Revista Sotaques Brasil Portugal Nº 29

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janeiro /fevereiro 2021 Nº29|Gratuito


04 DOSSIÊ

LÍNGUA PORTUGUESA

05 ELIS REGINA:

O ADEUS PARA O TEMPO QUE FICOU

10 MACULADAS,

MULHERES QUE CANTAM

14 EU QUE

APRENDA A LEVANTAR

18 A ESTÉTICA DA

TORTURA

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NUM LOOP DE FRENESI

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DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

BROCHURATURA

40 A DEMENTAÇÃO

O INTELECTUALISMO SOB AMARRAS

44 UMA RELEITURA

BRASILEIRA DE A LENDA DO CAVALEIRO SEM CABEÇA

46 AS 4 MARIAS: A

22 DE 2020 O QUE

SAPATOS DE CAIM

FERNANDA THURANN

DAS CORES

SOBROU FOI ARTE

26 MARIA CASAL 30

RESISTÊNCIA EM DIÁRIO

MINAS GERAI 300 ANOS

76 EXÍLIO 78 ELLEN BECKER 86 A AUTOACEITAÇÃO 88

AZUL INSTANTÂNEO

54 SARAMAGO EM 58 DIVERSIDADE

Colaboradores Portugal: André Marques, António Almeida Santos, António Proença , Arlequim Bernardini , Bárbara Bernardini , Cristina Bernardini , Diogo Reis ,Jon Bagt e Vitor Hugo.

Colaboradores Brasil: Alex Gomes , Diego Demetrius Fontenele , Hebert Júnior , Hernany Fedasi , Laercio Lacerda , Marlus Alvarenga , Pablo B.P. Santos e Wenderson Machado Pinto.

Revista On-line Sotaques Brasil Portugal Propriedade: Atlas Violeta Associação Cultural ISSN: 2183-3028 - Tel. 351 917 852 955 antonio.sotaques@gmail.com - www.sotaques.pt


Durante a última década, agitamos as águas salgadas do Oceano Atlântico, com a missão de estreitar os laços culturais entre o Brasil e Portugal. A nossa nau, repleta de artistas, zarpou rumo ao objetivo de levar e trazer novos conhecimentos que unem portugueses e brasileiros. No leme não tivemos um, mas vários comandantes à frente da nossa embarcação. Tivemos receio da viagem; não imaginávamos que teríamos de enfrentar vários Adamastores no mar da cultura e quase nos deixamos iludir por algumas Tágides. Ao longo das viagens, perdemos alguns marinheiros, mas também fomos ganhando novos marujos a cada porto. Nesta nova década, iremos à procura de novas rotas culturais, novos desafios, novos mares para desbravar. Iremos AGITAR ainda mais as águas destes mares, porém não nos ficaremos apenas pelo Atlântico: a cultura luso-brasileira ruma a novos mundos!

“Somos aquilo que produzimos ! “ Arlequim Bernardini

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Brasil

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Curadoria de Marlus Alvarenga

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Música

Foto: Vinícius Muniz via Visual Hunt

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Marlus Alvarenga

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Música

Não ande nos bares, esqueça os amigos Não pare nas praças, não corra perigo Não fale do medo que temos da vida Não ponha o dedo na nossa ferida (Cartomante. Ivan Lins / Vitor Martins)

Nossa epígrafe dessa edição poderia ser um tweet repetitivo sobre os dias de hoje, nesse ano tão denso 20XX como tem sido, com esses espaços mal-acabados e requintes de perda, saudade, mortos e sobreviventes em uns vários não-sabemos-de-mais-nada. Em termos de linguagem, talvez esse ano seja um tempo mudo - ou devesse ser mas um silêncio como, nos filmes de Bergman, ou uma luz que acerta o olho como bala em uma obra de Glauber Rocha, iluminado como uma cena forte e ávida de terror psicológico. Nos dias de hoje é bom que se proteja. Ofereça a face pra quem quer que seja. É nesse sintoma que os versos de Lins e Martins fazem e trazem sentido na potente voz da pimentinha Elis, quase trilha sonora para os desgovernos do Brasil com S que tenta sobreviver. Elis Regina. Elis Regina Carvalho Costa (1945 – 1982). Uma alma no transversal do tempo de um Brasil enfurecido.

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Elis se debruçava sobre a música de uma maneira única, transformando essa onda sonora na nossa onda maior: do samba, da bossa, do jazz e do rock rural. Elis cantou e eternizou emblemáticas canções de Belchior, Ivan Lins, Aldir Blanc, João Bosco, Renato Teixeira. E Milton Nascimento, muitas vezes, muito densamente. Era a voz que queria liberdade de existir no seu lugar de escolha, o que combinava com seu gênio singular e sua voz, instrumento e arma dessa libertação. Seu sorriso que se ouvia longe, seus vícios, os excessos de um coração que fazia tudo intensamente. Quando o coração parou, ninguém esperava mais que o sinal se fechasse por tanto para nós, que jovens, viveríamos Elis em um passo à frente, no futuro da música. Elis é 2020. Eterna. A artista perpassa sua sonoridade como uma faca na carne e, por vezes, suas falas polêmicas para àquele Brasil arcaico também soariam controversas hoje, em um país embebido de conservadorismo torpe e (in)conveniente. O adeus foi cedo demais para nós, mas intenso para a artista que viveu como um dos maiores nomes da música brasileira até hoje. Foi mãe, esposa, separada, casada. Foi mulher e lutou para ser livre. Em 1978, em um show ao vivo no teatro icônico ICEIA, em Salvador, Bahia, Elis cantava sua dores que atravessavam seus desejos, suas lamúrias. O espetáculo que sucedeu o sucesso Falso Brilhante (1975 – 1977) trazia outra atmosfera, repleto de sombras, futurismo e estampas de cidade, solidão e angústias entre as corajosas críticas veladas à Ditatura Militar, em tons de drama depressivo. “O show pintou dentro de um engarrafamento durante o qual eu me lembrei da música “Transversal do Tempo”. Um congestionamento que foi provocado, simulado, por pessoas que tinham razões específicas — e eu sei quais foram as pessoas e quais as razões. Mas isso não vem ao caso: o importante é que daquele engarrafamento simulado eu fiz um paralelo com a vida que todos estão vivendo”— diz a artista em depoimento à revista Capricho, 1978. Poderia ser hoje, mas sendo há mais de 40 anos atrás, Elis desenhava o porvir. E muitos acreditam que esse álbum foi o epitáfio da intérprete, que permeou grandes composições em língua portuguesa, entre elas Fascinação (Maurice De Feraudy / J. Morley / F.d. Marchetti / Armando Lousada), Sinal Fechado (Paulinho da Viola), Deus lhe pague (Chico Buarque), Saudosa Maloca (Adoniran

Barbosa) a dolorosa Cão sem dono (Sueli Costa/ Pulo Cesar Pinheiro) e a arrebatadora Cartomante (Ivan Lins), entre outras composições grandiosas e músicas incidentais. Alguns críticos de época dizem que esse álbum “matou” a artista, mas como pesquisador e admirador da obra de Elis eu acredito que foi como uma majestosa carta de despedida da vida, pra esse sinal que está fechado para nós que somos jovens em encontro com o sinal fechado daqueles que nunca se encontram. É o tempo transvertido das grandes metrópoles modernistas e a dor dos desencontros, confirmando seu lugar: é nas noites que eu (e muitos de nós) passo sem sono, entre o copo a vitrola e a fumaça que ergo a torre do meu abandono e que caio em desgraça. Em 2019 a vida da artista ganhou os cinemas brasileiros e a TV pela emissora Globo, com a obra Elis – Viver é melhor que sonhar, concorrendo agora em 2020 ao Emmy Internacional de melhor minissérie. Elis eterno brilhante, nada falso. Nosso dossiê completa sua terceira edição e dessa vez, vamos lidar com a morte. Não somente a morte como despedida, mas a morte como transversalidade. Algo inevitável e soberano a qualquer desejo, mas que marca esses artistas – e nossas vidas – para sempre. A soberania só existe a esse preço, só pode se dar o direito de morrer: nunca pode agir, jamais reivindicar direitos que só a ação tem, a ação que nunca é autenticamente soberana, tendo o sentido servil inerente à busca dos resultados, a ação, sempre subordinada, ficando com a reflexão do filósofo Georges Bataille (1897 – 1962), em sua obra A Literatura e o Mal. E em um ano em que respiramos mortes tão próximas e as vezes, tão nossas, relembrar a arte e expurgar é necessário. Nossa língua vive. Dessa vez conto com a querida amiga e já conhecida da Sotaques,, a jornalista Renata Humann e, em sequência, a estudante de psicologia e pesquisadora Rebecca Gomes, sobre vida e obra de Maysa Matarazzo.

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Música

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(Vanusa. Arquivo do Instagram da artista.)


Maculadas,

mulheres que cantam Renata Humann

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Música

Na história da música brasileira, não são raras as mulheres que foram consideradas livres demais ou loucas, e tiveram problemas com álcool, drogas, dependência química, depressão. Tiveram problemas por serem julgadas ou foram julgadas por terem problemas? Na infértil discussão do ovo e da galinha, existe a mulher, defeituosa desde sua formação. feita de uma costela curva, torta. Desde a inquisição, não apenas instituições, mas também discursos estigmatizam a mulher como inferior e impura, contribuindo para a justificação ideológica de sua desvalorização. A contradição interna no pensamento conservador oscila entre as figuras de Maria, exaltada, e Eva, maculada. Prevalece, na mentalidade do senso comum, a formação e o triunfo do tabu sexual. Eva é responsável pela queda do homem e é, portanto, a instigadora do mal. Esse estigma se propaga pelo gênero feminino. Mulheres que escolhem a música e os palcos encaram esse estigma sob os holofotes. São apedrejadas por sua liberdade, são chamadas de loucas por sua psiquê. Muitas recorrem a fugas narcóticas e perdem o controle. Algumas se afastam dos palcos para se cuidar e outras, como Amy Winehouse, são engolidas pelo cenário em que estão. Rita Lee, admirada no cenário do rock brasileiro, foi protagonista de algumas situações envolvendo entorpecentes. Na década de 1970, foi presa por porte de maconha e revelou já ter usado outras substâncias, como LSD. Em 2012, a cantora se afastou dos palcos. Em 2017, numa entrevista a Pedro Bial, contou que estava careta há 11 anos. Ana Cañas nunca havia ingerido álcool até a morte do pai, que era alcóolatra. Para tentar superar a perda, começou a beber sem parar, inclusive antes de fazer shows, numa auto sabotagem. Até que o amigo Ney Matogrosso perguntou a ela se ia reduzir seu talento aos porres que tomava antes de cantar. Depois disso, ela parou de beber. Vanusa, morta em novembro de 2020, não queria que a vissem doente. Teve poucas aparições na imprensa ou redes sociais nos últimos anos, com o desenvolvimento de sua doença. Queria que as pessoas lembrassem dela nos palcos, cantando sua música. Importante na cena musical brasileira, Vanusa foi uma pioneira numa época em que poucas mulheres tinham voz ativa na música brasileira como compositoras. A cantora Vanusa foi uma mulher de personalidade forte e decidida que dizia fazer só o que tinha vontade. Seu primeiro sucesso foi Manhãs de Setembro, de 1973, música que caiu no gosto do público. Gravou também Paralelas, de Belchior, que foi outro grande sucesso. Feminista desde muito jovem e antes da existência 12

das redes sociais, Vanusa fez muitas músicas para as mulheres na década de 70 e dizia que escrevia com muita raiva, contra o preconceito. Ela declarava ser a favor de que a mulher trabalhasse fora de casa e tivesse seu próprio sustento, sua independência. Na música, Vanusa não se prendia a um só estilo e cantou do rock à MPB, mas se consagrou como uma cantora romântica. Foram mais de 20 discos, em mais de 40 anos de carreira. Aos 16 anos, Vanusa já fazia shows como crooner de uma banda. Dos palcos, foi para a tv, participou de vários programas e chegou a emprestar a voz para a música de abertura do Fantástico, na única vez em que a abertura do programa foi cantada. Com a fama, vieram problemas e ela teve que lutar contra depressão e dependência química por muitos anos. (Vanusa. www.gauchazh.clicrbs.com.br) Dois episódios marcaram uma fase difícil para a cantora. Em 2009, numa apresentação que viralizou na internet, ela se atrapalhou com a letra do hino nacional. Em outro show, chegou a misturar a letra de duas músicas. Depois desses episódios, Vanusa se internou numa clínica para tratamento de desintoxicação durante 6 meses. Foi sua primeira internação. Ela tomava muitos tarja preta e desenvolveu compulsão por remédios. Em 2015, voltou a gravar depois de 15 anos. Com as internações por depressão e dependência química cada vez mais constantes, foi seu último disco. Sua voz forte, decidida e cheia de si foi se calando aos poucos. Teve um fim de vida dramático que aproxima a cantora da história de grandes estrelas. Longe dos palcos e dos estúdios devido a problemas de saúde, Vanusa teve um fim de vida em reclusão. Lembra o crepúsculo solitário e penoso de divas da música como Maria Callas e Edith Piaf, imortalizadas por canções tristes sobre o amor. Coincidências à parte, Vanusa gravou uma versão de Hymne à l’amour, um clássico de Piaf, no álbum Hino ao Amor, de 1994. Como a intérprete francesa, morreu afastada da mídia após profundo sofrimento físico e dores emocionais por amores perdidos. A cantora tinha depressão e problemas de saúde causados pelo uso excessivo de medicamentos, que a deixaram debilitada. Em setembro, esteve internada com problemas respiratórios. Em novembro, morreu na casa de repouso em que estava. Uma mulher libertária, vanguardista, premiada em festivais internacionais e que vendeu milhões de cópias de suas músicas, além de atuar em telenovelas e no teatro. Morreu só, como a Eva maculada, expulsa do paraíso e esquecida.


(Vanusa. www.gauchazh.clicrbs.com.br)

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Brasil

Rebecca Gomes

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(Rebecca Gomes com o álbum Convite N.03, de 1958, coleção pessoal)

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Brasil

(Arquivo pessoal)

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Maysa Figueira Monjardim mais conhecida publicamente como Maysa Matarazzo, nasceu em 1936 no Rio de Janeiro. Filha da italiana Inah Figueira Monjardim e do Fiscal de Rendas, Alcebiades Monjardim, descendente de tradicional família do Espírito Santo, era neta do Barão de Monjardim e bisneta do comendador José Francisco de Andrade Monjardim foi criada em uma mansão no bairro de Botafogo. Em 1950, a família se mudou para São Paulo e Maysa estudou no tradicional colégio paulistano Assunção. Aos sete, foi enviada para um colégio interno de freiras em Paris, o SacréCœur de Marie, onde toda menina de família tradicional deveria estudar para obter um bom currículo. O que não torna menos impressionante na voz ou na expressividade mas explica a habilidade nas músicas internacionais em francês, italiano ou inglês interpretadas pela cantora, Ne me Quitte Pas ( Jacques Brel), Chanson D’ Amour (Heinz-Kurt Feltz), Un Jour Tu Verrás (Von Pary – Moloudji) , Quizas, Quizas, Quizas (Oswaldo Farres), I love Paris ( Cole Porter). Desde a infância sonhava em ser cantora. Fazia apresentações dentro de eventos familiares e mostrava aptidão com instrumentos e canto. Compôs “Adeus” aos 12 anos apenas. Esteve sempre a frente de sua época, usava roupas tidas como masculinas, bebia, fumava em público, cortava os cabelos curtos. Era intensa e vaidosa. Transbordava isso nos olhos de gato delineados, no canto, nas letras, nos copos cheios. As canções e composições foram

feitas como luvas que se encaixavam perfeitamente ao timbre de Maysa. Nem cafona nem prosaico. Pelo contrário, traziam sentimento de melancolia e desalento. O que se tornou representativo do gênero fossa ou samba- canção. Em 1954, aos 18 anos, se casou com André Matarazzo um empresário amigo da família por quem nutria sentimentos desde a adolescência. Em 1956, Maysa tem seu filho Jayme e é convidada pelo produtor Roberto Côrte-Real para lançar o disco Convite para Ouvir Maysa. Com exigências do marido para que não aparecesse na capa. Seu primeiro disco trouxe oito sambascanção, todos compostos por ela. “Adeus” e “Resposta”, “Rindo de mim” entre elas. No ano seguinte lançou o álbum Maysa com destaque em “Ouça” e “Se todos fossem iguais a você”. Foi quando se separou do marido que era contra sua carreira, o que abalou muito emocionalmente a vida da cantora. Aos poucos a música de Maysa ganhou caráter profissional e com menos de um ano de carreira foi apontada como A maior revelação feminina, O melhor compositor e O melhor letrista no julgamento anual dos cronistas de Rádio de São Paulo e em 1958 Maysa recebe o Troféu Chico Viola, para o melhor disco.O seu terceiro álbum, Convite Para Ouvir Maysa Nº. 2 traz como primeira faixa composta e cantada por Maysa Meu Mundo Caiu. A faixa se tornou muito conhecida não só pela minissérie produzida por seu filho, que a possuía como abertura, mas por ser uma canção atemporal.

“Se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar” é o grito de uma mulher caricata, impulsiva e inerentemente interessante. Maysa criou o “eu que lute” e isso é fato. Não por menos que, a minissérie que Jaime Monjardim fez com tanto carinho tem o nome de Maysa: Quando Fala o Coração. Pois Maysa não tinha vergonha. De falar de seus incômodos. De beber seus copos, de pronunciar seus amores e quando estava ao relento. E é por isso que Demais pode ter sido composta por Aloysio de Oliveira e Tom Jobim mas pertence a voz de Maysa como se fosse sua, e por consequência, talvez seja. O estilo característico de Maysa influenciou gerações, entre as notáveis influências estão: Renato Russo, Cazuza, Ângela Rô Rô, Leila Pinheiro e Fafá de Belém. Maysa conquistou fama no Brasil e no exterior. Entre suas gravações de sucesso estão “Preciso aprender a ser só”, “Tristeza”, “Por causa de você” e todas as outras em vários idiomas. Maysa possuía gênio forte e entregue a vida, e também a bebida. Sua morte ainda prematura, aos 40 anos, não foi exatamente surpresa. Maysa era intensa, e uma explosão de sentimentos iminente. Porém, na época que se acidentou estava sóbria e isolada na casa de praia de Maricá lidando com a depressão. No dia do acidente, voltava do casamento filho, onde a muito não o revia, via Ponte Rio-Niterói para casa.

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Literatura

(Sophia e a Cidade. Marlus Alvarenga, arte digital. 2019)

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Marlus Alvarenga

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Literatura A prática e, por motivador, a estética da tortura, através dos tempos na literatura do mundo e em outras obras de mídias artísticas, é uma forma de romper, de alguma forma, com o padrão cultural e social que desbravamos quando leitores, quando pesquisadores. Como leitor, confesso que fiquei bastante entusiasmado ao conhecer esse escritor novo, para mim, pois o assunto já foi meu objeto de pesquisa e eu não tinha conhecimento. Eu reflito com a frase de Américo Valério definindo o psicologismo de Machado de Assis como um psicopata que metempsicou uma vida de torturas freudianas em uma vida imortal. O uso da expressão que remete à metempsicose me leva a questionar essa tortura entre o campo da espiritualidade – se pensarmos nas autopunições ou autoflagelações como uma forma de reencarnar ou desencarnar fora da zona do pecado (bíblico) – ou uma crença psíquica, com forte apelo ao ego. De toda forma a tortura excita e categoriza muitos é controversa, perversa e maldosa aos que se sentem torturados, quando essa tortura não evolve prazer. Em um país, que tem seguranças que chicoteiam negros menores de idade, em situação de vulnerabilidade, nus, em pleno centro urbano paulistano e grava vídeos para internet (caso de setembro de 2019, vide https://ponte.org/jovem-negro-e-amarradonu-agredido-e-filmado-em-supermercado-de-sp/ ) avaliar e validar a estética na tortura é um grande questionamento, e nesses casos citados, crime. Retratando as pesquisas minhas atuais sobre as algumas obras do cinema nacional (Lavoura Arcaica, Estômago, Abril Despedaçado e Bacurau) percebo que, muito próximo ao campo da tortura, eu acabo visualizando em alguns deles uma certa cosmética da fome, como define a pesquisadora Ivana Bentes, nessa linha tênue entre mostrar o belo e ferir o social por trás do objeto estético. Há, por exemplo, um esforço imenso de algumas correntes políticas atuais em esfacelar a ditadura no Brasil, causando o apagamento dos torturados, dos desaparecidos e por consequência, dos torturadores. Essa negação dá carta aberta ao discurso, pois quando este parte dos detentores do poder, reivindica lugar de verdade no discurso popular. Esse aspecto tem gerado cada vez mais consequências sociais ligadas ao racismo e outras formas de preconceitos, gerando mortes cruéis como a de Beto – imobilizado, espancado e asfixiado até a morte por seguranças de um Carrefour na região sul do país, na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, no Brasil.

O incômodo que cenas como essa geram, como tortura, é um aspecto que precisa ser levado em consideração quando discutimos poéticas de cultura e sociedade. Aí vemos que, a pessoa que filmava, migrava o episódio trágico ao campo dessa cosmética da tortura, pois o indivíduo não se move em ângulo algum para auxiliar o oprimido que está sendo alvo de violência, mas filma toda a cena, sem cortes, até a morte. Gravar, angular, acompanhar ver a qualidade do vídeo até sua provável cessão de direitos às redes de televisão brasileiras para exibição em forma de jornalismo também é abordado em outras obras, como o filme de Dan Gilroy, O Abutre (2014). Nessa obra, um homem que tinha uma vida complicada

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economicamente entra no mercado do jornalismo de sangue, registrando de forma mais perversa crimes, acidentes e mortes em Los Angeles para vender aos canais. Outro bom exemplo de quando a cinematografia nos coloca nesse lugar entre a estética e cosmética de algo “questionável” é A Casa que Jack construiu (2018), do polêmico cineasta Lars Von Trier. Sob a ótica de um homem obcecado, durante doze anos, o diretor nos conduz a um colecionador de assassinatos e torturas que busca um diálogo narrado diretamente com o poeta Virgílio. É como se fosse (ainda mais) belo todo aquele sangue retratado na tela cinematográfica, onde por intermédio da fotografia nos colocamos como voyer de uma chacina estético-filosófica.


Entretanto, na estética do escritor brasileiro Glauco Mattoso (1951) o que encontrei foi o efeito poético repleto da escrita crua, de uma autotortura sadomasoquista surpreendente. Cito o Soneto para a “Cegueira ordeira”, que além de alto teor sexual ainda tem um prazer nesse lugar do prazer na humilhação:

(imagem que acompanha os sonetos de Glauco Mattos para o filme Centopeia Humana (2010)

Esse lugar do sujo, do permissivo, promíscuo e duvidoso que pode no outro causar nojo ao parecer sexualmente asqueroso é normalizado pelo autor que, em suma, tem o interesse visível de chocar contando a cena com tamanha cotidianidade que surpreende aos mais ortodoxos e conservadores. Esse olhar estético é uma prática comum no que é chamado de BDSM (bondage, disciplina, dominação e submissão) e está carregado da vivência do autor. Inclusive o autor escreveu uma série de sonetos sobre o polêmico Centopeia Humana (Tom Six, 2010), que completou dez anos agora em 2020. É nesse caminho que a cosmética da cena se encontra: se desenho uma tela pensando no soneto, transponho do meu imaginário essa passagem. Se convertemos a uma cena de cinema, traduzimos o soneto dando a ele corpos, sons e imagens. Tudo através desse lugar de quem lê, de quem é o espectador da obra mas que, em todo momento, caminha junto nesse lugar da condição humana. E essa condição humana pode ser questiona quando o outro tem tesão por esse lugar, nesse espaço do escatológico. Como diz Thiago Pethit, grande artista indie de São Paulo na sua canção Mal dos Trópicos: a tragédia tem final mas antes o Brasil precisa de Bacantes. Me agarrem como se agarra uvas, com todos os dentes da mão: devorem-me. Será quais perversões íntimas cada qual de nós é capaz de fazer para se saciar, em silêncio, em gozo? O que nos resta é dizer que a tortura como arma para preconceitos e racismo deve ser execrada e combatida a qualquer preço, mas no campo da sexualidade, precisamos abrir muito mais que zíperes.

“Salivo-lhe nos bagos, levemente, até que ele se sinta satisfeito e mande retornar, com calma e jeito, à rola fedorenta e repelente.” “De novo, aquele sebo! Não contente que eu lamba e engula aquilo, esse sujeito me faz mostrar a língua. Tem efeito hilário o gesto: alegre ele sente!” “Sarcástico, gargalha, ao ver que minha linguona recoberta está de massa já́ meio diluída, amarelinha.” “Então eu recomeço. Ele acha graça se, quando uma lambida lhe esquadrinha a glande, eu de enojado cara faca.”

(Glauco Mattoso – da obra Cinco ciclos e meio século.)

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Brasil

De 2020

o que sobrou foi

arte Marlus Alvarenga

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2020 acabou (conosco, com muitos, mas quem viveu verá) e, mesmo com todos os problemas imensos da maior crise que nossa geração já viveu, é importante fazer uma retrospectiva sobre o que de bom as artes, desde games até a literatura, nos deram nesse ano às avessas. Isolados em casa, aqueles que puderam, tiveram muitas opções para se manter conectados com o mundo e com as artes: as lives, as vídeochamadas, a vida por streaming, a aceleração desses processos que nos pareciam tão futuristas. Tudo em meio a dor da perda de muitos. Um ano de sobreviventes. Se estamos aqui escrevendo e vocês estão lendo, parabéns: como diria Caetano Veloso, I’m alive and vivo, muito vivo. E seguimos aí, viventes. É isso. Selecionei abaixo as minhas melhores experiências em vários ramos do entretenimento para dividir com vocês.

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Brasil

GAMES Final Fantasy VII Remake

Impossível passar por 2020 sem ter tentado ao menos um joguinho bobo de celular, seja por si ou com filhos, sobrinhos e afins. Por mais simplista que pareça, muitos tiveram mais tempo ocioso e, nesse ponto, os jogos eletrônicos entram com tudo como uma válvula de escape. Um grande lançamento da Square Enix esse ano estava na lista dos mais esperados remakes de todos os tempos: Final Fantasy VII, de 1997, jogo mais vendido da franquia no mundo, volta para nossas telas com um visual impressionante e fidelidade (em partes, porém nada que danifique a experiência) à obra original, nos dando o primeiro episódio do que vai ser tornar uma saga em torno da mitologia do jogo. E nunca estiveram tão antenados e atualizados: a questão ambiental e política negacionista e corrupta, junto ao ativismo socioambiental e o enredo marcado pelas memórias distorcidas do protagonista Cloud Strife são os motores do RPG mais amado de todos os tempos. O jogo ainda traz personagens NPCs bastante diferentes, conectados com uma maior diversidade cultural. Levei cerca de 60 horas e sigo. Vale cada minuto gasto.

MÚSICA Aos Prantos

CINEMA Era uma vez u

Glenn Close e Amy Adam prendesse os amantes do b adaptação do livro biográfi Ron Howard para Netflix im não vive o glamour cansati redor de J.D. desde sua infâ cumplicidade com a avó Ma (Haley Bennett) e sua mãe B que acaba se tornando vici perdas e esperança. Separem

O grande escritor contemporâneo Luiz Ruffato, autor do premiado Eles Eram Muitos Cavalos, está entre os nomes mais relevantes da atual literatura brasileira. Desde Eles Eram que a forma qual o escritor trata a linguagem em seus livros e aborda temas bastante corriqueiros com tamanha densidade tem me chamado sempre a atenção. Não é diferente em O Verão Tardio, onde nesse Brasil as classes sociais romperam totalmente com o processo de comunicação e a linguagem não parece chegar sem antes ter um imenso percurso entrópico, em um retorno nada pródigo do personagem principal ao seu lugar familiar. Uma leitura de fôlego.

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um Sonho

ms. Bastaria esses dois grandes nomes para que o filme bom cinema dramático mundial. Mas não satisfeitos, a fico de J.D. Vance (Owen Asztalos) (Hillbilly Elegy) por mpressiona pela sutileza na dor, no dilema da família que ivo do já fatídico American Dream. No filme, vivido ao ância até sua vida adulta, é marcado pela relação afetiva de awmaw (Glenn Close) e o caminho plano da irmã Lindsey Bev (Amy Adams), brilhante em mais uma grande atuação), iada em heroína. É um filme arrebatador, no misto entre m os lenços.

SÉRIES Bom dia, Verônica

Com mais uma adaptação a partir da literatura, a rede de streaming Netflix sai à frente com a série brasileira Bom dia, Verônica, baseada em romance homônimo dos autores Casoy e Montes, repleto de suspense, violência, ação e tudo que envolve um bom thriller. A versão adaptada tem vários pontos positivos, a começar pela brilhante atuação da atriz Camila Morgado como a sofrida e enigmática dona de casa Janete, esposa do policial Brandão, que ganha vida com Eduardo Moscovis. A escrivã protagonista da série, Verônica Torres é bem executada pela expressiva Tainá Muller, que se envolve com uma rede de casos que vão levar a personagem a questionar a si e aos seus afetos.

LITERATURA O Verão Tardio Acordei bem mas o país não colabora... nem você. É com essa frase da canção Abalos Sísmicos que a multiartista, cantora e compositora Letícia Novaes nos arrebata com os seus questionamentos do Aos Prantos, segundo álbum da artista sob a alcunha de Letrux. Para um ano difícil como 2020, com o álbum lançado na primeira semana de fechamento das casas, adiamentos de shows e afins, a cantora ainda não experienciou o que faz de melhor, que são os shows apoteóticos ao vivo com casas lotadas, festivais e muito calor humano. E já separamos nosso tempo para, depois da vacina, ver essa exaltação artística acontecer. O álbum, que concorreu ao Grammy Latino na categoria rock é uma grande elegia à língua portuguesa e as próprias experiências de Letícia, sendo sem dúvida um dos melhores álbuns em português deste ano. Com vários vídeos lançados em meio a pandemia no isolamento em meio à natureza, só nos resta pegar uma taça de vinho, plugar essa pérola musical com volume confortável e dizer: eu estou aos prantos, quem não? 25


Música

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Arlequim bernardini

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Música

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Maria Casal é uma cantautora e guitarrista portuguesa, nascida no Porto e sediada em Lisboa. A escrita de música sempre foi o pano de fundo desta mudança entre as duas cidades e uma breve passagem por Bruxelas. Do seu pequeno caderno de bolso para o mundo, o single “Lazy Mornings” ditou o início do percurso musical da artista em 2019. Depois, algumas dessas manhãs (e tardes) passadas em torno da guitarra resultaram em algo maior: o seu EP de estreia “Serenô” com o selo da Chinfrim Discos (24 de Setembro de 2020). Maria Casal Ribeiro trespassa as fronteiras do lirismo português ao fundi-lo com as linhas melódicas do jazz e os ritmos sincopados da música brasileira. Este encontro de estilos resulta numa fusão cultural e musical. "Serenô” é uma pequena coletânea de estórias e confissões sobre amores e dissabores, a saudade inerente ao ser português, todos os livros que ficam por ler e tudo aquilo que fica por dizer. Maria Casal participou, de forma brilhante, na edição de 2020 do programa The Voice Portugal. Com a interpretação de "I say a little prayer" de Aretha Franklin conseguiu virar todas as cadeiras e teve ainda direito a dueto com António Zambujo. Atualmente frequenta o curso de Estudos de Música e Canto Jazz no Hot Clube de Portugal.

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Sotaques

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VINÍCIUS MOCHIZUKI

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Sotaques

Você mudou-se para Nova Iorque aos 20 anos para estudar na renomada escola de teatro The Lee Strasberg Theatre & Film Institute. Conte-nos como foi essa experiência. FT: Foi uma das melhores experiências que tive em minha vida. Quando fui morar lá a ideia era ficar

6 meses e acabei ficando 4 anos. É uma cidade encantadora que respira arte por todos os cantos. Aprendi muitas coisas e foi um período de grande amadurecimento pessoal e profissional.Estava estudando numa escola incrível, por onde já passaram grandes nomes e onde tive a oportunidade de conhecer atores do mundo inteiro.

De lá para cá você já atuou e também produziu inúmeras espetáculos de teatro. Ser produtora estava nos seus planos? FT: Nunca esteve, eu diria que foi acontecendo mais por necessidade do que de fato vontade. Quando

voltei para o Brasil entendi que eu tinha duas opções, ficar esperando pessoas me chamarem para trabalhar ou criar minhas próprias oportunidades, como não sou exatamente uma pessoa paciente optei pela segunda.

E o cinema como surgiu na sua vida? FT: No início de 2015 procurei uma preparadora de atores para me ajudar em um teste, gostei tanto

do trabalho que iniciei um grupo de estudos com ela e mais alguns atores, disso veio a idéia de fazer um curta chamado Ausência que foi exibido no Festival Visões Periféricas, em seguida fizemos “Isso é normal?” que participou no Festival Mix Brasil, e quando me dei conta, o cinema já estava totalmente em minha vida!

Você produziu filmes que foram premiados não só no Brasil mas também no exterior. Quais foram esses prêmios? FT: Com “Rogéria” nós levamos o prêmio de reconhecimento do Juri, pela atuação do diretor

Pedro Gui (Director’sRecognition Award) no Los Angeles Brazilian Film Festival, em 2018. Aqui no Brasil, a Rogéria levou prêmios no Festival DIGO da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás: Melhor Direção (Pedro Gui), Melhor Atuação (Ale Brandão) e Melhor Longa-Metragem. Já com o filme de terror “Cabrito”, dirigido por Luciano de Azevedo, foi uma dezena de participações em festivais, literalmente. Passamos o último ano sendo convidados por festivais no Brasil e lá fora, sempre muito bem recebidos. De todos os incríveis festivais, vale ressaltar nossa participação no Festival de SITGES, na Espanha, considerado o maior festival de filmes fantásticos do mundo. Mas já fomos premiados como: Melhor Longa-Metragem no The Optical Theatre Festival (Itália) Melhor Longa-Metragem pelo voto popular e pelo juri no Rio Fantastik Festival Melhor Ator de Longa-metragem para Samir Hauaji no CineFantasy Melhor Ator na Competição Íbero-Americana do XVIFantaspoa 2020

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Sotaques

Na sua avaliação quais os maiores desafios para se produzir um filme nos dias de hoje? FT: Por onde começar? Por parte do governo há certo descaso na gestão da estrutura criada ao longo

de muitos anos para auxiliar, qualificar e promover a indústria audiovisual deste país. Isto somado à crise pandêmica cria um clima de muita incerteza. Principalmente nesta indústria, em que pensamos em projetos que demoram muito para ser concretizados. Já no campo da produção, da filmagem mesmo, precisamos levar em consideração inúmeros protocolos de segurança e higiene para nossa equipe, nossos colaboradores e artistas. Aprender a criar remotamente, de articular uma equipe virtualmente. É complexo. Aí pensamos, “será que vamos lançar filmes nas salas de cinema?” Difícil prever isto no médio prazo... Por outro lado, temos de nos atentar às oportunidades que surgiram pela própria demanda das pessoas por entretenimento dentro de nossas casas, nessa quarentena intermitente e interminável. De podermos nos distrair, ou nos conectar, por meio dos filmes. Assim, acredito que as plataformas de streaming realmente são o instrumento de distribuição mais viável para nossas obras atualmente.

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Sotaques

O filme Rogéria - Sr Astolfo Barroso Pinto participou recentemente da 11• edição do FESTIn- Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa apresentado no Tropical Hub na cidade do Porto. Você já pensou em alguma parceria com Portugal? FT: Sou apaixonada por Portugal. Há artistas, cineastas maravilhosos na Terrinha. Estamos a estudar alguns editais de parceria, além de estarmos analisando alguns projetos legais de autores portugueses. Há muita história humana e real nesta “ponte aérea”.

Em novembro de 2020 foi apresentado numa plataforma digital, o espetáculo de teatro “Dogville”, um grande sucesso de crítica e público nos teatros em 2019 no Brasil. Foi difícil a realização com essa nova linguagem? FT: Eu diria que foi um pouco perturbadora, apesar da alegria em estarmos “juntos”novamente e podendo levar nossa arte a tantos lugares diferentes por conta da internet. Tem uma formalidade difícil de transpor, não se tem o olho no olho, abraços, terceiro sinal, tudo que faz da experiência teatral única e insubstituível.

Não sabemos ainda quando será o fim dessa pandemia. Qual a sua visão de trabalho diante tudo isso? FT: Produção cultural no Brasil nunca foi fácil.

Infelizmente existe uma grande falta de conhecimento do público em geral, por exemplo, sobre o funcionamento das leis de incentivo, que têm sido tão criticadas não só pelos membros do atual governo, como por grande parte da população que os apoia. Como se as leis de incentivo fossem a causa do grande problema financeiro do Brasil. Junte-se a isso uma agenda de costumes conservadora. Entendemos toda a ameaça que o setor cultural vem sofrendo, mas apesar disso tudo, também acredito que a pandemia e a impossibilidade de sair de casa nos fez ter a certeza de que não podemos viver sem arte, como teria sido sem música, sem todas as plataformas que hoje nos apresentam uma variedade enorme de conteúdo. Acredito sim, que a retomada seja lenta e cautelosa, mas encontraremos os meios para não deixar de criar.

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Fernanda buscou algum caminho especial para ajudar a passar por tudo isso? FT:

A meditação e o Yoga foram dois grandes “companheiros”durante os meses de isolamento.

Sendo você atriz e produtora, como seguir diante de tantas mudanças? FT: Adaptando-se a elas, temos que voltar ao trabalho

entendendo os riscos e seguindo os protocolos de interação social.É um período de muitas incertezas e muita reflexão para todos os produtores e artistas.Sem dúvida todas essas medidas de segurança alteram a maneira como fazemos os filmes nos sets de filmagem, que atuamos nos palcos de teatro, etc. Temos de nos adaptar a uma nova realidade que chegou para ficar. Quanto mais cedo aceitarmos essa realidade, mais preparados estaremos para enfrentá-la. Venceremos.

Quais são seus planos para 2021? FT: Apesar das incertezas, está nos planos a estréia de

duas peças de teatro, rodar o filme “ Operação Coyote”, com Leandro Hassum e a estréia em uma série, que não posso contar os detalhes ainda. Esse ano também conheci a empreendedora Camila Soares, fundadora da IMPACTO, uma grande rede de abundância na qual os recursos tanto financeiros como humanos são compartilhados, todos temos algo pra oferecer e algo a aprender. Os recursos estão aí, porém mal distribuídos e nós, enquanto sociedade, temos também o dever de buscar soluções. Toda visão e proposta social que a Camila trouxe, me tocaram em um lugar muito profundo, e acredito que essas histórias precisam e merecem ser contadas!

Que mensagem você deixa para todos que trabalham com a cultura? FT: Acreditar na arte como uma das maiores e mais poderosas ferramentas de “reflexão“. É através de histórias com as quais nos identificamos que muitas vezes saramos, entendemos ou nos encorajamos a seguir a diante. Contar uma boa história e ver como essa história impacta em cada pessoa.


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Literatura

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Literatura

Imagine adormecer e permanecer dias ou até anos sobrevivendo em realidades alternativas letais? Esta é uma fraçã Life Away”, um álbum conceitual que servirá como trilha sonora para a iminente escrita de horror e ficção fantást Pablo Santos.

A ideia de uma trilha musical para livros não é de hoje, temos como referência “The Tragic Treasury: songs from conjunto de músicas baseado no best-seller “Desventuras em Série” (1999), escrito por Daniel Handler, em seu pse The Gothic Archies.

“A iniciação”, single lançado em 24 de outubro, abriu espaço para o energético e pungente EP “Não durma para semp 09 de novembro. Trata-se de 06 faixas conceituais, contendo 03 interlúdios e 03 faixas cantáveis. Embora as cançõe os 03 interlúdios são recitados nos idiomas: inglês, francês e italiano, além da última faixa, "A escravidão mental" trazendo os temas: sonhos, organizações secretas, corrupção, simbologia e magia do caos.

Sob uma sonoridade padronizada, contínua, se caracteriza em techno rock/new wave, podendo ter como referência Inch Nails e Metric. 40


ão da premissa de “Don’t Sleep Your tica, “Onde os sonhos habitam”, por

m a series of unfortunate events”, um eudônimo e, interpretado pela banda

Ficha técnica Pablo BP Santos (Brasília/DF) Don’t Sleep Your Life Away (2020) Composição: Pablo Santos Produção: Wenderson Machado e Pablo Santos Gravação: Pablo Santos Mix: Wenderson Machado e Pablo Santos Master: Pablo Santos Arte de capa: Fabrizia Posada Ouça "Don't Sleep Your Life Away", nas plataformas digitais: https://bit.ly/2IjUwA8

pre” (em tradução livre), liberado em es terem título em língua portuguesa, ", ser em completo na língua inglesa,

a: Evanescence, After Forever, Nine

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Literatura

“Capote” Foto: © 2005 United Artists Film Inc.

Thales Guaracy Quando eu morava em Nova York, há um bom tempo, durante um piquenique numa praça no Battery Park, conheci um casal do que se poderia considerar a elite americana - ele, de origem canadense, executivo do Salomon Brothers, então importante banco americano, ela, japonesa, cientista política, educada em Paris. Eles me perguntaram o que eu fazia, já que eu pouco saía de casa. - Eu sou o Truman Capote brasileiro - respondi. Eles se entreolharam, sem entender. Achei a princípio que era falta de humor, mas era, na verdade, de informação. - Quem é Truman Capote? - perguntou ele. Tentei explicar, dizendo que naquele exato ano o filme sobre Capote ganhara um Oscar. Continuaram sem saber. - Acho que ultimamente estamos vendo muito Chicken Little - desculpou-se ele. Conto por uma razão essa historinha, que narrei em um dos poucos livros que ainda não publiquei, pelo fato de estar esperando a liberação de algumas pessoas reais envolvidas no texto - a quem prefiro não causar problemas. Entendi que, mesmo em Nova York, cidade mais cosmopolita do planeta, coração do chamado Primeiro Mundo, com a oferta de tudo que é possível e imaginável, a elite intelectual é algo muito restrito. E que eu, um pensador do que é considerado o Terceiro Mundo, ali continuo me sentindo isolado, ou uma ilha dentro de outra ilha.

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Estamos acostumados a pensar no Primeiro Mundo como um lugar, associado aos países economicamente mais desenvolvidos. Porém, a mentalidade tacanha, a falta de informação e a estupidez não são exclusividade dos países pobres. Nos países desenvolvidos há, tanto quanto nos países pobres, uma fatia da sociedade mais iluminista, bem informada e aberta, assim como nos países pobres. E também, como diria Gonçalves Dias, uma nata imbele e fraca. Em Nova York, muita gente, mesmo com dinheiro, não tem interesse, nem mesmo curiosidade, só olha para si mesma. Por isso, não tem educação, conhecimento, refinamento. Não sabe, não questiona, não pensa, não tem uma visão mais ampla. A elite bem formada existe no Brasil, como na Índia, no Burundi e qualquer outro país considerado de terceiro mundo. Assim como a miséria, hoje, a elite existe em todos os lugares. O grande fenômeno da era contemporânea é a universalização da miséria, assim como da intelectualidade. Só que a intelectualidade é uma parcela realmente diminuta, mesmo da própria elite. É a miséria intelectual. A ignorância e o obscurantismo são um problema maior que o da pobreza, porque contribuem para perpetuá-la. E são um desafio universal. Não que eu ache que todo mundo tem obrigação de saber quem é o autor de A Sangue Frio, ou ter visto o filme com Philip Seymour. Porém, a consciência de que em Nova York a vida pode ser tão pobre quanto em qualquer outro lugar me deu a certeza de que a elite, como esse corpo transnacional, tem o dever de agir, em qualquer lugar onde esteja. Não se pode dar a desculpa do atraso do Brasil, da circunstância, da força do obscurantismo para não fazer o papel de dar ideias, convencer, abrir caminhos, liderar para o bem. O Brasil tem uma elite intelectual importante, das melhores do mundo. Nossos médicos têm nível internacional. Os brasileiros do mercado financeiro são respeitados em qualquer lugar. Nossos diplomatas são de uma fineza clássica. Nossa elite da elite é das mais bem formadas do planeta.

O intelectual brasileiro ocupa um lugar único no mundo, com uma visão própria, que parte da realidade brasileira, mas não é voltada apenas para o próprio umbigo. O intelectual brasileiro entende e transita por todas as realidades, sem preconceito. Gosta de Paris, mas come acarajé. Sabe que tem de preservar a Amazônia, mas quer ver também a Noruega salvando o Mar do Norte, em vez de comprar bonds de carbono, jogando a responsabilidade toda no nosso colo. Porque existe também a burrice gananciosa do Primeiro Mundo. Nós temos condições de oferecer não apenas soluções ao Brasil, como a todo o planeta. A elite brasileira pode perfeitamente contribuir, a partir da nossa experiência, e com a nossa visão cultural, para o progresso do país e também o progresso universal. Podemos colaborar para um maior equilíbrio econômico e social. Para um mundo mais democrático, socialmente mais justo e harmônico com o meio ambiente. Estamos numa privilegiada posição de defensores naturais e históricos do equilíbrio ecológico e da economia sustentável. Não adianta ficar esperando a solução do "primeiro mundo". Nossa mania de achar que estamos no terceiro mundo, que vem do tempo do dependentismo, é uma justificativa para a preguiça e a preguiça é a explicação da impotência. Somente a elite transnacional poderá mudar a realidade em que vivemos, num planeta que se desenvolveu de tal forma que criou problemas de um tamanho também jamais visto na História da Humanidade. É preciso também que essa elite, esteja onde estiver, defenda a visão global e cosmopolita do mundo. Começando pelo progresso da educação, como fonte de igualdade de oportunidade para todos, de maneira não apenas a melhorar a renda, mas também multiplicar a elite. Isto é, a elite verdadeira, entendida como gente que não somente tem dinheiro, como sabe usá-lo bem, e para o bem, acima de qualquer coisa.

Thales Guaracy Autor de diversas obras, Thales Guaracy também assina como autor de duas obras publicadas em Portugal: “A Conquista do Brasil” (editora Planeta) e o romance “Anita” (editora Quatro Estações).

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Literatura

Cena do filme Sleepy Hollow (1999), de Tim Burton - Divulgação/ Paramount Pictures

Uma releitura brasileira de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça

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Acorrentada pelo feitiço do patriarcado, entre as profundezas de Brasília, emerge da terra com suas vestes negras e pesadas pelo pecado de ser mulher. Vagando pelo Condomínio Vivendas da Barra, uma vez habitada por uma família vil de título Oranoslob, ouvia-se gritos e murmúrios agonizantes de um espírito, que eram de uma mulher, negra, morta nas redondezas. Em ritual, refazia seu pacto com o vermelho, oferecendo sua alma em troca de humanidade para com o próximo. Restando segundos para meia-noite, o chão começara a tremer e ouvia-se o grunhido de pássaros deixando a área. Era um dia de tempestade, raios e trovões anunciavam sua chegada. Sedenta por justiça e igualdade, vinha montada num cavalo branco manejando uma foice que brilhava ao reflexo do luar. Chegando na residência Oranoslob, com o cavalo ao seu favor, avançara o animal sobre as janelas de vidro, que se espatifam no chão. Ao subir a escadaria da casa, sem piedade, arremessou sua foice ao pescoço de suas vítimas, o Messias e família, levando consigo os seus corpos até as extremidades do abismo.

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Portugal

a resistência em diário Francisco Wagner Bezerra Rodrigues

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It is impossible to define a feminine practice of writing, and this is an impossibility that will remain, for this practice can never be theorized, enclosed, coded-which doesn’t mean that it doesn’t exist. But it will always surpass the discourse that regulates the phallocentric system; it does and will take place in areas other than those subordinated to philosophico-theoretical domination. It will be conceived of only by subjects who are breakers of automatisms, by peripheral figures that no authority can ever subjugate (Hélène Cixous)

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Portugal

(Carolina Maria de Jesus )

O objetivo principal deste ensaio é fazer uma reflexão a partir de duas obras literárias escritas em épocas não tão distantes, mas por escritoras de origem e classe social completamente distintas. Uma das obras escolhidas é o livro Quarto de Despejo, da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus. A outra obra é Novas Cartas Portuguesas, mais precisamente os trechos dos diários presentes no livro escrito por Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. A linha bibliográfica que seguirei está intimamente ligada ao conceito d’écriture feminine, de Hélène Cixous.

As 4 Marias Sem dúvida alguma o primeiro ponto que chama a atenção ao vermos aqui, lado a lado, essas quatro escritoras, é o fato justamente delas serem mulheres e terem escrito, em uma época em que à mulher não era muito dado o espaço da produção literária, lugar destinado quase que exclusivamente ao homem. Ainda hoje esse lugar é de constante luta, mas, claro, muito diferente do período em que as escritoras viveram e produziram. Carolina Maria de Jesus, brasileira, pobre, negra e descendente de escravos, “nasceu na cidade mineira de Sacramento , município vizinho a Uberaba, provavelmente em 1914” (SILVA, 2007, p. 1). Escrevia nos cadernos que encontrava no lixo, local onde trabalhava como catadora de papéis e ferro para vender. Sua história está repleta de idas e vindas , caminhadas, pés no chão, e sua obra foi um espelho do que ela experimentou nessa trajetória de luta, como mulher pobre e negra. Na condição de mulher negra, migrante e pobre, experimentou as difíceis condições de vida que caracterizavam a metrópole paulistana. O processo de industrialização havia por essa época ingressado em uma nova etapa passando a atrair o trabalhador nacional de diferentes estados. Novas categorias sociais como os retirantes das secas, nordestinos e negros, surgiam em um cenário urbano até então marcado pela presença dos imigrantes europeus. Sabemos muito pouco sobre a forma como os novos atores da vida

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urbana enfrentaram os desafios da cidade. Por meio dos escritos de Carolina nos foi possível acessar fragmentos daquelas experiências. As narrativas que nos legou registram um conjunto de vozes silenciadas, reunidas por uma personagem de trajetória incomum. (SILVA, 2007, p. 1)

Foi na favela que Carolina Maria de Jesus escreveu seus primeiros diários, que viriam a dar origem ao livro Quarto de Despejo, publicado em 1960. O cotidiano difícil de uma catadora de papel, mãe, pobre e negra, foi o material que norteou o que viria a ser o primeiro livro da escritora, traduzido em mais de dez línguas e alcançando sucesso nacional e internacional nunca antes visto para uma escritora mulher negra no Brasil. Os 35 volumes encontrados transformaram-se naquele momento na obra Quarto de despejo – diário de uma favelada, publicado em 1960 e responsável por revelar ao país e ao mundo uma escritora multifacetada, representante da literatura marginal. Esta e outras obras de Carolina foram traduzidas para mais de 10 idiomas, destacando-se o inglês, alemão, espanhol, catalão, romeno, iraniano, francês, turco, italiano e japonês. (Revista Universidade e Sociedade, v. 58, 2006, p. 141)

Apesar de diário, falando em primeira pessoa e contando a realidade do seu cotidiano, Carolina falava não só por ela, mas por milhares de outros, homens e mulheres, que também viviam nas mesmas condições precárias.


Nas páginas da principal obra, Quarto de despejo, encontramos relatos sobre a expulsão dos pobres das regiões centrais, sobre a precariedade dos transportes coletivos, as péssimas condições de moradia em cortiços e favelas. O livro causou profundo impacto na opinião pública dos anos 60 porque pela primeira vez uma voz marginalizada, legitimada pelo falar “desde dentro” aparecia questionando as mazelas da política desenvolvimentista (Meihy & Levine, 1994). Embora no escrito tenha adotado o estilo autobiográfico, a autora deixava evidente que as dificuldades que enfrentava na vida pessoal eram igualmente compartilhadas por milhares de migrantes anônimos. (SILVA, 2007, p. 1-2)

Em Um teto todo seu, Virgínia Woolf nos diz que “a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção” (WOOLF, 1990, p. 8). Carolina Maria de Jesus não tinha nem dinheiro e nem um teto só dela que a permitisse escrever. Quando falo em um teto só dela quero dizer literalmente uma casa com as condições que a possibilitassem um mínimo de autonomia e independência para a prática da escrita. E, claro, também não tinha a independência financeira, assim como nos quer explicitar Woolf. Era necessário trabalhar dia e noite para manter os filhos e a si própria, mesmo que em precárias condições de vida. O barracão onde morava era dividido com os filhos e, de um certo modo, com os vizinhos da favela, visto que as paredes eram precárias e era possível ouvir o barulho de todo o entorno. Carolina fala várias vezes nesse sonho da casa fora da favela em seu diário: 20 de julho de 1955 Eu não tenho homem em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortavel, mas não é possivel. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela. (Carolina Maria de Jesus) 21 de maio de 1958 Passei uma noite horrivel. Sonhei que eu residia numa cada residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu ia compra-lhe uma panelinha que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. (Carolina Maria de Jesus)

Ligando-se ao mundo, inevitavelmente Carolina Maria de Jesus entrava em conexão com os outros iguais a ela, pois

O sentimento íntimo do estado de abandono coletivo experimentado pelas camadas populares durante o processo de transição da vida urbana para um novo padrão de segregação espacial foi apreendido subjetivamente por Carolina. A escritora descreveu as transformações em curso enquanto sujeito social e cronista. Narrou o que viu, ouviu e sentiu do ponto de vista dos migrantes pobres, negros e favelados. Quarto de despejo - sua obra mais importante – contém relatos de uma gama de situações recorrentes, marcadas por racismo, fome e miséria que vitimavam milhares de pessoas em situações idênticas. Embora o discurso carolinano tenha se desenvolvido em um plano microscópico, subitamente o vemos deslocar-se para a esfera macropolítica. Surgem então nestes casos, expressões indignadas, endereçadas aos políticos, identificados como principais responsáveis pelas adversidades que as camadas populares enfrentavam na vida urbana. (SILVA, 2007, p. 4)

É nítido o caráter político de seus escritos. Em várias passagens de Quarto de Despejo Carolina direciona aos governantes da época os mais altos brados que um oprimido podia entoar. 6 de maio de 1958 (…) O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la. (Carolina Maria de Jesus) 5 de junho de 1958 (…) Mas eu já observei os nossos politicos. Para observá-los fui na Assembleia. A sucursal do Purgatorio, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no palacio do Governo. Foi lá que eu vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lagrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os politicos representam em relação ao povo. (Carolina Maria de Jesus)

Os trechos acima, e muitos outros, deixam claro o teor coletivo de sua obra e o lugar merecido que Carolina ocupa no Brasil, como “mulher-símbolo de inúmeros preconceitos e violências que marcam nossa sociedade e que conseguiu vencê-los e ser reconhecida como um dos mais altos expoentes de nossa literatura, representante da literatura marginal” (Revista Universidade e Sociedade, v. 58, 2006, p. 140)

Mas se tem algo de que ela se orgulhava, e que, com certeza, está diretamente relacionada à independência feminina tão amplamente defendida pela Woolf e tantas outras mulheres que escreverem a respeito, é o fato de ela não precisar do auxílio de homem nenhum, podendo, assim, tomar partido de sua própria vida. 18 de julho de 1955 Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou descontente. (Carolina Maria de Jesus)

Apesar da vida difícil, Carolina não deixou de escrever. Passou períodos em que não escrevia, como podemos observar em sua biografia, mas sempre que podia voltava à escrita. Escrever para ela era, talvez, a forma de se ligar ao mundo, por isso não podia parar, apesar de o mundo sempre querer dizer que o lugar da escrita não era para ela. 2 de maio de 1958 Eu não sou indolente. Há tempos eu pretendia fazer o meu diário. Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perder tempo. …Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas que eu conheço com mais atenção. Quero enviar um sorriso amavel as crianças e aos operários. (Carolina Maria de Jesus)

(Carolina Maria de Jesus )

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Portugal

(Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa)

Do lado português, encontramos as 3 Marias em um contexto completamente diverso. Já com uma estrada na criação literária, “cada uma das autoras havia publicado algum tempo antes livros marcados por uma forte dimensão política, que tinham desafiado, de formas diversas, os papéis sociais e sexuais esperados das mulheres” (AMARAL, 2010, p. XV). Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa decidem então, em Lisboa, escrever uma obra a seis mãos. Em 1971 elas começam a escrita de Novas Cartas Portuguesas , livro que viria a ser publicado em abril de 1972. Apesar da escolha aqui ser de falar exclusivamente dos trechos de diários existentes em Novas Cartas Portuguesas, penso ser importante contextualizar, por mínimo que seja, o período em que o livro foi escrito e como ele foi recebido. O primeiro ponto que considero importante citar é o fato de as 3 Marias terem escrito Novas Cartas Portuguesas no período em que vigorava a ditadura em Portugal. Pelo teor do livro, podemos concluir que era um risco imenso a publicação do mesmo no referido período, tal risco sendo constatado com a censura do livro três dias após sua publicação. Uma das justificativas da censura foi que o livro era um atentado à moral e aos bons costumes, por mostrar várias tabus da sociedade da época – e alguns ainda fortemente vividos na atualidade – que, naturalmente, não interessavam ao poder serem revelados tão abertamente. A história que rodeou a publicação e primeira recepção da obra é conhecida por entrevistas dadas aos jornais, sobretudo por uma das suas autoras, Maria Teresa Horta: sabe-se que essa primeira edição foi recolhida e destruída pela censura de Marcelo Caetano, três dias após ter sido lançada no mercado; sabe-se do processo judicial que foi instaurado às três autoras, por terem escrito, em colaboração, mediante prévia combinação, um livro ao qual deram o nome de Novas Cartas Portuguesas, posteriormente considerado de ‘conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública’; sabese dos interrogatórios da PIDE/DGS, a que as três autoras foram sujeitas, separadamente, na tentativa de se descobrir qual delas havia escrito as partes consideradas de maior atentado à moral, e também da recusa das três (que até hoje se mantém) em o revelar; sabe-se do julgamento, que se iniciou a 25 de Outubro de 1973, e que, após sucessivos incidentes e adiamentos, só não teria lugar devido à Revolução de Abril (cf. Vidal 1974). (AMARAL, 2010, p. XVI-XVII)

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Outro ponto importante referente à obra é, sem dúvida, a coautoria, uma inovação para a época. O livro foi escrito pelas 3 Marias e, até hoje, nunca foi revelado que parte cada uma escreveu. As escritoras tinham o desejo mesmo de criar uma obra coletiva, fruto das mãos de mulheres que representavam ali as várias mulheres em situações parecidas existentes no mundo. Por causa dessa escolha de escrever em coautoria, elas queriam diluir a autoridade que o ato de nomear pode trazer. Era, por assim dizer, um ato político e coletivo por excelência. Mesmo que a priori esse não fosse o objetivo do livro, o mesmo marcou época e foi considerado – até hoje ainda o é – como um referencial na luta feminista. Reescrevendo, pois, as conhecidas cartas seiscentistas da freira portuguesa, Novas Cartas Portuguesas afirma-se como um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril (denunciando a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindose de uma invulgar originalidade e actualidade, do ponto de vista literário e social. Comprova-o o facto de poder ser hoje lido à luz das mais recentes teorias feministas (ou emergentes dos Estudos Feministas, como a teoria queer), uma vez que resiste à catalogação, ao desmantelar as fronteiras entre os géneros narrativo, poético e epistolar, empurrando os limites até pontos de fusão. Comprova-o o facto de, passados mais de trinta anos, vir ao encontro de questões prementes na agenda política actual, como a feminização da pobreza, identificada como obstáculo à promoção da paz e ao desenvolvimento mundial. Pelo seu amplo significado em termos políticos e estéticos, o livro foi — e permanece — uma obra fundamental na nossa literatura e cultura contemporâneas, revelando-se um contributo inestimável para a história das mulheres, no sentido mais lato, e para as questões relativas à igualdade e à justiça. Esse significado teve um reconhecimento além-fronteiras que nunca foi devidamente assinalado, nem estudado em Portugal, reconhecimento evidente no número espantoso de traduções para outras línguas, que o coloca entre os livros portugueses mais traduzidos no estrangeiro. (AMARAL, 2010, p. XXI-XXII)

Diferentes da escritora brasileira apresentada aqui, as 3 Marias eram eruditas, tinham estudado muito e gozavam de privilégios sociais bem distintos dos vividos por Carolina Maria de Jesus. O que torna esse encontro mais interessante, pois comprova a ideia de que, mesmo de mundos tão distantes, ambas colocaram suas vozes e corpos a favor de um coletivo maior. Usaram a linguagem – a escrita – como terreno onde puderam denunciar os abusos cometidos sobre o corpo da mulher no decorrer da história, mesmo que aparentemente não fosse esse o objetivo primeiro de seus escritos. Fizeram, assim, poesia e política simultaneamente.


Os diários: um diálogo possível

15 de maio de 1958 (…) A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido. (Carolina Maria de Jesus)

Hélène Cixous, em suas palavras e reflexões sobre o que se nomeou écriture feminine, chama a mulher à escrita, lugar que, segundo ela, tem relação profunda com o feminino.

20 de junho de 1971 (…) Pelo menos a fidalga sempre nos vai dando uns fatozitos velhos e uns restos de comida em vez de os deitar no caixote. Que também há as tarefas dos pobres e as tarefas dos ricos. Uma das tarefas dos ricos será serem caridosos e a dos pobres pedir e aceitar o que lhes dão mostrando-se muito agradecidos. O mundo sempre foi assim, prega o Senhor Prior, uns com tudo outros sem nada, é essa a vontade de Deus; concerteza porque ele nunca teve fome como nós, mas o Senhor Prior respondeu que para se ir para o céu depois de morto é preciso ser-se pobre e os ricos não vão para o céu, e contou uma história de um camelo que entrava pelo fundo de uma agulha e eu por achar graça, deitei a rir de tal maneira que ele me pôs logo de castigo. (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa)

I shall speak about women’s writing: about what it will do. Woman must write her self: must write about women and bring women to writing, from which they have been driven away as violently as from their bodies-for the same reasons, by the same law, with the same fatal goal. Woman must put herself into the text-as into the world and into history-by her own movement. (CIXOUS, 1976, p. 875)

Para ela, a mulher deve colocar-se em escrita. Deve escrever. Usar a linguagem para compartilhar suas experiências como mulher. E o que fizeram as 4 Marias aqui retratadas se não isso? Em seus diários, inscreveram-se como mulheres e, dessa forma, para mulheres, como que em um grito de resistência e existência. 19 de julho de 1955 (…) Cato papel. Estou provando como vivo! Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas. Há os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para intimidar os fracos. Há casa que tem cinco filhos e a velha é quem anda o dia inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais. (Carolina Maria de Jesus) 26 de abril de 1971 (…) Qual a mudança, na vida das mulheres, ao longo dos séculos? No tempo de tia Mariana as mulheres bordavam ou teciam ou fiavam ou cozinhavam, sujeitavam-se aos direitos de seus maridos, engravidavam, tinham abortos ou faziam-nos, tinham filhos, nados-mortos, nados-vivos, tratavam dos filhos, morriam de parto às vezes, em suas casas, com móveis, cadeiras, cortinados; estamos em tempo de civilização e de luzes, os homens fazem livros científicos e enciclopédias, as nações mudam e mudam a sua política, os oprimidos levantam a voz, um rei de França é decapitado e com ele os seus cortesãos, os Estados Unidos da América do Norte tornam-se independentes… (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa)

Para Cixous, “women’s imaginary is inexhaustible, like music, painting, writing: their stream of phantasms is incredible” (1976, p. 876). Esse imaginário tem na escrita o seu maior aliado, terreno fértil para dar conta dessa infinitude. Nossas 4 Marias, em seus escritos, deram mostras desse imaginário, muitas vezes como forma de extrapolar a realidade cotidiana e, dela, fazer poesia.

Ainda segundo Cixous, a écriture feminine pressupõe a inscrição do feminino por meio da escrita. E quando a mulher escreve, toma para si a palavra e a dá corpo, ela também fala e ressignifica seu próprio corpo, ou melhor, recoloca seu corpo no lugar de importância que ele há muito perdeu. E ao fazer isso, a mulher que escreve naturalmente age em favor do social, ou seja, sai do indivíduo para o campo do coletivo, mesmo que, a priori, esse não seja seu objetivo. When I say “woman,” I’m speaking of woman in her inevitable struggle against conventional man; and of a universal woman subject who must bring women to their senses and to their meaning in history. (CIXOUS, 1976, p. 875-876)

É claro que a dificuldade da mulher se colocar na escrita está nitidamente relacionada com a visão do homem no decorrer dos tempos. Nunca foi dado à mulher o direito da escrita, a não ser seus diários íntimos e cartas que não interessavam, por serem, como dizem, “coisas de mulher”. Hélène Cixous tem essa consciência e, por isso mesmo, clama às mulheres que escrevam, que quebrem esse histórico misógino que coloca a mulher como submissa e de menor valor que o homem, a quem deve servir e cuja escrita é a única a ser considerada. Hoje essa realidade já mudou um pouco, mas na época de escrita dos diários aqui apresentados a luta ainda era muito maior. Let me insert here a parenthetical remark. I mean it when I speak of male writing. I maintain unequivocally that there is such a thing as marked writing; that, until now, far more extensively and repressively than is ever suspected or admitted, writing has been run by a libidinal and cultural-hence political, typically masculine-economy; that this is a locus where the repression of women has been perpetuated, over and over, more or less consciously, and in a manner that’s frightening since it’s often hidden or adorned with the mystifying charms of fiction; that this locus has grossly exaggerated all the signs of sexual opposition (and not sexual difference), where woman has never her turn to speak-this being all the more serious and unpardonable in that writing is precisely the very possibility of change, the space that can serve as a springboard for subversive thought, the precursory movement of a transformation of social and cultural structures. (CIXOUS, 1976, p. 879)

(Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa)

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Portugal As 4 Marias escreveram sobre isso em seus diários: 2 de junho de 1958 (…) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. (Carolina Maria de Jesus) 26 de abril de 1971 (…) Assim são os homens; amor de mulher para eles é entrega, obediência, serviço, gratidão. Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as suas propriedades, as suas famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos, os seus prazeres. Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto; para a mulher, o chefe, a política, o negócio, a propriedade, o lugar, o prazer (bem viciado), só existem através do homem. O guerreiro tem o seu repouso; por enquanto nada há onde a mulher possa firmar-se e compensar-se das suas lutas. Chegará o dia? Até lá fica sem sentido a vida de mulheres como eu. (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa)

Não sei se Hélène Cixous já entrou em contato com a obra das 4 Marias, mas provavelmente deve ter lido Novas Cartas Portuguesas, por ser um livro mais conhecido por aquelas que pensam o feminismo. Ou, mesmo, possa ter lido Quarto de Despejo, da escritora brasileira negra Carolina Maria de Jesus, pelo tamanho sucesso que fez e pelas várias traduções que recebeu. Não sei, apenas suposições. A certeza que tenho é que as 4 Marias, ao escreverem, ajudaram a modificar o rumo da mulher na história, o que, certamente, deixaria Cixous feliz, pois, como ela mesma quer, “the future must no longer be determined by the past. I do not deny that the effects of the past are still with us. But I refuse to strengthen them by repeating them, to confer upon them an irremovability the equivalent of destiny, to confuse the biological and the cultural. Anticipation is imperative” (CIXOUS, 1976, p. 875).

1 Ator, contador de histórias, pesquisador e professor de teatro formado pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, com especialização no quadro de prática teatral do Master 1, Arts du Spectacle, na Universidade Paul-Valéry Montpellier III – França (2010 – 2011). Mestre em Narrativas Culturais: Convergências e Aberturas (Universidade NOVA de Lisboa/Portugal) e Mestre em Artes, Letras e Línguas (Université de Perpignan Via Domitia/França) pelo Master Erasmus Mundus Crossways in Cultural Narratives (2018-2020). E-mail: franciscowagnerbr@yahoo.com.br 2

Cidade localizada no Estado de Minas Gerais, sudeste do Brasil.

3 Em 1937, Carolina Maria de Jesus migrou para a cidade de São Paulo, onde permaneceu até sua morte em 1977. Nesta cidade, viveu em alguns bairros, tais como a Favela do Canindé, Santana e Parelheiros.

A escrita de Carolina Maria de Jesus apresenta alguns erros relacionados à norma culta da língua portuguesa. Assim como na edição de seus diários, aqui também deixaremos na forma original.

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“Nesse encontro de Maio de 1971, ficou acordado que, para a escrita em conjunto, as autoras partiriam do romance epistolar Lettres Portugaises, publicado anonimamente por Claude Barbin, em 1669, e apresentado como uma tradução, anónima também, de cinco cartas de amor endereçadas a um oficial francês por Mariana Alcoforado, jovem freira enclausurada no convento de Beja. A autoria das cartas era (e é ainda) polémica – com a crítica dividindo-se entre a própria Mariana e Gabriel-Joseph de Guilleragues –, mas o impacto que elas tiveram no século XVII continuou a fazer se sentir ao longo dos séculos que se seguiram a essa primeira publicação. Sujeitas a constantes traduções e reedições em várias línguas, as cartas de Mariana seriam, trezentos anos depois, em 1969, publicadas em edição bilingue pela Assírio & Alvim, com o título Cartas Portuguesas, e em tradução de Eugénio de Andrade. Foi essa a edição utilizada por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa

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Considerações finais A escolha do tema para este ensaio foi, em um primeiro momento, um risco. Risco porque, aparentemente, quase nada tinham em comum as escritoras escolhidas, a brasileira Carolina Maria de Jesus e as portuguesas Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, por mim aqui agrupadas no que chamei “as 4 Marias”, usando, claro, como referência a conhecida forma pela qual são tratadas as escritoras de Portugal. Assumi o risco e propus esse encontro na escrita, lugar muito bem ocupado por essas quatro mulheres que desafiaram seu tempo dando corpo à palavra. Ambas, a sua maneira, levaram a discussão do lugar da mulher no mundo para uma discussão mais coletiva, política, no maior significado que essa palavra pode ter. Mesmo não tendo sido esse o objetivo primeiro, colocaram em foco o poder que a mulher exerce quando usa a linguagem para se comunicar com as outras mulheres e, claro, os homens. Carolina Maria de Jesus, a meu ver, precisou se individualizar ao extremo, numa tentativa de grito de existência de moradora da favela, de personagem vivo que enfrenta as muitas mazelas cotidianamente presentes na vida de tantas outras Carolinas que sabemos existir. E nesse ato de individualização, de dizer “estou aqui”, “eu sou Carolina”, foi porta-voz de muitas outras que, ainda, são subjugadas e dominadas pelo mundo tão falocêntrico. São silenciadas, por assim dizer.

masculine investments; there's no other way. There's no room for her if she's not a he. If she's a her-she, it's in order to smash everything, to shatter the framework of institutions, to blow up the law, to break up the "truth" with laughter” (CIXOUS, 1976, p. 888). Referências bibliográficas BARRENO, Maria Isabel; COSTA, Maria Velho da; HORTA, Maria Teresa. Novas Cartas Portuguesas: edição anotada, organização Ana Luísa Amaram, Lisboa, Dom Quixote, 2010; CIXOUS, Hélène. The Laugh of the Medusa, in Signs: Journal of Women in Culture and Society, volume 1, nº 4, 1976; DOS LIXOS PARA OS LIVROS - Carolina Maria de Jesus: a escritora marginal. Revista Universidade e Sociedade, São Paulo, v. 58, 2006; JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada, São Paulo, Coleção Sinal Aberto, Ática Editora, 1998; PALMA, Daniela. As casas de Carolina: espaços femininos de resistência, escrita e memória, artigo in Cadernos Pagu (51), 2017; SILVA, José Carlos Gomes da. História de vida, produção literária e trajetórias urbanas da escritora negra Carolina Maria de Jesus, artigo produto de um estágio de pós-doutoramento na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, 2007; WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu, São Paulo, Círculo do Livro S.A., 1990.

As 3 Marias portuguesas, por outro lado, decidiram anularse no coletivo, para, nele, serem mais fortes. Não à toa renunciaram aos nomes próprios, não sendo possível sabermos a autoria dos textos presentes em Novas Cartas Portuguesas. A autoria sabemos que é delas, das três, ou seja, do coletivo. Seus escritos partem da neutralização da propriedade, que pode ser tão castradora, para, justamente, frutificar no coletivo. Outro risco assumido aqui foi o fato de a obra de Carolina Maria de Jesus não ser, assim como é Novas Cartas Portuguesas, uma referência nos estudos feministas. Mas como podemos entender que não há livros feministas em si, e sim a abordagem que damos a eles, esse risco logo foi transpassado. Muito me orgulha compartilhar, mesmo que de forma rápida, os escritos dessa mulher brasileira que, como muitas outras, resistiram e se inscreveram no mundo, pois “o ato de registrar diários e de escrever um relato autobiográfico a permitiu dar alguma estabilidade ao seu percurso de vida – que é só dela e, ao mesmo tempo, de tantas outras mulheres – e a construir para si uma morada, formada tanto por suas casas físicas, quanto pelo lugar literário de memória e subjetivação” (PALMA, 2017, p. 30). Se “a feminine text cannot fail to be more than subversive” (CIXOUS, 1976, p. 888), só posso concluir que essas 4 Marias revolucionaram ao escrever, tiraram do eixo o pensamento corrente, pois, uma vez escrito, “it is volcanic; as it is written it brings about an upheaval of the old property crust, carrier of

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Literatura

Saramago em sapatos de

Wenderson Machado Pinto

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Literatura

José Saramago, autor português, ilustre ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, ateu e comunista, escreveu grandes e polêmicas obras, recebendo várias críticas que vão de aclamações e aplausos até as mais terríveis ofensas. A vantagem que se tem de tal intelectual era que não se deixava levar pelas leviandades de aplausos ou ofensas, homem de caráter forte, mantinha seu pensamento e se recusava a voltar atrás neles, muito mais fácil era que seus críticos vorazes se convertessem ao seu modo de pensar e refletir. Sua obra mais conhecida e divulgada foi “Ensaio sobre a cegueira”, virando filme de elevada critica na terra de Santa Cruz – para bom entendedor meia palavra basta - que não poupou realidade humana e critica político-social em cada segundo do filme. Também escreveu “O evangelho segundo Jesus Cristo”, outra obra que levantou ânimos do conservadorismo da fé portuguesa e de toda a fé cristã apostólica romana, ou seja, o nosso querido autor resolveu encarar toda a hierarquia da Igreja Católica de frente, sempre respeitou a fé dos seus avós, mas jamais se permitiu ser dominado pelo dogmatismo da fé católica. Mas aqui hoje venho falar de uma obra, que para quem lhes escreve percorre do lúdico ao tema da rejeição, lhes será apresentada a obra “Caim”, pequeno opúsculo que guarda várias reflexões em certa parte lúdicas e em certa parte sérias. Saramago escreve sobre esse personagem bíblico da criação, colocandose na pele do “pobre Caim, se é que podemos chamar um assassino de pobre”. Caim conhecido como o fraticida e amaldiçoado por Deus que vagará eternamente pela terra de uma certa forma é justificado e recolocado dentro da humanidade, Caim ainda vaga pela terra, pois com ele, segundo ilustre autor, surge a rejeição, a discórdia entre familiares, a desunião, entre outras tantas coisas que desequilibram a humanidade, mas tudo isso, de acordo com Saramago, nasce da rejeição que “deus” e não “Deus” tem pela sua própria criação. Já no início do livro, usando do seu sarcasmo lúdico, apresenta-se a criação do homem e da mulher que de fato, mediante a perfeição da criação, parece apresentar alguns defeitos que o senhor se vê obrigado a fazer certas correções, mas mesmo assim essas correções ainda assim

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não ficam com a perfeição que o grande senhor tem, apresento por certo o que o autor escreve falando sobre o famoso trecho do sopro de vida e da fala do homem (homem aqui são Adão e Eva): “Não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amote, Eva”. Caro leitor, qualquer aparência com a escrita de Saramago é mera coincidência, se é que existe coincidência. O livro seguirá uma sequência da lógica bíblica, se no início encontramos o sarcasmo lúdico na criação de Adão e Eva, as coisas nem sempre permanecerão assim, pois a injustiça sobre o pobre fraticida Caim virá. Adão e Eva são expulsos do jardim e logo depois temos a narrativa do nascimento de Caim e Abel, o agricultor e o pastor. Ambos aprendem a oferecer sacrifícios a Deus, mas só Abel é visto com bom grado e Caim cai em desgraça por parte do senhor. Aos olhos de Saramago isso se trata de uma provocação do senhor e este ato leva nosso exímio agricultor a ser fraticida. Caim é marcado com uma maldição e obrigado a vagar pela terra, ele acompanhará todos os grandes acontecimentos bíblicos e será envolvido em todos, será sempre o homem que não tem o olhar de Deus sobre si. Aqui é a afirmação de Saramago em sapatos Caim, ele se vê sempre envolto. Caim, antes de ser um capricho de Saramago contra a Sagrada Escritura e a religião cristã, é a exposição clara e direta do autor sobre discordâncias com suas com os livros sagrados em base a visão humanística vivenciada diariamente por ele entre tantos Cains renegados.


Cain Remord - Estátua de mármore de Caim após matar seu irmão Abel - Henri Vidal – Paris - França

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Portugal

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CID ALMEIDA Curadoria : cristina bernardini

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Portugal

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Portugal

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Portugal

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Brasil

Hebert Júnior

Alvará régio de 02/12/1720, assinado por D. João V, cria a Capitania das Minas do Ouro, delimita seu território, organiza a administração e as questões jurídicas.

O trem 66


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Brasil

Vista parcial de Ouro Preto

Casario Colonial 68

Fotos:Hebert Júnior


Casario do Largo do Rosário - Ouro Preto

Vista de Ouro Preto 69


Brasil

Arte de Aleijadinho

Arte Barroca 70

Fotos:Hebert Júnior


Vista do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas

Vista do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas 71


Brasil

Quitandas

Doces no Festival de Quitanda, Congonhas 72


Artesanato em Pedra-Sabão

Cachoeira em Nova União 73


Brasil

São João Del Rei

Tradição Religiosa 74

Fotos:Hebert Júnior


Sobrados da Rua Direita - Ouro Preto

Vista parcial da capital mineira 75


Literatura

Diego Demetrius Fontenele

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Não cantarei sobre o ninho Nem chorarei sobre um lugar. Não sentirei saudades da gaiola Onde me obrigavam a cantar Sobre a tristeza de não poder voar. Cantarei sobre a liberdade E sobre as árvores Que mesmo com raízes Não invejam os pássaros Que em seus galhos vem se abrigar. Cantarei sobre o exílio de não ter Ninho, apenas o vento como amigo E as estrelas a me acompanhar Fiz de pátria o céu Asas no vento, meu lar.

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Moda

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Laercio Lacerda

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Moda

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Moda

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Moda

Modelo: Ellen Becker, Make-up: Ellen Becker Fotos e Edição: Laercio Lacerda Studio modellife

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Brasil

Marcelo de Paula Costa

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É possível acreditar que a auto aceitação das pessoas com deficiência depende muito de como sua família a enxerga. Quando ela é tratada de uma maneira normal, sem diferenciação pela deficiência, essa pessoa consegue viver em sociedade de uma maneira bem tranquila, superando mais facilmente os desafios. Porém, quando há um cuidado excessivo, pode prejudicar muito essa pessoa, pois ela nunca vai se autoaceitar, por que a família não preparou essa pessoa para sociedade, o que torna mais difícil o convívio com outras pessoas, achando sempre que não é o bastante para conviver em sociedade. No meu caso, nunca na minha vida minha família teve um cuidado excessivo, pois eles sempre souberam que a sociedade não tem dó e eles sempre deixaram às coisas bem claras para mim. Mesmo assim, com todo apoio deles, eu demorei para me autoaceitar, mesmo sabendo que sempre teria apoio deles. Passava pela minha cabeça “como eu vou crescer profissionalmente se eu mesmo tenho dificuldades de entender esse processo evolutivo na minha vida?”; só comecei a entender isso quando comecei a trabalhar e ver que as pessoas não ligam para suas dificuldades, mas sim para sua energia e vontade de desenvolvimento, seja ele profissional ou não. Foi assim que comecei a me autoaceitar por conta do meu próprio desenvolvimento profissional. Uma dica que dou para as pessoas: não julguem o livro pela capa, nós podemos ter várias faces, mas vocês também podem ter e não estão atentos a isso.

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Capa

A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo.

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Faço um brinde à ciência: enquanto ela não fizer mal ao povo.

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Capa

O cão não ladra por valentia e sim por medo.

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Literatura

Pedro Vale

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Literatura

(Céfalo e Aurora, 1630, Nicolas Poussin)

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Cisma Em mim um Conceito, Quase uma Ordem estabelecida. - o desejo. Quanto Menos o Pratico, Mais se manifesta e me surpreende por excitante e novo. Glicínias.

In Azul Instantâneo, por Pedro Vale

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Literatura

(Amadeo de Souza Cardoso, “Parto da viola Bom ménage”, 1916)

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Luz(a) alma Sossega e vive do ar A cómoda alma, armário espacial. Plana e cisma a esmola pintada Na rua nua e perfumada. Sonha a universal fundação, À beira-rio, navio-fantasma e fruição. Entoa, na guitarra infantil, dramática gente, Num acorde simples, medieval. - Ó alma lusa, Acorda e sente, Mesmo que à tangente, O que é ser filha de Portugal.

In Azul Instantâneo, por Pedro Vale

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Sotaques

Curadoria de Marlus Alvarenga

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Artistas selecionados para o e-book “ A Língua Nossa de Cada Dia “.

Cris Ávila Eduardo Maciel Fábio Justino Francisco Lavor Gustavo Henrique Moura Hélio de Souza Oliveira Hildon Rodrigues Neandher Galvão Rafael Lago Robson Francisco Martins Rodrigo Castelo Branco Rosilene Souza Sérgio Salviano Tarsila França Thiago Winner Valdeck Almeida de Jesus

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