenta um custo-benefício favorável. Várias vacinas têm sido investigadas como terapia adjuvante potencial para pacientes com melanoma de alto risco. Poucos estudos de fase III testaram a eficácia das vacinas. Apesar de alguns resultados animadores, estudos prospectivos confirmando esses resultados são necessários para que a terapia com vacinas possa ser considerada como uma opção de terapia adjuvante. A radioterapia adjuvante deve ser considerada em pacientes com envolvimento extranodal e com presença de linfonodos coalescentes e no envolvimento linfonodal em pacientes com melanoma de cabeça e pescoço. Em pacientes com metástases em trânsito ou satélite, para os casos com pouca doença e possibilidade de ressecção, a excisão completa com margens negativas é o tratamento preferido; pacientes com metástase em trânsito única e completamente ressecada devem realizar análise do linfonodo sentinela pela alta probabilidade de metástase linfonodal; para pacientes com um número finito de metástases em trânsito sem possibilidade de excisão completa, as opções são injeção intralesional com BCG ou interferon, perfusão isolada hipertérmica de membro com melfalano, radioterapia (baixa eficácia), terapia sistêmica (particularmente após falha de terapia local e/ou regional).

Tratamento da doença metastática A abordagem terapêutica dos pacientes com melanoma estádio IV (cirurgia, radioterapia, quimioterapia, imunoterapia) varia de acordo com a localização da metástase, o número de lesões e sítios envolvidos, as condições clínicas e a idade do paciente. Pacientes com metástase única no cérebro ou metástases pulmonares (nesse caso, não necessariamente metástase única) devem ser considerados para tratamento cirúrgico. Após o tratamento cirúrgico da metástase cerebral, recomenda-se radioterapia de todo o cérebro. Pacientes com metástase cerebral não candidatos à cirurgia, cuja lesão seja menor do que 3 cm, são candidatos a tratamento radiocirúrgico, seguido de radioterapia total do cérebro. Para pacientes com metástase cerebral e metástases sistêmicas concomitantes, além de radioterapia de todo o cérebro, é necessário tratamento sistêmico.

A fotemustina atravessa a barreira hematoencefálica e demonstra modesta resposta em estudos clínicos fases II e III em melanoma metastático, embora sem impacto na sobrevida. Recomenda-se fotemustina 100 mg/m2 nos dias 1, 8 e 15, concomitante com a radioterapia do cérebro com quatro semanas de repouso. Após, reavaliação e, se obter resposta, continuar o tratamento com 100 mg/m2 a cada 21 dias. Outra opção a considerar para potencializar o efeito da radioterapia no cérebro é administrar temozolomida 75 mg/m2 VO/dia durante seis semanas concomitantes. Para pacientes com doença sistêmica sem metástases para o cérebro, considerar tratamento com bioquimioterapia ou quimioterapia. Embora a recomendação de terapia sistêmica seja amplamente aceita, deve-se salientar que os ensaios clínicos randomizados realizados até o momento não apresentaram vantagem significativa na sobrevida para nenhuma droga ou combinação específica, incluindo a dacarbazina e a interleucina-2 em altas doses, ambas aprovadas para o uso. Na decisão sobre o uso de quimioterapia ou bioquimioterapia, devem pesar alguns pontos: a bioquimioterapia induz toxicidade severa e por isso deve ser reservada para pacientes selecionados e ser administrada por profissionais habituados com os efeitos tóxicos; ela mostrou-se superior à quimioterapia em apenas um estudo randomizado; a bioquimioterapia induz resposta duradoura acima de três anos em 5% a 10% dos pacientes. Vários estudos randomizados também analisaram se a combinação de quimioterapia com dacarbazina seria superior à monoterapia. Esses estudos falharam em mostrar benefício na sobrevida, no entanto há uma tendência para o aumento da resposta global. Recomenda-se considerar tratamento com bioquimioterapia em casos isolados, para pacientes jovens, com desempenho clínico normal (PS 0, pelo ECOG) e sem doença renal, cardíaca, pulmonar ou hepática. Esse tratamento deve ser realizado em centros capacitados para atender às intercorrências da bioquimioterapia. Para pacientes que não preenchem os critérios para o uso de bioquimioterapia, considerar tratamento com quimioterapia (combinação ou droga única) ou encaminhar para participar de estudo clínico. Uma nova classe de drogas com ação imunoterápica vem sendo desenvolvida nos últimos anos: os bloqueadores de CTLA-4. São anticorpos humanos, com afinidade pelo receptor CTLA-4 do linfócito T. Esse é responsável pela contrarregulação do estímulo provocado pela apresentação do antígeno, de forma que, com um estímulo inibitório, diminua a ação efetora imune. Com o bloqueio desse receptor, o sinal inibitório é interrompido, permitindo que a atividade efetora do linfócito T seja máxima. O princípio teórico é de que com uma ativação imune inespecífica, possa haver melhor controle do melanoma, que por si é uma neoplasia caracterizada por importante imunogenicidade.

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61 4  Neoplasias da pele O uso de drogas, com alvos moleculares específicos, também vem sendo estudado em melanoma, a exemplo das demais neoplasias. A primeira droga utilizada foi o sorafenibe, por seu potencial de bloqueio do BRAF. O benefício eventualmente será dependente da presença de mutações de BRAF e melhor observado com outras drogas que tenham maior capacidade de inibir o BRAF Um inibidor de BARF, PLX4032, vem sendo estudado em pacientes com melanoma que apresentam a mutação V600E, nesse gene. O gene apresenta mutação ao redor de 40 a 50% dos pacientes, e em cerca de 80% dos casos a mutação é a V600E. Dados preliminares de estudos fase I mostraram importante atividade já na definição da dose. São aguardados os dados dos estudos clínicos dessa droga ara os próximos anos.

Para lesões com índice de Breslow de até 0,75 mm e estádio I devem ser acompanhados a cada 6 meses durante o primeiro ano e a cada 12 meses nos anos subsequentes. Aqueles que apresentaram lesões de 0,76 a 1,49 mm ou que apresentaram tumores entre 1,5 a 4 mm, com um estádio II da doença, devem ser acompanhados a cada 4 meses nos 3 primeiros anos e a cada 12 meses nos anos subsequentes, sendo necessária a realização de radiografias de tórax de controle anuais, para os dois últimos anos. Já os pacientes em estádios III e IV necessitam de radiografias de tórax de controle trimestrais durante os 5 primeiros anos e anuais após esse período. O exame clínico completo de pele e mucosa deve ser sempre realizado, assim como o questionamento quanto à presença de sintomas pulmonares, hepáticos, ósseos, gastrointestinais e SNC. As metástases são detectadas pelo exame clínico em 94% dos casos e pelo raio X de tórax em 6%.

Seguimento A radiografia de tórax e as provas de função hepática, fosfatase alcalina (FA) e LDH são os únicos exames subsidiários de rotina para pacientes nos estádios I e II, enquanto nos estádios III e IV a avaliação inicial abrange a realização de ressonância magnética de crânio, tomografia de tórax, abdome e pelve ou até realização de PET-scan. O seguimento dos pacientes com melanoma depende, basicamente, da espessura do tumor, da presença de nevos atípicos e do estádio da doença.

Sobrevida Em 5 anos, de acordo com o indice prognóstico de Breslow: In situ: 100% Breslow < 0,75 mm: 96% Breslow 0,75-1,5 mm: 87% Breslow 1,5-2,5 mm: 75% Breslow 2,5-4,9 mm: 66% Breslow > 4 mm: 47% Tabela 4.9

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CAPÍTULO

19

Suprarrenal

Introdução A glândula adrenal é formada pelo córtex de localização periférica e pela medula adrenal de localização central. A medula adrenal tem origem na crista neural, enquanto o córtex tem origem mesodérmica e, em torno de dois meses de gestação, é formado por uma zona fetal e uma zona definitiva. A zona fetal é deficiente em 3-β-hidroxiesteroide desidrogenase e, dessa forma, produz principalmente dihidroepiandrosterona (DHEA) e seu sulfato (DHEAS), que servem como precursores para a síntese de estrógenos maternos placentários após conversão no fígado a derivados

16-β-hidroxilados. A zona definitiva, similar à do adulto, é o principal local de síntese fetal de cortisol. Por volta do meio da gestação, a adrenal fetal já se encontra sob o controle do ACTH. A glândula adrenal adulta pesa em torno de 8 a 10 gramas, localiza-se no retroperitônio, sobre os polos mediais ou superiores dos rins, cercada por uma cápsula fibrosa e composta por córtex, de localização externa, e medula, de localização interna. A glândula adrenal é muito vascularizada e recebe irrigação de ramos das artérias frênica inferior, renal e aorta, que no seu interior formam plexos que irrigam o córtex e a medula. A drenagem venosa da glândula desemboca à direita, direto na veia cava, e à esquerda, na veia renal esquerda.


186 Endocrinologia Artérias frênicas inferiores direita e esquerda

Veia cava inferior

Glândula suprarrenal esquerda

Glândula suprarrenal direita

Veia frênica inferior esquerda

Veia suprarrenal direita

Artéria suprarrenal inferior esquerda

Artéria suprarrenal inferior esquerda

Veia artéria renais direitas

Rim esquerdo Artéria e veia renais esquerdas

Veia cava inferior

Aorta abdominal

Figura 19.1  Anatomia das glândulas suprarrenais. Glândulas suprarrenais esquerda e direita in situ. Histologia e relação funcional Córtex (90% do peso da glândula): Zona glomerulosa: secreta aldosterona Zona fasciculada: secreta cortisol e andrógenos Zona reticular: secreta cortisol e andrógenos Medula (10% do peso da glândula): Secreta catecolaminas Tabela 19.1

Histologicamente, o córtex constitui cerca de 90% da glândula e é formado por três camadas: glomerulosa, fasciculada e reticular. A zona glomerulosa, mais externa e localizada próxima à cápsula, é formada de uma estreita camada de células pobres em lipídios que secretam aldosterona e não produzem cortisol nem andrógenos pela falta da enzima 17-α-hidroxilase. A zona fasciculada, a mais espessa delas, é a camada de localização central, formada por células maiores, ricas em lipídios e, portanto, conhecidas como células claras e que secretam cortisol e andrógenos. A zona reticular, a mais interna e próxima à medula adrenal, secreta também cortisol e andrógenos, mas é formada de células compactas, não tão ricas em lipídios, mas com grânulos lipofucsínicos. As zonas fasciculada e reticular são controladas pelo ACTH e, quando há excesso desse, desenvolve-se sua hiperplasia e hipertrofia. Admite-se que, sob o estímulo agudo do ACTH, a zona fasciculada responda com produção aumentada de cortisol e andrógenos, enquanto a reticular mantém a produção basal de glicocorticoides, sofrendo mais efeito de estimulação prolongada pelo ACTH. A zona glomerular é controlada pelo sistema renina angiotensina aldosterona (SRAA) e níveis plasmáticos de potássio, muito pouco pelo ACTH. A medula adrenal é formada por células cromafins ou feocromócitos, que secretam catecolaminas como dopamina, norepinefrina e epinefrina, além de outros hormônios como metencefalina, leuencefalina e adrenomedulina. As células cromafins são controladas pelo sistema nervoso simpático.

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187 19 Suprarrenal

Esteroidogênese Os hormônios esteroides compreendem um grupo de substâncias que tem em comum a estrutura do ciclopentanoperidrofenantreno e o fato de se originarem do colesterol por meio de um processo mediado por enzimas, denominado esteroidogênese. Subdividem-se em três grupos: mineralocorticoides, assim denominados por serem capazes de induzir o túbulo renal a reter o sódio; os glicocorticoides que, entre outros efeitos, influenciam o metabolismo dos hidratos de carbono e os esteroides sexuais, compreendendo os andrógenos, estrógenos e progestágenos, envolvidos na diferenciação das características sexuais secundárias e na reprodução. O colesterol, precursor de todos os hormônios esteroides, pode ser sintetizado a partir do acetato pelas células adrenais ou gonadais ou por meio de um mecanismo mediado por receptor, derivado da LDL plasmática. Uma concentração intra-adrenal adequada de LDL-colesterol suprime a atividade da hidroximetilglutaril coenzima A redutase, principal enzima envolvida na biossíntese do colesterol. Este é, então, armazenado sob a forma de éster de colesterol, e sua concentração é controlada por duas enzimas: colesterol esterase e colesterol éster sintetase. Hormônios tróficos, como o ACTH, estimulam a esterase e inibem a sintetase, aumentando assim a disponibilidade de colesterol livre para a síntese de hormônios. Córtex Medula Colesterol

Zona glomerulosa Zona fasciculada Zona reticular

HO Pregnenolona

Progesterona

17-hidroxiprogesterona

11-Desoxicorticosterona

Corticosterona

17-hidroxipregnenolona

11-Desoxicortisol

Desidroepiandrosterona

Cortisol

Androstenediona

Aldosterona Local de ação enzimática 21-hidroxilase 11-β-hidroxilase

Figura 19.2  A: a glândula suprarrenal, mostrando a medula e as três camadas do córtex. A camada mais externa do córtex (zona glomerulosa) é primariamente responsável pela produção de mineralocorticoides, enquanto a camada média (zona fasciculada) e a camada interna (zona reticular) produzem os glicocorticoides e os androgênios suprarrenais. B: vias de biossíntese predominantes do córtex suprarrenal. As enzimas críticas

no processo de biossíntese incluem a 11-b-hidroxilase e a 21-hidroxilase. A deficiência de uma dessas enzimas bloqueia a síntese dos hormônios que dependem delas e desvia os precursores para vias alternativas.

Eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal A manutenção de um nível adequado do cortisol depende da integridade do hipotálamo, da hipófise e da adrenal, sendo a interação entre essas estruturas feita por meio do hormônio liberador de corticotrofina (CRH) e da adrenocorticotrofina (ACTH) (Figura 19.3). Sistema nervoso central Ritmo circadiano

CRH ACTH +

-

ACTH + Cortisol

Figura 19.3  No eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, o hormônio liberador de corticotrofina (CRH) é secretado em picos, obedecendo a um ritmo circadiano, de acordo com estímulos provenientes do sistema nervoso central. Age sobre a hipófise, estimulando a produção e secreção de ACTH, o qual estimula a adrenal a produzir cortisol. Tanto o ACTH, por meio de um mecanismo de feedback de alça curta, quanto o cortisol, por meio de um mecanismo de alça longa, controlam o limiar de sensibilidade dos centros hipotalâmicos produtores de hormônio liberador de corticotrofina aos estímulos provenientes do sistema nervoso central. O estresse se superpõe a todos estes sistemas, ativando o eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal.

O hormônio liberador de corticotrofina (CRH) é um polipeptídeo composto por 41 aminoácidos, com uma larga distribuição no sistema nervoso central e uma variedade de outros tecidos. O local onde se encontra em maior concentração é no hipotálamo. É o principal regulador de síntese e liberação do ACTH pela hipófise, onde chega pelo sistema porta-hipofisário. A atividade dos neurônios hipotalâmicos secretores de hormônio liberador de corticotrofina é regulada por dois tipos de estímulos, sendo um relacionado ao estresse e outro a um marcapasso biológico responsável por uma secreção rítmica de ACTH que resulta no chamado ritmo circadiano, na qual

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188 Endocrinologia a secreção do próprio ACTH e do cortisol diminui no decorrer do dia, chegando a níveis quase indetectáveis nas primeiras horas do sono. Após 2 a 3 horas, começa a haver um aumento de suas secreções, que atinge seu ápice 6 a 8 horas após o início do sono. Concentração aumentada de CRH no sistema porta-hipofisário pode ser encontrada em condições em que há aumento da secreção de ACTH, como na resposta ao estresse e em pacientes adrenalectomizados. Concentração diminuída pode ser encontrada em condições nas quais a liberação de ACTH é suprimida, como na administração de glicocorticoides. Além do hormônio liberador de corticotrofina (CRH), outros fatores hipotalâmicos (arginina-vasopressina) ou extra-hipotalâmicos (interleucinas, angiotensina II – Figura 19.5) parecem também estar envolvidos no controle da liberação de ACTH, aumentando sua secreção (Tabela 19.2). Fatores que participam da regulação do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal Fator Efeito ↑ CRH Estresse ↑ Alimentação ↑ Ritmo circadiano ↑ Serotonina Acetilcolina ACTH Agonistas alfa-adrenérgicos Ácido gama-aminobutírico Cortisol Cortisol

↑ ↓ ↓ (?)

nuindo a secreção do hormônio liberador de corticotrofina, por intermédio de um mecanismo de feedback negativo de alça curta (Figura 19.3). Em pessoas normais, não estressadas, ocorrem de sete a dez picos de secreção de ACTH por dia, sendo a maior parte dos picos no período matutino. Entretanto, o ritmo de ACTH é independente do nível de cortisol, mantendo-se mesmo em pacientes adrenalectomizados. O efeito do cortisol sobre a secreção de ACTH se faz por meio de um feedback negativo de alça longa, ocorrendo no nível do hipotálamo e da hipófise, envolvendo dois tipos de mecanismo: 1. caracterizado por um feedback rápido, relacionado com a variação do nível de cortisol; e 2. por um feedback lento, relacionado com o nível absoluto de cortisol. Assim, o eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal mantém uma atividade integrada, obedecendo a três princípios funcionais: 1- Na ausência de estresse, há um ritmo circadiano do sistema, que se manifesta por níveis elevados de cortisol pela manhã e diminui com o progredir do dia. 2- O nível de glicocorticoides, em qualquer fase do dia, influencia a atividade do sistema com um feedback negativo. 3- Qualquer tipo de estresse (cirurgia, trauma, sepse etc.) pode aumentar a atividade do sistema, superpondo-se ao ritmo circadiano e ao feedback negativo. Hipoglicemia Dor Infecção

Sono Hemorragia Traumatismo

Estresse

↓ Células ↓ Sensibilicorticotróficas dade ao CRH ↑ ACTH CRH ↑ Vasopressina ↑ Angiotensina II ↓ betaendorfinas ↓ Encefalinas ↓ Cortisol ↑ Cortisol ACTH Tabela 19.2  ↑: aumenta a secreção ↓: diminui a secreção.

Hipotálamo

CRH Adeno-hipófise

Inibição por retroalimentação

ACTH

Córtex suprarrenal

Cortisol

O ACTH é um polipeptídio composto por 41 aminoácidos, sintetizado pela hipófise sob a forma de uma molécula precursora, a pró-opiomelanocortina-POMC (Figura 19.2). O efeito primário do ACTH é estimular a secreção dos glicocorticoides pelas zonas fasciculada e reticular do córtex adrenal. O resultado final é um estímulo da reação limite da esteroidogênese, que é a conversão do colesterol em pregnenolona. Além desta ação sobre a adrenal, há evidências de que o ACTH possa agir também sobre o hipotálamo, dimi-

Tecidos-alvo

Figura 19.4  O sistema de retroalimentação hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal (HHSR), que regula os níveis de glicocorticoides (cortisol). A liberação do cortisol é regulada pelo hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). O estresse exerce seus efeitos sobre a liberação de cortisol através do sistema HHSR e do hormônio de liberação da corticotrofina (CRH), que controla a liberação de ACTH pela adeno-hipófise. O cortisol em níveis aumentados induz uma inibição da liberação de ACTH por retroalimentação negativa.

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189 19 Suprarrenal

Fisiologia dos glicocorticoides O cortisol é o principal representante dos glicocorticoides, e atua na regulação do metabolismo intermediário, da função inflamatória, imunológica e cardiovascular. Cortisol é um hormônio contrarregulador da insulina (função catabólica e hiperglicemiante) e também inibe a captação periférica de glicose. Então, no metabolismo intermediário, o cortisol protege o organismo em situação de jejum prolongado, provocando degradação de proteínas e lípidios para gerar substratos utilizados na produção de glicose. Além de estimular a gliconeogênese (formação de glicose) e a glicogenogênese (formação de glicogênio) no fígado. No sistema imunológico e inflamatório, age como modulador, evitando a ativação exagerada desses. Já no sistema cardiovascular, promove o aumento da expressão dos receptores das catecolaminas no coração e vasos periféricos, atuando como fator protetor contra o choque. A produção estimada de cortisol é de aproximadamente 5 mg/m2 a 10 mg/m2 por dia. Curiosamente, o receptor de mineralocorticoide (MR) não é específico para os MR clássicos; “In vitro”ele é capaz de reconhecer e se ligar ao cortisol, com a mesma afinidade com que faz pela aldosterona. Contudo, o receptor MR é protegido do acesso pelo cortisol por um enzima que existe em grande quantidade nas proximidades das célus renais, chamada 11 beta hidroxiesteróide desidrogenase (11β –HSD), que degrada o cortisol antes que ele se ligue ao receptor. Por isso, somente altas doses de cortisol (por exemplo: 100 mg de hidrocortisona) têm efeito mineralocorticoide associado.

Efeito do glicocorticoide por órgãos e sistemas Curiosamente, o excesso de cortisol (síndrome de Cushing) cursa com obesidade, e não com perda de peso, devido ao estímulo direto ou indireto à secreção de insulina pelas células betapancreáticas (hiperinsulinemia). Este hormônio possui importantes efeitos lipogênicos no tecido adiposo central (tronco e face), por isso, na síndrome de Cushing, o paciente tem obesidade troncofacial, mas apresenta as extremidades consumidas (braços e pernas finas).

Pele e subcutâneo O excesso de cortisol provoca catabolismo proteico e atinge o colágeno do tecido conjuntivo cutâneo e subcutâneo, diminuindo a espessura da pele; preju-

dica a cicatrização e promove fragilidade capilar, com predisposição a equimoses e petéquias. Além do surgimento de estrias violáceas da síndrome de Cushing, que são decorrentes da fragilidade cutânea, o estiramento violáceo é proveniente da cor dos vasos, que aparecem devido ao adelgaçamento da pele.

Musculoesquelético e metabolismo do cálcio O catabolismo proteico enfraquece as musculaturas proximais das cinturas pélvica e escapular. Nos ossos ocorre diminuição dos osteoblastos e aumento dos osteoclastos, predominantemente na parte trabecular (poupando a parte cortical) dos ossos, como as vértebras. O cortisol inibe a absorção intestinal de cálcio mesmo na vigência de níveis normais de calcitriol (vitamina D ativa) e diminui a reabsorção renal de cálcio, promovendo calciúria. A diminuição de cálcio estimula a secreção de PTH pelas paratireoides (a secreção deste hormônio também é estimulada diretamente pelos glicocorticoides). O PTH, por sua vez, estimula a reabsorção óssea, contribuindo para a osteopenia/osteoporose.

Crescimento O efeito glicocorticoide é importante para a formação de diversos órgãos e sistemas no período intrauterino, como a maturação do tecido pulmonar. Porém, os níveis excessivos de cortisol inibem o crescimento das crianças por provocarem o fechamento precoce da cartilagem de crescimento.

Sistema imune Os glicocorticoides são inibidores fisiológicos do sistema imunológico e inflamatório, agem sobre os linfócitos e macrófagos e reduzem a produção e a liberacão das principais citoquinas (TNF-alfa, IL-I, IL-6 e IL-2). A produção de prostaglandinas e leucotrienos está bloqueada pela inibição da primeira enzima do metabolismo do ácido aracdônico – a fosfolipase A2. Há também inibição da produção e efeito das bradicininas. Em doses farmacológicas, também inibe a síntese de anticorpos.

Hematológico Os glicocorticoides aumentam os neutrófilos no sangue (leucocitose neutrofílica) devido à demarginação (as células se soltam do endotélio vascular, voltando para a corrente sanguínea), prejudicando a entrada dos neutrófilos nos tecidos inflamados, e promovem a liberação de células maduras pela medula óssea. Além disso, os glicocorticoides promovem a depleção de eosinófilos, basófilos e linfócitos T pela redistribuição dessas células sanguíneas para outros compartimentos.

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190 Endocrinologia

Cardiovascular Promove um mecanismo de defesa contra o choque por aumentar a expressão dos receptores de catecolaminas no sistema cardiovascular, pelo fato de o cortisol influenciar positivamente o débito cardíaco e a resistência vascular periférica nos estados de estresse.

Neuropsiquiátrica O cortisol exerce influência no comportamento, estimulando o apetite (uma das razões da obesidade na síndrome de Cushing), o humor e a vontade. Quando em níveis excessivos, pode provocar euforia, irritabilidade, labilidade emocional, depressão, psicose e diminuição da libido.

Oftalmológica Os glicocorticoides em excesso aumentam a pressão intraocular, predispondo ao glaucoma, e interferem na composição do cristalino, aumentando a incidência de catarata.

Renal O cortisol estimula a filtração glomerular, promovendo a excreção de sódio e água (aumenta o clearance de água livre); porém, seu excesso passa a estimular os receptores mineralocorticoides renais provocando retenção de sódio e água e excreção de potássio e hidrogênio (diminui o clearance de água livre, levando à hiponatremia dilucional).

Efeito sobre outros hormônios O cortisol tem efeito inibitório sobre a liberação hipofisária de TSH e gonadotrofinas. Apesar disso, o hipercortisolismo não provoca hipotireoidismo. Em doses farmacológicas, o cortisol inibe a conversão periférica de T4 em T3.

Sistema RAA O principal mineralocorticoide secretado pelo córtex adrenal é a aldosterona, tendo sua origem exclusivamente na zona glomerular. Outro esteroide secretado pelo córtex adrenal com atividade mineralocorticoide significativa é a desoxicorticosterona (DOCA). Esta, assim como a corticosterona, é precursora da aldosterona.

A aldosterona é o produto final do chamado sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA), envolvido na manutenção da homeostasia do fluido extracelular e do balanço de sódio (Figura 19.5). A síntese e a liberação de aldosterona são estimuladas pela angiotensina II (potente vasoconstritor, além de estimular a liberação de ACTH e ADH). A diminuição do volume sanguíneo circulante estimula a liberação de renina pelo aparelho justaglomerular. A renina atua sobre o angiotensinogênio, produzido pelo fígado, e dá origem à angiotensina I, que é transformada em angiotensina II pela ação da ECA (enzima conversora de angiotensina), principalmente no endotélio pulmonar. O sensor para a produção de renina é a perfusão renal. O baixo fluxo sanguíneo renal reduz o estiramento de células especializadas do aparelho justaglomerular (Figura 19.6), que então produzem e liberam mais renina. Além disso, uma diminuição da filtração glomerular reduz a chegada de NaCl à mácula densa (porção do túbulo contorcido distal relacionada ao aparelho justaglomerular), contribuindo para o aumento da produção de renina. Então, quando houver uma queda do volume circulante (hipovolemia, insuficiência cardíaca etc.), o SRA estimula a liberação de aldosterona pela adrenal, que promove a retenção de sódio e água pelos rins para restaurar a volemia. Existe uma patologia que “engana” este sistema: é a estenose de artéria renal. Nesta situação, os sensores renais detectam hipoperfusão, aumentando a liberação de renina. Como o paciente não está hipovolêmico, como consequência ocorre hipertensão arterial por excesso de volume. Independentemente da volemia e da angiotensina II, um leve aumento de potássio é capaz de estimular a secreção de aldosterona pela suprarrenal. Assim, a aldosterona é o hormônio responsável pelo equilíbrio do potássio no organismo. A queda do potássio possui o efeito inverso (suprime aldosterona reduzindo a excreção urinária de potássio). O papel do ACTH é secundário em relação à síntese e à secreção de aldosterona. Embora este hormônio tenha um ritmo nictemeral coincidente com o do cortisol e sua secreção seja estimulada pela administração aguda de ACTH, a deficiência crônica de ACTH não resulta em deficiência de aldosterona. Isto é bem exemplificado pelos pacientes que usam glicocorticoide em altas doses e que, certamente, possuem o ACTH suprimido, mas apresentam uma resposta normal de aldosterona quando há restrição de sódio. A secreção da aldosterona é também influenciada por outros fatores: a hiperpotassemia, a dopamina e um fator hipofisário ainda não caracterizado estimulam a secreção da aldosterona, enquanto a hipopotassemia, a serotonina e o fator natriurético atrial a inibem. E, ainda, a ativação do sistema nervoso simpático estimula a liberação de renina, ação que se expressa por meio de receptores b1 que se comportam como receptores mecânicos localizados no leito cardiopulmonar.

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191 19 Suprarrenal Hipopotassemia Fator hipofisário Dopamina Fator natriurético Serotonina Hiperpotassemia

+ -

Vasoconstrição

+

Retenção de NA Expansão do VEC

+ ACTH

Aldosterona -

Aumento da PPR

Angiotensina II

AJG

+ Depleção do VIV Deprivação Na Diminuição da PPR SN simpático Prostaglandinas (hipopotassemia)

Entretanto, uma série de situações clínicas demonstra que deve haver outro(s) mecanismo(s), além do ACTH, envolvido(s) no controle da secreção dos andrógenos adrenais:

Angiotensina I Renina

+ Angiotensinogênio

Figura 19.5  Sistema renina-angiotensina-aldosterona. VEC: volume extracelular; VIV: volume intravascular; PPR: pressão de perfusão renal; SN: sistema nervoso; AJG: aparelho justaglomerular. Glomérulo

1- a adrenarca é um estado caracterizado por um crescimento da zona reticular do córtex adrenal, que ocorre em média dois anos antes da ativação do eixo hipotálamo-hipofisário-gonadal, levando a um aumento da secreção dos andrógenos adrenais. Essas alterações ocorrem independentemente da secreção de ACTH e cortisol; 2- a secreção de DHEA em resposta à administração de ACTH exógeno varia com a idade, mas isso não ocorre com a resposta do cortisol; dissociação entre adrenarca e gonadarca ocorre em uma série de situações clínicas;

Interstício renal

Arteríola eferente

Várias evidências demonstram que o ACTH tem um papel importante em relação à secreção dos andrógenos adrenais e não as gonadotrofinas (LH/FSH): a administração de ACTH exógeno, aguda ou cronicamente, leva a um aumento dos níveis séricos de androstenediona e deidroepiandrosterona, enquanto a administração de dexametasona leva a uma diminuição significativa de DHEA e DHEAS e a uma diminuição parcial de androstenediona.

Nervos renais Concentração de Na

3- em algumas pacientes portadoras de hirsutismo, não portadoras de hiperplasia adrenal congênita, uma significativa produção de andrógenos é de origem adrenal; a glicocorticoterapia prolongada em pacientes hirsutas leva a uma supressão mais prolongada da excreção urinária de 17-KS que 17-OH; 4-

Mácula densa Células justaglomerulares Arteríola aferente

Figura 19.6  Aparelho justaglomerular.

Secreção dos andrógenos adrenais O principal andrógeno produzido pela adrenal é o sulfato de dehidroepiandrosterona (DHEAS), seguido pela androstenediona. A testosterona é produzida em menor quantidade. O S-DHEA e a androstenediona são andrógenos fracos e exercem seus efeitos em razão de sua conversão, em tecidos periféricos, em testosterona. Enquanto os fatores que controlam a secreção dos glicocorticoides e mineralocorticoides são conhecidos, existem dúvidas em relação ao mecanismo de controle dos andrógenos de origem adrenal.

5- a administração crônica de ACTH exógeno a pacientes portadores de insuficiência adrenal secundária demonstra um incremento menor dos andrógenos adrenais quando comparado à resposta do cortisol. Duas hipóteses podem explicar essas dissociações entre a secreção de ACTH e dos andrógenos adrenais: a existência de um fator distinto do ACTH, que seletivamente estimularia a secreção dos andrógenos adrenais, ou uma alteração de atividade enzimática, independente de qualquer fator exógeno, que resultaria em maior secreção desses hormônios. Em relação à primeira hipótese, uma variedade de outras substâncias, que não o ACTH, tem sido proposta como moduladoras de secreção de andrógenos adrenais, entre as quais estrógenos, prolactina, gonadotrofinas, hormônio de crescimento, lipotrofinas, prostaglandinas e angiotensina, não havendo dados suficientes a favor de nenhuma delas. Em relação à segunda hipótese, algumas situações clínicas, entre as quais a adaptação da adrenal ao estresse (sepse, cirurgia, trauma etc.) e à adrenarca, parecem favorecer a importância de alterações de atividade de enzimas envolvidas na síntese dos andrógenos adrenais como mediadoras deste processo:

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192 Endocrinologia 1- Durante um estresse intenso, decorrente de uma doença crônica que se prolongue por tempo suficiente, há um aumento de concentração plasmática do cortisol, com diminuição concomitante da concentração plasmática de DHEA e DHEAS, o que também ocorre com a excreção urinária destes esteroides. A estimulação aguda da adrenal com ACTH demonstra que, enquanto o incremento do cortisol é o mesmo tanto para pessoas normais quanto para os doentes crônicos, o incremento de DHEA foi significativamente menor (Figura 19.6). Esses dados demonstram um desvio do metabolismo da pregnenolona da síntese de DHEA para a síntese de cortisol. O mesmo acontece em relação aos mineralocorticoides, coexistindo, nestes pacientes, um hipoaldosteronismo com hiper-reninismo. Esta situação de síntese preferencial de cortisol em detrimento da síntese de mineralocorticoides e andrógenos adrenais parece refletir uma diminuição da atividade da 17-20 liase (Figura 19.7). 2- A adrenarca é um estado caracterizado por um aumento da secreção de andrógenos adrenais da via D5: pregnenolona, 17-hidroxipregnenolona e DHEA, decorrente de um aumento da eficiência da 17-20 liase e uma diminuição da atividade de 3β-hidroxiesteroide desidrogenase coincidente ao desenvolvimento da zona reticular. Provavelmente, há inibição preferencial da 17-20 liase causada pela elevação da concentração dos esteroides intra-adrenais. Uma vez que o suprimento vascular do córtex adrenal impõe um gradiente centrípeto na concentração dos esteroides, a inibição enzimática seria maior nas zonas mais internas do córtex adrenal. Assim, a alteração no padrão da resposta da esteroidogênese ao ACTH observada na adrenarca seria induzida por um aumento da concentração dos esteroides intra-adrenais, possivelmente em decorrência do

crescimento do córtex adrenal e da inibição diferencial de enzimas-chave envolvidas na esteroidogênese. Isso permite supor que o controle primário da secreção dos andrógenos adrenais está na dependência de um fator estimulador do crescimento do córtex adrenal, mais precisamente da zona reticular. Dados sugerem que as β-endorfinas e as β-lipotrofinas possam estar envolvidas neste processo. Enquanto o ACTH mantém um nível constante durante as primeiras décadas da vida, estes peptídios derivados, assim como o ACTH, da pró-opiomelanocortina, apresentam um aumento progressivo entre três e dez anos. Evidências experimentais indicam que as β-endorfinas e as β-encefalinas têm efeito mitogênico sobre as células adrenais. Esses dados sugerem que peptídios derivados da pró-opiomelanocortina possam ser os responsáveis pelo crescimento adrenal em razão de seus efeitos mitogênicos, permanecendo a esteroidogênese sobre o controle do ACTH. Colesterol Pregnenolona

17-Hidroxipregnenolona

Progesterona

17-Hidroxiprogesterona

11-Desoxicorticosterona

11-Desoxicortisol

Corticosterona

Cortisol

DHEA

Androstenediona

Aldosterona

Figura 19.7  Esteroidogênese no estresse severo. Os dados são indicativos de uma diminuição da atividade 17-20 liase e 21-hidroxilase na via dos mineralocorticoides. A espessura das setas é proporcional à atividade enzimática.

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CAPÍTULO

19

Hemoglobinúria paroxística noturna (HPN)

Definição Transtorno hemolítico adquirido, raro, que se traduz por hemólise intravascular, no qual um clone de células-tronco (clone HPN) produz células sanguíneas suscetíveis à ação do complemento (ação lítica do complemento C3 à parede da hemácia). Essa sensibilidade aumentada ao C3 também é identificada nos leucócitos e plaquetas. Trata-se de uma condição clínica que acomete ambos os sexos em igual proporção, predominantemente entre os 30-40 anos de idade, com tempo médio de sobrevida de 15 anos.

Etiopatogenia Na HPN ocorre deficiência parcial ou total de proteínas da membrana celular envolvidas com a defesa contra a atividade lítica do complemento. Estas

proteínas ligam-se à membrana através da glicosilfosfatidilinositol (GPI), que também se encontra deficiente (Figura 19.1). A deficiência múltipla destas proteínas na membrana das células HPN sugere que o defeito primário não seja na produção destas proteínas, mas provavelmente na ligação com a GPI. A célula HPN caracteriza-se por ser incapaz de manter a união da GPI com as proteínas de membrana. A elevada sensibilidade da membrana celular, que leva à lise pelo complemento, é atribuída à carência, nesta superfície, de fatores dotados de função moduladora da atividade do complemento. Estes fatores são DAF (decay-accelerating factor), CR1 (complement receptor 1), MIRL (membrane inhibitor of reactive lysis), LFA-3 (antígeno 3 associado à função linfocítica), entre outros. Nos pacientes com HPN, os eritrócitos, monócitos, neutrófilos e plaquetas derivam de um clone anormal deficiente, principalmente de proteína reguladora do complemento (DAF).


151 19  Hemoglobinúria paroxística noturna (HPN)

Figura 19.1  O gene PIG-A (phosphatidyl-inositol glycan, class A) encontra-se no braço curto do cromossomo X (em Xp22.1), sendo composto de seis exons que são transcritos em RNA mensageiro que codifica uma proteína de 484 aminoácidos. Esta proteína é essencial para o primeiro passo da síntese da âncora de GPI, ou seja, a ligação do fosfatidilinositol acetilado a n-acetilglicosamina. Diferentes mutações do gene PIG-A na HPN bloqueiam esta reação, impedindo a síntese da âncora GPI. Em células normais, esta pequena molécula liga-se a variadas proteínas, servindo de âncora para elas na membrana das células. Na falta de GPI, a célula tem uma redução apreciável destas proteínas.

Quadro clínico Características básicas: hemólise intravascular, tendência à trombose e falência da medula óssea. As manifestações clínicas são bastante variadas e provavelmente se devem aos tipos e concentração das proteínas na superfície das diferentes linhagens celulares hematopoiéticas. Também o volume do clone HPN influencia na exteriorização clínica deste defeito. Em face da existência de três aspectos clínicos distintos, as características clínicas relacionadas à hemólise, falência da hematopoese e eventos trombóticos serão descritos separadamente. A anemia hemolítica encontrada na HPN está sempre presente e em intensidade variada. Ela pode ser discreta ou intensa, necessitando transfusões sanguíneas, e pode se instalar de forma aguda. A morfologia das células vermelhas é normal, exceto quando associada à síndrome mielodisplásica. A intensidade da hemólise depende do volume do clone HPN e este pode estar representado por 1% a 90% das células presentes. A quantidade de proteínas que protegem contra a ação do complemento na superfície das células também é um determinante da intensidade da hemólise, sendo mais intensa naqueles pacientes que não exibem expressão destas proteínas na membrana. São fatores agravantes da hemólise, intercorrências que ativem o complemento como as infecções e reações transfusionais e supõe-se que a ocorrência característica da hemoglobinúria noturna deva-se à absorção de endotoxinas do intestino capazes de ativar o complemento. A hemoglobinúria como consequência da hemólise intravascular crônica leva à perda urinária crônica de ferro na forma de hemossiderina, podendo eliminar até 20 mg de excreção diária de ferro. Esta é uma causa de espoliação que pode contribuir com a intensidade da anemia. Nos episódios de hemólise aguda, devido à intensa hemoglobinúria, insuficiência renal aguda é uma complicação possível, principalmente quando associada à desidratação. A hemoglobinemia pode estar associada a espasmos esofágicos e disfunção erétil, e especula-se que esteja relacionada à redução de óxido nitroso, que é absorvido pela hemoglobina livre, resultando em contração da musculatura lisa. Nos pacientes com HPN, algum grau de citopenia é sempre encontrado. A intensidade é bastante variável, podendo mesmo exibir um quadro de sangue periférico nos níveis encontrados na anemia aplásica severa. A HPN pode evoluir para anemia aplásica e se manifestar em pacientes com este diagnóstico. As citopenias costumam ser estáveis e períodos ocasionais de intensificação são observados, com posterior recuperação espontânea aos valores prévios. As manifestações hemorrágicas e as complicações infecciosas dependem da intensidade das citopenias. Esplenomegalia é incomum.

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152 Hematologia Os eventos trombóticos são considerados sinais de mau prognóstico e sua ocorrência varia em diferentes grupos raciais e parece ser pouco comum nos pacientes brasileiros. A trombose venosa é a predominante e raramente encontramos trombose arterial. A localização da trombose venosa tem algumas preferências. A trombose nas veias hepática (síndrome de Budd-Chiari) é uma localização comum na HPN. Esta pode ocorrer de uma forma aguda e grave, quase sempre associada à crise hemolítica, sugerindo mecanismo semelhante para ambas. A forma insidiosa também acontece. O diagnóstico baseia-se na suspeita clínica de hepatomegalia dolorosa de instalação rápida e ascite, sendo confirmada pela avaliação do fluxo destas veias através de ecografia com os recursos do Doppler. Algumas vezes, a trombose pode se estender à veia cava. A evolução alterna-se com exacerbações periódicas e é frequentemente fatal. Tromboses de seios venosos e de veias cerebrais são complicações menos comuns e estão associados com um pobre prognóstico. Veias abdominais, grandes e pequenas, poderão trombosar e determinar síndromes abdominais variadas. O quadro abdominal mais comum é caracterizado por dor mais ou menos intensa com duração de três a cinco dias, cuja trombose é de difícil comprovação. As veias esplênica, porta e mesentérica poderão ser sede de trombose, levando a quadros clínicos específicos. Raramente ocorre infarto intestinal exigindo ressecção cirúrgica. Trombose das veias da pele se traduz em áreas abauladas, dolorosas e descoradas em qualquer parte da superfície corporal e podem ser recorrentes. Fenômenos trombóticos são vistos nas mais variadas regiões, porém as mencionadas acima são as regiões mais frequentemente observadas. Púrpura fulminante é excepcionalmente vista e pode ser fatal. Situações que devem despertar a suspeita de HPN Neutropenia ou plaquetopenia associadas à hemólise Hipoplasia de medula associada à hemólise Hemólise adquirida sem esplenomegalia Hemólise adquirida ou teste Coombs negativo Trombose hepática ou mesentérica Dor abdominal recorrente associada a citopenias Trombose venosa cerebral sem risco conhecido Tabela 19.1

Figura 19.2  Amostras consecutivas de urina de um paciente com HPN. A variação na intensidade da hemoglobinúria em questão de horas provavelmente é exclusiva desta doença.

Diagnóstico complementar O diagnóstico laboratorial de HPN implica demonstração da ativação do complemento, pelas vias clássica ou alternativa, resultando em hemólise das células HPN. A detecção de hemossiderina na urina é um teste fundamental para o diagnóstico desta patologia. A hemossiderinúria é demonstrada pela reação de Perls.

Teste de Ham Consiste na mistura de hemácias do paciente com soro fresco de indivíduo normal, que foi acidificado. A hemólise desencadeada pela ativação da via alternativa do complemento é muito específica desta condição. Até algum tempo atrás, correspondia ao teste padrão-ouro, sendo, atualmente, pouco utilizado.

Teste da sacarose Consiste em facilitar a fixação do complemento e, portanto, a hemólise, mediante adição de sacarose. Esta prova é altamente sensível, mas não é específica. O inibidor de membrana da hemólise reativa (CD59 ou protectina) é uma das muitas proteínas que ancora o GPI aos eritrócitos. A protectina previne a polimerização de C9, o passo final do complexo de ataque à membrana, que se inicia com a clivagem de C5 a C5b. Caso não seja impedido por C59, o polímero C9 abre buracos na membrana da hemácia causando sua lise, levando à liberação de hemoglobina na circulação. A deficiência de CD59 na HPN permite a aglomeração do complexo de ataque à membrana sobre a superfície do eritrócito, iniciando, então, hemólise intravascular. Uma variedade de fatores ines-

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153 19  Hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) pecíficos pode ativar o complemento, tal como a redução do pH do sangue. A hemoglobinúria matutina do HPN é, provavelmente, o resultado da acidificação do sangue durante o sono.

Citometria de fluxo Atualmente, o diagnóstico é mais bem estabelecido por meio de análise fenotípica das células do sangue periférico, pela determinação da expressão dos fatores da membrana celular. Os principais anticorpos monoclonais detectores destes fatores de membrana são: CD55 (identifica o DAF) e o CD59 (MIRL). Essa técnica tem sido utilizada nos últimos anos para detectar as células com deficiência parcial ou total de proteínas que estão ligadas (ancoradas) à membrana pelo GPI (glicosilfosfatidilinositol). Ela propicia resultados mais precisos do que os testes da lise celular pelo complemento em meio ácido. Com a citometria, os eritrócitos e granulócitos são estudados com os anticorpos anti-CD59, anti-CD55 ou anti-CD14. A classificação dos eritrócitos em diversas populações, de acordo com a sensibilidade ao complemento, em tipos I, II e III, pode ser reproduzida pela citometria de fluxo. Eritrócitos (ou células HPN) tipo I são aqueles que expressam proteínas ancoradas do GPI da membrana em quantidades normais. Eritrócitos tipo III são aqueles que não têm proteínas ancoradas ao GPI, e os de tipo II expressam pequenas quantidades delas nas membranas. As quantidades de complemento (C3b) depositadas nas membranas são progressivamente maiores do tipo I ao III. Os reticulócitos também são avaliados pela citometria de fluxo em tipos I, II e III. A porcentagem elevada destas células indica atividade medular normal, enquanto uma baixa porcentagem, quase sempre, revela quadro patológico. Achados laboratoriais Anemia microcítica hipocrômica (perda crônica de ferro pelo TGU) Ferro sérico baixo (decorrente da hemoglobinúria) Hemossiderinúria DLH sérica elevada Haptoglobina sérica reduzida Fosfatase alcalina leucocitária baixa Semiologia do sangue periférico inespecífica, porém podendo apresentar anisocitose e macrocitose Leucócitos e plaquetas podem estar diminuídos Teste de Coombs é sempre negativo Teste de Ham positivo Citometria de fluxo (padrão-ouro) Tabela 19.2

Tratamento O tratamento da HPN é planejado de acordo com as manifestações clínicas presentes, respeitando a intensidade, a morbidade e os riscos, e consiste no controle da anemia, na correção das citopenias e no tratamento e prevenção da trombose. Pacientes assintomáticos ou oligoassintomáticos, principalmente aqueles com clone HPN < 10%, não devem ser tratados ao diagnóstico. O tamanho do clone deve ser avaliado a cada 6 a 12 meses para avaliar progressão da doença. O tratamento da anemia envolve impedir a ativação do complemento, reposição de ferro se necessário, ácido fólico e suporte transfusional. A ativação do complemento pode ser inibida pelo uso de corticosteroides e a dose de 0,5 mg/kg por dia costuma controlar 60% dos episódios de hemólise; nas fases agudas, as doses mais altas são muitas vezes necessárias. O efeito dos corticosteroides é rápido, por isso não se aconselha persistir no seu uso nos casos resistentes. Um tratamento emergente, que atua diretamente no complemento, utiliza um anticorpo monoclonal, de nome eculizumab (600 mg por semana, durante 4 semanas, seguida por uma dose de 900 mg por uma semana e, então, por uma dose de 900 mg a cada duas semanas, por um período indefinido), o qual se liga ao C5, inibindo a sua ativação. Ao bloquear a cascata do complemento C5 corrente abaixo, esse anticorpo proporciona uma intervenção médica capaz de controlar a hemólise dependente do complemento na HPN. Eculizumab é recomendado para pacientes com manifestações graves da doença secundárias à hemólise, como fadiga incapacitante, dependência transfusional, dores paroxísticas frequentes, tromboses, piora da função renal e/ou outras complicações em outros órgãos levando à sua disfunção. A administração de ferro é aconselhada, pois a espoliação deste elemento pela hemoglobinúria comumente conduz à sua deficiência. Não é incomum ocorrer episódio de hemólise alguns dias após o início da reposição do ferro, devido ao grande número de células HPN liberadas da medula óssea em recuperação da carência de ferro. Este fenômeno pode ser evitado utilizando-se simultaneamente corticosteroide ou transfusões de sangue para inibir a hematopoese. Em raros pacientes, a transfusão de eritrócitos é a única alternativa para manter níveis razoáveis de concentração de hemoglobina. Os pacientes, sempre que possível, devem ser instruídos quanto à emergência no tratamento da trombose, especialmente a de localização abdominal, pois nas fases iniciais ela pode ser rapidamente revertida com agentes trombolíticos (ativador do plasminogênio tissular). Após este tratamento inicial, heparina deve ser utilizada, seguida pelo uso de anticoagulante oral (cumarínicos) por um período superior a seis meses.

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154 Hematologia A síndrome de Budd-Chiari costuma ser recidivante e, muitas vezes, de difícil controle. O transplante alogênico de medula óssea seria o tratamento ideal para a restauração completa da hematopoese. Os resultados demonstram não apenas melhora dos sintomas como benefício quanto ao aumento da sobrevida. No entanto, diante das limitações deste procedimento, relacionadas à eventual inexistência de doadores, idade não apropriada, comorbidades e a mortalidade ligada ao transplante, reserva-se esta modalidade de tratamento para os casos com doador familiar HLA inteiramente compatível, que apresentem citopenia grave, com risco de hemorragia fatal e infecções pela intensidade da trombocitopenia (abaixo de 10.000/mm³) e granulocitopenia (abaixo de 500/mm³), respectivamente. O transplante também deve ser considerado naqueles pacientes que exigem transfusões repetidas e sem resposta a outros agentes. Imunossupressores como a globulina antilinfocítica e ciclosporina A são utilizados e podem determinar recuperação parcial das citopenias. O uso de fatores de crescimento não parece exercer papel fundamental no controle das citopenias e também a ação dos andrógenos é incerta. Nos pacientes com HPN e anemia aplásica está indicado o tratamento imunossupressor com globulina antitimocítica (usualmente na dose de 1,5 mg/kg/dia por 7 a 14 dias) e ciclosporina (3 a 5 mg/kg por até 3 meses).

Prognóstico O prognóstico desta doença varia bastante e depende principalmente da presença de trombose e do grau de falência medular, as quais podem predispor a complicações fatais, como nas tromboses hepáticas e de veias abdominais e de complicações infecciosas e hemorrágicas, respectivamente. Leucemia mieloide aguda tem sido observada em 5%, cinco anos após o início dos sintomas. Vale destacar outros fatores que contribuem para o mau prognóstico: evolução para aplasia medular e aumento do risco infeccioso.

Hemoglobinúria paroxística ao frio (HPF) Definição A hemoglobinúria paroxística fria é uma forma rara de anemia hemolítica imunomediada em que um autoanticorpo IgG e os dois primeiros

componentes da cascata do complemento ligam-se aos eritrócitos à baixas temperaturas. O anticorpo se dissocia dos eritrócitos à temperatura de 37ºC, mas o complemento permanece na membrana. Este, em temperaturas elevadas, ativa a cascata do complemento e, consequentemente, leva à hemólise intravascular, hemoglobinuria e hemossiderinúria.

Fisiopatologia Um problema não elucidado até o momento é como os componentes líticos são gerados na superfície dos eritrócitos na hemoglobinúria paroxística fria, mas não na doença da aglutinina fria. O anticorpo é denominado de Donath e Landsteiner, que em 1904 o descreveram em um paciente com sífilis terciária. Ultimamente, com a diminui­ção da sífilis nos tempos modernos, o anticorpo Donath-Landsteiner é encontrado na maioria das vezes durante a convalescença de uma infecção viral, frequentemente, de um exantema infantil. O autoanticorpo de Donath-Landsteiner não possui efeito clínico, a não ser que o paciente seja exposto ao frio. Com a exposição a temperaturas baixas, mesmo que essa exposição seja de apenas um braço ou uma perna, a hemólise intravascular se inicia logo após o paciente entrar em contato com temperaturas quentes. Calafrios, febre, dor lombar, cólicas abdominais e hemoglobinúria são característicos. Urticária é comum. A falência renal aguda é rara. A anemia é uma consequência inevitável da hemólise intravascular grave. Essa alteração é autolimitada e dura apenas um ou dois dias.

Diagnóstico O diagnóstico é obtido com um teste de Donath-Landsteiner positivo, porém esse teste é relativamente pouco sensível. Através dessa técnica, pode-se observar a hemólise no tubo teste quando o sangue do paciente é resfriado e, posteriormente, aquecido a 37ºC. A adição de um soro sanguíneo normal como uma fonte de com­plemento é muitas vezes necessária para evidenciar a fase hemolítica da reação.

Tratamento O tratamento geralmente não é necessário e a recuperação espontânea ocorre dentro de semanas ou poucos meses. Em casos nos quais a causa esteja relacionada à sífilis terciária recomenda-se o uso de penicilina cristalina.

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155 19  Hemoglobinúria paroxística noturna (HPN)

Doença da aglutinina fria (anticorpos IgM) As formas agudas ocorrem como uma complicação de uma doença infecciosa frequentemente ocasionada por Mycoplasma penumoniae ou por vírus de Epstein-Barr. Esta quase sempre tem início abrupto ocorrendo na fase de recuperação da infecção. Acomete particularmente adultos jovens, tem um curso autolimitado e raramente requer tratamento específico. A forma mais usual de doença da aglutinina é a desordem crônica de pacientes idosos, muitos destes apresentam linfomas, LLC ou macroglobulinemia de Waldenström. Nestas condições a aglutinina fria é uma IgM monoclonal, contrastando com a IgM policlonal que ocorre na doença da aglutinina fria relacionada às infecções. Na doença da aglutinia fria a destruição eritrocitária é decorrente da capacidade dos anticorpos IgM se fixarem facilmente ao complemento. Cada molécula de IgM apresenta dois sítios de ligação para C1q. A IgM aderente atrai C1q, que inicia a geração de C3b e C4b na superfície dos eritrócitos. Quando os eritrócitos entram na circulação visceral aquecida, liberam as aglutininas frias, mas permanecem com os fragmentos de C3; o receptor CR1 dos macrófagos se liga ao C3 permitindo a fagocitose dos eritrócitos. Um anticorpo que se liga apenas em temperaturas muito baixas causa dano leve, entretanto, o anticorpo que se liga em temperaturas próximas a 37ºC pode causar anemia hemolítica grave. Do ponto de vista clínico os sinais e sintomas são de anemia hemolítica os quais podem piorar em climas frios. Além da anemia intravascular com hemoglobinúria, e raramente falência renal aguda, podemos observar acrocianose. Esplenomegalia é incomum exceto quando em associação com linfomas e/ou leucemias. O diagnóstico se baseia na identificação de aglutinação dos eritrócitos. O título de aglutininas frias é geralmente de 1:105 e o teste de Coombs direto é positivo se as aglutininas frias apresentarem alta amplitude térmica. Na presença de linfoma de células B, uma aglutinina fria IgM-c monoclonal pode ser detectada no sangue através de eletroforese ou imunofixação. Doença da aglutinina fria pós-infecção é autolimitada e geralmente leve. Na forma crônica sem doença subjacente frequentemente seu manejo requer principalmente que se evite o frio. Drogas imunossupressoras não são recomendadas, exceto por vezes prednisona, porém raramente efetiva. A esplenectomia geralmente falha em induzir a remissão, uma vez que o fígado é o maior sítio de destruição de eritrócitos cobertos por C3b. O anti-CD20 (rituximabe) tem sido utilizado com sucesso em alguns casos.

A UTI é um lugar perigoso se você não precisa dela. – Dra. Roslyn Schneider

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CAPÍTULO

11

O rim nas doenças sistêmicas

Nefropatia diabética A nefropatia diabética (ND) é a causa mais comum de insuficiência renal crônica terminal (IRCT) em pacientes que iniciam tratamento dialítico em países desenvolvidos, contribuindo com aproximadamente 30% dos casos, entretanto, em países latino-americanos, essa cifra é de 20%. A ND é mais comum nos portadores de diabetes mellitus (DM) tipo 1 (ocorre em 30 a 40% dos casos) do que entre os portadores de DM tipo 2 (incide em 5 a 20% dos casos). No entanto, como o DM tipo 2 é responsável por 90% dos casos de diabete, sua contribuição como causa de IRCT é semelhante a do tipo 1 (50%). Estágios da nefropatia diabética (DM tipo 1) Estágio I – Fase inicial Hipertrofia renal e hiperfiltração glomerular Estágio II – Fase silenciosa Microalbuminúria apenas após exercícios Estágio III – Fase de nefropatia incipiente Microalbuminúria persistente Estágio IV – Fase de nefropatia clínica Proteinúria no exame sumário de urina (albuminúria) Hipertensão arterial Estágio V – Fase de doença renal em estágio terminal Proteinúria + hipertensão CC < 10 mL/min Tabela 11.1  CC: clearance de creatinina.

A definição de microalbuminúria consiste em uma pequena quantidade de albumina eliminada pela urina, incapaz de ser mensurada pelos métodos convencionais, porém acima dos valores normais. Considera-se microalbuminúria a presença de 30-300 mg de albumina na urina de 24 horas ou 20 a 200 µg/min. A sua detecção pode ser feita de modo confiável em uma amostra aleatória de urina do paciente, medindo-se a relação albumina/creatinina. Considera-se positivo um valor maior do que 0,03. Um novo biomarcador desponta como altamente sensível para o diagnóstico precoce da nefropatia diabética, trata-se da dosagem do angiotensinogênio urinário.

Fisiopatologia A ND é caracterizada por deposição excessiva de proteínas da matriz extracelular (ECM) nos glomérulos. O TGF-b é o principal medidor do acúmulo de proteínas da ECM na ND, por meio de up-regulation dos genes que codificam tais proteínas, assim como down-regulation dos genes das enzimas que degradam as proteínas da ECM. Além das alterações morfológicas, a hemodinâmica glomerular e a composição química dos componentes glomerulares encontram-se alteradas. Entre os mecanismos de lesão renal relacionados com a hiperglicemia crônica estão a glicação não enzimática, aumento da atividade na via dos polióis e aumento


153 11  O rim nas doenças sistêmicas do diacilglicerol (DAG). Os produtos finais de glicação avançada (AGE) podem promover alterações quantitativas e qualitativas nos componentes da ECM, contribuindo para a ocorrência final de oclusão glomerular. Na via dos polióis, a glicose é reduzida a sorbitol sob a ação da aldose redutase. O acúmulo do sorbitol causaria dano celular por meio dos seguintes mecanismos: estresse hiperosmótico para as células, diminuição do mioinositol intracelular e redução da atividade da ATPase Na+/K+-dependente. Por fim, o aumento do conteúdo de DAG ativa a proteinoquinase C (PKC), principalmente as isoformas b e δ.

Fatores que podem aumentar transitoriamente a UAE Duração do diabetes* Microalbuminúria* Fatores genéticos* Mau controle glicêmico** Hipertensão arterial** Tabagismo** Hipercolesterolemia** Obesidade (?)** Obstrução urinária*** Infecção urinária crônica de repetição*** Uso de fármacos nefrotóxicos***

Os fatores determinantes da progressão da fase de microalbuminúria para proteinúria franca são principalmente a hiperglicemia e a HAS.

Tabela 11.2  *Fator de risco para surgimento. ** Fator de risco para surgimento e progressão. ***Fator de risco para progressão.

Fatores que podem aumentar transitoriamente a UAE Diabete descompensado Infecções Ingestão proteica excessiva Insuficiência cardíaca Hipertensão não controlada Febre Exercícios Litíase urinária Tabela 11.3  UAE: excreção urinária de albumina. Progressão da nefropatia diabética no DM Tipo 1, sem intervenção terapêutica* (%) Progressão e Tempo Anormalidades estruturais Anormalidades funcionais de DM anormalidade Estágio I Presente no (80%) Tamanho renal Hipertrofia diagnóstico TFG Glomerular Hiperfiltração Pressão capilar Área de filtração Estágio II 2-3 anos (35-40%) Espessamento das membranas basal e meLesões renais TFG sangial Ausência de sinais clínicos Pressão capilar Estágio III 7-15 anos (80-100%) Esclerose glomerular Nefropatia incipiente TFG** UAE** = 30-300 mg/dia normal ou em declínio Estágio IV 10-30 anos (75-100%) Glomeruloesclerose difusa ou nodular* Nefropatia, clínica TFG em declínio UAE > 300 mg/dia Estágio V 20-40 anos TFG < 15 mL/min Glomeruloesclerose disseminada Doença renal em estágio final Cs ≥ 10 mg/dL Tabela 11.4  (*) Síndrome de Kimestel-Wilson (Glomeruloesclerose nodular): Proteinúria, edema e hipertensão arterial; esta é a lesão mais característica da nefropatia diabética, enquanto a glomeruloesclerose difusa é a lesão mais comum. Se considerarmos 4 estágios, o estágio de nefropatia incipiente passa a ser o estágio II. (**) TFG: taxa de filtração glomerular; Cs: creatina sérica; UAE: excreção urinária de albumina. Estágios da doença renal diabética, segundo a classificação da National Kidney Foundation Estágio e descrição RFG (mL/min/1,73 m2) > 90 1 Dano renal com RFG normal ou aumentado 2 Dano renal com RFG levemente diminuído 60 a 89 3 RFG moderadamente diminuído 30 a 59 4 RFG intensamente diminuído 15 a 29 5 Insuficiência renal

< 15 ou diálise Tabela 11.5  RFG: ritmo de filtração glomerular.

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154 Nefrologia Dentre as inúmeras classificações existentes para ND a mais atual está descrita na tabela a seguir: Classificação da doença renal diabética (DRD) Estádios Características Normoalbuminúria EUA normal, hiperfiltração e nefromegalia. Microalbuminúria EUA 20 a 200 mcg/min. DRD incipiente

DRD clínica

DRD avançada

DRD terminal

EUA persistente, aumento da PA, micro-hipertensão, hipertensão induzida pelo exercício. EUA > 200 mcg/min ou proteinúria > 500 mg/24 horas, franca hipertensão. Proteinúria progressiva, hipertensão, queda do ritmo de filtração glomerular. Uremia, síndrome nefrótica, necessidade de diálise ou transplante.

Tabela 11.6  EUA: excreção urinária de albumina.

Diagnóstico e Tratamento Definições de anormalidade na excreção urinária de albumina (UAE) Amostra Amostra de Amostra Categoria de 24 h 12 h isolada Normal < 30 mg < 20 µg/min < 30 mg/g de Micro30-300 mg 20-200 µg/min creatinina albuminúria > 300 mg > 200 µg/min 30-300 mg/g Albuminúria de creatinina > 300 mg/g de creatinina Tabela 11.7

Nefropatia diabética incipiente Antes do aparecimento da insuficiência renal declarada, manifestada por proteinúria macroscópica e elevação da ureia e da creatinina no sangue, o rim diabético passa por uma fase de nefropatia incipiente. Nesse estágio, os parâmetros sanguíneos são normais, contudo, a excreção de albumina pela urina está elevada para cerca de 0,03 a 0,3 g/24 horas. Esse grau de excreção de albumina pela urina é denominado microalbuminúria, por causa da quantidade relativamente baixa da proteinúria e da elevada seletividade, sobretudo para a albumina. A microalbuminúria não é detectada pelo exame de rotina da urina pelo dipstick. Quando esse exame se torna positivo, isso indica que a proteinúria está acima de 150 mg/L. Por conseguinte, ainda que o dipstick deva ser efetuado inicial-

mente, para detectar a macroalbuminúria um teste negativo justifica uma colheita de urina nas 24 horas e uma técnica de radioimunoensaio específica, para quantificar o grau de excreção de albumina na urina. Já que a colheita de urina nas 24 horas geralmente é incômoda, a microalbuminúria também pode ser indexada pela creatinina urinária, em uma colheita no início da manhã, e a proporção geralmente se situa entre 30 e 300 mg/g de creatinina. Novos produtos de dipstick, como Microbumitest (Ames, Elkhart, IN) e Micral (Boehringer-Mannheim; Indianapolis, IN) foram introduzidos, para detectar níveis mais baixos de albumina na urina, contudo, suas especificidades são baixas e não comparáveis ao teste de radioimunoensaio. É importante lembrar que há vários fatores que podem aumentar a microalbuminúria, como doenças agudas, infecção do trato urinário, descompensação cardíaca, exercícios extenuantes e deficiente controle glicêmico. Esses fatores devem ser detectados pela história médica, pelo exame físico e por exames laboratoriais, para que se evite a interpretação errônea dos resultados.

Uma vez detectada a microalbuminúria, devem-se obter duas amostras, no período de três a seis meses (Atenção!). Caso ambas sejam positivas, o paciente precisa de tratamento. Se o teste para microalbuminúria for negativo, os pacientes precisam ser novamente testados, anualmente. No DMDI, os pacientes pós-púberes com diabetes mellitus por mais de cinco anos devem ser testados para microalbuminúria. Os pacientes com DMNDI devem ser submetidos à triagem logo que for efetuado o diagnóstico, já que, geralmente, é impossível datar o aparecimento da glicemia. Ambos os grupos de pacientes devem ser submetidos a triagem anual, desde que não apresentem elevação da creatinina sérica ou da pressão arterial, caso em que é desejável uma monitorização mais frequente. A presença de microalbuminúria permite prever o aparecimento de nefropatia diabética declarada. Entre os pacientes com DMNDI, essa presença

também permite prever a instalação de morbidez cardiovascular e mortalidade precoce. Assim, é prudente retardar o aparecimento da microalbuminúria e controlar o seu grau. O Controle do Diabete e a Investigação de suas Complicações (DCCT) mostrou que o regime de tratamento intensivo, administrado seja com bomba de insulina, seja por meio de múltiplas injeções (três ou mais por dia), e a aquisição de uma faixa de glicemia quase que normal podem retardar e diminuir a velocidade de progressão das complicações microvasculares diabéticas. Nessa investigação, a ocorrência de microalbuminúria (30 a 300 mg de albumina por dia) foi reduzida para 39%, e a proteinúria declarada (> 300 mg/dia) para 54%, entre os pacientes no grupo de tratamento intensivo.

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155 11  O rim nas doenças sistêmicas Esse declínio na incidência de nefropatia foi atribuído a um controle metabólico mais estrito, sendo mostrado que coincide com níveis mais baixos de hemoglobina glicosilada. É razoável concluir que os mecanismos por intermédio dos quais a hiperglicemia leva a complicações vasculares são, provavelmente, semelhantes em ambas as formas de diabete. Os pacientes diabéticos com microalbuminúria devem ser tratados com inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA), independentemente das pressões sanguíneas. Tem sido mostrado que os inibidores da ECA retardam a progressão para nefropatia diabética declarada. Esses efeitos

benéficos parecem ser independentes das pressões sanguíneas sistêmicas e do tipo de diabete. Além disso, dois a cinco anos após o aparecimento da microalbuminúria, a maioria dos pacientes com DMDI apresentou, eventualmente, hipertensão e necessitou de tratamento subsequente. Há prevalência mais elevada de hipertensão sistêmica nos pacientes com nefropatia diabética incipiente, em comparação com os grupos para idade e sexo combinados. A hipertensão piora a velocidade de progressão da nefropatia diabética, enquanto o controle da pressão arterial melhora o curso da insuficiência renal. Os inibidores da ECA precisam ser considerados como o tratamento de primeira linha, devido a seus efeitos independentes sobre a microalbuminúria, bem como a seus efeitos neutros sobre o controle glicêmico e o metabolismo lipídico. Quando a monoterapia falha, podem ser acrescentados bloqueadores do canal do cálcio (BCC) ou alfa-agonistas. Entre os BCC, somente as diidropiridinas mostraram-se capazes de agravar a excreção de albumina e, por isso, devem ser evitadas. Ambas as classes de anti-hipertensivos não possuem efeitos metabólicos nem lipídicos adversos. Sabe-se que os diuréticos tiazídicos e os betabloqueadores podem piorar o controle glicêmico e alteram, desfavoravelmente, os perfis lipídicos. A alta ingestão de proteína resulta em aumento do índice de filtração glomerular (IFG) e em sobrecarga renal, que, por sua vez, agrava a proteinúria. Isso foi demonstrado mesmo em pacientes não diabéticos. Parece, segundo essas investigações, que a restrição moderada de proteínas pode beneficiar os pacientes com microalbuminúria. Para evitar a desnutrição proteica após dieta de restrição rígida, aconselha-se uma restrição proteica moderada de 0,8 g/kg a 1 g/kg de peso corporal por dia.

Nefropatia diabética declarada Quando a nefropatia diabética incipiente progride até o estágio em que o paciente apresenta parâmetros sanguíneos anormais (elevação da ureia e da creatinina) ou testes dipstick de rotina moderadamente positivos (microalbuminúria), a doença já piorou até a fase de nefropatia declarada. A maioria dos pacientes com nefropatia declarada progride para IRC terminal, e isso ocorre, particularmente, entre os pacientes com diabetes mellitus tipo 1. A velocidade de progressão da nefropatia diabética pode ser diminuída com o controle da hipertensão (prioridade nesta fase). A declaração de consenso da American Diabetes Association e da National Kidney Foundation sugeriu que a pressão arterial deva ser reduzida para menos de 130 x 80 ou para uma pressão média de 92 mmHg. Há, contudo, a possibilidade de provocar uma hipotensão ortostática ou de piorar a função renal, com pressões mais baixas. Às vezes, poderá ser necessário admitir pressões sanguíneas ligeiramente mais altas, para evitar essas complicações. Os inibidores da ECA diminuem a proteinúria e a progressão da insuficiência renal no diabetes mellitus. Além disso, esses medicamentos parecem aumentar

a sensibilidade à insulina, o que pode promover melhor controle metabólico. Parece que eles não têm efeitos sobre os níveis de lipídios, portanto é possível que não piorem os riscos cardiovasculares. Os inibidores da ECA precisam ser usados com cautela em pacientes com doença macrovascular. Os pacientes com estenose renal bilateral podem apresentar rápida diminuição da função renal. Da mesma forma, nos pacientes com significativa doença do parênquima, nos quais os néfrons restantes requerem a presença de angiotensina II para manter o IFG, o bloqueio do sistema renina-angiotensina pode diminuir ainda mais o IFG. Além disso, os pacientes diabéticos são propensos a apresentar hipercalemia, que pode ser agravada pelos inibidores da ECA. Por conseguinte, é prudente determinar os níveis séricos de creatinina e potássio, cerca de uma semana após o início do tratamento, podendo ser necessários ajustes das doses, para corrigir qualquer anormalidade desses níveis. Mesmo os pacientes supostamente estáveis poderão necessitar de monitorização pelo menos três a quatro vezes por ano. Os inibidores da ECA precisam ser usados com cautela em mulheres em idade de procriação já que têm sido associados a morbidez e mortalidade do feto. Os BCC são agentes anti-hipertensivos eficazes, tanto em pacientes diabéticos quanto em não diabéticos. Esses medicamentos são estruturalmente

diferentes, porém constantes em sua eficácia na redução da pressão arterial. Têm diferentes efeitos hemodinâmicos que precisam ser considerados quando uma disfunção do ventrículo esquerdo ou distúrbios de condução complicam o curso clínico do paciente. Esses agentes são úteis na nefropatia diabética, já que po-

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156 Nefrologia dem reduzir a microalbuminúria, exceto no caso das diidropiridinas que, como foi mostrado, aumentam a excreção urinária de proteínas. Não tem sido mostrado que os BCC alteram o controle metabólico no diabetes mellitus. Há na literatura opiniões discordantes que implicam a nifedipina como um agente capaz de baixar os níveis de insulina e, por conseguinte, capaz de aumentar os níveis de glicemia. Os BCC não parecem afetar desfavoravelmente o metabolismo lipídico, porém há publicações que mostram que eles podem estar relacionados com maior mortalidade cardiovascular. Esses me-

dicamentos são bem tolerados e raramente produzem hipotensão postural. Alguns pacientes podem queixar-se de cefaleia, congestão facial, edema de pés e constipação intestinal, que poderão requerer a interrupção do tratamento. Os betabloqueadores estão sendo atualmente recomendados como medicação de primeira linha para o controle da pressão arterial, devido à significativa redução da morbidez e da mortalidade em grandes investigações aleatórias. Eles também têm se mostrado capazes de prevenir a morte súbita e o infarto miocárdico recorrente. Além disso, alguns estudos têm mostrado que esses medicamentos são úteis na prevenção primária da doença coronariana.

Estudos selecionados de DMNDI hipertensos têm mostrado que os betabloqueadores são eficazes na redução da pressão arterial. Contudo, podem piorar o controle da glicemia, provavelmente por diminuírem tanto o nível de insulina quanto a sensibilidade a ela. As várias áreas de preocupação em relação ao uso de betabloqueadores em diabéticos incluem a incapacidade de os pacientes reconhecerem a hipoglicemia e a demora na recuperação desses episódios. Esses efeitos são mais pronunciados com o uso do propranolol, em comparação com o atenolol e o metoprolol. Além disso, sabe-se que os betabloqueadores afetam, de forma adversa, os níveis lipídicos. Esses medicamentos podem aumentar os níveis de lipoproteínas de baixa densidade e de triglicerídios, enquanto diminuem as lipoproteínas de alta densidade. Isso aumenta a preocupação de que

os benefícios decorrentes do controle da pressão sanguínea possam ser ofuscados pelo aumento do risco cardiovascular, ocasionado por um meio lipídico desfavorável. Além disso, sabe-se que os betabloqueadores agravam a doença vascular periférica, que é uma patologia comórbida comum em diabéticos. Os alfabloqueadores e os betabloqueadores, como o labetalol, produzem alterações metabólicas e efeitos adversos semelhantes, contudo, não se sabe se agravam a doença vascular periférica. Não foi comprovado se o labetalol oferece prevenções primária e secundária contra a doença da artéria coronária.

Nas últimas décadas, os diuréticos têm sido usados com segurança e se mostrado eficazes agentes anti-hipertensivos, tanto para diabéticos quan-

to para não diabéticos. Em estudos prospectivos a longo prazo, esses medicamentos pareceram reduzir tanto a mortalidade quanto a morbidez cardiovascular e cerebrovascular.

Devido a esses efeitos benéficos, esses agentes têm sido recomendados pelo Joint National Committee on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure para o uso como medicamentos de primeira linha. A elevação do sódio total do organismo em diabéticos hipertensos torna os diuréticos tiazídicos uma escolha ainda melhor. Contudo, o tratamento com diuréticos não é destituído de reações adversas. Esses agentes causam alterações metabólicas, como modestas elevações dos níveis de glicemia, hiperinsulinemia e aumento da resistência à insulina. Distúrbios eletrolíticos, como hipocalemia e hipomagnesiemia, que podem precipitar os distúrbios de condução, não são efeitos colaterais raros do uso prolongado do diurético. Além disso, os diuréticos tiazídicos podem afetar negativamente o perfil lipídico, provocando um aumento dos níveis de colesterol total, triglicerídios e lipoproteínas de baixa densidade. Updike resumiu as vantagens dos diuréticos, que incluem: (1) a redução da expansão do volume plasmático, que geralmente acompanha a hipertensão; (2) o sinergismo com os inibidores da ECA; (3) a redução da hiperfiltração glomerular; e (4) a boa relação custo-benefício. Doses mais baixas produzem menores graus de distúrbios metabólicos. Portanto, no caso da hidroclorotiazida, deve-se iniciar com doses de 12,5 mg. Essas doses raramente devem exceder 25 mg/dia. Conduta terapêutica na nefropatia diabética Estágios I e II – Controle glicêmico adequado Não fumar Controle da HAS (DM tipo 1) Tratamento da obesidade e dislipidemia (DM tipo 2) Evitar dieta hiperproteica

Estágios III e IV Controle glicêmico Não fumar Tratamento da HAS Uso de inibidores da ECA (mesmo em normotensos) Redução da pressão intraglomerular por meio da dilatação da arteríola eferente Relaxamento da musculatura lisa mesangial Diminuição da permeabilidade dos capilares glomerulares Inibição da angiotensina II como um fator de crescimento renal Ingestão proteica diária de 0,6-0,8 g/kg Correção da hiperlipidemia Uso da aminoguanidina Estágio V

Diálise peritoneal, hemodiálise ou transplante (creatinina ≥ 8 mg/dL)

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Tabela 11.8  Resumo.


157 11  O rim nas doenças sistêmicas Mais recentemente, o estudo AVOID demonstrou que a combinação de um BRA, o losartan, com um inibidor direto da renina, o aliskireno, promove redução adicional de 20% na albuminúria em pacientes diabéticos com ND quando comparada à monoterapia com losartan. Embora ainda sejam necessários estudos de desfecho, essa combinação poderá ser útil promover redução na excreção renal de proteínas e maior proteção renal.

Novas perspectivas no tratamento da ND incluem inibidores da PKC (p. ex.: mesilato de ruboxistaurina), glicosaminoglicanos (p. ex.: sulodexide), aminoguanidina (inibidor da formação de produtos finais de glicação avançada), pentoxifilina e, mais recentemente, antagonistas da endotelina. Estas drogas mostram benefícios em reduzir a proteinúria e estabilização do RFG superior aos placebos. O futuro próximo dará importância devida a cada uma delas.

Indicação de biópsia renal na nefropatia diabética Quando a glomerulopatia se instala no paciente diabético obedecendo à cronologia da sua história natural, pouco se duvida do diagnóstico de nefropatia diabética. Um dado importante de raciocínio é a presença de retinopatia, que é concordante com nefropatia diabética em 85 a 99% dos pacientes do tipo I e 63% do tipo II. Portanto, o achado de etinopatia em paciente com alterações glomerulares renais sugere nefropatia diabética. A hematúria microscópica de baixa intensidade pode ser encontrada em até 50% dos pacientes com nefropatia diabética. No entanto, a biópsia renal deve ser indicada quando dados clínicos ou laboratoriais são discordantes dos habitualmente encontrados em pacientes com nefropatia diabética, como listados a seguir:

História de diabete menor que cinco anos;

Aumento rápido da proteinúria;

Albuminúria na ausência de retinopatia;

Perda da função renal na ausência de proteinúria;

Sedimento urinário com hematúria;

Perda de função renal sem explicações.

Exame sumário de urina Proteína (–)

Proteína (+) = nefropatia clínica

Há condições que alterem a AUE?

(1) Determinar proteinúria das 24 horas e (2) Fazer controle rígido da glicemia, PA e lípides

Não

Sim

Aguardar resolução

Pesquisa de microalbuminúria

Negativa

Positiva

Repetir exame anualmente

Repetir exame mais 2 vezes, em 3-6 meses

Não

MA persistente?

(1) Melhorar controle da glicemia, lípides e PA (2) Usar IECA, se MA persistir Sim

Iniciar tratamento

Figura 11.1  Resumo da investigação recomendada pela ADA para detecção e tratamento da nefropatia diabética.

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158 Nefrologia

Nefrosclerose hipertensiva Forma benigna As características histopatológicas principais da nefrosclerose benigna são hipertrofia da camada muscular das artérias, duplicação da lâmina elástica interna e espessamento da camada íntima, algumas vezes com deposição de material ialino na região subintimal. Por conta do estreitamento da luz das arteríolas renais aferentes e eferentes, ocorre envolvimento glomerular e tubulointersticial.

Especula-se que os depósitos hialinos sejam resultado do aumento da permeabilidade dos vasos sanguíneos. Como consequência, macromoléculas difundidas a partir do plasma se acumulariam na região subintimal. Essa seria a causa da deposição de imunoglobulinas que se observa nas paredes das arteríolas de pacientes com nefrosclerose benigna. Por outro lado, a exposição excessiva a fatores de crescimento oriundos da circulação também seria capaz de causar lesões proliferativas e hipertróficas. A resposta hipertrófica da camada íntima das artérias do rim pode representar uma tentativa de proteção contra os efeitos hemodinâmicos da pressão arterial sobre as arteríolas e os capilares renais. Finalmente, a esclerose global ou focal pode ser consequente à isquemia glomerular. O comprometimento focal é acompanhado de hipertrofia glomerular que pode estar envolvida na natureza progressiva da doença renal. Este estágio da doença, que se associa com lesão tubulointersticial crônica, recebe o nome de nefrosclerose benigna descompensada. Em geral, a creatinina sérica supera 2 mg/dL e a sobrevida renal é pior do que nas glomerulopatias primárias.

Forma maligna A elevação acentuada e sustentada da pressão arterial (hipertensão acelerada) acelera a progressão da doença renal, de tal sorte que a insuficiência renal crônica terminal sobrevém ao final de alguns poucos anos. Alguns autores separam a hipertensão acelerada da hipertensão maligna. Nesta última, o quadro clínico e as alterações histopatológicas decorrem de uma elevação acentuada e relativamente aguda da pressão arterial, que determina sofrimento agudo dos órgãos-alvo da hipertensão (cérebro, retina, rins, coração e grandes vasos). Atualmente é comum não fazer distinção tão nítida entre os dois quadros. Doenças vasculares dos rins ocorrem a partir da faixa de 130 mmHg de pressão diastólica sustentada.

Patologia A elevação exagerada e prolongada da pressão arterial se acompanha por hiperplasia e fibrose da camada íntima que termina por estreitar o lúmen arterial. Nos vasos de médio calibre ocorre estreitamento da luz vascular devido à grande expansão da camada íntima. O padrão de lesão intimal, juntamente com a duplicação da lâmina elástica interna, dá origem a um aspecto histopatológico concêntrico característico que recebe o nome de bulbo de cebola. Essas alterações histológicas típicas são semelhantes, senão indistinguíveis, das lesões observadas.

Diagnóstico A doença renal hipertensiva manifesta-se por elevação da creatinina sérica ou proteinúria, que, via de regra, é moderada. Uma das características da nefrosclerose benigna, que pode ser reflexo da diminuição do fluxo sanguíneo renal, é a elevação do ácido úrico independentemente do uso prévio de diuréticos. A proteinúria não costuma exceder 1 g em 24 horas. Pacientes com proteinúria são mais propensos a evoluir com perda da função renal, talvez como consequência da hiperfiltração glomerular. O diagnóstico da nefrosclerose benigna baseia-se na história e na evolução da doença. A hipertensão deve preceder a doença renal. A presença de retinopatia hipertensiva também auxilia no diagnóstico. A biópsia renal normalmente não é necessária, a não ser em pacientes sem antecedentes de doença hipertensiva.

Figura 11.2  Hipertensão arterial. Hiperplasia e fibrose da camada íntima resultando no aspecto de camadas concêntricas conhecido pelo nome de lesão em bulbo de cebola. Guarde!

Quadro clínico Com frequência, em pacientes com níveis tensionais previamente elevados, a hipertensão maligna instala-se como uma complicação, alterando um curso

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159 11  O rim nas doenças sistêmicas anteriormente benigno. Nesses casos, deve-se procurar sempre um fator de agudização, como a doença renovascular aterosclerótica ou o uso insuficiente ou inapropriado de medicação. Fatores genéticos, como polimorfismo do gene das ECA e HLA-DR3 (em indivíduos de raça negra), parecem aumentar o risco para transformação maligna da HAS. Ocasionalmente, observam-se situações em que a hipertensão maligna desenvolve-se em pacientes previamente hígidos (de novo), acometidos por uma elevação aguda e grave da pressão arterial (por exemplo: na glomerulonefrite aguda, na eclâmpsia ou mesmo na hipertensão essencial). O prognóstico da hipertensão maligna em pacientes sem antecedentes de hipertensão não difere dos casos clássicos. Além da hipertensão e da piora gradativa da função renal, pacientes com nefrosclerose arteriolar maligna apresentam proteinúria, raramente em níveis nefróticos. Um quadro mais raro é a insuficiência renal aguda, que se instala ao longo de vários dias ou poucas semanas. Nesses pacientes, a ultrassonografia renal revela rins de tamanho e ecogenicidade praticamente normais. A biópsia renal é a única forma de confirmar a hipertensão maligna como responsável pela disfunção renal aguda. Entretanto, existem duas limitações.

Primeiramente, a hipertensão grave é uma contraindicação para a execução da biópsia, que só poderá ser feita após o controle adequado da pressão arterial. O segundo problema é a semelhança histopatológica entre a hipertensão maligna e as microangiopatias trombóticas. Muitas vezes é preciso conjugar dados da patologia com o quadro clinicolaboratorial, a fim de obter um diagnóstico definitivo. Os efeitos sistêmicos da hipertensão grave também se evidenciam pelo comprometimento dos vasos da retina. A retinopatia hipertensiva caracteriza-se por hemorragias retinianas, exsudatos de material plasmático extravasado e, nos casos com encefalopatia hipertensiva, edema da papila. Este último, quando presente, revela a gravidade do quadro hipertensivo agudo, mas não tem relação com o prognóstico do quadro geral. Clinicamente, o paciente com hipertensão maligna apresenta cefaleia e sinais neurológicos flutuantes. As complicações incluem convulsões, déficits neurológicos fixos, coma e, eventualmente, morte. Inicialmente, o comprometimento do cérebro resulta da elevação da pressão craniana (que pode evoluir para edema cerebral difuso) e de isquemia focal. As complicações podem decorrer de acidentes vasculares encefálicos (AVE) isquêmicos (incluindo infartos lacunares) ou hemorrágicos. As características clínicas que ajudam a diferenciar a encefalopatia hipertensiva simples do quadro de AVE incluem a ausência de comprometimento focal,

o início insidioso e os sintomas de comprometimento encefálico difuso (vômitos, cefaleia, perda da memória etc.). A tomografia cerebral é o exame de escolha para afastar um AVE, com a ressalva de que são necessárias pelo menos 48 horas para que um acidente isquêmico seja revelado na tomografia.

Tratamento Para que o fluxo cerebral possa ser mantido nas primeiras 24 horas, objetiva-se uma redução moderada da pressão arterial, que deve estabilizar-se em níveis moderadamente elevados. Uma diminuição excessiva da pressão arterial pode trazê-la para valores médios inferiores à capacidade de autorregulação do fluxo sanguíneo cerebral e resultar em dano isquêmico. O tratamento inicial de pacientes com hipertensão maligna depende da situação clínica. Quando o paciente apresenta comprometimento agudo da função dos órgãos-alvo (deterioração visual, encefalopatia, insuficiência renal aguda, edema agudo de pulmão), indica-se o tratamento com drogas de ação rápida, por via intravenosa. No nosso meio, a droga de escolha é o nitroprussiato de sódio, que possui efeito imediato e correlação linear entre a dose infundida e o efeito anti-hipertensivo. Outra droga parenteral vasodilatadora, já aprovada pelo FDA para uso clínico, é o fenoldopam, um agonista seletivo do receptor dopaminérgico do tipo 1 (DA1). Essa droga tem a vantagem de possuir efeito natriurético e possível proteção renal, além de ser isenta do risco de intoxicação pelo cianeto e não ser fotossensível. Durante a retirada da infusão venosa ou em pacientes sem tanta gravidade, pode-se iniciar o tratamento com bloqueadores de canal de cálcio ou com inibidores da enzima conversora de ação rápida (por exemplo: nifedipina e captopril). Muitos utilizam a via sublingual para obter efeito imediato, o que não deve ser estimulado, ou seja deve ser proscrito. A via oral é eficaz sem os inconvenientes da via sublingual. Após as primeiras 24/48 horas, inicia-se a terapia definitiva com drogas orais, que pode incluir os bloqueadores de canal de cálcio e inibidores da enzima conversora, eventualmente com meia-vida mais longa, juntamente com outras drogas hipotensoras. A sobrevida em dez anos é de 45 a 50%, e em renal basal ocorre progressão para IRC. A longo prazo, o controle pressórico é o fator mais importante para impedir a progressão da nefropatia.

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160 Nefrologia

Lúpus eritematoso sistêmico Cerca de 50-75% dos pacientes cursam com nefropatia lúpica. Sua presença constitui um sinal de mau

prognóstico, embora o tipo e a gravidade sejam variáveis para cada paciente. Em geral, se desenvolve durante os primeiros anos da doença. O diagnóstico ou formação in situ de imunocomplexos DNA anti-DNA sobre a membrana basal glomerular e a consequente ativação do complexo imune compõem a sequência patogênica, cujo resultado final é a lesão lúpica do glomérulo (principal alvo renal). A síndrome nefrótica, frequentemente associada à insuficiência renal, corresponde à manifestação clínica mais comum, ocorrendo em dois terços dos pacientes com lesão renal. A presença de dano renal está fortemente relacionada com a detecção no soro do anticorpo anti-DNA nativo e consumo do complemento. Embora se observe que a literatura em geral costuma dar ênfase às alterações glomerulares, as lesões intersticiais, em alguns casos, podem dominar o quadro histológico e ter expressão clínica exuberante. O melhor indicador clínico de um prognóstico ruim é a insuficiência renal, manifestada por uma creatinina sérica persistentemente >2 mg%, em vigência de tratamento e na ausência de outras causas de azotemia. Na evolução, 40% dos casos apresentam síndrome nefrótica, com função renal ainda normal, ou variados graus de insuficiência renal. Em cerca de 5% dos casos, a primeira manifestação do LES é unicamente a glomerulonefrite, e longa evolução pode decorrer até o aparecimento de manifestações extrarrenais e sorologia positiva. Insuficiência renal aguda como primeira manifestação é rara quando ocorre, e o início com oligúria é geralmente acompanhado de manifestações sistêmicas importantes e elevados títulos de autoanticorpos; nesses casos a ocorrência histológica é compatível com glomerulonefrite proliferativa difusa ou doença intersticial.

A classe IV ou glomerulonefrite proliferativa difusa (GNPD) corresponde quase à metade dos casos de envolvimento renal no LES e é o tipo de lesão renal de pior prognóstico.

Na forma mesangial (classe II) as alterações do sedimento urinário são mínimas, e o prognóstico é bom. Na forma proliferativa focal (classe III), a proteinúria está quase sempre presente, embora a evolução para síndrome nefrótica seja rara; hematúria é encontrada com relativa frequência, e a preservação da função renal se mantém por muito tempo. Na forma proliferativa difusa (classe IV), a síndrome nefrótica é comum e se acompanha de hematúria e/ou cilindro hemático, HAS e redução da taxa de filtração glomerular em 50% dos casos no momento do diagnóstico (cerca de 90% acabam

desenvolvendo síndrome nefrótica em algum momento evolutivo da doença). A insuficiência renal ocorre em 75% dos pacientes.

A forma membranosa (classe V) se apresenta quase sempre como síndrome nefrótica pura, sem

alterações de sedimento urinário (sem cilindros hemáticos), com preservação da função renal, que só se deteriora ao longo dos anos. Segue a seguir, tabela de resumo do quadro clinicolaboratorial da nefrite lúpica.

Classificação de nefrite lúpica – OMS 1994 Classe Achados patológicos I

Nenhum

II

Lesão mínima ou mesangial

III

Proliferação glomerular focal (15%)

IV

Proliferação glomerular difusa (43%)

V

Membranosa (15%)

VI

Esclerose glomerular crônica Tabela 11.9

Classificação da nefrite lúpica (NL) proposta pelo consenso ISN/RPS Classe I: NL mesangial mínima Classe II: NL proliferativa mesangial Classe III: NL focal (< 50% glomérulos envolvidos) A: lesões ativas (NL proliferativa focal) A/C: lesões ativas e crônicas (NL proliferativa focal e esclerosante) C: lesões crônicas e inativas com áreas cicatriciais glomerulares (NL focal e esclerosante) Classe IV: NL difusa (> 50% de envolvimento glomerular) S (A): lesões ativas (NL proliferativa difusa segmentar) G (A): lesões ativas (NL proliferativa difusa global) S (A/C): lesões ativas e crônicas (NL proliferativa difusa segmentar e esclerosante) G (A/C): lesões ativas e crônicas (NL proliferativa difusa global e esclerosante) S (C): lesões crônicas e inativas com áreas cicatriciais (NL difusa segmentar e esclerosante) G (C): lesões crônicas e inativas com áreas cicatriciais (NL difusa global e escrerosante) Classe V: NL membranosa Classe VI: NL esclerosante avançada Tabela 11.10

OMS Sedimento Proteinúria Síndrome Disfunção urinário nefrótica renal ativo I 0 0 0 0 II < 25% 25-50% 0 < 15% III 50% 65% 25-30% 10-25% IV 75% 95-100% 50% > 50% V 50% 95-100% 90% 10-20% Tabela 11.11

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161 11  O rim nas doenças sistêmicas A informação mais decisiva acerca do estado da doença renal é formada pelo exame de um espécime de biópsia renal pela microscopia ótica e eletrônica, assim como pela coloração imunofluorescente. A utilidade da biópsia renal no tratamento dos pacientes tem sido amplamente discutida. O motivo mais convincente para a realização de uma biópsia renal é estadiar a doença com precisão, portanto a decisão de realizar uma biópsia renal deve ser individualizada para cada paciente, de acordo com a possibilidade de influenciar o tratamento. O índice de atividade-cronicidade tem valor considerável como parâmetro prognóstico e guia para o tratamento. A indicação da biópsia é especialmente útil nos casos suspeitos de nefrite proliferativa difusa.

A GNPD está presente em quase todos os pacientes com LES que evoluem para insuficiência renal. Caracteriza-se pelo envolvimento de mais de 50% do glomérulo, com hipercelularidade mesangial generalizada, evoluindo para obliteração e esclerose das alças capilares. Clinicamente, os pacientes quase sempre apresentam proteinúria e hematúria e, não raramente, diminuição da função renal. A HAS é comum no momento do diagnóstico.

Outras formas de nefrite lúpica Nefrite intersticial ocorre em 60-70% dos casos e usualmente se correlaciona com o envolvimento glomerular. Tromboses glomerulares são vistas, às vezes, associadas às classes IV e V de glomerulonefrite lúpica e parecem estar associadas à presença de anticoagulante lúpico, na maioria dos casos. Amiloidose, em geral, com infecção crônica coexistente ou doença linfoproliferativa.

Nefrite lúpica e gestação A gravidez na vigência do LES é, por definição, uma situação de alto risco. Para o feto, isso é devido à frequência de problemas como perda fetal, prematuridade, LES neonatal (incluindo bloqueio A-V congênito) e mortalidade neonatal aumentada. Para a mãe, parece haver exacerbação do LES, sendo na maioria das vezes de ocorrência no terceiro trimestre ou no pós-parto. Pode haver morte materna, em geral por evolução rápida de nefrite lúpica. O bloqueio cardíaco congênito é muito raro, mas está associado a Ac anti-Ro e HLA-DR3 na mãe. Orientação terapêutica na nefrite lúpica

Índices patológicos de atividade e cronicidade Índice de cronicidade

Índice de atividade

Esclerose glomerular Crescentes fibrosos Atrofia tubular Fibrose intersticial

Proliferação celular Necrose fibrinoide Crescentes celulares Trombo hialino Infiltrado leucocitário glomerular Infiltração celular mononuclear no interstício Tabela 11.12

Classe I (rins normais): nenhuma orientação terapêutica. Classe II (nefrite mesangial): nenhuma orientação terapêutica. Se surgirem indícios clínicos, repetir a biópsia para avaliar mudança de classe. Classe III (proliferativa focal): se a lesão for branda, iniciar corticoide. Se a lesão for grave, proceder o protocolo da classe IV. Classe IV (proliferativa difusa): corticoides em altas doses e citotóxicos (ciclofosfamida), micofenolato de mofetil. Classe V (membranosa): corticoide para a remissão da síndrome nefrótica. Se não houver remissão, iniciar citotóxicos. Tabela 11.13

Mais recentemente, os dados clínicos e histológicos foram revisados por Austin et al., que concluíram que os achados associados com aumento da probabilidade de dobrar a creatinina sérica em cinco anos foram: 1. creatina sérica > 2,4 mg%; 2. hematócrito < 26%; 3. raça negra; 4. crescentes celulares e fibrose intersticial. Atenção: do ponto de vista laboratorial, os dados mais sugestivos de nefrite lúpica ativa são: títulos elevados de anti-DNA e consumo de complemento (CH50 e C3).

Esclerose sistêmica As estruturas renais primariamente acometidas na ESP são as artérias interlobulares e arteríolas, e a lesão característica é uma endarterite proliferativa, caracterizada pela proliferação celular da camada íntima, adelgaçamento da média e deposição de colágeno na adventícia. As alterações glomerulares são geralmente inespecíficas e secundárias à isquemia. O acometimento difuso e progressivo das pequenas artérias renais

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162 Nefrologia provoca isquemia renal, estimulando a secreção de renina e consequente HAS (achado clínico comum). A crise renal esclerodérmica é um evento agudo potencialmente reversível e que ocorre em 5 a 15% dos pacientes com ESP forma difusa (Scl-70 positivo). A patogênese desta crise está associada a um vasoespasmo (Raynaud) renal severo, principalmente das arteríolas interlobulares, levando à isquemia cortical difusa, com consequente ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, uma forma periférica de HAS renovascular. Do ponto de vista histopatológico, encontra-se nefrosclerose arteriolar acelerada, semelhante à observada na hipertensão arterial maligna. Os rins encontram-se reduzidos de tamanho, e a presença de infartos corticais e hemorragias petequiais são frequentes. As arteríolas interlobares encontram-se estreitadas por depósitos de fibrina, e a atrofia isquêmica e o infarto distal são habituais. Com o advento dos IECA (droga de escolha para coibir a evolução da crise renal), a mortalidade pela doença renal foi suplantada pelo acometimento pulmonar (alveolite fibrosante como principal causa de óbito nesta população). O uso de 25 mg de captopril de oito em oito horas com aumento progressivo nos dias subsequentes até normalização da pressão arterial é a recomendação seguida para controle da doença renal. A piora da função renal após normalização da PA pode ocorrer (é frequente), e a continuação dos IECA é fundamental para a recuperação total da função renal. Para os pacientes que evoluem para uremia, a diálise é recomendada com a manutenção do IECA (essas medidas conseguem recuperar a maioria dos pacientes). Crise renal esclerodérmica 1. Hipertensão arterial acelerada 2. Elevação das escórias nitrogenadas (IRA rapidamente progressiva) 3. Hemólise microangiopática (esquizócitos no sangue periférico) 4. Plaquetopenia Tabela 11.14

Artrite reumatoide O acometimento renal na AR pode ser feito de três formas: 1) Acometimento direto pela doença (glomerulone-

frite membranosa, glomerulonefrite proliferativa mesangial, glomerulonefrite crescente e necrotizante e por vezes vasculite necrotizante, principalmente na AR grave, marcada de altos títulos de FR e nódulos subcutâneos).

2) Acometimento renal por amiloidose (amiloidose secundária, com apresentação sob a forma de síndrome nefrótica e evolução para IRC). 3) Acometimento renal secundário ao uso de medicamentos. 3.1) Sais de ouro: glomerulopatia membranosa, doença de lesão mínima, necrose tubular aguda. 3.2) Penicilamina: glomerulonefrite membranosa, glomerulonefrite em crescente, doença de lesão mínima. 3.3) AINEs: NTA, nefrite intersticial, doença de lesão mínima. 3.4) Ciclosporina: alteração isquêmica crônica. 3.5) Analgésicos: nefrite intersticial crônica e necrose de papila.

Síndrome de Sjögren O acometimento renal na síndrome de Sjögren ocorre em cerca de 10-15% dos pacientes, sendo a lesão mais comum a nefrite tubulointersticial (síndrome de Fanconi, acidose tubular renal tipo I, diabetes insipidus nefrogênico). Um percentual menor dos pacientes pode apresentar uma forma rara de glomerulonefrite por imunocomplexos (associada à Sjögren secundária, principalmente associada a LES).

Síndrome do anticorpo antifosfolípide Do ponto de vista nefrológico, a síndrome antifosfolipídeo causa manifestações, predominantemente trombóticas, em quase toda a circulação renal. Podem ocorrer infartos renais, uni ou bilaterais, por oclusão da artéria renal principal ou seus ramos. Trombose bilateral da veia renal também já foi observada. Estenose da artéria renal, algumas vezes reversível após anticoagulação, é outra manifestação descrita recentemente. Alguns pacientes desenvolvem uma microangiopatia trombótica semelhante à síndrome hemoliticourêmica, em que lesões obliterativas arteriolares coexistem com trombose glomerular. Esses pacientes podem cursar com hipertensão grave e evoluir para a insuficiência renal crônica terminal. Pode ocorrer ainda proteinúria nefrótica, mas o substrato histopatológico dessa manifestação ainda não está bem definido. Os anticorpos antifosfolipídeos podem ser retirados com plasmaférese, mas recorrem logo a seguir. A resposta aos corticosteroides e imunossupressores também é pobre. Pacientes com manifestações trombóticas renais (assim como em qualquer outro órgão nobre) devem usar anticoagulantes orais (varfarina) para o resto da

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163 11  O rim nas doenças sistêmicas vida. As manifestações renais da síndrome exigem anticoagulação, que deve ser suficiente para manter o INR acima de 3,0.

Envolvimento renal nas vasculites A prevalência de doença renal nas vasculites sistêmicas ocorre em 50 a 90% dos casos. A forma de glomerulonefrite crescêntica necrotizante pauci-imune corresponde a aproximadamente 50% de todas as glomerulonefrites rapidamente progressivas. Na nefrite pauci-imune, por volta de 80% dos pacientes têm vasculites sistêmicas e até 85% têm sorologia positiva para o ANCA. Na população geral, vasculites dos vasos de pequeno calibre afetam principalmente a faixa etária acima dos 50 anos, mas podem também atingir pessoas mais jovens. Classificação das vasculites (de acordo com a Conferência Internacional de Chappel Hill) 1- Vasculites de grandes vasos Arterite Temporal Arterite de Takayasu Envolvimento renal infrequente: hipertensão renovascular, nefropatia isquêmica 2- Vasculites de vasos de médio calibre Poliarterite Nodosa Clássica Envolvimento renal vascular: hipertensão renovascular, nefropatia isquêmica Doença de Kawasaki Envolvimento renal extremamente raro 3- Vasculites de pequenos vasos Granulomatose de Wegener* Afeta capilares, vênulas e arteríolas: comum ocorrência de glomerulonefrite necrotizante e positividade do ANCA (c-ANCA) Poliangeíte Microscópica Afeta capilares, vênulas e arteríolas: comum ocorrência de glomerulonefrite necrotizante e positividade do ANCA (c-ANCA) Síndrome de Churg-Strauss** Afeta capilares, vênulas e arteríolas: envolvimento renal infrequente; positividade do ANCA (c-ANCA) Púrpura de Henoch-Schönlein Comum ocorrência de glomerulonefrite mesangial com depósitos de IgA Vasculite da crioglobulinemia Comum ocorrência de glomerulonefrite membranoproliferativa Angeíte Cutânea Leucocitoclástica Envolvimento renal muito raro Tabela 11.15  (*) granulomatose com poliangeíte. (**) granulomatose com eosinofilia.

Patogênese O mecanismo mais frequentemente envolvido na injúria vascular renal é o do processo inflamatório mediado por anticorpos; a imunopatogênese das vasculites, entretanto, ainda não é bem conhecida.

A via final comum da inflamação inclui o recrutamento de neutrófilos e macrófagos na parede vascular, à qual essas células aderem e na qual penetram e liberam os radicais livres de oxigênio e as enzimas proteolíticas, tais como: elastase, catepsinas, proteínase-3 (PR3) e mieloperoxidase (MPO). Vários mecanismos imunológicos têm sido propostos para explicar a reação inflamatória vascular: 1) deposição de imunocomplexos circulantes; 2) formação in situ de imunocomplexos; 3) interação de anticorpos com antígenos do endotélio; 4) ativação de neutrófilos mediada pelo ANCA.

Patologia O aspecto histológico dominante no parênquima renal de pacientes com vasculites é o da glomerulonefrite necrotizante focal e segmentar pauci-imune sem depósitos de imunoagregados ou evidências de proliferação celular intraglomerular.

Em 80% dos casos ocorre a formação de crescentes epiteliais agudos ou em vários estágios de evolução. Em geral, há boa correlação entre a creatinina sérica inicial e o percentual de glomérulos comprometidos com os crescentes. Nas doenças por imunocomplexos, o aspecto histológico inclui a proliferação mesangial, o infiltrado celular à custa de neutrófilos e monócitos e a típica imunofluorescência nas diferentes entidades: o predomínio de IgA na púrpura de Henoch-Schönlein, os depósitos maciços de agregados de IgM na crioglobulinemia e a fluorescência rica com todos os isótipos de imunoglobulinas e componentes do complemento no lúpus eritematoso sistêmico. Na granulomatose de Wegener pode ser encontrada ocasionalmente formação de granuloma periglomerular. Infiltrado intersticial é achado frequente na vasculite renal e geralmente acompanha a nefrite crescêntica grave. Granulomas necrotizantes intersticiais, com células gigantes multinucleadas, raramente são observadas na granulomatose de Wegener. O envolvimento vascular extraglomerular é pouco frequente: em apenas 30 a 50% das biópsias as arteríolas podem estar envolvidas pela vasculite. Este fato provavelmente decorre de um erro de amostragem da biópsia renal, uma vez que vasculite arteriolar pode ser encontrada em praticamente todos os casos que vão para a necrópsia. A lesão vascular renal predominante é a da inflamação dos pequenos vasos com infiltrado perivascular à custa de neutrófilos, linfócitos e monócitos.

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164 Nefrologia Ocorre também necrose fibrinoide da parede e ruptura das lâminas internas e externas, com exsudação de proteínas no interior da parede vascular e no tecido perivascular. Alguns pacientes com vasculites ANCA-positivas, especialmente granulomatose de Wegener, apresentam lesões necrotizantes segmentares nos capilares peritubulares e nos vasos retos da medula renal. Granuloma de células gigantes e monócitos também podem ser observados em situação perivascular.

Tratamento A sobrevida média dos pacientes com vasculite necrotizante, antes do advento da terapêutica imunossupressora, era de no máximo seis meses. Atualmente, várias séries da literatura têm apontado para sobrevida de até 70% em cinco anos, com o uso intensivo de corticosteroides e ciclofosfamida. A corticoterapia isolada não previne as recidivas, que frequentemente ocorrem nas vasculites necrotizantes, especialmente no que se refere à granulomatose de Wegener. O tratamento das vasculites renais inclui duas importantes fases: a da indução e a da manutenção terapêutica a longo prazo. Nas fases de indução, a droga de escolha é a metil-prednisolona, administrada sob a forma de pulsos intravenosos (1 g por três dias consecutivos), seguida de prednisona por via oral na dose de 0,5-1 mg/kg/dia. Ciclofosfamida deve ser acrescentada a este esquema, preferencialmente por via oral, na dose de 1 a 3 mg/kg/dia, dependendo da função renal e da contagem de leucócitos. Em casos de vasculite extrarrenal grave, ou mesmo na perda rápida da função renal até o nível dialítico, tem sido proposto o uso de plasmaférese intensiva, com sete a dez trocas diárias de quatro litros de plasma e substituição por albumina. Este método envolve alto custo e não está isento de complicações de ordem infecciosa. Após a fase da indução terapêutica da doença aguda, que dura 8-12 semanas, inicia-se a fase do tratamento de manutenção (12 a 24 meses) com ciclofosfamida oral, 1 a 2 mg/kg/dia, acompanhada de prednisona, 10 a 20 mg/dia. Uma forma alternativa de tratamento na fase de manutenção é o uso da ciclofosfamida intravenosa sob forma de pulsos mensais na dose de 0,75-1 g/ m2 de superfície corporal, por um período variável, de 6 a 12 meses. Azatioprina na dose de 2 mg/kg/dia também tem sido proposta como droga eficaz e menos tóxica que os agentes alquilantes na fase de manutenção, associada a doses baixas de prednisona. Novas modalidades de tratamento das vasculites renais têm sido recentemente sugeridas, tais como gamaglobulina endovenosa em altas doses e uso de anticorpos monoclonais. O real benefício desses proce-

dimentos na doença renal grave ainda não foi demonstrado. Alguns pacientes com granulomatose de Wegener, tratados com sulfatrimetoprim, têm menor índice de recidivas da doença, provavelmente pelo efeito profilático desta associação no controle das infecções do trato respiratório, que podem desencadear a atividade das vasculites necrotizantes. Na avaliação da resposta terapêutica a longo prazo, devem ser cuidadosamente pesquisados os sinais e sintomas clínicos da atividade sistêmica e renal. Dentre os testes de laboratório usuais, a proteína C reativa, a velocidade de hemossedimentação, o sedimento urinário, a proteinúria quantitativa e a creatinina sérica devem ser habitualmente solicitados no seguimento. Na granulomatose de Wegener, a negativação do ANCA tem boa correlação com as fases inativas da doença, se bem que ANCA positivo pode ocorrer em até 25% dos pacientes que estão evoluindo assintomáticos. Nos pacientes que sobrevivem, a

recuperação da função renal pode ocorrer após certo período de tratamento dialítico, que varia de quatro até doze meses. Tão logo a função renal se recupere, é comum a ocorrência de proteinúria maciça e síndrome nefrótica, que a seguir remite lentamente, com o passar do tempo. As recidivas nas vasculites associadas ao ANCA são relativamente frequentes e estão diretamente relacionadas com a menor intensidade e a menor duração do tratamento imunossupressor na fase de manutenção. A histologia renal mais frequente nas vasculites sistêmicas é a glomerulonefrite necrotizante segmentar focal paci-imune, com formação em crescentes. As vasculites associadas ao ANCA são a GW (C-ANCA), a poliangeíte microscópica e a síndrome de Churg-Strauss (P-ANCA).

Síndrome de Goodpasture (SG) A glomerulonefrite antimembrana basal glomerular (anti-MBG), embora rara, é importante cau-

sa de uma forma grave de nefropatia que se manifesta, com alto índice de morbidade e mortalidade. Apresenta-se, comumente, como síndrome de Goodpasture (GP), caracterizada por um quadro de insuficiência renal com hemorragia pulmonar. Em outras situações, ainda que a lesão renal seja do tipo rapidamente progressiva (GNRP), com crescentes epiteliais à biópsia, não há comprometimento pulmonar. Formas leves de hematúria microscópica, sem manifestações clínicas, são raramente vistas. A síndrome de Goodpasture acomete indivíduos em qual-

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165 11  O rim nas doenças sistêmicas quer idade, com dois picos distintos de prevalência, na segunda e na quinta décadas de vida. Esta síndrome predomina em jovens do sexo masculino, enquanto em mulheres acima de 50 anos a forma GNRP, sem acometimento pulmonar, é mais frequente. SG: glomerulonefrite rapidamente progressiva com evolução para deterioração rápida da função renal.

Patogênese O fator que desencadeia a formação do anticorpo não é conhecido (anti-MBG). O primeiro paciente descrito por Goodpasture era portador de influenza, mas posteriormente essa associação não foi verificada. A doença ocorre, ocasionalmente, em pintores e em pessoas que têm contato com poluentes orgânicos. Os indivíduos HLA DR2 são mais suscetíveis a desenvolver esta doença, porém não existe uma nítida relação com sua ocorrência em grupos familiares.

Quadro clínico Exceto quando há hemorragia pulmonar, sugerindo a síndrome de Goodpasture, o quadro clínico difere de outras formas de GNRP. A oligúria é quase uma constante, com a insuficiência renal instalando-se em poucos dias, com 75% dos pacientes vindo a necessitar de diálise. A anemia do tipo ferropriva é muito comum, provavelmente por causa do sangramento intra-alveolar. O fumo e inalantes hidrocarbonados podem precipitar a hemorragia pulmonar. A queda de função renal habitualmente acompanha esses fenômenos hemorrágicos. A hematúria microscópica, com dimorfismo eritrocitário, é a alteração mais frequente, podendo, raramente, ser a única manifestação da doença. A proteinúria é discreta, sendo incomuns a síndrome nefrótica e a hipertensão. Alguns pacientes com envolvimento pulmonar exclusivo foram descritos, exigindo um diagnóstico diferencial com a hemossiderose pulmonar idiopática. Outras glomerulonefrites, acompanhando doenças sistêmicas, podem cursar com hemorragia pulmonar. Entre elas, o lúpus eritematoso sistêmico (LES) e as vasculites (granulomatose de Wegener, púrpura de Henoch-Schönlein). O diagnóstico diferencial da glomerulonefrite antimembrana basal glomerular (GN anti-MBG), com as vasculites, compreende a detecção de anticorpo antimembrana basal no soro de pacientes com GN anti-MBG e do anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) em pacientes com granulomatose de Wegener e poliangeíte microscópica (P-ANCA).

Alterações patológicas Do ponto de vista anatomopatológico, a imunofluorescência (IF) é o principal indicador do diagnóstico da GN anti-MBG pelo característico padrão linear do depósito de IgG ao longo da parede capilar glomerular. As imunoglobulinas IgA e IgM

são raramente vistas. O mesmo padrão linear de IgG pode ser encontrado na membrana basal tubular. Depósito de C3 ocorre em dois terços dos pacientes, sendo geralmente linear, às vezes descontínuos ou de aspecto granular. Depósitos de fibrina são vistos nos crescentes epiteliais e em alças capilares. Outras patologias podem apresentar o padrão linear à IF, como é o caso de depósito de albumina e IgG no diabetes mellitus e de IgG no LES. A microscopia ótica revela, geralmente, uma glomerulonefrite proliferativa com crescentes epiteliais, sendo habitual os glomérulos estarem no mesmo estágio de lesão. A presença de leucócitos e macrófagos pode ser abundante na luz capilar, e raramente há proliferação de células mesangiais. Edema e infiltrado inflamatório no interstício são vistos com frequência. A microscopia eletrônica mostra ausência de imunodepósitos, alargamento da membrana basal glomerular à custa de substância lucente na lâmina rara interna, presença de fibrina nos capilares e nos crescentes e ruptura de segmentos da membrana basal glomerular e da cápsula de Bowman.

Prognóstico e tratamento O tratamento da glomerulonefrite anti-MBG depende da precocidade do diagnóstico e da gravidade da lesão à biópsia renal. Os casos leves, sem déficit de função renal, podem prescindir de uma terapêutica específica. Diversos autores são unânimes em afirmar que pacientes anúricos com creatinina > 6 mg/dL dificilmente poderão se beneficiar da medicação imunossupressora, dado o caráter de rápida colagenização dos crescentes glomerulares. A plasmaférese é a terapêutica de escolha, especialmente quando ocorrer hemorragia alveolar, e tem a finalidade de remover o autoanticorpo circulante. A troca de plasma diária (4 L/dia) deve ser mantida por um período mínimo de dez dias. Geralmente, em oito semanas de tratamento, o anticorpo torna-se indetectável. A prednisona, como anti-inflamatório, e a ciclofosfamida (2 mg/kg/dia), que tem o efeito de inibir a síntese do anticorpo, devem ser associadas, a fim de se manter a remissão. Na fase inicial do tratamento, poderá ser utilizada a metilprednisolona (MP) endovenosa na dose de 15 a 20 mg/kg/dia, em três dias consecuti-

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166 Nefrologia vos. Após a terceira dose, a corticoterapia deve ser mantida por via oral, com dose inicial de 1 mg/kg/ dia e redução de acordo com a resposta terapêutica.

A hemorragia pulmonar é também um grande limitante da sobrevida. Quando isolada, poderá ser tratada com pulsos endovenosos de MP e plasmaférese. Não há contraindicação ao transplante para pacientes com síndrome de Goodpasture, que evoluem para insuficiência renal crônica terminal, devendo-se tomar o cuidado de não realizá-lo enquanto houver o anticorpo anti-MBG detectado na circulação.

Mieloma múltiplo e doença de cadeias leves Aproximadamente 65% dos pacientes com mieloma múltiplo excretam proteínas de Bence Jones, que são filtradas ao nível glomerular, relacionando-se com a alta incidência de comprometimento tubulointersticial. Proteinúria ocorre em 90% dos pacientes, e 55% têm insuficiência renal ao diagnóstico. A causa do envolvimento renal é multifatorial e inclui hipercalcemia (esta é a causa mais comum de IRA) e hipercalciúria, hiperuricemia, infecção do trato urinário, infiltração renal por células plasmáticas e o chamado rim do mieloma (principal causa de IRC). Em 15% dos casos, a porção variável da cadeia leve monoclonal, ou esta, mais a cadeia leve intacta, deposita-se no rim como substância amiloide, constituindo a amiloidose AL. Nesses depósitos, as proteínas adquirem conformação betapregueada, característica das fibrilas amiloides, com predomínio da cadeia leve lambda, sendo indistinguível da amiloidose primária e recebendo a denominação de proteína amiloide AL. O quadro clínico é de Síndrome Nefrótica. Outro tipo de comprometimento glomerular é a doença de deposição de cadeias leves, na qual o depósito glomerular é de cadeia leve intacta e, às vezes, de cadeia pesada. Esses depósitos são mais frequentemente de cadeias leves kapa e não assumem a estrutura fibrilar do amiloide AL, não apresentando, também, a birrefringência verde-maçã quando corado com vermelho-congo e visto por luz polarizada. Em uma das séries estudadas, a doença de deposição de cadeias leves ocorreu em 13% dos pacientes com mieloma múltiplo. As cadeias leves depositam-se na membrana basal glomerular e tubular, assim como no mesângio, resultando em lesão glomerular e tubular. A lesão glomerular mais característica é a glomeruloesclerose nodular, em 50% dos pacientes, muito semelhante a da nefropatia diabética.

Causas de insuficiência renal crônica no mieloma múltiplo (Atenção) Rim do mieloma: lesão renal pelas cadeias leves da imunoglobulina (mais comum) Nefrocalcinose – lesão renal por depósito de fosfato de cálcio Síndrome Nefrótica Amiloidose primária (AL)* Crioglobulinemia tipo I – menos comum Causas de insuficiência renal aguda no mieloma múltiplo Hipercalcemia: mais comum Desidratação – azotemia pré-renal Nefropatia por contraste iodado Tabela 11.16  (*) Principal causa de síndrome nefrótica no MM.

Macroglobulinemia de Waldenström Nesta condição clínica, a proteína monoclonal patogênica é a IgM, sendo o quadro clínico diferente do mieloma múltiplo e relacionado à hiperviscosidade sanguínea, com fadiga, perda de peso, sangramentos e distúrbios visuais, em indivíduos com idade média de 67 anos. Seu curso é lento e progres-

sivo, com anemia, hepatomegalia e linfoadenopatia.

O envolvimento renal é raro, sendo o achado mais frequente o depósito de material eosinofílico nas luzes capilares, que, à imunofluorescência, mostra-se ser a IgM. Alguns autores observam que 10 a

20% dos pacientes apresentam proteinúria de Bence Jones, sendo a quantidade excretada em geral menor do que 500 mg/dia. Há pacientes ocasionais com glomeruloesclerose nodular, semelhante a da doença de deposição de cadeias leves, além de glomerulonefrite mesangiocapilar e doença de lesões mínimas, que se acompanha de síndrome nefrótica.

Crioglobulinemia (tipo II ou mista essencial) O envolvimento renal na crioglobulinemia mista ocorre em 20 a 25% dos pacientes, em geral após vários anos do início das manifestações extrarrenais. O quadro clínico mais frequente é o de síndrome nefrótica e nefrítica (glomerulonefrite membranoproliferativa), com proteinúria moderada, hipertensão grave e disfunção renal. Em outras situações, entretanto, a evolução pode ser mais protraída, caracterizada por proteinúria persistente, hipertensão e hematúria. O diagnóstico laboratorial

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167 11  O rim nas doenças sistêmicas pode ser firmado pela demonstração de crioglobulinas circulantes do tipo IgM monoclonal-IgG policlonal, pela presença de fator reumatoide em altos títulos (IgM) e por hipocomplementemia, à custa de consumo dos componentes iniciais da via clássica (C4↓).

Amiloide A: proteína amiloide A (AA); a proteína precursora é a SAA. Acompanha as formas de amiloidose secundária (doenças infecciosas e inflamatórias crônicas, neoplasias, febre familiar do Mediterrâneo e síndrome de Muckle-Wells).

O vírus da hepatite C tem sido considerado o principal fator etiológico da vasculite associada à crioglobulinemia mista, antigamente rotulada de essencial. Em pacientes com a doença ativa, tem sido relatada positividade de até 80% nos testes de replicação para vírus C, sendo igualmente detectados antígenos e anticorpos específicos no crioprecipitado.

Outras proteínas: transtiretina, gelsolina, apolipoproteína, beta-2-microglobulina, calcitonina, polipeptídio amiloide da ilhota de Langerhans, fator atrial natriurético, proteína Scrapie, cistatina C. Todas essas proteínas acompanham diversas patologias de menor frequência.

As lesões glomerulares da crioglobulinemia podem ter vários padrões de glomerulonefrites: aguda e exsudativa, membranoproliferativa focal e segmentar, sendo frequente o encontro de depósitos eosinofílicos sob a forma de trombos na luz dos capilares glomerulares e que correspondem a crioglobulinas precipitadas. Tendo em vista a frequente

ocorrência de remissões espontâneas do envolvimento clínico renal, torna-se difícil avaliar a eficácia de esquemas terapêuticos a longo prazo. Corticosteroides, agentes alquilantes e plasmaférese têm sido indicados nos surtos de reagudização, com resultados aparentemente favoráveis no que se refere à reversão da insuficiência renal provocada pela deposição maciça de agregados de IgGIgM em capilares glomerulares.

Crioglobulinemia mista essencial tipo II tem como principal agente etiológico o vírus C de hepatite (75-80%).

Amiloidose Trata-se de uma doença caracterizada pela deposição de substância amorfa, com aspecto fibrilar betapregueado à microscopia eletrônica, corando-se com vermelho-congo e tioflavina-T, resultando cor verde-maçã sob luz polarizada com o primeiro corante e intensa fluorescência verde-amarelada com o segundo. A amiloidogênese é vista como um proces-

so em que determinado estímulo provoca alteração na concentração e/ou na estrutura de uma proteína sérica que, após clivagem proteolítica anômala, passa por uma sequência de polimerização e deposição tecidual. Dentre as proteínas envolvidas na gênese do depósito amiloide podemos incluir:

Cadeia leve de imunoglobulina: proteína amiloide AL: a proteína precursora é uma cadeia leve de imunoglobulina, geralmente do tipo lambda. Podem ocorrer discrasias de células plasmáticas (especialmente mieloma múltiplo e amiloidose sistêmica primária).

No rim, os depósitos geralmente se iniciam no mesângio, de forma segmentar e focal, com os seguintes padrões de deposição: nodular mesangial, mesangiocapilar, perimembranoso e hilar.

Amiloidose primária (AL) É assim considerada quando não se associa a outra doença sistêmica. A proteinúria está presente em 80% dos casos, em nível nefrótico em 30% destes. O tamanho dos rins geralmente apresenta-se aumentado.

O diagnóstico de amiloidose primária deve ser considerado em paciente com síndrome nefrótica ou insuficiência renal de causa não definida, na faixa etária acima dos quarenta anos, pesquisando-se a presença de proteína monoclonal em soro e urina por imunoeletroforese. Praticamente dois terços dos pacientes com amiloidose primária apresentam proteína monoclonal no soro, e em 20% dos casos se detectam proteínas de Bence Jones. Cadeias leves do tipo lambda (65%) são mais comuns que as do tipo kapa (35%), e o inverso ocorre no mieloma múltiplo. Os depósitos teciduais podem ser revelados por reatividade, com anticorpos anticadeia leve, sendo negativos quando se utiliza anticorpo antiproteína amiloide A (AA). Além do rim, há depósitos no coração, na língua, nos nervos periféricos, nos vasos sanguíneos e no trato digestivo. A doença que mais se associa à amiloidose primária é mieloma múltiplo.

Amiloidose secundária (AA) Geralmente está associada a estímulo inflamatório crônico, acompanhando doenças infecciosas, inflamatórias e neoplasias. O envolvimento renal sob a forma de síndrome nefrótica é a apresentação mais comum.

A proteína AA tem sido demonstrada como um polipeptídeo de 76 aminoácidos e peso molecular de 8.500 dáltons, que possui um componente sérico antigenicamente relacionado à proteína sérica amiloide

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168 Nefrologia A (SAA); esta se apresenta de forma solúvel, ligada à lipoproteína HDL 3, com peso molecular de 12.500 daltons, exibindo terminal NH2 homólogo à proteína AA. Esta proteína é sintetizada no fígado, elevando-se o seu nível cerca de mil vezes o valor basal em resposta a determinado estímulo inflamatório agudo ou necrose tecidual. A regulação da síntese de SAA é altamente complexa, estando envolvidos, sob certas circunstâncias, interleucina 6, interleucina 1, fator de necrose tumoral e corticosteroides em várias combinações. Na artrite reumatoide, níveis séricos de SAA estão igualmente aumentados em pacientes com e sem amiloidose, indicando que algum fator adicional necessita intervir para sua deposição. Uma possibilidade explicativa seria a diferença na degradação de SAA para AA. O tipo e o tamanho dos fragmentos podem determinar o potencial amiloidogênico e o local de deposição.

Tem-se sugerido que, neste grupo, podem ser consideradas duas patologias distintas: a glomerulonefrite fibrilar propriamente dita e a glomerulopatia imunotactoide. Na glomerulonefrite fibrilar (65% dos casos), a imunofluorescência em geral é positiva para IgG, C3 e cadeias leves. Os depósitos podem ser tão intensos, que chegam a simular um quadro de glomerulonefrite antimembrana basal glomerular. Em alguns casos, não se detectam imunoglobulinas nos depósitos, o que sugere um caráter heterogêneo para esta doença. Na glomerulopatia imunotactoide as fibrilas são ainda maiores (30 a 40 nm de diâmetro), com aspecto de microtúbulos dispostos de modo ordenado. Em algumas casuísticas, a glomerulopatia imunotactoide tem sido associada a patologias linfoproliferativas e/ ou a paraproteínas circulantes, porém os mecanismos envolvidos nessas associações são desconhecidos. Glomerulopatias Fibrilares

Amiloidose renal hereditária É uma doença rara, em que a deposição de amiloide é preferencial no rim. Os pacientes pare-

cem ter uma variante de cadeia semelhante a do fibrinogênio. Não se conhece o mecanismo pelo qual o depósito é preferencial em tecido renal. Há, ainda, uma outra forma de amiloidose renal hereditária, em que a proteína é uma variante da apolipoproteína A, a principal apolipoproteína da HDL. Nessa forma, o depósito é preferencialmente peritubular e intersticial, poupando-se os glomérulos, não havendo, habitualmente, proteinúria patológica.

Vermelho-Congo Positivo Amiloide

As glomerulonefrites fibrilares se caracterizam histologicamente pela deposição de fibrilas que não se coram, como o depósito amiloide (vermelho-congo negativas), essas lesões têm sido relatadas com frequência crescente nas biópsias renais, especialmente quando se realiza de rotina o estudo dos fragmentos por microscopia eletrônica, já que essas estruturas dificilmente são diagnosticadas apenas pela microscopia ótica. Nesse tipo de exame, os achados são inespecíficos e podem simular qualquer forma de glomerulopatia primária (proliferativa mesangial, nodular, membranoproliferativa ou membranosa). Os pacientes se apresentam com proteinúria geralmente em nível nefrótico, hematúria microscópica, hipertensão e insuficiência renal. A alteração típica desta entidade é vista à microscopia eletrônica, que mostra fibrilas no mesângio e na parede capilar glomerular, claramente distintas da amiloidose, uma vez que são maiores (20 a 40 nm de diâmetro) e não se coram com o vermelho-congo ou com a tioflavina-T.

Não amiloide

Derivado de imunoglobulinas Glomerulopatia imunotactoide (glomerulonefrite fibrilar)

Outros Diabetes mellitus nefropatia do colágeno, sindrome unha-patela (?)

Lúpus eritematoso sistêmico

Disproteinemias

Crioglobulinemia

Glomerulonefrites fibrilares

Vermelho-Congo Negativo

Mieloma múltiplo, LLC, Essencial

Gamopatia Monoclonal Benigna, mieloma múltiplo, LLC, doença da deposição de cadeias leves

Figura 11.3  Algoritmo para avaliação de pacientes com acúmulo anormal de estruturas fibrilares glomerulares.

Nefropatia da anemia falciforme Pacientes homozigotos para a anemia falciforme (SS) e, em menor grau, os portadores do traço falcêmico (AS) podem apresentar comprometimento renal como parte do espectro de manifestações associadas a essa condição. A doença falcêmica renal também pode acometer pacientes com hemoglobina S e uma outra hemoglobina anormal (duplo heterozigoto). Os mais encontrados são pacientes com doença SC, cujas hemácias possuem 50% de hemoglobina S. Em pacientes com

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169 11  O rim nas doenças sistêmicas doença SC, a tendência ao afoiçamento e à gravidade do acometimento renal é intermediária entre os pacientes homozigotos (SS) e heterozigotos (AS).

Etiopatogenia Tal como ocorre em outros territórios vasculares, a morbidade da nefropatia da anemia falciforme decorre de fenômenos trombóticos na microcirculação. A região mais acometida é a medula renal, onde a tendência trombótica é agravada pela baixa tensão de oxigênio e pelo aumento da osmolaridade. Nos vasa recta medulares, a desidratação das hemácias provoca aumento na concentração relativa da hemoglobina S, facilita o afoiçamento, obstrui a microcirculação e acaba por resultar em trombose.

A doença microvascular renal da anemia falciforme pode causar esclerose ou necrose papilar. Pacientes homozigotos apresentam complicações a partir da segunda década de vida. Nos heterozigotos (SC e AS), as anormalidades desenvolvem-se mais tardiamente. Como esperado, estudos microrradiográficos confirmam que os indivíduos homozigotos (SS) apresentam maior comprometimento da vasculatura renal do que os portadores da doença SC e do traço falcêmico (AS). Os vasa recta radiados que convergem para a medula renal são praticamente ausentes nos doentes com anemia falciforme (SS) e bastante pobres nos pacientes heterozigotos (SC e AS).

Manifestações clínicas A trombose dos vasa recta provoca alterações na função tubular, notadamente defeitos de concentração da urina (isostenúria) e acidose renal do tipo distal. Graus variáveis de comprometimento da capaci-

dade de concentração urinária são detectados virtualmente em todos os portadores da hemoglobina S.

A maioria dos pacientes apresenta apenas poliúria e nictúria, mas alguns homozigotos chegam a desenvolver diabetes insipidus nefrogênico. Curiosamente, na anemia falciforme, a função do túbulo proximal é supranormal. Esses indivíduos apresentam aumento na absorção de fosfato (provocando hiperfosfatemia leve) e aumento na secreção de creatinina (elevando a concentração da creatinina urinária e alterando o cálculo da sua taxa de depuração). A causa do fenômeno é desconhecida. A alteração clínica mais comum em pacientes com hemoglobina S é a hematúria indolor, frequentemente macroscópica. Nem todos os pacientes apresentam necrose de papila. Aparentemente, a intensa congestão nos capilares peritubulares pode levar ao extravasamento de sangue para os túbulos. Quando ocorre, a necrose da papila costu-

ma ser unilateral e assintomática. Cerca de um terço dos pacientes com doença falcêmica desenvolve proteinúria na faixa de 1 a 2 g/dia. A proteinúria em níveis nefróticos (maior que 3 g/dia) é mais rara. O substrato patológico em muitos desses casos é a glomeruloesclerose segmentar focal, possivelmente associada ao hiperfluxo glomerular.

Uma minoria apresenta glomerulopatia com depósitos imunes granulares. As lesões histopatológicas mais frequentes são a nefropatia membranosa e a glomerulonefrite membranoproliferativa. Esta última parece ser uma glomerulonefrite mediada por imunocomplexos. Os antígenos implicados seriam proteínas autólogas, oriundas do epitélio tubular renal, possivelmente liberadas em consequência da isquemia medular que caracteriza a doença. Um relato recente descreve a ocorrência de glomerulopatia imunotactoide. Mesmo após a necrose de uma ou mais papilas renais, a filtração glomerular tende a permanecer na faixa normal. No entanto, com o passar dos anos, pode ocorrer progressão da doença renal. Além da doença da microcirculação medular, a deterioração progressiva pode ser causada pela superposição da glomeruloesclerose por hiperfluxo ou por uma glomerulopatia de origem imunológica. O carcinoma medular renal, neoplasia maligna raríssima, é quase exclusivo de pacientes SS ou AS. Glomeruloesclerose segmentar focal é a mais frequente síndrome nefrótica em pacientes com anemia falciforme. Carcinoma medular renal é uma condição muito rara, mas que, quando diagnosticada, é quase que exclusivamente documentada em pacientes falcêmicos.

Tratamento Pacientes com hematúria devem ser tratados inicialmente com repouso, transfusões para diminuir a concentração de hemoglobina S, hemodiluição com soluções hipotônicas e alcalinização urinária. A urina contém uroquinase, uma enzima fibrinolítica que dissolve os coágulos urinários e perpetua o sangramento. No passado, os casos refratários acabavam resultando em nefrectomia. Atualmente empregam-se substâncias antifibrinolíticas, como o ácido épsilon-aminocaproico (EACA). Por ser excretado em altas concentrações na urina, o EACA antagoniza a ação fibrinolítica da uroquinase. Raramente pacientes que recebem EACA podem desenvolver tromboses sistêmicas. Uma complicação comum é a obstrução do trato urinário por coágulos. Não existe tratamento efetivo para as glomerulopatias por imunocomplexo. Como os bloqueadores da enzima conversora da angiotensina podem ajudar

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170 Nefrologia a controlar a hiperfiltração glomerular, é possível que eles sejam úteis na prevenção da progressão para a insuficiência renal. A insuficiência renal terminal ocorre em cerca de 5% dos falcêmicos, sendo uma importante causa de morte em pacientes com doença de longa duração. O prognóstico de pacientes falcêmicos tra-

tados com diálise aparenta ser semelhante ao de pacientes não diabéticos. No curto prazo, a sobrevida após transplante é semelhante a de outros pacientes com insuficiência renal, mas decai ao longo dos anos. Apesar disso, o transplante propicia resultados superiores ao tratamento com diálise.

Neoplasias A glomerulonefrite, associada ou não à síndrome nefrótica, ocorre em alguns pacientes com doenças malignas, especialmente tumores sólidos dos tratos respiratório, gastrointestinal e urogenital e, também, em algumas doenças linfoproliferativas. As neoplasias que com frequência se acompanham de glomerulopatias, sobretudo a glomerulonefrite membranosa, são os carcinomas broncogênicos, de cólon e reto, rim, mama e estômago. De modo geral, a síndrome nefrótica se manifesta ao mesmo tempo da instalação da neoplasia, mas, em algumas ocasiões, ela ocorre precedendo o diagnóstico clínico do tumor, especialmente nos linfomas. A lesão glomerular subjacente é a glomerulonefrite membranosa, em mais de 60% dos pacientes com tumores sólidos. Em contrapartida, a lesão renal mais comumente associada à doença de Hodgkin é a nefropatia de lesões mínimas, sendo a glomerulonefrite membranoproliferativa a forma mais encontrada na leucemia linfocítica crônica. Glomerulopatia membranosa é a lesão glomerular dos carcinomas ocultos. Glomerulopatia de lesão mínima é a lesão glomerular dos linfomas. Glomerulopatia membranoproliferativa é a lesão glomerular da LLC.

O tratamento das glomerulopatias associadas às neoplasias depende do tipo e do estadiamento da condição maligna. A remissão da proteinúria pode ocorrer em pacientes com neoplasias sólidas tratadas cirurgicamente, porém não se pode afastar nestes casos uma remissão espontânea da própria doença glomerular, fato bastante conhecido na evolução da glomerulonefrite membranosa. Em relação à doença de Hodgkin com síndrome nefrótica, o tratamento radioterápico e/ ou quimioterápico guarda uma boa correlação de ordem temporal com a remissão da proteinúria. A recidiva da síndrome nefrótica, nestes casos, pode ser entendida como um parâmetro precoce de recidiva da neoplasia.

Glomerulopatias em doenças hepáticas Infecção por vírus C Quando são considerados os grupos de risco para infecção por vírus C (homossexuais, 4 a 8%, e consumidores de droga injetável, 60%), também são estes os grupos com maior prevalência da doença glomerular. Essa pode ocorrer mesmo sem doença hepática evidente, assim como algumas casuísticas têm mostrado: em pacientes com glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP) e vírus C positivo, apenas 20% apresentam manifestações clínicas de hepatite, mas 60 a 70% mostram transaminases elevadas. Na história natural da infecção pelos vírus C, após dez a quinze anos de replicação viral persistente, mais de 50% dos indivíduos infectados evoluem com quadro de hepatite crônica ativa e, ocasionalmente, podem instalar-se manifestações de autoimunidade e de outras formas de hipersensibilidade humoral, tais como artrite, síndrome sicca e crioglobulinemia mista tipo II, que se manifesta por vasculite cutânea e glomerulonefrite membranoproliferativa. O achado de crioglobulinemia também traz repercussões laboratoriais importantes, tais como a presença de fator reumatoide e hipocomplementemia à custa de consumo de fatores da via clássica (particularmente C4). As manifestações renais predominantes são de síndrome nefrótica com insuficiência renal leve a moderada. O achado histológico mais frequente é da glomerulonefrite membranoproliferativa tipo I, que se distingue da forma idiopática pela representatividade maior de imunoglobulinas IgG, IgM e C3. Quando ocorre crioglobulinemia, a forma histológica pode ser a da GNMP crioglobulinêmica, que se caracteriza pela presença de pseudotrombos hialinos nos capilares glomerulares e pela infiltração de monócitos. Outras formas menos frequentes de nefropatia por vírus C são a glomerulonefrite membranosa e a glomerulonefrite proliferativa mesangial. A patogênese da lesão é explicada pela deposição renal de imunocomplexos, contendo antígeno HCV-anticorpo anti-HCV e fator reumatoide, nos casos de crioglobulinemia. É possível, portanto, nesta última situação, a detecção de HCV-RNA no crioprecipitado. O tratamento proposto é ainda muito discutível, porque seus resultados não são constantes. Esquemas com corticosteroides e/ou imunossupressores não são eficazes na doença renal e podem, por outro lado, agravar a viremia e a hepatopatia. O esquema terapêutico para a glomerulopatia associada ao HCV tem por objetivo negativar a carga viral, para reduzir a produção de crioglobulinas e, portanto, reduzir a formação dos crioprecipitados nefritogênicos.

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171 11  O rim nas doenças sistêmicas Para tanto, ultimamente tem sido utilizada a associação de interferon-alfa com ribavirina, que resulta em negativação da carga viral em 60 a 70% dos pacientes infectados pelo HCV. As maiores limitações desta associação se referem aos seus efeitos colaterais e à elevada taxa de recidiva quando as drogas são suspensas.

Infecção por vírus B A glomerulonefrite associada ao vírus da hepatite B é uma entidade bem reconhecida. Em áreas endêmicas, 20 a 50% das crianças com síndrome nefrótica mostram sorologia positiva para vírus B. Essa positividade é ainda maior, ao redor de 85%, quando são destacados os casos de glomerulonefrite membranosa (GNM) com comprovação histológica. De modo geral, a população pediátrica que apresenta esta lesão glomerular evolui de forma benigna, com remissão em 64% dos pacientes em quatro anos e mais de 80% em dez anos. Tal remissão ocorre habitualmente no prazo de seis meses do clareamento do HBeAg (viragem espontânea). Esta constatação sugere uma forte associação causal entre o vírus e a doença renal mediada por imunocomplexos, já que uma vez depurado o agente viral, a doença renal pode remitir. Em adultos, a evolução costuma ser arrastada, não havendo dados precisos sobre remissão, mesmo após a viragem sorológica. Manifestações extra-hepáticas e extrarrenais, como a artrite e a crioglobulinemia, são descritas, porém pouco frequentes. A doença hepática, com ou sem hipertensão portal, habitualmente é sintomática, porém lesões glomerulares já foram descritas sem nenhuma evidência de lesão hepatocelular.

A manifestação clínica da nefropatia do vírus B é a proteinúria, com ou sem síndrome nefrótica. Várias séries da literatura associam a hepatite crônica ativa do vírus B com a glomerulonefrite membranosa e, raramente, com a forma membranoproliferativa. Os achados de imunofluorescência mostram presença de IgG, IgM, C3 e, ocasionalmente, IgA. O tratamento da nefropatia por vírus B é controverso. Em crianças, como o índice de remissão é alto, o tratamento é sintomático. Nos adultos, os corticoides e imunossupressores estariam contraindicados, pela possibilidade de predisporem a maior replicação viral. Aventou-se recentemente o uso de interferon-alfa e/ ou lamivudina, porém os dados disponíveis não são consistentes. Alguns casos esporádicos tratados com esquemas antivirais apontam para possível melhora da nefropatia, porém não se pode descartar, nesta situação, a possibilidade de ocorrerem remissões espontâneas da proteinúria.

Cirrose hepática O depósito glomerular de IgA é um achado comum em cirrose hepática pós-alcoólica e ocorre em até um terço dos pacientes. Aventa-se que a predisposição para a deposição de IgA renal seja secundária a uma remoção deficiente dos complexos contendo IgA pelas células de Kupffer hepáticas.

A observação de que a IgA pode estar também depositada na pele e nos sinusoides hepáticos é compatível com esta hipótese. Apesar da alta frequência dos depósitos de IgA glomerular, a maioria dos adultos não demonstra sinais de doença glomerular, sendo a suspeita clínica feita pelo achado de hematúria e proteinúria discreta. Não há síndrome nefrótica e nem hematúria macroscópica. O acometimento histológico mais frequente ocorre sob forma de lesão proliferativa mesangial, com depósitos de IgA. A dissociação entre os achados e as manifestações clínicas pode estar relacionada à falta de depósito concomitante de IgG, minimizando, portanto, a ativação do complemento e a inflamação local. Outro acometimento renal na cirrose alcoólica, menos frequente, é o da glomeruloesclerose cirrótica, em que ocorre uma lesão esclerótica difusa glomerular, obrigando a um diagnóstico diferencial com outras formas de glomeruloesclerose (diabete, amiloide, nefropatia da cadeia leve etc.). Esta lesão glomerular é geralmente silenciosa, manifestando-se apenas por proteinúria leve. A imunofluorescência frequentemente revela IgA em mesângio, além de IgM e IgG. Outras glomerulopatias podem estar incidentalmente presentes em pacientes com cirrose alcoólica. Já foram descritas glomerulonefrite membranoproliferativa, glomerulonefrite membranosa e glomerulonefrites focais. Casuísticas em crianças mostram uma associação entre glomerulopatias e doença hepática avançada secundária à deficiência de α-1-antitripsina ou atresia biliar. Pacientes acometidos por cirroses de outras etiologias, como as pós-hepatites, poderão desenvolver glomerulopatias secundárias aos vírus B e C, como já foi abordado. Na apostila de Hepatologia descrevemos as manifestações extra-hepáticas dos vírus das hepatites, valorize esse tópico.

Doenças infecciosas Glomerulonefrite da endocardite bacteriana A endocardite bacteriana pode comprometer o rim de várias maneiras: 1) Ocorrendo septicemia, pode instalar-se insuficiência renal aguda, abscessos ou infartos renais por embolia séptica;

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172 Nefrologia 2) Pode ocorrer glomerulonefrite por deposição

de vários imunocomplexos; 3) Pode ocorrer nefrite intersticial aguda por causa da ação de medicamentos.

A glomerulonefrite da endocardite, bem como a nefrite do shunt atrioventricular, segue o padrão das síndromes nefríticas pós-infecciosas, cujo quadro clínico é caracterizado por hematúria microscópica, edema, grau variável de hipertensão arterial e de redução da função renal, tendo um curso evolutivo para a cura, na maioria dos casos. O exame de urina mostra hematúria com hemácias dismórficas e cilindros hemáticos, leucocitúria e proteinúria. A síndrome nefrótica não é comum na endocardite e ocorre em até 30% dos pacientes com nefrite do shunt. A natureza imunológica é bem determinada: em 90% dos pacientes encontram-se imunocomplexos circulantes, a crioglobulinemia é achado frequente e ocorre hipocomplementemia de CH50, C3 e C4, indicando ativação pela via clássica. Os principais agentes infecciosos são o Staphylococcus viridans, na endocardite subaguda; o Staphylococcus aureus, na endocardite aguda; o Staphylococcus epidermidis, na nefrite do shunt. A prevalência da glomerulonefrite por endocardite bacteriana vem diminuindo em função do uso adequado e precoce de antibióticos. A lesão histológica habitual é do padrão proliferativo, que pode ser focal ou difuso. Este último

está comumente associado à etiologia estafilocócica. Quando presentes, os crescentes não atingem mais que 50% dos glomérulos. A imunofluorescência é sempre difusa, positiva para a IgG, IgM e C3. A microscopia eletrônica revela a presença dos imunodepósitos subepiteliais (humps) e menores depósitos em posição subendotelial ou mesangial. Não há necessidade de tratamento específico para a glomerulonefrite da endocardite. A maioria dos casos reverte com o tratamento antimicrobiano, ocorrendo, entretanto, perda da função renal de modo irreversível, se a terapêutica antibiótica for instituída muito tardiamente, ou se próteses valvares infectadas não forem prontamente removidas.

Nefropatia do HIV A nefrotoxicidade da terapêutica e as alterações hemodinâmicas e eletrolíticas, muito frequentes nos pacientes com AIDS, foram responsáveis pelas primeiras descrições de insuficiência renal aguda que, com frequência, era irreversível. A nefropatia associada ao vírus HIV é a forma mais comum de doença renal crônica em pacientes HIV-positivos e vem se constituindo em um grande problema epidemiológico. Este tipo de lesão glome-

rular se refere a uma forma especial de glomeruloesclerose segmentar e focal, geralmente associada à síndrome nefrótica e perda progressiva da função renal (forma colapsante). Glomerulonefrites proliferativas por imunocomplexos também podem estar asssociadas ao HIV. Glomeruloesclerose segmentar focal colapsante (forma maligna de evolução) é a síndrome nefrótica mais comum em pacientes com AIDS.

Alterações patológicas As lesões renais associadas ao HIV habitualmente podem ser descritas dentro dos seguintes tipos: 1) Glomeruloesclerose focal, forma colapsante; 2) Glomerulonefrites proliferativas, mediadas

por imunocomplexos; 3) Nefropatia tubulointersticial, mais frequentemente relacionada ao envolvimento glomerular. O termo nefropatia associada ao HIV é reservado para a típica forma da glomeruloesclerose focal colapsante, com oclusão da luz capilar, segmentar ou global, cujos achados mais comuns são os seguintes (Atenção!): 1) Acentuada hipertrofia das células epiteliais e endoteliais do glomérulo, com formação de coroa podocitária; 2) Dilatação microcística dos túbulos, com presença de cilindros proteicos, degeneração celular e necrose; 3) Alterações tubulointersticiais severas, sem relação com o grau de glomeruloesclerose, com infiltrado de linfócitos CD8, monócitos e linfócitos B. À imunofluorescência, observa-se deposição segmentar de IgM e C3 em mesângio e alça capilar. Imunoglobulinas e albumina podem ser vistas nos cilindros, no espaço de Bowman e nos vacúolos citoplasmáticos das células epiteliais.

A microscopia eletrônica traz, como colaboração ao diagnóstico, a presença de inclusões tubulorreticulares no interior de células endoteliais, que, embora não específicas, são muito sugestivas de infecção viral. Depósitos eletrondensos são infrequentes e, quando presentes, são pequenos e esparsos. Notam-se os vacúolos citoplasmáticos nas células epiteliais com numerosos lisossomos, fusão de pedicelas e espessamento de membrana basal glomerular à custa de neoformação de membrana, ocupando o espaço subepitelial. Nos túbulos, os precipitados são pouco densos, homogêneos, finamente granulares, contrastando com os verdadeiros cilindros, que contêm a proteína de Tamm-Horsfall.

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173 11  O rim nas doenças sistêmicas As alterações anatomopatológicas descritas, quando isoladas, têm pouco significado diagnóstico, mas a combinação de glomeruloesclerose segmentar e focal colapsante, com alterações importantes nas células epiteliais glomerulares, dilatação tubular, infiltrado intersticial com fibrose e presença de estruturas tubulorreticulares intracitoplasmáticas, sugerem fortemente o diagnóstico da nefropatia do HIV. A ocorrência de glomerulonefrites por imunocomplexos, durante a infecção por HIV, é variável, de acordo com as regiões e a população acometida, podendo ocorrer em até 35% dos pacientes com HIV positivo e doença renal. Dentre essas lesões devem ser destacadas a glomerulonefrite membranoproliferativa, a glomerulonefrite membranosa e a nefropatia da IgA. Não existe nenhuma comprovação que vincule diretamente esses tipos histológicos à infecção pelo HIV. Deve ser destacado que pacientes com infecção por HIV são muito suscetíveis a infecções virais, bacterianas e parasitárias e que poderiam desencadear reações de hipersensibilidade com formação de imunocomplexos solúveis e consequente fixação nos glomérulos.

Patogênese A lesão histológica renal mais frequente na infecção pelo HIV é a glomeruloesclerose segmentar e focal. Como se sabe, esta lesão ocorre associada a muitas outras situações clínicas e em nenhuma delas a etiopatogenia está esclarecida. Com o grande acúmulo de conhecimentos adquiridos sobre os efeitos das infecções virais nos tecidos, podemos admitir atualmente que a nefropatia do HIV decorre de uma desregulação na interação entre vírus e hospedeiro, com algumas consequências já identificadas: 1) O HIV pode infectar diretamente as células mesangiais e epiteliais, exercendo efeito citopático e estimulando a expressão de citocinas e fatores de crescimento, propiciando a produção de matriz e a esclerose mesangial; 2) A infecção pelo HIV pode alterar a regulação do ciclo celular com intensificação da apoptose, desdiferenciação e alterações da polaridade celular, o que poderia explicar a dilatação tubular microcística característica desta nefropatia.

Quadro clínico O quadro clínico do paciente com nefropatia do HIV (HIVAN) é semelhante, seja ele portador da forma clássica de glomeruloesclerose ou das formas proliferativas. O paciente apresenta-se, comumente, já com déficit da função renal e com síndrome nefrótica instalada. O edema pode ser insidioso ou abrupto, mas sua presença não é constante. Casos com hematúria microscópica e proteinúria não nefrótica, com

ou sem insuficiência renal, são ocasionais, em geral, não há hipertensão arterial, ainda que a progressão para uremia ocorra inevitavelmente. Os níveis séricos do complemento e de suas frações estão normais, e as imunoglobulinas podem estar aumentadas, com padrão policlonal. A HIVAN é

normalmente uma complicação tardia da infecção pelo HIV, sendo isso evidenciado pela diminuição dos linfócitos CD4 circulantes ou por uma história de infecção oportunista prévia. A imagem por ultrassonografia não é específica, mostrando rins hiperecogênicos no estado nefrótico. As dimensões renais podem permanecer aumentadas, mesmo na fase de insuficiência renal crônica.

Tratamento O tratamento da nefropatia associada ao HIV está exclusivamente baseado na terapêutica múltipla antirretroviral, que teve grandes progressos na última década. No passado, foram relatadas algumas tentativas de remissão da proteinúria com corticosteroides, inibidores da enzima conversora de angiotensina, ciclosporina etc., porém todas falharam e não mudaram a sobrevida renal. A negativação da carga viral, propiciada pelas drogas combinadas, mudou inteiramente a história natural da HIVAN, a ponto de ser muito raro nos dias atuais o encontro de pacientes com proteinúrias elevadíssimas e rápida evolução para a insuficiência renal. Pacientes com nefropatia tratados tardiamente, em geral, têm remissão parcial da proteinúria e, devido às lesões esclerosantes mesangiais já instaladas, podem evoluir de modo lento para a insuficiência renal crônica, em tudo semelhante a outros pacientes com esta síndrome. Nestas circunstâncias, será necessário o tratamento de suporte e, eventualmente, o posterior encaminhamento para a terapêutica dialítica e o transplante renal.

Nefropatia da Esquistossomose Dentre as cepas de esquistossomo patogênicas para o homem, três delas têm sido mais frequentemente referidas, em diferentes regiões: o Schistosoma japonicum, na Ásia, que pode causar doença gastrointestinal e acometer o sistema nervoso central; o Schistosoma haematobium, na África, que afeta o trato urinário inferior, e o Schistosoma mansoni, na América do Sul. A região Nordeste do Brasil é zona endêmica de esquistossomose mansônica, mas focos vêm sendo descritos em outras regiões do país. Os primeiros casos de nefropatia secundária à esquistossomose foram referidos no Brasil, na década de 1960, por pesquisadores da Bahia, que descreveram as manifestações clínicas, laboratoriais e histológicas.

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174 Nefrologia Alterações patológicas e patogênese Cinco tipos de lesão glomerular são mais comumente descritos na nefropatia da esquistossomose: Classe I: lesão glomerular incipiente: associada à hematúria microscópica, microalbuminúria e, eventualmente, proteinúria subnefrótica. Classe II: glomerulonefrite exsudativa: proteinúria franca e síndrome nefrótica. Este tipo de lesão é frequentemente associada à salmonelose septicêmica prolongada (esquistossomose com salmonelose). Classe III: glomerulonefrite membranoproliferativa tipo I: é a lesão mais frequente. Manifesta-se por síndrome nefrótica, hematúria microscópica, hipertensão arterial e lenta evolução para IRC. Classe IV: glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF): apresenta as mesmas manifestações clínicas e repercussão funcional observadas na classe III. Classe V: amiloidose secundária (AA): o quadro clínico é marcado por síndrome nefrótica, rins aumentados de tamanho e evolução inexorável para IRC. Tabela 11.17

À microscopia ótica, todas as lesões têm o mesmo padrão das formas idiopáticas. A GNMP é a lesão renal mais comumente descrita, sobretudo no estágio hepatoesplênico da doença. A glomerulonefrite mesangial é mais comum na fase hepatointestinal, podendo ser encontrada em indivíduos assintomáticos. A GESF é considerada por alguns autores como a segunda forma mais frequente da nefropatia esquistossomótica, tendo sido também descrita em modelos experimentais. A imunofluorescência (IF) revela, com frequência, depósitos de IgM e C3 no mesângio, nos três tipos de lesão glomerular anteriormente descritos, o que coincide com o padrão da forma idiopática da GESF, mas não coincide com o padrão das formas idiopáticas da glomerulonefrite mesangial e da GNMP, nas quais a IgG é a imunoglobulina mais frequentemente depositada. Nestas últimas, há também depósitos imunes em alça capilar. A IF pode ser utilizada para detectar a presença de antígeno esquistossomótico do verme adulto. A microscopia eletrônica revela proliferação mesangial e, de modo variável, fusão segmentar e difusa de pedicelos, expansão da matriz mesangial, duplo contorno da membrana basal glomerular, depósitos eletrondensos subendoteliais, mesangiais e, ocasionalmente, subepiteliais. Outras doenças infectoparasitárias e rim Mycobacterium leprae: a lesão histológica mais comum é a amiloidose; ocasionalmente tem sido observado quadro de síndrome nefrótica semelhante ao de glomerulonefrite pós-estreptocócica. Treponema pallidum: síndrome nefrótica pode ocorrer em 0,5% dos pacientes com sífilis secundária e em até 8% dos pacientes com sífilis congênita; as lesões mais descritas são de nefropatia membranosa ou várias formas de GN proliferativas. Plasmodium malariae: manifesta-se por síndrome nefrótica em crianças que residem em áreas endêmicas; lesões histológicas são heterogêneas, incluindo formas proliferativas ou membranoproliferativas. A proteinúria pode persistir, mesmo após a erradicação da parasitose. Outras: relatos isolados de glomerulopatias associadas a infecções bacterianas (Pneumococcus, Klebsiella, Staphylococcus), virais (citomegalovírus, varicela, sarampo) e parasitárias (filária, toxoplasma). Tabela 11.18

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175 11  O rim nas doenças sistêmicas

Figura 11.4  Microscopia óptica: o exame histológico mostra cortical renal com 20 glomérulos. Estes apresentam a estrutura dos tufos em grande parte substituída por substância eosinofílica, negativa à pesquisa de substância amiloide pela técnica do vermelho-congo. Alguns glomérulos têm o aspecto lobulado, com espessamento das alças capilares às custas de depósitos desta substância. O interstício está dissociado por fibrose que compromete cerca de 40% do compartimento. Nestas áreas, os túbulos estão atróficos. Foram representadas 3 artérias interlobulares e 9 arteríolas. Uma das artérias apresenta fibrose intimal. Imunofluorescência: fragmento de tecido renal representado pela cortical com 10 glomérulos. Imunofluorescência negativa. Microscopia eletrônica: o exame ultraestrutural mostra cortical renal com 2 glomérulos. Esses apresentam depósitos de substâncias elétrondensas com caracteres fibrilares, dispostas desordenadamente em meio à matriz mesangial. O processo obstrui as luzes de algumas alças capilares glomerulares. Diagnóstico final: glomerulonefrite fibrilar.

Figura 11.5  Microscopia óptica: o exame histológico mostra cortical renal com 8 glomérulos, um dos quais está totalmente fibrosado. Os demais apresentam expansão focal da matriz mesangial, em certos campos esboçando arranjo em nódulos acelulares. Na periferia destes nódulos há alças capilares dilatadas (microaneurismas). Duas arteríolas aferentes mostram lesões de hialinose subendotelial. O interstício está dissociado por fibrose, que compromete cerca de 80% do compartimento, onde há túbulos atróficos. Foram representadas 1 artéria arqueada, 1 interlobular e 4 arteríolas. As arteríolas apresentam lesões de hialinose subendotelial. Imunofluorescência: fragmento de tecido renal representado pela cortical com 4 glomérulos. Observam-se depósitos granulares de IgM (1+/3+), distribuídos de forma segmentar e focal sobre o mesângio. Conclusão diagnóstica: glomeruloesclerose nodular; arterioesclerose hialina (ver nota). Nota: a pesquisa de substância amiloide pelo vermelho-congo e de cadeias Kappa e Lambda pela imunohistoquímica mostrou-se negativa. O quadro histológico e os achados à imunofluorescência são compatíveis com Nefropatia diabética, forma nodular.

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176 Nefrologia

Figura 11.6  Microscopia óptica: o exame histológico mostrou cortical renal com 14 glomérulos. Sete destes apresentaram a estrutura geral preservada, com celularidade normal e capilares de luz patente. Os demais mostraram graus variados de proliferação mesangial e expansão da matriz mesangial, que em certos tufos exibia aspecto de mesangíolise. Dois glomérulos apresentavam ainda sinéquias. O interstício estava dissociado por focos de fibrose, em meio aos quais há túbulos atróficos. Foram representadas 4 artérias interlobulares e 5 arteríolas. Uma das artérias tem a luz obliterada por trombo em organização. Três das arteríolas mostram lesões de hialinose subendotelial. Imunofluorescência: fragmento renal representado pela cortical com quatro glomérulos. Observam-se depósitos granulares mesangiais de IgA (1+/3+), IgG (1+/3+), IgM (1+/3+), fatores C3 e C1q do complemento (1+/3+), com distribuição segmentar e focal. Sobre a parede de uma arteríola e de uma artéria, há depósitos de fibrina (2+/3+). Conclusão diagnóstica: nefrite lúpica, forma proliferativa mesangial (classe II da OMS); microangiopatia trombótica em cronificação. Nota: os achados anatomopatológicos são compatíveis com alterações encontradas na síndrome do anticorpo antifosfolipíde. A: glomérulos com graus variados de proliferação mesangial, expansão da matriz e sinéquias. Interstício dissociado por fibrose, com túbulos atróficos. Arteríola com hialinização da parede (Tricrômico de Masson). B: depósitos de fibrina em parede de arteríola (Imunofluorescência).

Estudar a doença sem livros é navegar um mar inexplicável, enquanto estudar os livros sem pacientes é não navegar de forma alguma. – Sir. William Osler

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CAPÍTULO

8

Sarcoidose

É possível ter coisas na vida. Roupas demais nos tiram o entusiasmo pelas novas; dinheiro demais nos distancia da realidade; tempo livre em excesso pode embotar a alma. Precisamos às vezes chegar bem perto do osso para que possamos SENTIR A ESSÊNCIA DA VIDA e não as suas superfluidades. – JOAN CHITTISTER.

Epidemiologia A sarcoidose é um distúrbio multissistêmico de etiologia desconhecida, que pode ocorrer em qualquer região do planeta, em ambos os sexos e em qualquer faixa etária. A incidência da doença nos EUA é cerca de três vezes maior em afroamericanos (35,5/100.000 habitantes) do que em caucasianos (10,9/100.000 habitantes). A doença é mais comum em mulheres que em homens, na proporção de 2:1. Alguns estudos epidemiológicos recentes mostraram que a doença pode apresentar maior incidência em mulheres acima de 40 anos. No Japão foi observado ainda que no sexo feminino a doença mostra uma incidência bimodal: um primeiro pico dos 25 aos 39 anos e um segundo pico entre 50 e 60 anos (duas vezes maior que o primeiro pico). No Brasil, não temos registros da real prevalência da sarcoidose. No entanto, estimativas antigas apontam uma prevalência menor que 10/100.000 habitantes. Estudos nacionais mais recentes descrevem que a

doença é mais prevalente no sexo feminino e em indivíduos acima de 40 anos, não havendo aparentemente diferenças prognósticas entre brancos e negros.

Etiologia A sarcoidose é uma enfermidade de etiologia desconhecida. Entretanto, alguns micro-organismos (vírus e bactérias, como Mycobacterium tuberculosis) já foram e continuam sendo implicados em sua etiologia. Existem também várias profissões e exposições ambientais consideradas de risco para o desenvolvimento da sarcoidose: profissionais de saúde, professores, bombeiros e agricultores, assim como exposição a mofo, pássaros, inseticidas e metais (como alumínio e zircônio). Acredita-se que a interação entre fatores genéticos e ambientais seja responsável pela cascata de respostas inflamatórias envolvidas na patogênese da doença.


129 8 Sarcoidose Além disso, determinados fatores podem estar relacionados à maior incidência da doença: Fatores hormonais: podem ter importância, pois eritema nodoso associado à sarcoidose comumente ocorre em mulheres na idade fértil, na fase inicial da gravidez e, também, em pacientes que usam anticoncepcional oral; Fatores genéticos podem ter importância, pois artrite sarcoide, eritema nodoso e uveíte anterior ocorrem com maior frequência em pessoas HLA-B8, HLA-A1, CW7 e DR3.

Patogenia Embora a sequência patogênica não seja clara, a sarcoidose provavelmente segue a mesma sequência de outras doenças pulmonares intersticiais. Assim, uma lesão alveolar inicial é o estímulo que precede o influxo das células imunoefetoras que constituem a alveolite. A alveolite sarcoide, constituída primariamente por linfócitos T, pode resolver-se ou tornar-se crônica, possibilitando a formação e manutenção de granulomas e levando finalmente à fibrose irreversível e desarranjo da arquitetura alveolar. O processamento do antígeno pelos macrófagos desencadeia expansão clonal de linfócitos CD4 de fenótipo Th1, com produção de IL-2 e IFN-γ. IL-2 causa proliferação de mais células de adesão, e fatores de crescimento são liberados por linfócitos e macrófagos, ocorrendo amplificação da resposta e potencial para indução de fibrose. O granuloma sarcoide, lesão elementar microscópica encontrada na enfermidade, resulta de uma resposta autoimune específica a um suposto antígeno pobremente degradável. Numerosas citoquinas e outros mediadores são produzidos pelos macrófagos ativados e linfócitos T durante a resposta granulomatosa. Dados sugerem que o IFN-γ e citocinas, tais como TNF-α, IL12 e IL-18, apresentam um papel fundamental na formação dos granulomas. Em uma proporção de casos, os granulomas evoluem para fibrose por mecanismos ainda incertos. Na sarcoidose, os granulomas mostram envolvimento preferencial pelas vias aéreas, vasos e regiões subpleurais. Os granulomas são coalescentes, bem formados, circundados por halo linfocitário ou fibrose hialina, e exibem inflamação escassa ou ausente. Necrose fibrinoide central pequena pode estar presente. Na fase inicial da doença, complexos imunes circulantes podem ser responsáveis por fenômenos a distância como eritema nodoso e uveíte anterior gra-

nulomatosa. Quanto mais agudo o início e mais ativa a resposta reticuloendotelial, mais provável será a remissão espontânea destas manifestações. Esta remissão pode também ser induzida por corticoterapia.

Quadro clínico Na ocasião do diagnóstico, 30 a 60% dos pacientes são assintomáticos, sendo a doença identificada pelas anormalidades radiológicas do tórax (Atenção!). Em menos de um terço dos casos, particularmente nos negros norte-americanos, ocorrem manifestações constitucionais inespecíficas como febre, fadiga, mal-estar e emagrecimento. Pode apresentar-se como febre de origem desconhecida, em alguns poucos casos. Baqueteamento digital é raro (~3%). O eritema nodoso ocorre em cerca de 10% dos pacientes, geralmente no contexto de doença aguda e/ou inicial. É mais comum em mulheres e distribui-se mais comumente nas regiões anteriores dos membros inferiores. Indistinto do eritema nodoso que acompanha numerosas outras enfermidades, caracteriza-se histologicamente como paniculite septal. Habitualmente apresenta regressão espontânea, sendo sua presença um marcador de prognóstico favorável. O lúpus pérnio, por sua vez, costuma acompanhar quadros mais crônicos, está relacionado à presença de doença extrapulmonar e indica pior prognóstico geral. Apresenta maior incidência em indivíduos de raça negra. Caracteriza-se por lesões violáceas, infiltrativas e induradas, que se distribuem no nariz, face e lábios, podendo evoluir para lesões retráteis e deformantes. Acometimentos mais frequentes Pulmões (> 90%) Adenopatia hilar bilateral simétrica com aspecto em “saco de batata” (achado característico) Pneumopatia intersticial difusa Fibrose pulmonar difusa (tardia) Linfonodos (30%) Coração (5%) Defeitos de condução Arritmias cardíacas Insuficiência cardíaca Fígado Granulomas hepáticos, no entanto, é infrequente a expressão clínica de doença hepática Pele (15-20%) Lúpus pérnio Eritema nodoso (lesão mais frequente, principalmente na forma aguda da doença) Pápulas, nódulos e infiltrações em cicatrizes prévias

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130 Pneumologia Acometimentos mais frequentes (cont.) Síndrome de Löefgren:* Adenopatia hilar bilateral e paratraqueal Eritema nodoso Artrite periférica Uveíte Olhos (11-83%) Uveíte anterior granulomatosa (mais frequente que a posterior) Síndrome de Heerfordt-Waldenström: Uveíte anterior Aumento das parótidas Paralisia facial Febre Envolvimento das glândulas lacrimais (síndrome seca, semelhante à doença de Sjögren) Osteoarticular (25-39%) Artrite com ou sem deformidades Cistos ósseos de extremidades SNC (< 10%) Envolvimento de pares cranianos (VII par, em particular) Doença hipotálamo-hipofisária (Diabetes insipidus) Meningoencefalopatia Tabela 8.1

Dados clínicos pulmonares e extrapulmonares compatíveis; Achados radiológicos compatíveis; Granulomas não caseosos na biópsia (em geral transbrônquica, ganglionar ou de lesões de pele); Exclusão de doenças específicas que podem resultar em achados semelhantes, como tuberculose e micoses.

Na ausência de confirmação tecidual, em algumas situações o diagnóstico pode ser aceito: Síndrome de Löfgren, caracterizada por linfadenopatia hilar bilateral, eritema nodoso, artralgia e febre Síndrome de Heerfordt, que se caracteriza pela associação de uveíte, paralisia facial e aumento das glândulas parótidas Achados típicos na radiografia simples ou TC de tórax e LBA evidenciando relação CD4/CD8 > 3,5 Mapeamento com gálio mostrando os padrões “panda” – captação anormal em glândulas lacrimais e parótidas – e “lambda” — captação anormal em gânglios mediastinais Para o diagnóstico da sarcoidose ser considerado completo devem ser preenchidos quatro requisitos: Confirmação histológica da doença; Avaliação da gravidade e da extensão do envolvimento orgânico; Avaliar se a doença é estável ou tem risco de evoluir; Determinação da utilidade do tratamento.

Radiologia O envolvimento pulmonar e dos linfonodos intratorácicos ocorre em mais de 90% dos casos. O estadiamento radiográfico definido por Scadding baseia-se nas alterações observadas na radiografia simples de tórax (Figura 8.2/Tabela 8.2). A remissão espontânea ocorre em até metade dos pacientes, geralmente nos primeiros seis meses, e varia de acordo com o estádio radiográfico. Figura 8.1  Eritema nodoso em paciente com sarcoidose.

Diagnóstico Não existem achados patognomônicos para o diagnóstico de sarcoidose. O diagnóstico é feito na presença de:

Na radiografia simples do tórax, as alterações podem ser localizadas ou difusas e tendem a ser simétricas, comprometendo preferencialmente as zonas superiores e médias dos pulmões. Opacidades reticulares, retículo-nodulares e alveolares focais são os achados mais comuns na radiografia de tórax. Áreas confluentes de consolidação e nódulos bem circunscritos podem ser vistos. Na fase de fibrose, vários achados são descritos: perda do volume pulmonar (principalmente dos lobos superiores), bandas parenquimatosas, retração dos hilos, distorção da arquitetura pulmonar, bronquiectasias, faveolamento e/ou bolhas.

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131 8 Sarcoidose Na TCAR de tórax, os achados mais característicos da doença incluem linfonodomegalia hilar/ mediastinal, opacidades nodulares/micronodulares, linhas septais (e não septais) e opacidades nodulares confluentes com broncogramas aéreos. As alterações apresentam predileção para as zonas superiores e médias dos pulmões, com distribuição perilinfática, nas regiões axiais e subpleurais. Com a progressão da doença, vários achados tomográficos podem ser observados: distorção da arquitetura pulmonar, retração hilar, bandas parenquimatosas, bronquiectasias, cistos e bolhas. Eventualmente, outros achados, como consolidações, extensas áreas em vidro fosco e micronódulos ou nódulos grandes simulando metástases podem ser observados. Em um estudo, o aprisionamento aéreo à expiração foi o achado tomográfico mais frequente em indivíduos com sarcoidose (95% dos casos). Estádio 0

I II

III

IV

Radiograma simples de tórax Exame normal, sendo a doença evidenciada em pelo menos dois outros órgãos extrapulmonares Adenomegalia hilar/mediastinal Adenomegalia hilar/mediastinal e lesões no parênquima pulmonar Lesões no parênquima pulmonar (sem adenomegalias, sem fibrose) Sinais de fibrose no parênquima pulmonar

Figura 8.3  Tomografia computadorizada de alta resolução na sarcoidose. Observe o padrão intersticial difuso (estágio III).

Possibilidade de remissão espontânea, % Depende dos órgãos envolvidos 55-90 40-70

10-30

0-5 (melhora parcial)

Figura 8.4  Aumento hilar bilateral (estágio I) em um paciente com sarcoidose (este achado é característico).

Tabela 8.2  Estadiamento radiológico e prognóstico da sarcoidose de acordo com a classificação de Scadding.

Figura 8.5  Radiografia de tórax de uma paciente com sarcoidose em estágio I (adenopatia hilar bilateral).

Exames complementares Figura 8.2  Radiograma de tórax na sarcoidose: tipos radiológicos (o tipo D corresponde ao quadro final de fibrose pulmonar).

Anemia e leucopenia podem ocorrer; leucopenia pode refletir envolvimento da medula óssea, redistribuição dos linfócitos para os locais de doença ou envolvimento esplênico.

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132 Pneumologia A maioria dos pacientes com sarcoidose hepática é assintomática, com a elevação da fosfatase alcalina sendo observada em mais de 90% dos casos. Nestes casos, 50 a 70% também apresentam transaminases séricas elevadas, em geral em níveis menores do que a fosfatase alcalina. Testes de função hepática > 3 vezes o normal são critérios definitivos para sarcoidose hepática. Pode-se complementar avaliação com USG abdominal. Sarcoidose pode resultar em hipercalciúria, hipercalcemia e nefrolitíase, com possível insuficiência renal. Alterações do metabolismo do cálcio são consequência dos aumentos dos níveis séricos de 1,25 di-hidroxivitamina D (calcitriol), produzida pelos macrófagos nos granulomas e promotora de hiperabsorção intestinal do cálcio. A hipercalciúria ocorre em até 30% dos casos, com ou sem hipercalcemia (> 10%). A hipercalcemia não detectada e persistente em associação com a hipercalciúria pode resultar em nefrocalcinose, cálculos renais e insuficiência renal. É importante frisar que a dosagem de cálcio na urina de 24 horas não é recomendada pela Diretriz American Thoracic Society/European Respiratory Society sendo, no entanto, recomendada pela diretriz da British Thoracic Society. A enzima conversora da angiotensina (ECA), utilizada no contexto clinicorradiográfico, pode ser útil na composição diagnóstica, junto com outros achados, assim como no acompanhamento da doença. Valores de três vezes o limite superior do normal são muito sugestivos no diagnóstico de sarcoidose. O teste apresenta alta especificidade (aproximadamente 90%), no entanto, a sua sensibilidade varia de 60-80%. Atualmente seu uso é limitado ao diagnóstico e prognóstico de sarcoidose, uma das razões para isso se deve ao fato de que a elevação da ECA não é específica para sarcoidose, com diversas doenças pulmonares granulomatosas podendo cursar com essa mesma alteração, incluindo tuberculose e beriliose.

Teste de Kveim-Sitzback Reação intradérmica com antígeno sarcoide. Atualmente só possui valor histórico, não tendo mais aplicabilidade clínica.

anatomopatológico, sendo a acurácia diagnóstica maior quando se retiram pelo menos quatro fragmentos de tecido pulmonar. O rendimento da BTB no estádio I pode ultrapassar 50%; já no estádio IV, situa-se em torno de 60%. Nos estádios II e III, o rendimento da BTB é superior a 80%. Biópsias endobrônquicas aumentam o rendimento da BTB, especialmente na presença de tosse persistente ou anormalidades visíveis na mucosa brônquica. Também pode ser realizada a partir de amostras obtidas de gânglios e/ou de outros sítios.

Lavado broncoalveolar A presença de linfocitose e uma relação CD4/ CD8 > 3,5 são altamente sugestivas para sarcoidose. Neutrofilia, quando observada, associa-se, no entanto, com pior prognóstico. O papel do LBA no acompanhamento dos pacientes mostrou-se limitado.

Mediastinoscopia Preferida quando houver adenopatia sem infiltração pulmonar. Uma vez que adenopatia hilar e mediastinal são observadas em 47-94% dos pacientes com sarcoidose, biópsia dos linfonodos mediastinais geralmente permite o diagnóstico.

Espirometria Nos testes de função pulmonar, a capacidade vital forçada (CVF) e a difusão pulmonar (DCO) são frequentemente preservadas nos estágios iniciais. Em estágios mais avançados há o clássico padrão restritivo com DCO reduzida e alteração das trocas gasosas como nas demais doenças intersticiais fibrosantes. Distúrbio ventilatório obstrutivo também pode ser observado. Entre os mecanismos identificados para se explicar esse achado, pode-se citar: 1) comprometimento de grandes vias aéreas por compressão ganglionar, estenose brônquica e doença avançada com bronquiectasias; 2) comprometimento de pequenas vias aéreas por sarcoidose endobrônquica, fibrose peribronquiolar e distorção das vias aéreas por fibrose e 3) hiperresponsividade brônquica, que pode ser demonstrada em média em 20% dos pacientes.

Biópsia Padrão-ouro para o diagnóstico: identificação de granulomas não-necrotizantes na biópsia, aliado a achados clínicos e radiológicos que sejam consistentes com a doença. A biópsia transbrônquica (BTB) é o principal método para o diagnóstico da sarcoidose, sendo indicada em todos os estádios. O rendimento do procedimento, no entanto, depende do estádio radiográfico, da técnica e do número de fragmentos retirados para estudo

ECG, Holter 24 horas, ecocardiograma Direcionados para se pesquisar/excluir sarcoidose cardíaca. Infelizmente, não existe um teste diagnóstico único para sarcoidose cardíaca, com a biópsia endomiocárdica apresentando baixo rendimento. Pacientes com sarcoidose cardíaca podem apresentar diversas alterações nos seguintes exames:

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133 8 Sarcoidose 1) ECG-BAV, bloqueios de ramo, taquiarritmia supraventricular, etc.;

Avaliação clínica na sarcoidose (cont.)

2) Ecocardiograma: disfunção ventricular esquerda (FE ≤ 45%), anormalidades significativas de mobilidade da parede (2 ou mais segmentos), espessamento septal anormal;

Outros testes para investigar órgãos específicos, conforme sintomas e sinais iniciais:

3) Holter: mesmas alterações do ECG acima, extrassístoles ventriculares (> 10/hora); taquicardia ventricular não sustentada (mais de 3 batimentos); taquicardia supraventricular (mais de 3 batimentos); taquicardia ou fibrilação ventricular. Pacientes assintomáticos e com ECG, ECO e Holter normais não necessitam de mais exames. Entretanto, diante de alterações nos exames acima, é necessário complementar com: mapeamento com gálio (o gálio acumula-se em áreas de inflamação ativa na sarcoidose, com testes positivos indicando inflamação ativa e resposta ao tratamento), RNM com protocolo para sarcoidose cardíaca (identificação de áreas inflamatórias) e o PET (a captação e as falhas de captação ao exame são compatíveis com atividade da doença, assim como permite estimar o tamanho das lesões granulomatosas).

Exame oftalmológico Sarcoidose pode afetar qualquer parte do olho, sendo a uveíte a manifestação mais comum, podendo, inclusive, anteceder o diagnóstico da doença por muitos anos. O acometimento ocular pode ser subclínico, de modo que todos os pacientes devem ser encaminhados ao oftalmologista para avaliação. A tabela abaixo resume os exames que devem ser solicitados após a confirmação do diagnóstico de sarcoidose. Avaliação clínica na sarcoidose Avaliação inicial

História (incluindo exposições) e exame físico (incluindo cutâneo e neurológico)

Biópsia do órgão afetado, com colaborações especiais e culturas para micobactérias e fungos

Radiografia de tórax em posteroanterior e perfil

Provas de função pulmonar – espirometria pré e pós-broncodilatador, volumes pulmonares e difusão (quando houver envolvimento pulmonar)

Coração – Holter, ecocardiograma, estudo eletrofisiológico, PET* cardíaco, RNM*

Pulmões – volumes pulmonares, difusão de CO e cateterismo direito (quando suspeita de hipertensão pulmonar)

Sistema nervoso central – RNM*, análise quimiocitológica do líquido cefalorraquidiano

Monitoração

Verificar declínio funcional baseado no acometimento inicial

Testes adicionais conforme novos sintomas ou sinais

Monitoração dos efeitos colaterais da terapia

(*) Tomografia por emissão de pósitrons. (*) Ressonância nuclear magnética. Tabela 8.3  Protocolo de avaliação dos pacientes com diagnóstico recente de sarcoidose (Modificado de Statement on sarcoidosis)

Tratamento A sarcoidose é geralmente uma doença autolimitada, sendo relativamente frequente a remissão da doença. Em vista disso e como a intervenção terapêutica não é isenta de efeitos colaterais, a observação cuidadosa dos pacientes assintomáticos e sem disfunção orgânica é justificada (pacientes com a forma torácica estágio I), por um período de 6 a 12 meses. A terapia deve ser iniciada em pacientes com comprometimento orgânico sistêmico significativo (pulmão, olhos, coração, SNC ou lesões cutâneas extensas) ou evidências de hipercalcemia ou hipercalciúria. Os corticoides são considerados a terapia de primeira linha (prednisona), e as principais indicações para seu uso são:

Dispneia com limitação de atividades;

Eletrocardiografia

Lesões de pele desfigurantes;

Avaliação oftalmológica completa

Hemograma, ureia, creatinina, cálcio sérico e urinário, fosfatase alcalina, aminotransferases e análise urinária

Sintomas sistêmicos com prejuízo na qualidade de vida (febre, fadiga, perda peso);

Doença parenquimatosa com disfunção relevante (CV ou DCO < 50%, ou VEF1/CVF < 50% ou SpO2 < 90% em repouso ou após exercício);

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134 Pneumologia

Presença de fibrose pulmonar relevante (ou progressiva) na radiografia de tórax;

Piora funcional progressiva com queda da CVF≥ 10% ou DCO ≥ 15% nos últimos 6-12 meses;

Sarcoidose cardíaca;

Sarcoidose SNC;

Doença ocular não controlada com tratamento local;

Hipercalcemia acentuada, Ca++ sérico ≥ 12 mg/dL;

Hipercalciúria com nefrocalcinose e disfunção renal;

Nefrite intersticial granulomatosa;

Envolvimento hepático com colestase intra-hepática, hipertensão portal e/ou falência hepática;

Envolvimento da medula óssea com pancitopenia.

Não existem estudos de dose-resposta com os corticosteroides orais na sarcoidose. Por outro lado, a terapia é geralmente iniciada com prednisona em dose diária de 0,3 a 0,6 mg/kg de peso corporal ideal (geralmente 20 a 40 mg / dia), dependendo da gravidade da atividade da doença. Para pacientes com dispneia apenas ao esforço e com piora lenta das opacidades radiológicas, a dose na faixa mais baixa é geralmente adequada. Para os pacientes com doença rapidamente progressiva e insuficiência grave (por exemplo, dependente de oxigénio), opta-se por doses mais altas de corticoterapia. A dose inicial é continuada durante quatro a seis semanas e, em seguida, o paciente é novamente avaliado. Se os sintomas, alterações radiográficas, e testes de função pulmonar (por exemplo, a espirometria, capacidade de difusão, oximetria ambulatorial) são estáveis ou melhoraram, a dose é reduzida (em média 5 a 10 mg a cada 4-8 semanas) até se atingir a dose de 0,20,4 mg/kg (normalmente 10 a 20 mg /dia). Caso a paciente não evolua com melhora clínica nesse período, continua-se a dose inicial por mais quatro a seis semanas. Altas doses de corticoterapia oral (80 a 100 mg/ dia) podem ser utilizadas em pacientes com insuficiência respiratória aguda ou com acometimento cardíaco, neurológico, ocular, doença das vias respiratórias superiores concomitante. Essa dose tende a ser mantida até que a doença esteja sob controle clínico (geralmente entre 4 a 12 semanas). Uma vez que a melhora é obtida, a dose é reduzida como descrito no parágrafo anterior. Não existem dados formais na literatura sobre como se proceder em relação à dose de manutenção da corticoterapia. Com base na ex-

periência clínica, uma dose de manutenção de prednisona no intervalo de 0,25 a 0,5 mg/ kg (normalmente de 10 a 20 mg) por dia é eficaz na prevenção do agravamento da doença. Durante a fase de manutenção, o paciente é reavaliado a cada 4-12 semanas para se verificar a ocorrência ou não de piora clínica ou o desenvolvimento de efeitos adversos relacionados com a corticoterapia. A ausência de melhora após três meses deve sugerir a presença de doença em fase fibrótica irreversível, aderência pobre ao esquema terapêutico, dosagem inadequada, resistência ao tratamento ou mesmo outro diagnóstico. O uso de corticoide inalatório é indicado em casos em que haja hiper-reatividade brônquica com doença parenquimatosa irrelevante. Outros agentes não raramente utilizados incluem os fármacos antimaláricos e o metotrexato. A cloroquina e a hidroxicloroquina são úteis para tratamento da sarcoidose cutânea, para hipercalcemia e em formas pulmonares crônicas, como agentes poupadores de corticosteroides. A cloroquina é utilizada inicialmente na dose de 500 mg/dia e a hidroxicloroquina na dose 200 a 400 mg/ dia. Avaliação oftalmológica periódica, a cada seis meses, para retinopatia é indicada. O metotrexato é frequentemente utilizado nas formas crônicas nas doses de 10 a 15 mg em tomada única semanal com controle antes e periodicamente da função hepática e do hemograma. A leflunomida, na dose de 20 mg/dia, pode ser alternativa ao uso do metotrexate. Efeito terapêutico, tanto com metotrexate e leflunomida, poderá demorar até 6 meses. O TNFα é citocina de importância central liberada pelos macrófagos na sarcoidose. Vários fármacos que suprimem a liberação do TNFα tais como pentoxifilina, talidomida e infliximab foram testados em sarcoidoses. A talidomida é útil na doença de pele desfigurante, porém tem pouca efetividade na doença pulmonar crônica. O infliximab foi testado em grande série recente, porém sua indicação deve ser restrita aos casos resistentes aos corticosteroides, nos quais a elevação do TNF-alfa é observada. Doses de 3 e 5 mg/kg tem eficácia semelhante. Tuberculose latente ou ativa deve ser cuidadosamente excluída antes de sua indicação, da mesma forma que devemos estar atentos a outros efeitos adversos, tais como: reação de hipersensibilidade, infecção por Listeria monocytogenes e produção de autoanticorpos. O transplante pulmonar é uma opção para pacientes com doença avançada, sem perspectiva de benefício com tratamento medicamentoso. Cerca de 3% de todos os transplantes de pulmão são realizados em pacientes com sarcoidose, e pode haver recorrência no órgão transplantado.

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135 8 Sarcoidose Tratamento da sarcoidose pulmonar Radiografia de tórax – estádio 0/1 Assintomático Sem terapia sistêmica Radiografia de tórax – estádio 2/4 Sintomático Corticoide – dose inicial 20-40 mg/dia de prednisona ou equivalente, 9 a 12 meses Drogas poupadoras de corticoide em sarcoidose pulmonar crônica Metotrexato – 5-15 mg/semana (ácido fólico 1 mg/dia, reduz toxicidade Azatioprina – 50-200 mg/dia Leflunomida – 10-20 mg/dia Micofenolato – 1 a 2g/dia Sarcoidose refratária Infliximabe endovenoso – 3-5 mg/kg inicialmente, repetir em 2 semanas, depois mensal Tabela 8.4

Avaliação de resposta clínica Os testes de função pulmonar devem ser solicitados, de modo geral, em intervalos de 3-4 meses, consistindo, se possível, na realização de espirometria, capacidade de difusão (DLCO), e oximetria ambulatorial. A pletismografia, para acompanhamento da CPT, deve ser feita a cada 12-24 meses. Considera-se resposta favorável ao tratamento clínico, quando se observa:

Diminuição dos sintomas, especialmente a dispneia, tosse, hemoptise, dor torácica, ou fadiga;

Redução ou resolução das anormalidades radiológicas;

Melhora dos parâmetros funcionais: elevação de pelo menos 10 a 15% na CVF ou CPT, aumento ≥ 20% na DLCO, ou uma melhora nas trocas gasosas (por exemplo, um aumento ≥ 4 mmHg na PO2 arterial ou um declínio ≥ 4 mmHg no gradiente alvéolo-arterial em repouso ou durante o exercício);

Estabilização das anormalidades radiológicas e/ou da função pulmonar por longos períodos (3-6 meses).

Por outro lado, a falha ao tratamento clínico ou a ocorrência de recaída pode ser considerada nas seguintes situações:

Redução ≥ 10% na CVF ou CPT;

Agravamento das opacidades radiológicas, especialmente com o desenvolvimento de cavidades, faveolamento, ou sinais de hipertensão pulmonar; Piora da troca gasosa em repouso ou ao exercício.

Prognóstico A mortalidade geral da sarcoidose varia de 1-5% e ocorre usualmente por causa respiratória, cardíaca ou envolvimento do sistema nervoso central (SNC). Indivíduos com sarcoidose pulmonar fibrosante apresentam sobrevida significativamente menor em relação à população geral, sendo que, em 75% dos casos, as mortes estão diretamente associadas a causas respiratórias. O prognóstico da sarcoidose é extremamente variável. Enquanto, em alguns casos, a doença apresenta resolução espontânea, em outros, a doença pode evoluir para fibrose irreversível e morte. Portanto, a terapia não é indicada em todos os casos. Em 60-70% dos pacientes, há boa evolução clínica, enquanto 30-40% desses necessitam de tratamento crônico e podem ter evolução ruim. A distinção entre os diferentes grupos na avaliação inicial do paciente pode ser extremamente difícil na prática diária. Séries clássicas de literatura têm mostrado que, no estadiamento da sarcoidose, a observação de determinados achados pode ajudar a predizer o curso da doença. Alguns dados são indicativos de bom prognóstico na sarcoidose: doença com < 2 anos de duração; adenopatia hilar isolada (estádio I); paralisia isolada do VII par; edema periarticular; e ausência de sintomas. Outros achados indicam evolução crônica e pior prognóstico: presença de obstrução ao fluxo aéreo na espirometria, dispneia persistente, fibrose pulmonar (estádio IV), envolvimento do SNC, lesões cutâneas específicas, miocardiopatia com insuficiência cardíaca, nefrolitíase e cistos ósseos.

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CAPÍTULO

2

Laboratório em reumatologia

Introdução A estratégia do diagnóstico nas doenças reumatológicas é complexa. Os exames laboratoriais devem ser interpretados em associação com os achados da anamnese e do exame físico. Por vezes, somente a evolução no decorrer de meses ou anos elucidará o diagnóstico definitivo da doença subjacente. Portanto, o valor dos achados laboratoriais, nas doenças reumáticas, depende da sensibilidade, especificidade, praticidade, do custo e da precisão dos testes utilizados. Abordaremos neste capítulo os principais exames laboratoriais utilizados na investigação das doenças reumáticas.

Provas de atividade inflamatória

Velocidade de hemossedimentação (VHS)

Proteína C reativa (PCR)

Mucoproteínas (α1 glicoproteína ácida)

Complemento

As principais proteínas produzidas pelo fígado em processos inflamatórios agudos e crônicos são a

proteína C reativa (PCR), o fibrinogênio, a alfa1-antitripsina, as haptoglobinas, proteína sérica amiloide e componentes do complemento (principalmente C3). Os testes mais comumente usados na avaliação clínica de uma inflamação em curso são a VHS e a PCR. Esses testes são inespecíficos, mas bons detectores de quebra da homeostase interna, sendo, portanto, delatores de doenças subjacentes, no entanto, quando normais, não excluem diagnóstico.


2

Velocidade de hemossedimentação (VHS) A VHS é a medida da distância em milímetros que as hemácias percorrem dentro de um tubo específico (Westergren ou Wintrobe) no decorrer de 1 hora. Trata-se de uma medida indireta das alterações nos reagentes da fase aguda da inflamação (fibrinogênio, haptoglobina, por exemplo), sintetizados no fígado em resposta à inflamação e na análise quantitativa das imunoglobulinas. A interleucina-6 (citocina inflamatória) é o mediador mais potente que estimula a produção das proteínas da fase aguda pelo fígado (fibrinogênio e outras proteínas da fase aguda). Portanto, qualquer

condição que curse com aumento na concentração dessas substâncias da fase aguda, ou caso a presença de hipergamaglobulinemia seja policlonal ou monoclonal (calazar; mieloma múltiplo), causará elevação na VHS devido ao aumento da constante dielétrica do plasma. Esta última acarreta uma dissipação das forças repulsivas inter-hemácias e leva à agregação íntima destas, causando uma queda mais rápida das hemácias. Antes de passar à interpretação da VHS, é igualmente importante saber como é realizado o teste e como foram produzidos os valores normais para este. Como foi dito anteriormente, os métodos de Westergren e Wintrobe são os mais comumente usados. Os resultados de um método não são intercambiáveis com os do outro e a faixa de valores normais depende do método.

No método Westergren, 2 mL de sangue venoso são coletados em 0,5 mL de solução de citrato de sódio. Um tubo Westergren cilíndrico é preenchido com sangue até o nível de 200 mm e colocado verticalmente em um suporte. Ao fim de uma hora, mede-se a distância do alto da coluna de sangue à camada inferior de hemácias. Essa distância é a velocidade de sedimentação, a qual é expressa em mm/h. Com o método Wintrobe não se usa diluente. O sangue anticoagulado é colocado em um tubo graduado e marcado de 100 mm, sendo examinado em uma hora. Aqui a distância do alto da coluna à camada superior de hemácias também é medida, sendo a velocidade expressa em mm/h. O método Westergren tem sido mais amplamente utilizado e endossado pelo International Committee for Standardization in Hematology. As

desvantagens do método Wintrobe incluem uma limitação da magnitude de qualquer anormalidade da VHS e problemas de confiabilidade. O tubo Wintrobe tem apenas 100 mm, de modo que uma VHS de mais de 60 mm/h raramente pode ser medida, porque a aglutinação das hemácias impede maior deposição. Ocorre, também, que o estreito calibre do tubo Wintrobe pode, por vezes, causar resultados não reproduzíveis. Fontes técnicas de erro para ambos os métodos foram descritas em outros trabalhos. Alguns laboratórios tentaram corrigir os resultados da VHS quanto à anemia, contudo, a utilidade desses fatores de correção está sujeita à controvérsia.

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Valores normais para velocidade de hemossedimentação Idade Idade < 50 anos > 50 anos Método Westergren (mm/h) < 20 < 15 Masculino < 30 < 25 Feminino Método Wintrobe (mm/h) > 20 Masculino < 10 < 25 Feminino < 15 Tabela 2.1 Uma regra grosseira relaciona a idade ao limite superior de normalidade da VHS. Homem: Idade/2; Mulher: (idade + 10)/2.

Fatores que influenciam a VHS Aumento Diminuição Policitemia Anemia Anemia falciforme Gravidez Retardo na realização do Temperatura alta exame Paraproteinemia Hipoalbuminemia Hipercolestero- Insuficiência cardíaca congestiva lemia Hipofibrinogemia Tabela 2.2

Causas de VHS extremamente alta (> 100 mm/ 1ª hora) Infecções bacterianas Doenças reumáticas, particularmente: Arterite de células gigantes* LES Polimialgia reumática Vasculites Malignidades Linfomas Mieloma múltiplo Outras (15%) Causas de VHS extremamente baixa (0 mm / 1ª hora) Afibrinogenemia / Alterações na forma das disfibrinogenemia hemácias (por exemplo: doença SS) Agamaglobulinemia Retardo na realização do Policitemia vera exame Insuficiência cardíaca Hipoalbuminemia Tabela 2.3 Condições não inflamatórias e/ou infecciosas que justificam VHS elevada: idade avançada (VHS em torno de 40 mm na primeira hora), sexo feminino e gravidez. * De todas as doenças da Medicina Interna, a VHS tem maior sensibilidade para arterite temporal ou arterite de células gigantes.

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Significado clínico em reumatologia

Proteína C-reativa (PCR)

A determinação da VHS, por ser um teste inespecífico, tem valor relativo no acompanhamento do processo

É uma proteína produzida pelo fígado como reagente da fase aguda, em resposta à interleucina-6 e outras citocinas, e se constitui de cinco su-

inflamatório, assim como da resposta terapêutica das doenças reumatológicas clássicas. Os valores desse teste mostram-se elevados na maioria das vasculites sistêmicas, mas não é incomum que eles estejam normais nas púrpuras de Henoch-Schönlein, na tromboangeíte obliterante e na vasculite isolada do SNC. Entre todas as doenças do colágeno, a VHS é particularmente útil no diagnóstico e no acompanhamento de arterite de células gigantes, ou arterite temporal, assim como na polimialgia reumática, nas quais os valores encontram-se muito elevados, quase sempre acima de 100 mm na primeira hora. Uma informação relevante é que nos pacientes com arterite temporal que cursam com respostas inflamatórias extremamente fortes, com sintomas sistêmicos de febre, perda de peso, anemia e VHS > 100 mm/hora, estão associados a menor risco de perda visual. Por outro lado, 5 a 10% dos pacientes com artrite reumatoide ativa têm VHS normal. A VHS tem um valor limitado em pacientes com síndrome nefrótica ou doença renal em estágio final, porque virtualmente todos têm uma VHS elevada (alguns > 100 mm/hora), provavelmente em decorrências dos altos níveis de fibrinogênio.

Uma sugestão de como proceder diante de uma VHS elevada Conduta a ser tomada em um paciente com um teste de VHS elevada • História clínica adequada x Impressão diagnóstica • Hemograma completo • Bioquímica • Enzimas hepáticas • Urina tipo I Se necessário Repetir VHS Persistindo elevada Dosar fibrinogênio Eletroforese de proteínas (Hipergamaglobulinemia) Proteína C reativa Não havendo diagnóstico Reavaliar o paciente com exame físico e VHS em 1-3 meses. Mais de 80% dos pacientes normalizarão a VHS

Figura 2.1

bunidades ligadas não covalentemente e arranjadas em simetria cíclica em um plano único. Sua função é ligar-se aos componentes da parede celular no componente do complemento C1q e aos receptores em neutrófilos e monócitos, para ajudar a iniciar e facilitar a resposta inflamatória. A linha da base média para adultos jovens é de 0,8 mg/L e o percentil 90 é de 3,0 mg/L. Sua elevação ocorre 4 horas após o início do processo inflamatório (em comparação com outras proteínas que, em geral, aumentam após 24 horas), atingindo um pico máximo em 24-72 h. Sua medida é realizada pelo método Elisa e radioimunodifusão. Mais recentemente, um imunoensaio turbidimétrico com partículas de látex tem sido utilizado para a detecção de proteína C-reativa de alta sensibilidade (PCRas), com limiar de detecção de 0,01 mg/ dL. Essa metodologia permitiu reconhecer o notável valor de predição da PCR-as (ultrassensível) em níveis persistentemente elevados, em doenças coronárias e em AVC, o que parece refletir a existência de um processo inflamatório de menor intensidade, mas constante, ou de possíveis efeitos pró-inflamatórios ou pró-trombóticos da proteína por si só. Causas de elevação da proteína C-reativa Exercício vigoroso Frio Gravidez Gengivite Convulsão < 1 mg/dL Depressão Diabetes melito Obesidade Idade Infarto do miocárdio Neoplasias Pancreatite 1-10 mg/dL Infecção de mucosa (bronquite, cistite) Artrite reumatoide Infecções bacterianas agudas > 10 mg/dL Grandes traumas Vasculite sistêmica Tabela 2.4 Nas doenças reumáticas, a PCR é o teste mais sensível para indicação de febre reumática em atividade (coreia e eritema marginato são exceções). No LES (exceto na presença de serosite e/ou sinovite),

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2 na dermatomiosite, na esclerodermia e na osteoartrite são observados valores pouco elevados, ou normais, e nessas doenças a PCR é útil como marcador de infecção, quando seus valores séricos se encontrarem maiores do que 8-10 mg/dL (atenção!). Na doença de Still, a síntese de proteína C-reativa pode estar substancialmente elevada (acima de 20 mg/ dL), da mesma forma que a ferritina sérica. Na AR, valores persistentemente altos de PCR estão associados com uma taxa maior de progressão radiológica, desenvolvimento de osteoporose e piora funcional (atenção!). Quando pedir PCR em vez de VHS? Os dois testes medem componentes de resposta da fase aguda e são úteis em avaliar inflamação generalizada. O teste da VHS é afetado por múltiplas variáveis e, assim, impreciso, sendo, contudo, de baixo custo e fácil de realizar. O teste PCR mede um reagente da fase aguda especificamente e, portanto, é mais específico, além de aumentar rapidamente e cair mais rapidamente (decresce cerca de 50% em 24 horas) do que a VHS, que tende a permanecer elevada por um longo tempo (decresce cerca de 50% em uma semana). A PCR atualmente é também utilizada como um excelente parâmetro bioquímico na diferenciação entre pancreatite edematosa e necrotizante. Após 24 horas do início da necrose, atinge valores acima de 120 mg/L em 95% dos casos.

Mucoproteínas Duas classes são de interesse em abordagem diagnóstica:

Alfa-1 glicoproteína ácida

Alfa-2 macroglobulina

A alfa-1 tem como função ligar-se e neutralizar uma série de enzimas proteolíticas. Encontra-se elevada na presença de destruição celular e distúrbios inflamatórios. A alfa-2 funciona como proteína carreadora e está elevada na síndrome nefrótica, nos distúrbios inflamatórios agudos e na lise celular.

47 Laboratório em reumatologia

SAA-4, todas de função biológica ainda desconhecida. Durante a fase aguda de um processo inflamatório, SAA-1 e SAA-2 são sintetizadas pelos hepatócitos e podem compreender mais de 2% das proteínas totais sintetizadas, resultando em um aumento de sua concentração no plasma de 1 a 5 µg/mL para 1 mg/mL. Citocinas pró-inflamatórias induzem aumento na síntese das A-SAA. Essa resposta se caracteriza por ser mais lenta e mais sensível a pequenas lesões teciduais quando comparada àquela observada com a proteína C-reativa, mas com intensidade semelhante. A SAA sérica é a precursora da proteína amiloide-A que compõe os depósitos amiloides teciduais secundários vistos nas doenças crônicas. Atualmente, o método de escolha para a dosagem de SAA é o imunoensaio nefelométrico de aglutinação de partículas de látex com limite de normalidade acima de 5 mg/L.

Eletroforese de proteínas Por meio da análise eletroforética de fluidos biológicos, pode-se determinar as frações proteicas, documentando-se o aumento dessas frações como resposta a um processo inflamatório agudo ou crônico. Desse modo, o aumento na concentração da fração alfa-1 globulina e, algumas vezes, também de alfa2 sugere resposta inflamatória aguda, enquanto a elevação das gamaglobulinas é altamente sugestiva de um processo inflamatório crônico. Nas doenças reumáticas autoimunes e doenças infecciosas crônicas o aumento das gamaglobulinas é geralmente policlonal, diferentemente do que se observa nos distúrbios plasmocitários (exemplo: mieloma múltiplo), nos quais o pico é monoclonal. Outra alteração que pode ser encontrada na eletroforese de pacientes com processos inflamatórios de longa duração é a hipoalbuminemia, por falência do hepatócito.

A utilização dessas proteínas na investigação diagnóstica é bastante limitada em função da falta de especificidade, não tendo interesse particular em qualquer doença reumatológica, exceto na fase aguda da FEBRE REUMÁTICA, quando sua normalização constitui o melhor critério de alta.

Substância amiloide sérica Trata-se de uma proteína da família das apoliproteínas, que fazem parte das proteínas da fase aguda da inflamação e são denominadas substância amiloide sérica A (SAA), SAA-1 e SAA-2 e forma constitutiva

Figura 2.2 Eletroforese sérica em gel de agarose. A: perfil normal. B: mieloma múltiplo.

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48 Reumatologia O sistema complemento é constituído por uma série de proteínas produzidas pelo fígado, as quais, na presença de ligantes, complexos imunes circulantes ou micro-organismos, são ativadas de maneira sequencial via C1q (via clássica) ou, diretamente, via C3 (via alternada). Há, ainda, a des-

Figura 2.3  Eletroforese em gel de agarose de paciente com mieloma múltiplo.

Complemento sérico O sistema complemento é composto por várias proteínas séricas sintetizadas pelo fígado, capazes de causar lise nas bactérias, quando ligadas com anticorpos específicos. Para a maioria das aplicações clínicas, utiliza-se a dosagem da atividade de complemento total (CH50 ou CH100) e dos complementos C3 e C4. Pela dosagem dos três componentes, você pode avalizar a atividade das vias clássica e alternativa, assim como triar deficiências de complemento. No consumo de complemento pela via clássica

(imunocomplexos), todos os componentes estão diminuídos. Se o complemento é ativado pela via alternativa (como é observado na glomerulonefrite), C3 e CH50 estão diminuídos, mas C4 (via clássica) permanece normal. Como o CH50 requer todos os complementos para estar presente, torna-se útil para triar deficiência de complemento. Quando a dosagem de CH50 é indetectável, então torna-se bastante sugestiva de deficiência hereditária de complemento. Complemento sérico pode estar diminuído como resultado de: 1) Produção diminuída, devido à deficiência hereditária ou doença hepática (os componentes do complemento são sintetizados no fígado); 2) Aumento no consumo devido à ativação do complemento. A principal causa do consumo do complemento é o aumento nos níveis dos imunocomplexos circulantes.

O sistema complemento O processo no qual o anticorpo, após combinar-se com o antígeno, inicia a atividade de mais de 18 diferentes proteínas plasmáticas é conhecido como complemento e envolve três vias: clássica, alternativa e da lectina.

crição mais recente de ativação do complemento por uma terceira via, independente de imunoglobulina e de C1. Essa via envolve um novo componente da imunidade inata: a lectiva, que se liga a açúcares tipo manose (mannose-binding lectin ou MBL), presentes na parede da célula microbiana, e que apresenta características moleculares comuns às do C1q. Essa interação resulta na ativação da serina protease-2 associada à MBL (MASP-2) com atividade enzimática similar à C1r/C1s, levando à ativação do complemento. A avaliação in vitro tanto da atividade hemolítica do complemento como da determinação dos níveis séricos de alguns dos seus componentes (C2, C3, C4 e MBL) contribui significativamente para evidenciar o desenvolvimento de processos inflamatórios in vivo mediados pela formação de complexos imunes ou de deficiências seletivas de um de seus componentes. Método: a análise funcional do sistema de complemento só pode ser feita com soro fresco e consiste na determinação da sua atividade lítica utilizando hemácias sensibilizadas com anticorpos específicos (hemolisinas). Os resultados são expressos em unidades de hemólise (CH50), que correspondem à diluição do soro teste que produz 50% de lise das hemácias. A determinação dos níveis séricos da MBL é feita por Elisa, e dos componentes C3 e C4 por imunodifusão radial ou nefelometria, utilizando antissoros monoespecíficos. Significado clínico: a diminuição da atividade hemolítica se reflete, em geral, no consumo de complemento in vivo pelo desenvolvimento de processo inflamatório envolvendo formação de complexos imunes circulantes. No lúpus, o complemento é um excelente parâmetro para monitorização da atividade de doença e resposta terapêutica, em especial naqueles pacientes com acometimento renal. Por outro lado, atividade hemolítica reduzida pode sugerir também deficiências seletivas de complemento, em particular aquelas dos componentes C2 e C4, as quais podem estar associadas ao lúpus ou à síndrome Lúpus-like, que com frequência se apresenta com FAN negativo. Por outro lado, existem evidências de que níveis baixos de C1q no LES podem eventualmente resultar da presença de autoanticorpos específicos para este componente e que são fortemente associados à hipocomplementemia e atividade da nefrite lúpica. Além disso, concentrações baixas de MBL, além de indicarem consumo durante a atividade de doença, podem refletir polimorfismos genéticos. Sua deficiência associada a mutações ge-

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2 néticas, de modo similar às dos componentes C4 e C2, tem impacto negativo nas doenças inflamatórias crônicas e parece estar associada a maior risco de desenvolvimento de doenças autoimunes, particularmente LES. Existem ainda outras condições que podem cursar com o complemento baixo sem evidência de formação de complexos imunes, como choque séptico, falência hepática e pancreatite. Condições clínicas associadas a deficiências hereditárias do complemento Componentes do Doença complemento Precoces (C1, C2, Doença LES-like GlomeruloneC4) frite Infecções piogênicas recorrentes Médios (C3, C4) Doenças LES-like Infecções recorrentes (especialTerminais (C5, C9) mente gonocócica e meningocócica) Angioedema (hereditário ou adRegulador (C1 INH) quirido) Tabela 2.5

Doenças autoimunes e adquiridas associadas à hipocomplementenemia Doenças reumáticas LES Vasculites sistêmicas (especialmente poliarterite nodosa, urticária) Crioglobulinemia tipo II Artrite reumatoide com manifestações extra-articulares (forma grave de doença) Doenças infecciosas Endocardite infecciosa subaguda Sepse bacteriana Viremias (por exemplo: HIV) Parasitemias (por exemplo: Plasmodium malariae)

Tipo I

II III

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Doenças autoimunes e adquiridas associadas à hipocomplementenemia (cont.) Glomerulonefrites Pós-estreptocócica Membranoproliferativa Crioglobulinemia mista Nefrite lúpica proliferativa difusa Tabela 2.6 Atenção!

Crioglobulinas Correspondem a um grupo de imunoglobulinas que possui uma característica particular: sob baixas temperaturas (geralmente abaixo de 25ºC) formam agregados insolúveis que se precipitam, formando gel, e tendem a se dissolver sob posterior aquecimento (geralmente a 37ºC). De acordo com as características do crioprecipitado, podemos classificar as crioglobulinas em três tipos: Crioglobulina tipo I: caracteriza-se pela presença exclusiva de imunoglobulina monoclonal (IgG, IgM ou IgA e raramente proteína de Bence-Jones), não possui atividade de fator reumatoide e tampouco fixa complemento. Crioglobulina tipo II: é constituída de imunoglobulinas monoclonais, geralmente IgM, que formam um imunocomplexo com uma IgG policlonal, em geral com atividade de fator reumatoide e níveis baixos de complemento, particularmente C1q e C4 com níveis relativamente normais de C3. Esta forma costuma se apresentar sob a forma de vasculite sistêmica e se associa à viremia pelo HCV (em aproximadamente 75% dos casos). Crioglobulina tipo III: apresenta imunoglobulinas somente com componente policlonal e, quase sempre, uma delas com atividade de fator reumatoide. As crioglobulinemias dos tipos II e III são classificadas como mistas, pois possuem uma “mistura” de imunoglobulinas dos tipos IgM e IgG. No tipo II é mais comum o FR ser IgM e no tipo III ser IgG.

Crioglobulinemias: classificação e associações clínicas Alterações laboratoriais Alterações clínicas Doenças associadas Pico monoclonal, hiper- Acrocianose, Raynaud, neMieloma, macroglobulinemia, viscosidade, FR negativo crose linfoma, idiopática (extremidades), síndrome de hiperviscosidade Hepatite C, LLC, síndrome de FR Monoclonal FR, ↓C4, Púrpura, artralgia/artrite, (IgM) e policlonal ↑ transaminases, neuropatia e nefrite Sjögren e LES IgG FR positivo FR Policlonal (IgG) e FR positivo Púrpura, artralgia/artrite, Hepatite C, outras infecções policlonal IgG neuropatia e nefrite crônicas e síndrome de Sjögren e LES Composição Monoclonal (IgG, IgM, IgA, cadeia leve)

Tabela 2.7

FR: fator reumatoide; HCV: hepatite por vírus C; LLC: leucemia linfocítica crônica.

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50 Reumatologia derivadas de uma linha celular tumoral epitelial humana), que é a mais utilizada atualmente. Na inter-

Autoanticorpos Célula LE (célula do LES) O fenômeno das células LE refere-se ao achado de leucócitos polimorfonuclear contendo material eosinofílico fagocitado. Foi descrito inicialmente em pacientes com LES e, durante as décadas de 1950 e 1960, foi o principal método para pesquisar anticorpos antinucleares. Devido à técnica complexa e à baixa sensibilidade, é um exame em desuso e atualmente a pesquisa de anticorpos antinucleares tem sido realizada pela imunofluorescência indireta. Entretanto, as células LE apresentam alta especificidade para o diagnóstico de LES, podendo serem solicitadas em casos selecionados. Existem relatos na literatura internacional do achado de células LE em líquido pleural, sinovial e biópsia renal de pacientes com LES. Célula LE Falso-negativo LE induzido por droga Uso de heparina Artrite reumatoide Leucopenia acentuada Hepatite aguda e crônica Uso de imunossupressor Hipersensibilidade a drogas Tabela 2.8 Célula LE Falso-positivo

Fator antinuclear (FAN) ou anticorpo antinuclear Autoanticorpos são imunoglobulinas que reconhecem antígenos presentes nas células e nos órgãos do próprio indivíduo. Fator antinuclear (FAN) é a denominação dada ao teste de imunofluorescência indireta (IFI) para a pesquisa de autoanticorpos que reagem com componentes presentes não só no núcleo das células, mas também no nucléolo, no citoplasma e no aparelho mitótico. Hoje, há uma tendência para substituir esse nome para pesquisa de anticorpos contra antígenos celulares (PAAC). Um FAN deve ser solicitado sempre que a avaliação clínica do paciente sugerir a presença de doença autoimune, podendo ser utilizado como um teste de triagem. É importante destacar que este exame também pode ser encontrado em indivíduos sadios em uma prevalência de 1,1 a 13,3%. O méto-

do indicado para detecção de FAN é a imunofluorescência indireta (IF), técnica que se baseia na ligação dos anticorpos a vários substratos celulares, como o fígado/rim de rato ou células de cultura de tecido humano (HEp2 - uma linha de células proliferativas

pretação dos resultados, é importante a avaliação de parâmetros quantitativos, como o título de FAN encontrado, bem como a distribuição espacial de um determinado autoanticorpo na célula HEp-2, conhecido como padrão de IFI. A interpretação do FAN deve ser feita com cautela, devido à possibilidade de reações falso-positivas e falso-negativas. Um ponto a ser considerado é o título do PAAC-IFI em HEp-2: em geral, os pacientes autoimunes tendem a apresentar títulos moderados (1/160 e 1/320) e elevados (≥ 1/640), enquanto os indivíduos sadios com PAAC-IFI em HEp-2 positivo tendem a apresentar baixos títulos (1/80). Entretanto, em ambas as situações pode haver exceções. PAAC-IFI-HEp-2 Títulos baixos : ≤ 1/80 Títulos moderados : 1/160 a 1/320 Títulos altos: ≥ 1:640 Outro ponto a se considerar é que o nível de autoimunidade fisiológica, ou basal, pode flutuar na dependência de sobrecargas a que o sistema imunológico seja exposto. Está bem demonstrada a presença de autoanticorpos desencadeada transitoriamente por infecções, por medicamentos e por neoplasias. Tem sido demonstrada claramente alta prevalência de autoanticorpos em pacientes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e por outros vírus linfotrópicos. Portanto, outra consideração a ser feita ante um paciente com um achado positivo de PAAC-IFI em HEp-2 refere-se à possibilidade de infecções virais recentes, uso de medicamentos e processos neoplásicos várias evidências demonstram que os autoanticorpos frequentemente precedem a eclosão clínica das doenças autoimunes. Um teste de PAAC-IFI em HEp-2 positivo pode preceder o aparecimento clínico do LES em até nove anos. Cerca de 80% dos pacientes com LES apresentam PAAC-IFI em HEp-2 positivo antes do aparecimento dos primeiros sintomas. O mesmo é válido, embora em menor porcentagem, para os vários autoanticorpos específicos dessa enfermidade, como anti-d NA nativo e anti-Sm. Portanto, outra possibilidade a se considerar em presença de um achado clinicamente inconsistente de PAAC-IFI em HEp-2 positivo é a de que o paciente poderá vir a desenvolver uma doença autoimune nos próximos anos. No entanto, alguns indivíduos podem seguir décadas com autoanticorpos circulantes sem desenvolver qualquer sinal de enfermidade autoimune. Diante um resultado positivo de PAAC-IFI em HEp-2 é imprescindível que se caracterize essa reatividade, buscando a presença de anticorpos peculiares de condições autoimunes através de técnicas específicas. Essa avaliação deve ser subsidiada por evidência clínica ou laboratorial de doença autoimune sistêmica. Além

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Os padrões de FAN referem-se aos padrões de fluorescência nuclear observada ao microscópio de imunofluorescência. Certos padrões de fluorescência são associados a determinadas doenças e autoanticorpos, embora essas associações não sejam específicas. Os diferentes padrões refletem as

do exame clínico apurado, é importante verificar possíveis alterações em hemograma, urina I, proteína C-reativa e velocidade de hemossedimentação (vHS), que podem ser considerados extensões do exame clínico. Em alguns casos, pode ser válido investigar enzimas hepáticas e musculares. Sintomas vagos, como artralgia e astenia, com exames laboratoriais gerais normais não são suficientes para oferecer subsídio para um achado laboratorial de PAAC-IFI em HEp2 em título baixo e com padrão de fluorescência pouco específico. Nesses casos, o exercício do bom senso com o acompanhamento da situação clínica do paciente em consultas regulares pode ser a melhor conduta.

diferenças nos anticorpos antinucleares contidos nos diferentes soros. Interpretações dos padrões de FAN têm sido substituídas amplamente pela identificação dos anticorpos antinucleares específicos por meio do perfil do FAN.

Mais recentemente, testes Elisa têm se mostrado disponíveis para detectar anticorpos antinucleares, mas apresentam alta sensibilidade e baixa especificidade, causando um grande número de exames falso-positivos.

O padrão nuclear pontilhado fino denso é o mais detectado em indivíduos sadios ou com doenças neoplásicas e infecciosas, nas quais a natureza dos antígenos-alvo ainda não foi identificada.

Padrões de fatores antinucleares mais comumente observados em conectivopatias e seus correspondentes autoantígenos Doença Padrão predominante (IFI/HEp-2) Autoantígeno alvo Homogêneo dsDNA, cromatina, histona Nuclear: Pontilhado grosso U1-snRNP, SM LES Pontilhado fino Ro/SS-A, La/SS-B Pontilhado fino denso e Citoplasmático misto: Proteína P ribossomal nucleolar homogêneo Lúpus induzido por Histona Nuclear homogêneo droga DMTC Nuclear pontilhado grosso U1-snRNP Lúpus neonatal Nuclear pontilhado fino Ro/SS-A, La/SS-B Síndrome de Sjögren Nucleolar aglomerado Fibrilarina/U3-nRNP) NOR 90, RNA pol I Esclerose sistêmica Nuclear pontilhado Misto: nuclear homogêneo e nucleolar pontilhado Scl70 Nuclear pontilhado centromérico CENP-A, B e C CREST Citoplasmático pontilhado fino Jo1 Polimiosite PM/Scl Sobreposição PM/ES Nucleolar homogêneo Tabela 2.9 CREST: calcinose, Raynaud, esofagopatia, esclerodactilia, telangiectasia; DMTC: doença mista do tecido conjuntivo; ES: esclerose sistêmica; FR: fator reumatoide; LES: lúpus eritematoso sistêmico; PM: polimiosite.

O IV Consenso Brasileiro para pesquisa de autoanticorpos em células HEp-2 realizado no dia 18 de setembro de 2012 inclui nas recomendações para a utilização de FAN na prática clínica os seguintes padrões:

Padrão citoplasmático em anéis e bastões: os alvos antigênicos reconhecidos são a inosina monofosfato deidrogenase 2 (IMPDH2) e a citidina trifosfato sintase 1 (CTPS1). Trata-se de enzimas essenciais na via de biossíntese da citidina trifosfato e da guanosina trifosfato, respectivamente. A CTP está envolvida na biossíntese de ácidos nucleicos (DNA, RNA) e fosfolipídios, com importante função na proliferação celular. A IMPDH2 catalisa a oxidação NAD-dependente da inosina monofosfato em xantosina monofosfato, processo essencial na biossíntese da guanosina monofosfato, portanto atividade

também estreitamente relacionada ao mecanismo de proliferação celular. A partir da inibição farmacológica da CTPS1 (6-dia-zo-5-oxo-L-norleucina e Acivicina) e da IMPDH2 (Ribavirina), evidenciou-se a indução dose-dependente de estruturas em anéis e bastões citoplasmáticos em substratos de células neoplásicas, incluindo-se as células HEp-2. Este marcador foi documentado em 38% de 342 pacientes com HCV, em tratamento com ribavirina e interferon alfa.

Padrão pontilhado quasi-homogêneo (QH): é um padrão distinto dos padrões nuclear homogêneo e nuclear pontilhado fino denso, em que não se verifica uma especificidade

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52 Reumatologia antigênica única, mas sim uma miscelânea de alvos antigênicos reconhecidos. O perfil clínico associado ao padrão pontilhado fino quasi-homogêneo situa-se de forma intermediária entre o padrão pontilhado fino denso e o padrão homogêneo. Portanto, a identificação desse padrão sugere a continuidade da investigação do diagnóstico clínico, porque pode estar relacionado a doenças reumáticas autoimunes sistêmicas.

Padrão misto do tipo CENP-F: caracterizado por fluorescência pontilhada fina de intensidade variável na matriz nuclear nas células em interfase e nucléolos geralmente negativos. Observa-se ainda neste padrão uma delicada decoração rendilhada dos cinetócoros, predominantemente visível na prófase e na metáfase. O aparelho mitótico apresenta ainda marcação pontual na região central da ponte intercelular nas células em telófase. Finalmente, as figuras em prófase exibem delicada coloração do envelope nuclear. Trata-se de um padrão complexo, ocasionado por anticorpos contra uma proteína de 350 kDa, conhecida como CENP-F ou mitosina. Esta proteína tem função importante na organização do sistema de microtúbulos citoplasmáticos, metilação de histona H3, regulação de alguns fatores de transcrição e progressão do ciclo celular para mitose. Rattner e colaboradores identificaram o padrão no soro de um paciente com câncer de pulmão e posteriormente em câncer de mama. Cassiano e colaboradores relataram positividade para o padrão em diferentes doenças neoplásicas, doenças hepáticas crônicas, rejeição crônica de aloenxerto renal e doença de Crohn. Foi relatada a presença do padrão CENP-F em um paciente com carcinoma colorretal. Como um todo, a literatura aponta para a suspeita de doença neoplásica em pacientes com este padrão. Padrão misto do tipo anti-DNA topoisomerase: o IV Consenso chamou a atenção para o padrão composto relacionado à presença de anticorpos anti-DNA topoisomerase I (Scl-70). A descrição clássica na literatura do padrão associado a anticorpos anti-DNA topoisomerase I restringe-se ao núcleo e ao nucléolo, não havendo especificidade neste achado.

Uma vez que o teste FAN se defina como positivo, o seu significado clínico vai depender do contexto clínico. Ao final deste capítulo você poderá analisar a tabela que expõe os padrões de PAAC-IFI em HEp-2 e os diversos autoanticorpos e associações clínicas mais frequentes. A inclusão dessa tabela tem por objetivo deixar esse universo de conhecimentos disponível, principalmente para aqueles com interesse na especialidade.

Drogas indutoras de FAN positivo Drogas comuns Drogas incomuns Procainamida; Hidrala- Mais de 60 drogas diferenzina; Fenotiazinas; Dife- tes têm sido implicadas nil-hidantoína; Isoniazida; como causas não usuais de Quinidina; Alfametildopa; FAN positivo. D-Penicilamina; Clorpromazina; Carbamazepina; Labetolol. Tabela 2.10  Definidas: hidralazina, procainamida e minociclina. A síndrome clínica de LE induzido por drogas ocorre somente em uma porcentagem pequena de pacientes com anticorpos antinucleares induzidos por drogas, podendo o FAN ficar positivo meses e até anos após a suspensão da droga. Os anticorpos antinucleares usualmente dirigem-se contra o epítopo formado pelo complexo DNA-H2A-H2B (este é o marcador mais específico de LE induzido por drogas, anticorpo anti-histona), embora a hidralazina cause anticorpos primariamente contra o dímero H3-H4 histona. Causas de FAN positivo 1- Doenças reumáticas LES Polimiosite Síndrome de Sjögren Esclerodermia Vasculites Artrite reumatoide 2- Indivíduos sadios Mulheres > Homens Idosos > Jovens Mulheres grávidas (?) 3- Induzidos por drogas (Tabela 2.9) 4- Doenças hepáticas Hepatite crônica ativa Cirrose biliar primária Doença alcoólica do fígado 5- Doenças pulmonares Fibrose pulmonar idiopática Fibrose induzida por asbestos Hipertensão pulmonar primária 6- Infecções crônicas 7- Malignidades Linfoma (principalmente) Leucemia Melanoma Tumores sólidos (ovário, pulmão, rim, mama) 8- Doenças hematológicas Púrpura trombocitopênica idiopática Anemia hemolítica autoimune

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2 Causas de FAN positivo (cont.) 9- Miscelânea Desordens endócrinas (diabetes mellitus tipo I, doença de Graves) Doença neurológica (esclerose múltipla) Insuficiência renal terminal Pós-transplante Tabela 2.11

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que contém no seu cinetoplasto um DNA circular que funciona como “um dsDNA puro”, sem associação com proteínas. Alternativamente, a técnica pelo método Elisa, por sua natureza quantitativa, poderá ser útil para o acompanhamento das flutuações dos anticorpos anti-dsDNA, desde que a presença deste tenha sido confirmada por um teste específico. Os anti-DNAs, principalmente do subtipo IgG, também apresentam alta especificidade para o diagnóstico de LES, e a sua detecção foi incluída como critério do ACR para classificação de LES. Ocasionalmente, infecções (sífilis e endocardite infecciosa), neoplasias (mieloma múltiplo) e doenças autoimunes (hepatite autoimune e artrite reumatoide) podem apresentar anti-dsDNA, geralmente em baixos títulos, sem que haja importância clínica específica.

Atenção!

Figura 2.4 Padrões de reatividade dos anticorpos antinucleares por imunofluorescência indireta em células HEp-2: (A) nuclear homogêneo, (B) nuclear pontilhado, (C) nucleolar, (D) centromérico e (E) citoplasmático.

Níveis crescentes ou altos títulos de anticorpo anti-DNA, associados a baixos níveis de complemento, quase sempre significam exacerbação da doença ou doença em atividade. A associação desse

anticorpo com o envolvimento renal no lúpus é marcante (valorize esta informação). Outros anticorpos incluídos no perfil do FAN são marcadores da doença, porém não variam com a atividade da doença.

Anticorpo Anti-DNA de cadeia simples (ssDNA) São anticorpos diretos contra as bases púricas e pirimídicas e estão presentes em 50% dos pacientes com LES, mas sem especificidade para nenhuma doença.

Figura 2.5 IV Consenso FAN 2012. Citoplasmático em bastões e anéis.

Anticorpo anti-DNA de cadeia dupla ou nativo (dsDNA) Encontrado em cerca de 50 a 70% dos pacientes com lúpus ativo. É o único autoanticorpo claramente implicado na patogênese do LES, com formação de imu-

nocomplexos, deposição renal, inflamação local e glomerulonefrite. Sua presença em títulos elevados está associada com maior probabilidade de acometimento renal e doença grave. O método de escolha para sua detecção é a técnica de imunofluorescência indireta, empregando-se como substrato o hemoflagelado Crithidia luciliae,

Condições que cursam com ssDNA positivo LE induzido por droga (75%) Hepatite crônica ativa (50%) Mononucleose infecciosa (40%) Artrite reumatoide (55%) Glomerulonefrites crônicas (10%) Cirrose biliar primária (12%) Tabela 2.12

Atenção! O anticorpo anti-ssDNA possui baixa especificidade e, portanto, tem pouco valor na avaliação das doenças autoimunes, mas pode ser útil em pacientes com suspeita de LES com FAN persistentemente negativo (1-10% dos casos).

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Anticorpos anti-histona

Anticorpos antiproteínas nucleares (Cont.)

As histonas são proteínas que contêm grande proporção de aminoácidos, encontradas em células eucariotas associadas ao DNA genômico. As subunidades DNA-histona reconhecidas são: H1, H2A, H2B, H3 e H4. Anti-histonas ocorrem mais comumente no LE induzido por drogas (> 95%), sendo, portanto, o melhor marcador dessa condição; uma exceção importante é o LE induzido pela minociclina, só uma minoria positiva este autoanticorpo podem ocorrer em 20% dos casos de artrite reumatoide, 30-70% dos casos de LES, 5-50% na ES e 20% na dermatopolimiosite. O método para detecção desses

anticorpos é o Elisa, utilizando preparações purificadas de histonas. Os anticorpos anti-histonas mais frequentemente reativos no LE induzido por drogas são: H2A, H2B e H3H4 (este último associado a LE induzido por hidralazina). De todas as drogas relacionadas (Tabela 2.10), a procainamida é a droga mais comumente envolvida na síndrome. Cerca de

10-20% dos pacientes em uso desse medicamento desenvolvem doença autoimune sintomática.

Anticorpos contra antígenos nucleares extraíveis (anti-ENA) Vários antígenos presentes nas células podem ser extraídos a partir de tecidos homogeneizados em soluções salinas. Os ENA são, na verdade, antígenos celulares extraíveis e não apenas antígenos nucleares. Inicialmente, a denominação ENA referia-se apenas aos antígenos Sm e RNP. Entretanto, vários outros autoantígenos foram posteriormente identificados nos extratos salinos celulares, podendo ser considerados ENAs (Tabela 2.12). Anticorpos antiproteínas nucleares LES, AR, Sjögren, anti-RNP Altos títulos são diagnóstico de DMTC (> 1:1.600) anti-Sm Específico para LES, mas com sensi(Smith) bilidade baixa de apenas 25 a 30% Mais frequentemente associado à anti-Ro/SSA, síndrome de Sjögren primária; enanti-La/SSB contrado também na AR e no LES Esclerose sistêmica difusa anti-Scl-70

anti-PM-Scl

Síndrome de sobreposição polimiosite-esclerodermia, mas também pode ser encontrado nestas doenças isoladamente; está associado a bom prognóstico

anti-Jo1

Presente em 30% dos pacientes com poliomiosite, sendo raro em pacientes com dermatomiosite; é considerado o marcador da poliomiosite, especialmente quando associado à alveolite fibrosante

anti-Ku

Encontrados na esclerodermia e na síndrome de sobreposição esclerodermia-poliomiosite (25-55%). Atualmente relacionado com HP (hipertensão pulmonar) primária

anti-Ki

LES associado com sinovite, pericardite, hipertensão pulmonar e alta prevalência de envolvimento do SNC

anti-Mi-2

Exclusivamente na dermatomiosite, sensibilidade de 20%, e pode ser visto na DM do adulto, juvenil ou associada à neoplasia

anticorpo anti-RANA

Na artrite reumatoide, particularmente em associação com Sjögren

anti-RA33

Parece ser bastante específico para a artrite reumatoide, sendo encontrado em 36% dos casos

É detectado em 3% dos pacientes com LES e, apesar de específico, não PCNA mostra associação com nenhuma ca(proliferating racterística clínica; caracteriza-se cell nuclear por um padrão pontilhado heterogêantigen) neo em aproximadamente 50% das células Autoanticorpos contra proteínas presentes no citoplasma; cerca de 10% dos casos de LES apresentam anticorpo anesse anticorpo, associado ao surgitiribossomal P mento de síndromes psicóticas e de(rRNP-P) pressão severa; é específico para LES, com doença neurológica e renal Tabela 2.13  Atenção!

Anticorpo anti-R NP Os anticorpos anti-U1-RNP são descritos em 25 a 47% dos pacientes com LES, principalmente nos pacientes que apresentam fenômeno de Raynaud. Atenção: alguns estudos descreveram uma baixa prevalência de envolvimento renal em pacientes com LES e anti-RNP, sugerindo um papel protetor para a nefrite. Altos títulos de anti-RNP (> 1:1.600) são fortemente sugestivos de doença mista do tecido conjuntivo (DMTC), podendo flutuar com o tempo, mas não se correlacionam à atividade ou à gravidade da doença.

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Anticorpo anti-Sm

Anticorpo anti-Jo-1

Os anticorpos anti-Sm (de Smith, nome do primeiro paciente em que foi reconhecido) são encontrados em uma frequência de 10 a 30% dos pacientes com LES, sendo mais frequentes em indivíduos da raça negra. O achado do anti-Sm está associado com uma alta especificidade para o diagnóstico de LES, sendo incluído como critério de classificação do ACR. Apesar de a maior prevalência de anti-Sm ter sido descrita em pacientes com LES em atividade, com nefrite e envolvimento do SNC, ainda é controversa a validade dessa associação.

Este anticorpo é direcionado para a enzima histidil-T-RNA sintetase e está presente em mais de 30% dos pacientes com polimiosite, sendo rara em pacientes com dermatomiosite (10%). É marcador miosite específico, e nesta condição aumenta o risco para alveolite fibrosante.

Anticorpo anti-SSA/Ro e anti-SSB/La Os anti-SSA/Ro são anticorpos contra o antígeno Ro, uma proteína citoplasmática ligada ao RNA, cuja função é desconhecida. O antígeno SSB/La é uma proteína celular ligada a RNAs pequenos e parece participar como cofator para a RNA polimerase. O anti-SSA/ Ro está presente em cerca de 90% dos pacientes com síndrome de Sjögren primária. Já na Sjögren associada a AR, ocorre em 10-15% dos casos. No LES, é detectado em 30% dos casos, marcando as seguintes formas clínicas: lúpus eritematoso neonatal, lúpus eritematoso subcutâneo, deficiência homozigota de C2 e C4 e LES com pneumonite intersticial. A presença de anti-SSB/La está fortemente associada à síndrome de Sjögren, ocorrendo em cerca de 2/3 dos pacientes e no LES em 15%. E nesta última condição parece exercer um efeito nefroprotetor.

Anticorpo anti-Scl-70 São anticorpos contra uma proteína 70 KD que foi recentemente identificada como DNA topoisomerase I. O anti-Scl-70 é encontrado quase que exclusivamente em paciente com ES, sendo descrito em 40 a 70% dos pacientes com a forma difusa e em 10 a 18% com a forma limitada. Além da boa especificidade, o anti-Scl-70 é útil na avaliação do prognóstico dos pacientes com ES. Cerca de 50% dos pacientes com envolvimento pulmonar apresentam anti-Scl-70, com fibrose pulmonar mais grave e declínio mais rápido da capacidade vital forçada, descrito por outros autores. Além disso, a presença de anti-Scl-70 esteve associada com maior mortalidade após 5 anos em estudo com 280 pacientes com ES.

Anticorpo anti-Ku São anticorpos dirigidos contra um par de proteínas chamadas P70/80, de alta afinidade pelo DNA. São encontrados na esclerodermia (14-40%), LES (1%19%) e particularmente na síndrome de sobreposição esclerodermia-polimiosite (25-55%). Mais recentemente, foram identificados em 23% dos pacientes com hipertensão pulmonar primária.

Anticorpo antiproteína P ribossomal O autoanticorpo anti-P mais comum tem como alvo três fosfoproteínas: P0, P1 e P2 de 38, 19 e 17 KDa, respectivamente. Estes anticorpos apresentam padrão citoplasmático difuso na imunofluorescência indireta em células HEp2 e são detectados pela técnica de imunoblot ou por Elisa, utilizando-se a fração microssomal ou a proteína recombinante como fonte de antígenos, respectivamente. Anticorpos anti-P são altamente específicos para o LES e detectados em cerca de 10% da população com a doença. Entretanto, essa frequência aumenta até 40% em pacientes com doença ativa e em até 75% naqueles com nefrite lúpica (particularmente nefrite membranosa). Há uma forte associação entre esses anticorpos e algumas manifestações da doença, incluindo distúrbios neuropsiquiátricos como psicose e depressão, além de hepatite e nefrite lúpica.

Anticorpo antinucleossomo A cromatina presente nas células eucarióticas é formada por um conjunto de subunidades denominado nucleossomo, que contém aproximadamente 200 pares de bases de DNA envolvidos por proteínas denominadas histonas. Anticorpos antinucleossomos (AN) podem ser encontrados em 50 a 90% dos pacientes com LES e aparentemente correspondem aos anticorpos antigamente detectados pela técnica das células LE. Os

AN também parecem ser específicos do LES, especialmente quando em títulos moderados ou altos. Entretanto, pacientes com hepatite autoimune (40 a 50% dos casos), síndrome dos anticorpos antifosfolipídios, esclerose sistêmica e síndrome de Sjögren também podem apresentar antinucleossomo. Na maioria dos es-

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56 Reumatologia tudos com pacientes com LES e em modelos animais, a presença de AN teve correlação com a nefrite. Outras associações clínicas, como manifestações hematológicas, artrite e rash malar, também foram descritas. Além de apresentarem boa correlação com os níveis de anti-DNA ds, os AN podem estar presentes em 11 a 51% dos casos de LES com pesquisa de anti-DNA ds negativa. Apesar de alguns autores terem encontrado correlação entre os títulos de anticorpos antinucleossomos e atividade da doença, ainda são necessários novos estudos longitudinais. Atualmente são pesquisados pela técnica de Elisa, com preparações purificadas de nucleossomos, agregando as vantagens de maior sensibilidade e menor possibilidade dos erros metodológicos inerentes à técnica das células LE.

Fator reumatoide O fator reumatoide (FR) descreve um autoanticorpo direcionado contra determinantes antigênicos no fragmento Fc da imunoglobulina G. O fator reumatoide pode ser de qualquer isotipo: IgM, IgG, IgA ou IgE. O FR IgM é o mais encontrado; título maior ou igual a 1:160 é usualmente considerado significante quando feito pelo teste de aglutinação no látex. Atualmente, muitos laboratórios usam a técnica de nefelometria e Elisa para dosar FR IgM; no entanto, os métodos mais utilizados são os de aglutinação passiva, tanto de hemácias sensibilizadas com IgG de coelho (técnica de Waaler-Rose, mais específica), como de partícula de látex ou bentonita cobertas com IgG humana agregada (técnica de Singer e Plotz). O fator reumatoide é encontrado em 80 a 85% dos pacientes com AR, sendo a sua presença critério de classificação da AR pelo Colégio Americano de Reumatologia. No entanto, uma vez diagnosticado AR, pacientes que apresentam altos títulos de FR tendem a ter doença mais grave, com manifestações extra-articulares, incluindo nódulos subcutâneos, doença pulmonar e vasculite sistêmica. O tratamento

com algumas drogas, principalmente a D-penicilamina, diminui os níveis de FR e pode correlacionar-se com melhora clínica em alguns pacientes. Assim, o FR é útil para o diagnóstico e prognóstico da AR (80% dos pacientes com artrite reumatoide do adulto). Distúrbios associados com um teste positivo para fator reumatoide Distúrbios autoimunes Artrite reumatoidea Síndrome de Sjögren primáriaa Doença mista do tecido conectivoa Polimiosite / dermatomiosite Esclerodermia Vasculite associada à ANCAa Poliarterite nodosa Cirrose biliar primáriaa

Distúrbios associados com um teste positivo para fator reumatoide (cont.) Infecções crônicas Endocardite bacteriana subagudaa Tuberculose Hanseníase Sífilis Hepatite Ca (com e sem crioglobulinemia mista) Hepatite Ba Outras infecções virais Infecções parasitárias Condições variadas Sarcoidose Fibrose pulmonar idiopática Silicose Asbestose Processo maligno Idade ≥ 65 anos Tabela 2.14  (a) Prevalência do fator reumatoide > 50% na maioria das séries. ANCA, anticitoplasma de neutrófilos.

Atenção! Indivíduos saudáveis, idosos em particular, podem apresentar títulos de FR positivo, e em 20% dos casos o FR tem título maior que 1:160. Frequência de FR positivo em indivíduos normais de diferentes idades Idade Frequência de FR 20-60 anos 2-4% 60-70 anos 5% > 70 anos 10-25% Tabela 2.15

Anticorpos antiprofilagrina e filagrina Os anticorpos antifilagrina ocorrem em cerca de 45% dos pacientes com artrite reumatoide e têm especificidade próxima a 100% para esta enfermidade. Os anticorpos antiprofilagrina (apf), também chamados antifator perinuclear, ocorrem em cerca de 75% dos pacientes com artrite reumatoide e têm especificidade de cerca de 85% para esta enfermidade. Títulos acima de 1/40 têm especificidade próxima a 100%. Podem ocorrer precocemente no curso da mesma, quando ainda não surgiram fatores reumatoides. Os anticorpos antifilagrina e antiprofilagrina fazem parte de um sistema de anticorpos dirigidos a resíduos citrulinados, que podem ser detectados em três tipos de testes: antifilagrina, antiprofilagrina (apf) e antipeptídeo citrulinado cíclico.

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Anticorpos antipeptídeos cíclicos citrulinados (anti-CCP) No final da década de 1990, após intensa investigação, foi descrito um grupo de autoanticorpos dirigidos para proteínas contendo resíduos de citrulina, ou seja, peptídeos citrulinados que apresentavam alta especificidade para o diagnóstico de AR. Esse exame tem sensibilidade de 50 a 70% e especificidade de 95-96% para diagnóstico de artrite reumatoide do adulto. O estabelecimento de um teste de Elisa empregando peptídeos sintéticos cíclicos citrulinados apresentou bom desempenho diagnóstico na AR, não sendo encontrados em indivíduos saudáveis ou em outras doenças infecciosas e reumatológicas. A relevância do anticorpo anti-CCP parece residir no seu valor diagnóstico, principalmente nas formas precoces da doença e naqueles pacientes com fator reumatoide negativo. Pacientes com hepatite C podem apresentar fator reumatoide positivo e não o anti-CCP, indicando-se o anti-CCP nesses pacientes quando apresentar em artrite, para diferenciar a artrite secundária à hepatite C e a artrite reumatoide em pacientes com o vírus da hepatite C. A presença de anti-CCP também foi associada a um pior prognóstico na AR.

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Além disso, existe ainda boa correlação entre os níveis séricos de c-ANCA e atividade clínica da GW. No entanto, reatividade c-ANCA pode ser também detectada, porém, em menor frequência, nos pacientes com poliangiite microscópica e síndrome de Churg-Strauss (atenção!). Doenças associadas a ANCA c-ANCA p-ANCA Granulomatose de Wegener Poliangeíte microscópica (GW) Glomerulonefrite pauciVasculite de Churg-Strauss imune (rara) Churg-Strauss S. de Goodpasture (títulos Colite ulcerativa baixos) Colangite esclerosante primária HIV Neoplasias (rara) Tabela 2.16 Na GW os títulos de c-ANCA correlacionam-se à atividade da doença e têm sido usados para predizer reativação da doença.

Anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) Anticorpos específicos direcionados contra antígenos específicos presentes no citoplasma de neutrófilos têm sido utilizados para o diagnóstico de vasculite necrotizante sistêmica. Há dois tipos diferentes de ANCA. O ANCA que reage com mieloperoxidade (MPO), elastase ou lactoferrina e determina um padrão perinuclear na imunofluorescência de neutrófilos fixados com etanol e é chamado perinuclear ou p-ANCA. Anticorpos antisserina proteinase 3 determinam co-

loração citoplasmática difusa na imunofluorescência e são chamados citoplasmáticos ou c-ANCA.

Os anticorpos ANCA-padrão c-ANCA são de particular interesse em doenças reumatológicas, pois são altamente específicos para granulomatose de Wegener, constituindo-se em um marcador sorológico para esta doença, além de apresentarem uma boa correlação entre os seus níveis e a atividade da doença. A especificidade do teste para a doença é de 98%, e sua sensibilidade de 63 a 91%; c-ANCA constitui-se, assim, em um marcador sorológico para essa doença, estando presente em 90% dos indivíduos em atividade.

Figura 2.6 Técnicas de imunofluorescência. Anticorpo anticitoplasma de neutrófilo na GW é usualmente IgG. A técnica de coloração granular difusa do citoplasma (c-ANCA) corresponde ao anticorpo dirigido contra serina proteinase 3. O perinuclear (p-ANCA) resulta do anticorpo dirigido geralmente contra mieloperoxidase, mas que pode ser dirigido contra lactoferrina, elastase e catepsina G. p-ANCA tem sido identificado em uma variedade de glomerulonefrites, nas vasculites de Churg-Strauss e poliangiite microscópica.

Anticorpos antifosfolipídios Incluem-se nesse grupo os anticorpos anticardiolipina aCL (anticorpos que reagem ao fosfolipídio cardiolipina, um componente da membrana celular) e

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58 Reumatologia o anticoagulante lúpico (AL), que reage aos fatores da coagulação. Esses anticorpos aparecem em pacientes com doenças crônicas ou infecciosas. Na reumatologia, esses anticorpos estão associados à síndrome do anticorpo antifosfolípide primária ou secundária, esta última mais frequentemente associada ao LES. A síndrome caracteriza-se, dentre outras manifestações clínicas, como trombose venosa, arterial e pelos episódios recorrentes de perda fetal (três ou mais perdas fetais). Mais detalhes sobre esses autoanticorpos serão descritos no capítulo sobre SAAF (Capítulo 5).

Anticorpos anticardiolipina Método. O ensaio imunoenzimático (Elisa) com preparações purificadas do fosfolipídio cardiolipina na presença de soro bovino como fonte de cofator p-GPI é o teste padronizado internacionalmente para a detecção dos anticorpos da classe IgG (o mais comum), IgM e IgA em soro ou plasma. Níveis elevados de aCL estão relacionados com alto risco de trombose e abortos de repetição. O va-

lor diagnóstico desses anticorpos se baseia nos critérios laboratoriais estabelecidos: presença de aCL IgG/ IgM, com níveis moderados a altos em duas ou mais ocasiões, com intervalo de pelo menos 6 semanas e detectados por Elisa, segundo condições padronizadas internacionalmente. Ainda não está comprovada a utilidade do teste no acompanhamento contínuo desses pacientes; contudo, já se demonstrou que os títulos desses anticorpos podem cair na vigência de trombose. Nesse sentido, casos ainda sem diagnóstico devem ter exame repetido 1 a 3 meses após o quadro.

Anticoagulante lúpico Método: a identificação do anticoagulante lúpico (LA) no plasma requer uma análise sequencial que compreende três fases. Inicialmente, determina-se a capacidade de coagulação do plasma (tempo de tromboplastina parcial ativada [TTPA], tempo de coagulação por kaolin [KCT], ou tempo de protrombina ativada [TPA]). Se for identificada alteração no tempo de coagulação, a amostra deve ser submetida à avaliação para a presença de inibidor do processo. Assim, o plasma do paciente é misturado com plasma normal em diferentes proporções. A não restauração da atividade adequada de coagulação sugere atividade do LA, e sua dependência do fosfolípide deve ser identificada em uma fase seguinte. Para tanto, podem ser realizados dois procedimentos de restauração da atividade de coagulação, o que implica na adição de plaquetas ou do fosfolípide isoladamente. A detecção de aCL por Elisa deve ser feita concomitantemente, embora haja concordância desses dois anticorpos somente em 60% dos casos.

A detecção do LA no plasma, similarmente aos anticorpos aCL, mostra uma associação bastante significativa com eventos de trombose, trombocitopenia e abortos espontâneos de repetição observados na síndrome do anticorpo antifosfolípide. O anticoagulante lúpico está presente transitoriamente em um grande número de situações clínicas aloimunológicas em doenças infecciosas ou tumorais. Por outro lado, atividade LA é observada persistentemente em doenças autoimunes, síndrome primária do anticorpo antifosfolípide ou secundária (associada ao LES ou a outra doença do colágeno) e, especialmente nesses casos, tem estreita relação com as manifestações clínicas dessas doenças.

anti-bβ2-glicoproteína Corresponde ao mais novo anticorpo incluído nos critérios laboratoriais da SAF. Cerca de 5% da população em geral apresenta anticorpos séricos anti-beta-2-glicoproteína I. Os níveis desses anticorpos nesse grupo populacional geralmente são baixos. Há casos de falso-positivos e transitórios, também em níveis baixos em casos de comorbidades infecciosas, inflamatórias ou como reação cruzada com alguns medicamentos. O Consenso recomenda que os casos positivos, independente do epítpo utilizado (IgG ou IgM) sejam repetidos, com nova coleta de sangue, após 12 semanas do primeiro teste, para confirmação laboratorial da presença desses anticorpos. A especificidade do teste é maior quanto maiores forem os níveis de anticorpos encontrados. Um fato relevante, a ser considerado é que em 10% dos casos de síndrome de anticorpos antifosfolípides, somente os anticorpos anti-Beta-2-Glicoproteína I estão presentes no sangue periférico dos pacientes, assim eles podem ser considerados mais específicos que os anticorpos anticardiolipina.

Artrocentese e análise do líquido sinovial A principal razão para realizar uma artrocentese é suspeita de infecção articular, artropatia mono ou poliarticular de etiologia incerta. Contraindicações relativas Diátese hemorrágica Celulite na topografia da articulação Alergia a lidocaína e antissépticos Terapia com anticoagulante

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Complicações da artrocentese Infecção (risco menor que 1 em 10.000/mm3) Sangramento/hemartrose Síncope vasovagal Dor Lesão da cartilagem Tabela 2.17

Figura 2.9 Posicionamento da agulha para a artrocentese de (A) cotovelo e (B) joelho. Figura 2.7

Articulação móvel. Estrutura anatômica.

Figura 2.8 Pesquisa do sinal de abaulamento* da articulação para a detecção de derrame articular. (*) Também pesquisado pelo sinal da tecla ou rechaço da patela.

Figura 2.10 Punção articular em um quadro de monoartrite, evidenciando líquido sinovial não purulento.

Após a coleta do líquido sinovial (LS), esse deve ser colocado em tubos estéreis a vácuo e levado para análise.

Testes laboratoriais

Volume: a quantidade de líquido contido nas articulações em geral é pequena. O joelho normalmente contém até 4 mL de líquido. O volume do aspirado geralmente é registrado no prontuário, porém alguns laboratórios também podem incluir o volume em seus relatórios.

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60 Reumatologia

Cor e limpidez: o líquido sinovial normal é incolor e límpido. Outros aspectos podem indicar vários estados de doença. Líquidos sinoviais amarelos/límpidos são típicos de derrames não inflamatórios, já líquidos sinoviais amarelos/turvos geralmente envolvem processos inflamatórios. Um líquido sinovial branco/ turvo pode conter cristais, e líquido sinovial vermelho, castanho ou xantocrômico é indicativo de hemorragia articular. Além disso, o líquido sinovial pode conter vários tipos de inclusões. Agregados tissulares livres, em suspensão, apresentam aspecto de corpos de arroz. Corpos de arroz são observados na artrite reumatoide (AR) e são resultantes da degeneração da membrana sinovial, enriquecidos com fibrina. Resíduos ocronóticos são fragmentos de próteses articulares metálicas ou plásticas. Esses resíduos assemelham-se à pimenta moída. A figura 2.11 apresenta uma comparação entre líquido sinovial normal e hemorrágico, e a figura 2.12 ilustra o aspecto de inclusões no líquido sinovial.

Viscosidade: o líquido sinovial é bastante viscoso devido à elevada concentração de hialuronato polimerizado. Um teste do fio pode ser utilizado para avaliar o grau de viscosidade do líquido sinovial. Após remover a agulha ou vedação da seringa, o líquido sinovial é gotejado em um tubo de ensaio. O líquido sinovial normal formará um “fio” de aproximadamente 5 cm de comprimento antes de romper-se. Além disso, o líquido pode aderir às paredes do tubo de ensaio ao invés de escorrer para o fundo. Líquidos sinoviais com baixa viscosidade formam fios mais curtos (< 3 cm) ou escorrem da seringa pelas paredes do tubo de ensaio, como “água”. A baixa viscosidade do líquido sinovial indica a presença de processo inflamatório. A figura 2.13 ilustra a realização de um teste de fio para avaliação da viscosidade do líquido sinovial.

Coagulação: a coagulação do líquido sinovial pode ocorrer quando há a presença de fibrinogênio. O fibrinogênio pode penetrar na cápsula sinovial quando ocorrem danos na membrana sinovial ou como resultado de uma punção traumática. A presença de coágulos na amostra interfere na realização de contagens de células. A inoculação de parte da amostra em um tubo heparinizado pode impedir a coagulação do líquido sinovial.

Coágulo de mucina: o teste de coagulação de mucina, também conhecido como teste de Ropes, consiste em uma estimativa da integridade do complexo proteína-ácido hialurônico

(mucina). O líquido sinovial normal forma um coágulo firme e viscoso após a adição de ácido acético. O procedimento de coagulação de mucina varia entre os laboratórios, conforme evidenciado pelas diferentes proporções entre líquido e ácido apresentadas em vários textos. Os laboratoristas devem realizar o procedimento adotado por seus laboratórios. A tabela 2.17 demonstra esta variabilidade. Em todos os casos, a interpretação da formação de coágulo é a mesma. Um coágulo firme de mucina indica integridade adequada do hialuronato. Um coágulo frouxo de mucina, facilmente rompível, está associado à destruição ou diluição de hialuronato.

Figura 2.11  Líquido sinovial. (A) Normal. (B) Hemorrágico.

Figura 2.12  Inclusões de líquido sinovial. (A) Resíduos ocronóticos semelhantes à “pimenta moída”. (B) “Corpos de arroz”, fragmentos de membrana sinovial enriquecidos com fibrina.

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probabilidade de infecção. A contagem de leucócitos totais e o diferencial ajudam a distinguir entre condições inflamatórias e não inflamatórias. A microscopia de luz polarizada deve ser realizada para pesquisar a presença de cristais patogênicos. A dosagem de glicose, proteínas totais e desidrogenase lática dificilmente fornece informações além daquelas obtidas com os exames citados e não deve ser necessariamente realizada de rotina. Classificação do líquido sinovial (LS) Tipo Figura 2.13 Teste do fio, ilustrando a viscosidade do líquido sinovial normal.

Procedimento de coagulação de mucina de acordo com os textos referenciados Volume de líVolume e concentraAutor quido ção de ácido acético sinovial Brunzel Ross e Neely McBride Strasinger

Uma parte Uma parte Duas partes Não especificado

Quatro partes, 2% Quatro partes, 2% Uma parte, 3%

Tabela 2.18

Exames mais relevantes na prática clínica:

Contagem de leucócitos totais e diferencial;

Coloração pelo Gram;

Culturas;

Pesquisa de cristais.

O líquido destinado à cultura e à coloração pelo Gram deve ser transferido sob condições assépticas para um tubo seco. O LS destinado à pesquisa de cristais deverá ser colocado também em um tubo seco. Já o LS destinado à citologia deverá ser colocado em um tubo de hemograma. A demora de mais de 6 horas para sua realização pode alterar os resultados e as possíveis alterações incluem: diminuição do número de leucócitos (ruptura celular), diminuição do número de cristais (sobretudo de pirofosfato de cálcio diidratado) e aparecimento de artefatos, simulando cristais. Pelo fato de que a principal indicação da análise do líquido sinovial é a presença de infecção, deve-se realizar a coloração de Gram e culturas das amostras obtidas, inclusive de articulações com baixa

Normal

Aparência

Leucócitos

Claro, amare0-200/mm3 lo pálido

%PMNs < 10%

Grupo 1 De claro a (não inflapouco turvo matório)*

200-2.000/mm3

< 20%

Grupo 2 (inflamatório)

2.000-50.000/ mm3

20-70%

> 50.000/mm3

> 70

Levemente turvo

Grupo 3** De turvo a (pioartrose) muito turvo

Tabela 2.19 *Osteoartrite – Atenção! ** Os germes mais prevalentes são: S. aureus e Neisseria gonorrhoeae. A contagem de leucócitos em geral está entre 50 mil e 300 mil/mm3; a porcentagem de polimorfonucleares está entre 75 e 100% e a glicose está <50% do nível sérico. Esses dados podem direcionar o diagnóstico, mas ainda não afastam os casos de sinovite cristalina e artrite reumatoide. Estudos recentes demonstraram que os valores da adenosina deaminase no líquido sinovial pode ser um novo marcador para diferenciar a artrite séptica da artrite reumatoide e da induzida por cristais.

Figura 2.14 Elementos celulares normais encontrados no líquido sinovial incluem (A) neutrófilos, (B) linfócitos, (C) monócitos/histiócitos, e (D) células de revestimento sinovial. Poucas hemácias estão quase sempre presentes em derrames articulares (Wright-Giemsa).

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62 Reumatologia Causas de hemartrose Trauma Escorbuto Diátese hemorrágica Iatrogênica (hemofilia) Tumores Fístula arteriovenosa Sinovite Doença inflamatória acenvilonodular pigmentada tuada Articulação de Charcot Hemangiomas (neuropática) Tabela 2.21 Figura 2.15  Líquido sinovial com inflamação aguda apresentando pleocitose neutrofílica. Achados da microscopia de luz polarizada do LS de uma articulação com Gota e uma com Pseudogota Gota Pseudogota Pirofosfato de cálcio Cristal Urato diidratado Romboide ou Formato Agulha retangular Birrefrigência Negativa Positiva Cor dos cristais para- Azul Amarela lelos ao compensador Tabela 2.20  Atenção!

Biópsia sinovial A principal indicação para biópsia sinovial é artrite crônica (mais de 6 a 8 semanas) não traumática, inflamatória (líquido sinovial com contagem de leucócitos maior que 2.000 células/mm³), limitada a uma ou duas articulações para a qual o diagnóstico não pode ser realizado por meio da história, do exame físico, dos exames laboratoriais ou da análise do líquido sinovial com cultura (incluindo fungos e microbactérias). Como obter tecido sinovial Método Biópsia com agulha (agulha de Parker-Pearson ou outra) Artroscopia com agulha Artroscopia Biópsia por cirurgia aberta

Tamanho da Incisão Furo de 1 agulha 14 (1,6 mm) 1,8 mm 4,5 mm Alguns centímetros

Tabela 2.22  Devem ser obtidas de 5 a 8 amostras e enviadas para exame.

Líquido sinovial

Contagem de células Pesquisa de cristais Cultura e coloração pelo Gram

Figura 2.16  Gota aguda: cristais de urato em forma de agulha com birrefrigência fortemente negativa. Não inflamatório (< 2.000 células/mm³)

Inflamatório (> 2.000 células/mm³)

Hemorrágico

Osteoartrite

Figura 2.17  Pseudogota: cristais romboides de pirofosfato de cálcio diidratado com birrefrigência fracamente positiva.

Cristal +

Cultura -

Gota Pseudogota

AR LES EA APs

Coloração pelo Gram + Artrite séptica

Tumor TB Trauma

*

Figura 2.17  Algoritmo para a análise do líquido sinovial. EA: espondilite anquilosante; APs: artrite psoriática; AR: artrite reumatoide; LES: lúpus eritematoso sistêmico; TB: tuberculose. *Geralmente > 50.000/mm3 leucócitos e > 70% PMN.

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63 Laboratório em reumatologia

Atenção! Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes Relevâncias clínicas Padrões Descrição por autoanticorpos O padrão é caracterizado por uma fluores- Anticorpo contra proteínas do envecência em toda a membrana nuclear (po- lope nuclear. Cirrose biliar primária, dendo ser emitida com informação adicio- hepatites autoimunes, raramente assonal em aspecto contínuo ou pontilhado). ciado a doenças reumáticas. Algumas Não observamos fluorescência em nuclé- formas de lúpus eritematoso sistêmiolos e citoplasma; a célula em divisão em co e esclerodermia linear, síndrome do todos os estágios apresenta-se não fluores- anticorpo antifosfolípide. Esse padrão cente. Não confundir com o antigo padrão pode ser observado em indivíduos sem Nuclear tipo periférico observado em fígado de rato evidência aparente de autoimunidade, membrana nuclear onde o DNA de dupla hélice se encontrava principalmente quando em baixos títuancorado às proteínas da membrana nucle- los. Anticorpo anti-gp210 é específiar, dando seu aspecto característico. co para cirrose biliar primária. Outros autoanticorpos associados a esse padrão: anti-p62 (nucleoporina), anti-lamin A, anti-lamin B, anti-lamin C, anti-LBP.

Nuclear homogêneo

Nucleoplasma fluorescente de forma homogênea e regular. Não é possível distinguir a área de nucléolo e este é considerado não reagente. Placa metafásica cromossômica intensamente corada, de aspecto hialino, com decoração homogênea dos cromossomos, também positiva na anáfase e telófase. Citoplasma normalmente não fluorescente.

Anticorpo anti-DNA nativo. Marcador de lúpus eritematoso sistêmico. Anticorpo anti-histona. Marcador de lúpus eritematoso sistêmico induzido por drogas, lúpus eritematoso sistêmico idiopático, artrite reumatoide, artrite idiopática juvenil, importante associação com uveíte na forma oligoarticular, síndrome de Felty e hepatite autoimune. Anticorpo anticromatina (DNA/Histona, nucleossomo). Lúpus eritematoso sistêmico.

Nucleoplasma com grânulos de aspecto grosseiro, heterogêneos em tamanho e brilho, sendo que sobressaem alguns poucos grânulos maiores e mais brilhantes (1 a 6/núcleo) que correspondem ao Nuclear pontilhado grosso corpo de Cajal, rico em ribonucleo proteínas do spliceossomo. Nucléolo, célula em divisão e citoplasma não fluorescentes.

Nuclear pontilhado fino

Anticorpo anti-Sm. Marcador para lúpus eritematoso sistêmico. Anticorpo anti-RNP. Critério obrigatório no diagnóstico da doença mista do tecido conjuntivo, também presente no lúpus eritematoso sistêmico e esclerose sistêmica.

Nucleoplasma com granulação fina. Nucléo- Anticorpo anti-SS-A/Ro. Síndrome de lo, célula em divisão e citoplasma não fluo- Sjögren primária, lúpus eritematoso sisrescentes. têmico, lúpus neonatal, e lúpus cutâneo subagudo, esclerose sistêmica, polimiosite e cirrose biliar primária. Anticorpo anti-SS-B/La. Síndrome de Sjögren primária, lúpus eritematoso sistêmico, lúpus neonatal.

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64 Reumatologia Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes (cont.)

Nuclear pontilhado fino denso

Nuclear pontilhado pontos isolados

Nuclear pontilhado centromérico

Nuclear pontilhado pleomórfico

Nucleoplasma da célula em intérfase apresenta-se como um pontilhado peculiar, de distribuição heterogênea, nucléolo não fluorescente. A célula em divisão apresenta decoração em pontilhado intenso e grosseiro dos cromossomos na placa metafásica, com citoplasma não fluorescente.

Anticorpo antiproteína p75 (cofator de trascrição) denominado LEDGF/p75. É um dos padrões mais frequentes encontrados na rotina, cuja correlação clínica ainda não está bem estabelecida, sendo frequentemente encontrado em indivíduos sem evidência objetiva de doença sistêmica. Encontrado raramente em doenças reumáticas autoimunes, processos inflamatórios específicos e inespecíficos. Existem relatos na literatura do encontro desse padrão em pacientes com cistite intersticial, dermatite atópica, psoríase e asma.

Nucleoplasma apresenta-se com pontos fluorescentes isolados (podendo ser fornecida como informação adicional o número de pontos maior ou igual a 10 ou menos do que 10 pontos por núcleo). Nucléolo, célula em divisão e citoplasma não fluorescentes.

Anticorpo anti-p80 coilina. Não possui associação clínica definida.

Nucleoplasma da célula em intérfase, apresentando-se pontilhado com um número constante de 46 pontos. Nucléolo normalmente não fluorescente, célula em divisão apresenta concentração dos pontos na placa metafásica. Citoplasma não fluorescente.

Anticorpo anticentrômero (proteínas CENP-A, CENP-B e CENP-C). Esclerose sistêmica forma CREST (calcinose, fenômeno de Raynaud, disfunção motora do esôfago, esclerodactilia e telangiectasia), cirrose biliar primária e síndrome de Sjögren. Raramente observado em outras doenças autoimunes. Pode preceder a forma CREST por anos.

O nucleoplasma apresenta-se totalmente não fluorescente na célula em fase G1 da intérfase, passando a pontilhado com grânulos variando de grosso, fino a fino denso na medida em que a célula evolui para as fases S e G2. Nucléolo e citoplasma não fluorescentes. Esse padrão é sugestivo de anticorpos anti-PCNA.

Anticorpo contra núcleo de células em proliferação (Anti-PCNA). Encontrado especificamente em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico.

Anticorpo anti-Sp100 – anti-p95. Descrito principalmente na cirrose biliar primária.

Nucléolo homogêneo, célula em divisão e Anticorpo anti-To/Th. Ocorre na esclecitoplasma não fluorescentes. rose sistêmica. Anticorpo antinucleolina. Muito raro, descrito no lúpus eritematoso sistêmico, doença enxerto versus hospedeiro e na mononucleose infecciosa.

Nucleolar homogêneo

Anticorpo anti-B23 (nucleofosmina). Descrito na esclerose sistêmica, alguns tipos de câncer síndrome do anticorpo antifosfolípide e doença enxerto versus hospedeiro.

Nucleolar aglomerado

O nucléolo se apresenta com grumos de intensa fluorescência (como cachos de uva). Citoplasma e núcleo não fluorescentes. A célula em divisão apresenta-se amorfa, com coloração delicada em volta dos cromossomos da placa metafásica.

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Anticorpo antifibrilarina (U3-nRNP). Associado à esclerose sistêmica, especialmente com comprometimento visceral grave, entre elas a hipertensão pulmonar.


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65 Laboratório em reumatologia

Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes (cont.) Anticorpo anti-NOR 90. Inicialmente descrito na esclerose sistêmica. Atualmente descrito em outras doenças do tecido conjuntivo, porém sem relevância clínica definida. Nucleolar pontilhado

Decoração pontilhada nucleolar e 5 a 10 pontos distintos e brilhantes ao longo da placa metafásica cromossômica. Núcleo e citoplasma não corados.

Anticorpo anti-RNA polimerase I. Esclerose sistêmica de forma difusa com tendência para comprometimento visceral mais frequente e grave. Anticorpo anti-ASE (anti-sense to ERCC-1). Frequentemente encontrado em associação a anticorpos anti-NOR-90. A associação mais frequente parece ser o lúpus eritematoso sistêmico.

Citoplasmático fibrilar linear

Anticorpo antiactina. Encontrado em hepatopatias: hepatite autoimune, cirroFibras de estresses que constituem o cise. toesqueleto decoradas de forma retilínea, cruzando toda a extensão da célula e não Anticorpo antimiosina. Hepatite C, herespeitando os limites nucleares. Núcleos patocarcinoma, miastenia gravis. Quando e nucléolos não fluorescentes. em títulos baixos ou moderados podem não ter relevância clínica definida.

Citoplasmático fibrilar filamentar

Anticorpo antivimentina e antiqueratina. Anticorpo anti-queratina é Decoração de filamentos com acentuação o anticorpo mais importante em doenuni ou bipolar em relação à membrana nu- ça hepática alcoólica. Descritos em václear. Núcleos e nucléolos não fluorescentes. rias doenças inflamatórias e infecciosas. Quando em títulos baixos ou moderados podem não ter relevância clínica definida.

Citoplasmático fibrilar segmentar

Apenas segmentos curtos das fibras de estresse se encontram fluorescentes. Núcleo e nucléolos negativos. Nas células em divisão, podemos observar eventualmente múltiplos grânulos intensamente fluorescentes que correspondem à forma globular das proteínas do citoplasma.

Antialfa-actinina, antivinculina e antitropomiosina. Anticorpos encontrados na miastenia gravis, doença de Crohn e colite ulcerativa. Quando em títulos baixos ou moderados podem não ter relevância clínica definida.

Esse também é um laudo obrigatório, pois evidencia cisternas do aparelho de Golgi. A decoração é apenas citoplasmática em pontos agrupados de situação perinuclear, normalmente em apenas um pólo nuclear. Núcleo, nucléolo e célula em divisão não fluorescentes.

Anticorpo antigolginas (cisternas do aparelho de Golgi). Raro no lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Sjögren primária e outras doenças autoimunes sistêmicas. Relatado em ataxia cerebelar idiopática, degeneração cerebelar paraneoplásica e infecções virais pelo vírus Epstein Barr (EBV) e pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Quando em títulos baixos ou moderados podem não ter relevância clínica definida.

Citoplasmático pontilhado polar

Anticorpo anti-EEA1 e antifosfatidilserina. Não há associações clínicas Pontos definidos de número variável por bem definidas. Citoplasmático pontilhado toda a extensão do citoplasma. Núcleo, pontos isolados nucléolo e célula em divisão não fluores- Anticorpo anti-GWB. Associado à síncentes. drome Sjögren primária, embora observado também em diversas outras condições clínicas.

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66 Reumatologia Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes (cont.) Fluorescência de pontos finos, densos e confluentes, chegando à quase homogeneidade. O núcleo não está corado, mas pode ou não apresentar uma leve decoCitoplasmático pontilhado ração homogênea na área do nucléolo. A fino denso célula em divisão é não fluorescente. No caso de haver fluorescência concomitante de citoplasma e nucléolo, o padrão é classificado como misto.

Citoplasmático pontilhado fino

Anticorpo anti-PL7/PL12. Esse padrão de fluorescência pode raramente estar associado a anticorpos encontrados na polimiosite. Anticorpo antiproteína P-ribossomal. Esse padrão ocorre no lúpus eritematoso sistêmico e está particularmente associado ao anticorpo antiproteína P-ribossomal.

Pontos definidos em grande número e Anticorpo anti-histidil t RNA sintetase densidade, célula em divisão e nucléolo (Jo1). Anticorpo marcador de polimiosite não fluorescentes. no adulto. Descrito raramente na dermatomiosite. Outros anticorpos anti-tRNA sintetases podem gerar o mesmo padrão.

Fluorescência em múltiplos pontos dispostos sob forma de retículo irradiando a partir da periferia do núcleo por todo Citoplasmático pontilhado o citoplasma. Núcleo, nucléolo e célula reticulado em divisão não fluorescentes.

Anticorpo antimitocôndria. Marcador da cirrose biliar primária. Raramente encontrado na esclerose sistêmica. Devido ao encontro relativamente comum de padrão assemelhado e não relacionado a anticorpos antimitocôndria, é fundamental a confirmação por teste específico.

Ponto fluorescente isolado no citoplasma em um pólo na célula em repouso (intérfase) que se divide em dois e migra ao pólo oposto do núcleo à medida que a célula entra em divisão.

Anticorpo antialfa-enolase. Em baixos títulos não têm associação clínica definida. Em altos títulos pode estar associado à esclerose sistêmica.

Antígenos que formam a união entre células mãe/filha ao final da telófase. Podem ser observados com fluorescência intensa na ponte citoplasmática que sofrerá clivagem ao final da divisão celular.

Anticorpo antibeta-tubulina. Podem ser encontrados no lúpus eritematoso sistêmico e na doença mista do tecido conjuntivo. Outros anticorpos ainda não bem definidos podem gerar o mesmo padrão. Associado a diversas condições autoimunes com baixa especificidade tendo relevância clínica somente em altos títulos.

Células em intérfase se encontram não fluorescentes em todas as suas estruturas. Há decoração extensa e grosseira nos pólos mitóticos das células em metáfase e as pontes intercelulares são positivas na telófase. Citoplasma não fluorescente.

Anticorpo anti-HsEg5/NuMA-2. Associado a diversas condições autoimunes com baixa especificidade, tendo relevância clínica somente em altos títulos.

As células em intérfase apresentam o núcleo corado como um pontilhado bem fino, geralmente em alto título. Células mitóticas em metáfase e anáfase apreMisto do tipo nuclear ponsentam colocação bem definida e delicada tilhado fino com fluoresda região pericentrossômica e das partes cência do aparelho mitótico proximais do fuso mitótico. Na telófase já se vê novamente a coloração pontilhada dos núcleos neoformados e não se vê coloração da ponte intercelular.

Anticorpo anti-NuMa1. Associado à síndrome de Sjögren, podendo ocorrer também em outras condições autoimunes ou inflamatórias crônicas. Quando em títulos baixos ou moderados, pode não estar associado à evidência objetiva de doença inflamatória sistêmica.

Células em intérfase apresentam o núcleo corado como pontilhado grosso e o nucléolo corado de forma homogênea. Na metáfase há coloração ao redor da placa metafásica.

Anticorpo anti-KU. Marcador de superposição, polimiosite e esclerose sistêmica. Podem ocorrer no lúpus eritematoso sistêmico e esclerodermia.

Aparelho mitótico tipo centríolo

Aparelho mitótico tipo ponte intercelular

Aparelho mitótico tipo fuso mitótico (NuMa-2)

Misto do tipo nuclear pontilhado grosso e nucleolar homogêneo

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67 Laboratório em reumatologia

Padrões de PAAC-IFI em HEp-2, descrição, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes (cont.) Células em intérfase apresentam o núcleo Anticorpo anti-DNA topoisomerase I Misto do tipo nuclear e corado de forma pontilhada fina e o nuc- (Scl-70). Associado a esclerose sistêminucleolar pontilhado fino léolo sobressai também com padrão pon- ca forma difusa, em que indica formas de com placa metafásica cotilhado fino. Na metáfase, a placa metafá- maior comprometimento visceral. Mais rada sica apresenta padrão pontilhado fino. raramente pode ocorrer na síndrome CREST e superposição. Células em intérfase apresentam o núcleo Anticorpos anti-RNA polimerase I e corado de forma pontilhada fina delica- II. Esses dois autoanticorpos usualmente da e sobressaindo o nucléolo corado com aparecem em combinação, sendo a RNA Misto do tipo nuclear padrão pontilhado (pontos individuais). po lI responsável pela distribuição nuclepontilhado fino e nucleo- O citoplasma não é corado. Na metáfase, olar e em NOR, enquanto a RNA pol II observam-se 5 a 10 pontos isolados e bri- responde pela distribuição nuclear. Antilar pontilhado lhantes na placa metafásica, correspon- -RNA po lI é considerado marcador de esdentes às regiões organizadoras de nuclé- clerose sistêmica e anti-RNA pol II apareolo (NOR). ce em diversas condições autoimunes. O núcleo é totalmente não corado e o nu- Anticorpo anti-rRNP (antiproteína P Misto do tipo cléolo é corado fracamente. O citoplasma ribossomal). Marcador de lúpus eritemacitoplasmático pontilhado apresenta intensa coloração com pontilha- toso sistêmico e mais frequentemente refino denso a homogêneo e do muito fino e muito denso, quase homo- lacionado à psicose lúpica. Também parece nucleolar homogêneo gêneo. As células mitóticas não são coradas. estar associado à atividade da doença. Tabela 2.22

Considerando o crescente número de pedidos indiscriminados do teste FAN-HEp-2 e de outros autoanticorpos na prática clínica, os conflitos diante de resultados positivos do FAN-HEp-2 com dados clínicos inconsistentes são obviamente comuns. A tabela abaixo sintetiza as possibilidades de interpretação de um teste positivo de FAN-HEp-2 e que também pode ser extrapolado para a interpretação de outros autoanticorpos.

Possibilidade de interpretação de um teste positivo de FAN-HEp-2 Associação evidente com uma condição autoimune Nenhuma associação evidente com uma condição autoimune – Incidentaloma? – Autoanticorpos associados a doenças inflamatórias crônicas? – Distúrbio autoimune transitório? Infecção? Drogas? Câncer – Traço familiar de autoimunidade? – Manifestação mínima de um espectro de condições autoimunes? – Manifestação precoce de uma doença autoimune incipiente?

Aprendemos a fazer, fazendo. Aristóteles

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