Jornal
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Unimep Novembro/2017 • Edição 07
Marta. Mulher. Negra. Ex-prostituta. Uma história de minorias.
Vida e relacionamentos de pessoas como Samuel que encontraram no amor a resposta para o preconceito.
página 15
página 4
MENOS é
MAIS Minoria. Opressão. Esquecimento. Histórias de vida que não receberiam capa de jornal
página 9
Junior e demais pessoas com deficiência questionam falta de adaptação em pontos turísticos de Piracicaba.
página 11
A cada dez travestis agredidas, nove, a exemplo de Thaina, preferem não ir à delegacia registrar boletim de ocorrência.
página 14
O ex-presidiário Nathan conta as dificuldades e o estigma que sofre por conta do passado.
página 16
Tiago Bernardi e tantos outros jogadores do interior vivem fora do glamour do esporte.
HIV EM PIRACICABA
RESPONSABILIDADE
REPRESENTATIVIDADE
Especialista alerta sobre comportamento de risco que os jovens se submetem ao não usarem camisinha durante as relações sexuais. página 3
Mulheres cobram dos parceiros uma divisão igualitária nos cuidados com os métodos contraceptivos. página 5
Os perfis dos vereadores da Câmara de Piracicaba refletem a falta de atenção a grupos minoritários. página 13
edição 07 • Novembro/2017
página
EDITORIAL
E
A maioria é minoria
timologicamente, o termo minoria parte do princípio da inferioridade quantitativa. Porém, em se tratando de sociedade, não raro esse conceito é subvertido, relacionando-se à opressão ao invés de quantidade numérica. Torna-se evidente quando várias classes consideradas minorias são, na verdade, a maioria da população. Órgãos como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) explicitam o caso: 54% da população brasileira é preta ou parda (grupos agregados na definição de negros) e 51,4% são mulheres. Como consequência, um dos principais problemas está na representatividade em instâncias que ditam o rumo do país (política, economia, etc).
Em específico, na falta de representantes. Nesses lugares as minorias são, de fato, minorias. Só em Piracicaba, detalhado na reportagem “Casa da maioria” (p.12 e 13), dos 23 vereadores eleitos em 2016 três são negros e duas são mulheres. Isso em uma cidade onde 27% da população é negra e 51% é mulher. Embora a população LGBT+ não seja contabilizada pelo IBGE (por enquanto), fato é que ela existe. Outro fato é que possuem representatividade zero na Câmara de Vereadores. E o principal reflexo desse cenário são demandas específicas que acabam sendo deixadas de lado. Como era de se esperar, o contexto do qual essas pessoas fazem parte afeta a maneira como se portam. Afinal, quem enfrenta
opressão e preconceito dia após dia - seja direta ou indiretamente; explícita ou velada - tende a ser no mínimo mais inseguro quando comparado a quem não enfrenta esse tipo de situação. Durante a apuração das reportagens nas páginas seguintes, os repórteres observaram justamente esse perfil. Mesmo que o intuito desta publicação seja o de oferecer um espaço para que essas pessoas tenham visibilidade e dar a elas chance de contarem as próprias histórias, uma parcela não quis - em princípio - aparecer. Por quê? Cogita-se: desconfiança. Opressão, Preconceito e falta de representatividade, somados às dificuldades do dia-a-dia, desembocam no receio e cinismo sobre tudo.
A mensagem, portanto, é: seu bairro, cidade, estado, país, continente, planeta são habitados por pessoas. E se existe um elemento presente na raça humana é a diversidade. Todas as instâncias da sociedade, desde o poder público até você, são capazes de aprender a lidar com as diferenças. Preconceitos não são novidades. Ainda hoje, existe a propagação de ideias tão antigas que, se for ver, deixaram de fazer sentido há muito tempo. São leituras de mundo passadas adiante por gerações. Até o momento em que vamos olhar para trás e achar descabido o comportamento. É que certas coisas perdem o sentido e se tornam antiquadas com o passar dos milênios.
Expediente Guilherme Victoria
Órgão Laboratorial do Curso de Jornalismo da Unimep Reitor Pro Tempore Fábio Botelho Josgrilberg Diretor da Faculdade de Comunicação e Informática Belarmino César Guimarães da Costa Coordenador do Curso de Jornalismo Paulo Roberto Botão Editor Wanderley Florêncio Garcia MTB MG-06041 Orientação de diagramação Ivonésio Leite de Souza Editores-assistentes Gabriel Piazentin Pedro Spadoni Thierry Marsulo Redação e diagramação Aline Olaya, Ana Lucia Teodoro, Ana Paula Veronezi, Andreson Bispo, Bruno Oliveira Gomes, Caio Lima, Caio Nogueira, Caroline Giantomaso, Clayton Murillo, Elis Justi, Emily Gomes, Isabela Sabellico, Julya Zani, Larissa de Sousa, Larissa Santos, Letícia Alves, Marco Aurélio, Maria Rita Zuliani, Pedro Martins Projeto Gráfico e Arte Final Sérgio Silveira Campos (Laboratório de Planejamento Gráfico) Correspondência Faculdade de Comunicação Campus Taquaral, Rodovia do Açúcar, KM 156 - Caixa Postal 69 CEP 13.400-911 Telefone (19) 3124-1677 unimep.br
Certo. Errado. Igual. Diferente. A língua não é uma coisa só
ARTIGO
nóis vamo falá errado memo Gabriel Piazentin
gabrielpiazentin@gmail.com
S
e alguém achar um problema esse título, é com você mesmo que eu quero um tête-à-tête. Pena não poder fazer isso com o próprio Word, no qual escrevo este texto. Note-se que, numa frase assim, tão “errada”, a única palavra “correta” é justamente errado. Claro, o software segue uma lógica. Opta-se pela língua-padrão. Uma representação de idioma, a norma (dita) culta. Um recorte entre as diversas variáveis linguísticas existentes. Por vezes algumas palavras são tidas como incorretas pelo editor, e eu nem digo de estrangeirismos ou palavras novas. Assim, heteronormatividade aparece grifado em vermelho. O corretor do Firefox não reconhece a palavra polímata. Certo ou errado? Há mais de década tramitou no Congresso projeto de lei, aprovado em 2007, para banir estrangeirismos, pela “promoção, proteção, defesa e uso da Língua Portuguesa”, conforme ementa (PL 1676/1999). Não cabe aqui dizer como essa é uma discussão rasa e incoerente.
Mouse é aceito pelo Word. Tête-à-tête também. O que o Word não sabe é que existem lugares de uso de linguagens. Dá a impressão de que todos os lugares em que a língua acontece sejam uma redação do Enem. Ignora-se, também, que as línguas mudam. Nem para melhor nem para pior. Apenas mudam, ao longo de muito tempo. Não somente via decreto, como a reforma ortográfica validada em 2009, mas sim, de forma natural conforme o uso. As línguas sofrem interferências a todo momento, locais e externas. Tudo começa na escola, onde crianças ingressam nela já sabendo o idioma numa forma coloquial. E o papel da escola é ensinar a língua-padrão, que os estudantes desconhecem. Aí começa: português é difícil. Deve-se falar da mesma forma que se escreve. Regiões do país sabem mais português que outras (sic). São mitos repassados a todo momento. Só agora alguns professores trazem a consciência de variação aos alunos, quando muito. Bem comum é a ideia de o certo é bom (para quem?) e o errado é ruim (idem). Bom, o mundo não existe em
preto e branco, e sim em escalas de cinza. Se buscar um texto original de Machado de Assis, talvez o melhor escritor brasileiro, é visível como a língua era diferente só cem anos atrás. A tudo isso dá-se o nome de preconceito linguístico. É quando alguém desmerece outra pessoa pelo jeito que fala/escreve. Todos somos sujeitos de linguagem, afinal. Vivemos nela e por ela somos atravessados. Pela proximidade existente com a língua, alguns sentem-se guardiões do padrão, condenável no desvio alheio. Quando se diz que algo é errado, supõe-se que outro seja correto. E o errado é taxado de ruim, desprezando-se qualquer traço psicossocial do indivíduo. Tem-se a ideia de que exista um único idioma. Logo no Brasil, reconhecido país de tantas misturas. Quem não usa a norma culta carrega estigmas de se pertencer a uma classe inferior. Livros teóricos reproduzem esse efeito. Idem em ambientes não-teóricos, a exemplo de professores normativos em colunas de jornal. Pelo simples motivo: é fácil ser assim. Conscientizar as pessoas leva tempo, repetição, pa-
ciência. Pudera, o indivíduo que faz uso de norma desviante não é contemplado por livros didáticos, dicionários e gramáticas. Ele é o corpo estranho, aquele que não encontra identidade. Tudo corrobora para que ele seja visto como inferiorizado nessa relação. Logo, não é uma questão de língua, e sim, da pessoa que faz uso dessa língua, em uma determinada região, num certo tempo histórico. Piracicaba que o diga, cujo caipirês (palavra não reconhecida pelo Word) foi tombado como patrimônio histórico imaterial. E quando o MEC propõe um livro didático em que se mostra o falar coloquial, polêmica lá de 2011, a exemplo de “os menino pega o peixe”, pouca gente entende de fato o que acontece e muito se critica. Diz-se que a raiz de todo preconceito é a ignorância. Tomara que ao menos eu incomode. Do tipo, criar manchete tida como grotesca e mostrar que existe um outro jeito de se olhar para ela. E aí, vamo fechá? Gabriel Piazentin é bacharel em Linguística pela UNICAMP e aluno do 6º semestre de Jornalismo da UNIMEP
3
Novembro/2017 • edição 07
Casos de jovens com HIV crescem 36% em Piracicaba e região Araras Rio Claro
EVOLUÇÃO NOS CASOS DE HIV NA REGIÃO DE PIRACICABA ENTRE 2005 E 2015 FONTE: Secretaria de Vigilância em Saúde do Governo Federal
20
26
39%
23%
Iracemápolis Cordeirópolis
0
1
0%
0%
Limeira 33 22%
Piracicaba Americana
94
Os jovens têm o maior comportamento de risco já que preferem não usar a camisinha durante a relação sexual
Glaucia Teodoro, coordenadora e enfermeira do SAE (Serviço de Atenção Especializada) de Araras que concentra o atendimento de pacientes com AIDS e hepatite viral e outras OSTs
30
44%
Maria Rita Zuliani
36%
mariaritazuliani@gmail.com
Piracicaba e demais cidades da região, que incluem Americana, Santa Bárbara d’Oeste, Limeira, Iracemápolis, Cordeirópolis, Rio Claro e Araras, tiveram um aumento de 36% no número de casos de HIV em jovens de 15 a 24 anos entre 2005 e 2015. De acordo com a Secretaria de Vigilância em Saúde do Governo Federal Brasileiro, em 2005 havia 652 pessoas soropositivas na região. Já em 2015, o número foi para 887. No mundo, conforme dados da UNAIDS (Programa da Organização Mundial da Saúde sobre Aids), os números apontam diminuição de novos casos de HIV em jovens e também daqueles que já vivem com a doença. 822,5 mil novos casos foram registrados mundialmente em 2005. Já em 2015, os casos foram para 497,4 mil, causando uma diminuição de 40%. A diminuição mais acentuada ficou entre os jovens que já têm a doença: houve uma queda de 58%. O infectologista Luiz Carlos Massaro acredita que perdeu-se o medo da doença. “Os riscos efetivos mudaram ao longo destes anos e os usuários de drogas endovenosas são muito poucos hoje, de forma que o grande grupo de risco
Santa Bárbara D’Oeste 25 108% Novos casos em jovens
são os jovens em atividade sexual ativa, que têm maior número de parceiros que antigamente e que perderam o medo da doença e deixaram de usar preservativos”, concluiu o infectologista. Flávia (nome fictício a seu pedido), de 19 anos, contraiu a doença no nascimento. “A AIDS não tem cara, a única solução é se prevenir. Eu canso de dizer aos meus amigos mais próximos e que sabem da minha condição, para usarem camisinha independente do parceiro. Tomo diversos remédios por dia que me causam muitos efeitos colaterais. Não é nada fácil viver com essa doença”, contou a estudante. Santa Bárbara d’Oeste foi a cidade entre as analisadas que apresentou maior aumento no número de casos entre jovens de 15 a 24 anos. Em 2005, haviam 23 pessoas com a doença. Já em 2015, haviam 48, um aumento de 108%. Iracemápolis não apresentou aumento no número de
Aumento (em porcentagem)
casos entre os jovens. Em 2005 a cidade contava com apenas dois e em 2015 não havia nenhum registrado. No Brasil Contra a tendência mundial, o Brasil registrou um aumento de novos casos de AIDS. Dados da UNAIDS apontam que novas infecções no Brasil aumentaram em 4% entre 2005 e 2015. No mesmo período, no mundo, houve diminuição de 24%. Piracicaba e região registraram um aumento de 56% de casos da doença no mesmo período. No ano de 2005, havia 4.697 casos. Já em 2015, o número foi para 7.343. Das cidades analisadas, Santa Bárbara foi a que apresentou o maior aumento no número de casos. Em 2005, a cidade contava com 245 casos e em 2015, foi para 531, ocasionando um aumento de 117%. Limeira foi o município com o menor índice de aumento no número de infecções. Até
2005, registrou 949 casos e em 2015 o número foi para 1.324. Segundo Massaro, o aumento tem como principal motivo o fato de novos medicamentos terem diminuído o risco de morte pela doença. “Sempre que tratada a tempo, a doença pelo HIV nem chega a vir e a sobrevida chega a ser, em alguns casos, superior à média da população”, afirmou ele. Em Araras encontra-se o Serviço de Atenção Especializada (SAE) “Enfermeira Adalgisa dos Santos Gonçalves”, que concentra o atendimento de pacientes com DST, AIDS e hepatites virais. Glaucia Teodoro é coordenadora e enfermeira no local. Ela afirma que a causa do aumento de casos na cidade em 52% entre 2005 e 2015 deve-se pela introdução de testes rápidos no diagnóstico e a intensificação de campanhas de prevenção que permitem a descoberta do vírus mais cedo. “Nosso serviço oferece testes rápidos para Hepatites B e C, HIV e Sífilis e o resultado sai em 20 minutos
aproximadamente”, concluiu. Qualquer pessoa pode realizar o teste, mediante apresentação de documento de identidade com foto e os exames são oferecidos de forma gratuita. Segundo o infectologista Massaro, há uma mistura de dois processos para justificar o aumento de casos na cidade de Araras, “Um pouco de descuido, em função da melhora muito grande no tratamento, mas também houve de fato campanhas mais abrangentes que detectaram mais casos”, afirma . Cerca de 12% dos pacientes notificados em Araras, uma das sete cidades da região de Piracicaba analisadas nessa reportagem, não estão em tratamento para a doença, segundo o SAE. A coordenadora Glaucia afirma que essa porcentagem corresponde a pacientes que preferem não receber o tratamento na cidade e recorrem a alguma cidade vizinha, incluindo pessoas que desistem ou não querem passar pelo tratamento.
Maria Rita Zuliani
Profilaxia pós-exposição Pessoas que acreditam ter entrado em contato com o vírus recentemente, pelo sexo sem camisinha, devem recorrer à PEP (Profilaxia Pós-Exposição), uma forma de prevenção da infecção pelo HIV usando os medicamentos que fazem parte do coquetel utilizado no tratamento da AIDS. Essa forma de prevenção já é usada com eficácia nos casos de violência sexual e de profissionais de saúde que se acidentam com agulhas e outros objetos cortantes contaminados. Caso o indivíduo entre em contato com o vírus, é preciso buscar ajuda em um serviço credenciado. O atendimento inicial é urgente, já que o uso dos medicamentos deve começar o mais cedo possível. O ideal é começar a tomar a medicação em até duas horas após a exposição ao vírus HIV e no máximo após 72 horas. A eficácia da PEP pode diminuir à medida que as horas passam.
4
edição 07 • Novembro/2017
Susy e Samuel, entrelaçados pelo amor; “cada pequeno detalhe era uma conquista”, afirma Samuel
lis
s: E
o Fot ti
Jus
de DENTRO para FOR A
Relacionamentos trans. Histórias diferentes e de respeito à diversidade Elis Justi
elisjusti@gmail.com
Já dizia Machado de Assis, em 1872: “cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar”. Pensamento adequado a um tema bastante apresentado pela mídia: relacionamentos e suas diversidades. Embora o assunto seja abordado em novelas globais, continua pouco esclarecido à sociedade. Essa falta de informação resulta em intolerância e, consequentemente, preconceito. Quanto a gêneros, fala-se em homem e mulher – e sua definição diz respeito, inicialmente, ao sexo biológico. Já transgênero é a pessoa que não se configura e não se manifesta segundo essa definição, estabelecida por nascença.
Vanusa, 34, se descreve como uma empresária feliz e realizada
RELACIONAMENTO
Samuel, 27, ilustrador gráfico e professor, e Susy, 24, cabeleireira, namoram há 4 anos. Mas no início tiveram muitas dificuldades, devido ao preconceito. Conheceram-se aos 15 e 12 anos, respectivamente. Na época eram um casal homossexual. Samuel é homem trans e o namoro do casal, antes da transição dele, foi proibido pela família, fazendo com que ele saísse da cidade para se dedicar aos estudos. Em breve, o casal pretende oficializar a união. Guilherme, 20, estudante de Ciências Sociais, amante da paternidade, solteiro, homem trans. Antes de sua transição, casou- se com seu professor do colégio, com quem teve uma filha, Silena, hoje com 3 anos. Ele divide a guarda da filha com o ex compa-
nheiro e relata a dificuldade de se relacionar. Para ele, muitas pessoas não compreendem o transexual num relacionamento. O estudante conta ainda sobre a necessidade de ser transparente ao conhecer alguém e já esclarecer o fato de ser trans. Ele admite que já teve companheiros que consideravam a transexualidade uma fase. “Eu não sou só uma fase, eu não sou só um momento. Sou algo que sou”, diz. Vanusa, 34 anos, empresária do ramo da beleza, é mulher trans, noiva de Celso, com quem tem um relacionamento há 10 anos. Quando se conheceram, Celso sabia da transexualidade dela. Hoje o casal tem uma relação sólida, pretendem morar juntos e adotar uma criança.
TRANSIÇÃO
O processo de transição varia de caso para caso. Com o apoio da namorada, dos familiares e dos amigos, Samuel iniciou o processo de transição. Susy, namorada dele, participou de todas as etapas. Conheceu o CRT (Centro de Referência e Tratamento), em São Paulo, e passou a participar de todas as etapas. “Cada pequeno detalhe era uma conquista”, afirma Samuel. Após o início da transição, o casal passou a viver junto. Com isso, aprenderam a conviver com as mudanças. Sobre o processo de mudança de gênero, um ponto importante destacado por Samuel é o uso das próteses penianas - que possuem funções de volume, sexo e necessidades renais - e
DESCOBERTA de hormônios. Ele também aponta a remoção dos seios, considerados por ele como “um órgão intruso”. Por ser um processo complexo, precisa ser realizado por profissionais e ter o acompanhamento médico, para não haver danos à saúde. “Passei por uma segunda adolescência, com calor demais, sono, fome, inclusive nervoso. Mas a sensação que a gente tem é a de nascer de novo e começar a vida de verdade a partir da mudança”, conta Samuel. Apesar de ter se assumido trans durante a gestação de Silena, Guilherme fez a transição hormonal após o nascimento da filha. Quando Silena completou um ano e meio, o casal se separou e hoje compartilham a guarda da criança. Ambos são chamados de ‘pai’ por Silena. Vanusa conta que sua transição aconteceu de maneira tranquila. Ela não se submeteu a nenhuma intervenção cirúrgica, o único procedimento feito regularmente é aplicação de hormônios femininos, uma vez por mês. “Me sinto mulher. A única coisa que eu tenho vontade de fazer é colocar silicone nos seios”, conta Vanusa, que está em processo de alteração do registro civil. “Muitas vezes as pessoas veem meu RG e não acreditam que sou trans”, relata. Vanusa comenta que houve certo constrangimento quando começou o processo de transição e precisava identificar-se com documentos.
Ao terminar os estudos e retornar a Piracicaba, aos 20 anos de idade, Samuel e Susy reataram o relacionamento separado pelos pais na adolescência. Agora com uma fantástica descoberta: ele nascia. “Foi como mágica, uma solução para o vazio que sentia, porque eu não sabia o que era isso”, diz ele. Guilherme descobriu-se aos 17 anos, durante a gestação de Silena. Assumiu-se homem trans neste mesmo período, mas a transição hormonal ocorreu após o nascimento da filha. Já Vanusa, aos 12 anos, declarou-se transexual. Porém, somente aos 14 anos passou a se produzir e vestir-se como mulher. Ela conta que teve o apoio da mãe e, no início, tinha receio dos familiares mais próximos, por medo da reação deles - que, por sinal, nunca foram contra a decisão dela. “Minha mãe me ajudava a escolher as roupas, a passar maquiagem. Enfim, ela era minha confidente”, conta.
PARA ENTENDER MELHOR Transexual - sua anatomia não corresponde à identidade, o que o leva a modificar o corpo com terapia hormonal e cirurgia; Transgênero – expressa-se como o sexo oposto, mas não modifica anatomia. Nome social - é um direito conquistado e assegurado por meio do Decreto 8.727, de 28 de abril de 2016. O documento estabelece que o indivíduo adeque o nome ao senso de identidade que representa.
5
Novembro/2017 • edição 07
A responsabilidade também é DELES
Mulheres cobram cumplicidade dos parceiros nos métodos contraceptivos Pedro Martins
pedro37@yahoo.com.br
Quando surgiu, na década de 60, a pílula anticoncepcional foi vista como marco da emancipação feminina, dando a possibilidade das mulheres controlarem sua própria fertilidade. No campo da saúde, o medicamento até então pouco conhecido, gerava temores relacionados ao câncer e outras patologias. Atualmente, o debate é outro; muitas mulheres passaram a questionar a responsabilidade a que foram incumbidase, de se preocuparem sozinhas com os cuidados nos métodos contraceptivos. Foi o que pensou a cabeleireira Alessandra Martins quando decidiu parar de tomar a pílula anticoncepcional. “Avisei meu parceiro que ia parar de tomar pílula, justamente por que não achava justo usar algo químico no meu corpo todos os dias e me preocupar sozinha com isso”, contou. Ela diz que, embora não tenha sofrido com efeitos colaterais dos anticoncepcionais, não achava o método sadio. “Não fazia o menor sentido pois meu ciclo ficou quadrado, contado de forma matemática e um corpo não é exato. Começou a me incomodar não saber pelas sensações orgânicas quando eu estava ovulando ou quando ia menstruar, não conhecia mais o meu corpo, além de sentir que estava me envenenando todos os dias, me perdendo de mim pra que um macho pudesse ejacular em paz? Nada justo”, disse. Alessandra ressalta ainda que seu parceiro nunca a procurou para saber como ela se sentia com a situação: “Ele nunca me perguntou se aquilo podia me prejudicar ou se me sentia bem e nem tampouco se dava ao trabalho de perguntar na hora da relação se estava em dia com o método ou se precisava usar alguma precaução extra”, contou. A psicóloga Ana Carolina Pascoalete levanta a questão cultural: “na história da sociedade moderna, os métodos contraceptivos sempre foram de responsabilidade da mulher, além de todos os efeitos colaterais e a responsabilidade emocional”. Para a profissional é importante pensar em soluções conjuntas com o parceiro
Não conhecia mais o meu corpo, além de sentir que estava me envenenando” Alessandra Martins
Na história da sociedade moderna, os métodos contraceptivos sempre foram de responsabilidade da mulher” Ana Carolina Pascoalete
“eu entendo que pensar esses métodos conjuntos é enriquecedor é acima de tudo, traz qualidade de vida” Efeitos diferentes A estudante universitária Letícia Alves conta que começou sua vida sexual sem uso de pílulas, e após sua primeira gravidez, o médico ginecologista indicou um anticoncepcional. “Ele receitou essa pílula pois, segundo ele, poderia ser tomada durante a amamentação, mas ao invés de cortar a minha menstruação, aumentou meu fluxo por dois meses seguidos. Quando voltei para consultar e falei do problema, ele disse que cada organismo reagia de uma forma, e me receitou outro”, informou. A primeira experiência foi tão traumática que a estudante decidiu não continuar com este método. “Meu parceiro me apoiou nesta decisão, optamos por ter relações com camisinha e coito interrompido, já que minha menstruação é irregular, não consigo fazer a famosa tabelinha de fertilidade.” A Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgou a eficácia dos métodos anticoncepcionais, como um alerta para que todos eles sejam utilizados adequadamente ou, até mesmo, substituídos por novos cuidados.De acordo com o estudo, a versão feminina da camisinha evita até 95% das chances de fecundação do óvulo, número que cai para 79% quando não utilizada de acordo com as especificações. O ginecologista Paulo Padovani ressalta a importância do uso dos anticoncepcionais com prescrição médica. “Os anticoncepcionais têm efeitos colaterais; e as mulheres não tem como administrar isso, é preciso uma avaliação médica adequada para saber o tipo ideal de medicamento para aquela pessoa”. Outro assunto pouco conhecido é o funcionamento da chamada “pílula do dia seguinte”, Padovani explica: “essa pílulaatua com a precipitação do período menstrual, impedindo que o embrião se desenvolva ao chegar no útero”, informou. O ginecologista reforça que este é um método emergencial. “Essa pílula não é um anticoncepcional, é uma pílula de emergência”.
Escolha deve envolver o casal A maquiadora Raissa Silva conta que conversou com seu parceiro para tomar uma decisão conjunta “Eu tomava anticoncepcionaldesde que comecei a vida sexual. Ano passado resolvi parar, tivemos que usar só camisinha. Eu lembro dele ter reclamado no início mas depois foi tranquilo”. Ela diz que nas relações sexuais com seu parceiro, fazem uso da camisinha masculina e feminina e lidam comtranquilidade com a escolha“Acho que tudo
tem que ser dividido, se tiver mês que eu não tenha dinheiro pra comprar, ele tem que comprar, já que é pra ele também”. O diálogo também foi o caminho para a empresária Ellen Silva. “Por um tempo acreditei que era responsabilidade só minha. Meu marido usava preservativo, mas sempre cobrava o uso da pílula, justificando que o uso do preservativo era desconfortável pra ele”, contou. Ellen diz que não se sentia bem com a situação:
“quando tomava pílula, ficava muito irritada além de ter ganhado peso.” O marido de Ellen, o músico Luíz Silva, decidiu dividir a responsabilidade. “Depois que conversamos, eu passei a encarar a responsabilidade sendo do casal. Fiz vasectomia logo que tivemos a segunda filha, pois já tinha a certeza de que não queria mais filhos, e pra ela não precisar ficar dependente de anticoncepcionais a vasectomia foi a melhor solução encontrada”.
DIU de cobre Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), a eficácia do DIU de cobre é de 99% na contracepção, mas ressalta que o método não protege contra as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST). No mês de março, o Ministério da Saúde anunciou a ampliação do acesso ao DIU de cobre, já distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Paulo Padovani ressalta que embora a eficácia deste método seja grande, é preciso considerar os fatores individuais. “É um método que como todos os outros precisa ser assistido e acompanhado pelo médico”, disse.
EFICÁCIA NOS MÉTODOS CONTRACEPTIVOS
98%
Com 98% de eficácia na prevenção da gravidez, a camisinha é o método mais simples, barato e também um dos mais seguros. Usado de forma correta desde o início da penetração, a probabilidade da mulher engravidar é de apenas 2%
95%
A versão feminina da camisinha evita até 95% das chances de fecundação do óvulo; número que cai para 79% quando não utilizada de acordo com as especificações.
99%
A eficácia do DIU de cobre é de 99% na contracepção, mas o método não protege contra as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)
100%
A forma mais efetiva de contracepção masculina ainda é a vasectomia. Método que resulta em uma esterilização permanente do homem por impedir a liberação de espermatozoides no líquido ejaculado sem diminuir a libido, interferir na ejaculação ou causar impotência sexual
Métodos masculinos Recentemente, começou a ser testado um tipo de anticoncepcional masculino, que funciona como uma espécie de vasectomia temporária. O medicamento foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos EUA e foi batizado de Vasagel, e age bloqueando a passagem dos espermatozoides dentro do canal peniano. Os testes em humanos do medicamento devem ser iniciado em breve. A forma mais efetiva de contracepção masculina ainda é a vasectomia. O método resulta em uma esterilização permanente do homem por impedir a liberação de espermatozoides no líquido ejaculado sem diminuir a libido, interferir na ejaculação ou causar impotência sexual. Com 98% de eficácia na prevenção da gravidez, a camisinha é o método mais simples, barato e também um dos mais seguros. Usado de forma correta desde o início da penetração, a probabilidade da mulher engravidar é de apenas 2%.
FONTE: Organização Mundial da Saúde
6
edição 07 • Novembro/2017
Fotos: Larissa de Sousa
Aqui no CAPS comecei a pintar e descobri meu talento”
Quadros feitos pelos pacientes do CAPS de Piracicaba
Roselina Maria de Melo
Piracicaba espera mais um CAPS Larissa de Sousa
larissa.sousa.lds@gmail.com
Paciente Joseane Pereira de Moraes mostrando seu artesanato e a terapeuta ocupacional Silvia Helena Mascarenhas.
Piracicaba já tem porte para abrigar um segundo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mas por falta de recursos continuará com apenas com um, o CAPS Bela Vista. Segundo o Ministério da Saúde, para a abertura de um centro é preciso que a cidade disponha de mais de 200 mil habitantes. Piracicaba tem uma população de aproximadamente 400 mil moradores, além de atender usuários de cidades da região. Inaugurado em 1998, o CAPS Bela Vista II, no antigo hospital psiquiátrico Cesário Motta, tem dois Ambulatórios de Saú-
de Mental: um no bairro Vila Cristina e outro no Vila Sônia. A Secretaria Municipal de Saúde pretende instalar outro CAPS e transformar o Bela Vista em nível III, com atendimento 24 horas. Porém, de acordo com a assessoria de imprensa, para isso é necessária aprovação e verbas do Ministério da Saúde. A iniciativa de abertura de ambulatórios em Piracicaba deriva da Lei 1.0216, da reforma psiquiátrica de 1989, que prevê a extinção progressiva dos manicômios. Após o fechamento do Cesário Motta, em 1990, no mesmo local foi inaugurado o CASM (Centro de Atendimento à Saúde Mental), um ambulatório misto para o tratamento de doenças
mentais onde atendia crianças e adolescentes. Só em 1998 tornou-se CAPS Bela Vista. Segundo a terapeuta ocupacional Silvia Helena Mascarenhas, o trabalho realizado no CAPS é para ajudar os pacientes a ter uma vida melhor e conseguir se estabilizar em sociedade. “A pessoa que tem algum tipo de doença mental faz atividades, recebe atendimentos e depois volta para casa. A maioria das doenças e casos tratados aqui são de esquizofrenia, bipolaridade, tentativas de suicídio e psicose”, comenta. A psicóloga do centro de apoio Mara Rezende explicou que no começo foi difícil. “Havia diversas atividades no mesmo
local e poucos psicólogos para atender. Depois de algum tempo que abriram concurso. Antes era uma única unidade para a cidade e região. O objetivo era compor um CAPS para cada região, porém só foi possível realizar um centro”, diz. Maria Cristina Arzolla trabalhou no Projeto Clarear em parceria com a Secretaria de Esportes, Lazer e Atividades Motoras de Piracicaba (SELAM) em 1989 com os pacientes do Cesário Motta. Entre eles havia adolescentes e adultos. “Quando eu atuava no Projeto Clarear, alguns pacientes me disseram que haviam sido abandonados pelos familiares e relatavam torturas. Também sabe-se que esses pacientes tiveram algum tipo de sequela, pois eram feitas lobotomias e tratamento de choque”, relata Cristina. De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde, a proposta de instalação de um novo CAPS possibilita um tratamento diferenciado ao padrão hospitalar. Esta unidade atende aqueles requerem um acompanhamento intensivo, porém fora do ambiente hospitalar. As atividades e serviços disponibilizados no ambulatório são consultas médicas,
psicoterapia, atividades livres como esporte, artesanato, música, relaxamento e caminhada. Casos de violência O paciente Marcelo Gomes de Almeida, de 45 anos, chegou na unidade do CAPS em 1999. Ele contou como era tratado antes do fechamento do hospital. “Já estive aqui no Cesário Motta, eu ficava preso e amarrado”, relembra. Almeida relatou que foi dopado por diversas vezes. “A liberdade da gente não tem dinheiro que pague”, pontua. Roselina Maria de Melo, de 54 anos, frequenta há 22 anos as unidades de tratamento psicológico. Maria foi internada no hospital psiquiátrico Cantídio de Moura Campos, em Botucatu e hoje recebe acompanhamento em Piracicaba. “Aqui no CAPS comecei a pintar e descobri meu talento”, comenta. Joseane Pereira de Moraes, de 51 anos, foi diagnosticada com epilepsia. “Meu pai tinha deficiência visual, minha mãe tinha epilepsia, assim como eu. Quando eu era adolescente perdi os dois em um acidente de carro. Minha mãe começou a ter ataques dentro do veículo. Logo em seguida meu pai foi ajudar, mas quando percebeu que havia um caminhão vindo em sua direção não teve tempo de reagir. Isso tudo aconteceu bem no dia de meu aniversário de 20 anos”, comenta. Ela também disse que tempos depois o motorista do caminhão que bateu no carro dos pais se suicidou, pois não aguentou saber que o casal havia morrido e deixado a filha doente. “Depois disso fiquei internada no hospital Cesário Motta por 3 anos. Foi horrível porque eles me acordavam às 5h para ir ao pátio e tinha o toque de recolher às 11h da noite, ficávamos no escuro. Era muito triste e solitário”, relembra. Atualmente Joseane vive com a irmã e o cunhado.
A liberdade da gente, não tem dinheiro que pague” Marcelo Gomes de Almeida
Após o histórico de maus tratos da época do Cesário Motta, a abordagem hoje é outra; à direita, atividades esportivas fazem parte da rotina dos pacientes.
7
Novembro/2017 • edição 07
Homens que tiveram relações homossexuais em menos de um ano são proibidos de doar no Brasil
perdido andreson.silva20@gmail.com
215.000 homossexuais interessados em doar sangue entre 25 e 50 anos
Desperdício Segundo a ONU, o ideal é que de 3% a 5% da população de cada país doe sangue por ano. No Brasil, o índice não atingiu nem 2% em 2016. Embora o Ministério da Saúde coloque que os estoques de
dida prejudica a saúde pública. “O sangue é igual em todas as pessoas. Não importa se somos heterossexuais, homossexuais, bissexuais ou transexuais. Todo sangue coletado vai passar por exames para detectar alguma patologia”, diz. Segundo o médico Fabrício Bíscaro Pereira, que trabalha na diretoria da divisão de hemoterapia no HC da Unicamp, atualmente se discute sobre este grupo de pessoas poder ou não doar sangue. Mas no momento, o que vale é a regra presente na portaria 158/2016 do Ministério da Saúde. O fato de o Brasil não ter atingido o número ideal de doação de sangue mostra como essa medida restritiva afeta a saúde pública. Além disso, para Paulo Tavares, coordenador do Fórum Municipal de Defesa dos Direitos Humanos de Campinas, a restrição reforça o estigma negativo sobre essa parcela da população. Isso porque ressalta a associação entre homossexualidade/ bissexualidade e incidência de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis). “Se o nosso sistema de testagem é de fato eficiente, como alegam as autoridades sanitárias, não haveria razão para tal restrição. [A regra] pode afastar dos bancos de sangue milhões de gays e bissexuais que não tem qualquer infecção por DSTs”, comenta o coordenador. Outro lado Existem casos que se desenrolam de maneira diferente. João Carlos (nome fictício a pedido) conta que doou sangue no início deste ano para o Hemonúcleo de Jaú, no Departamento de Educação da Unesp de Bauru. Ele relata que, na época, havia tido relações sexuais nos 12 meses anteriores mas conseguiu doar normalmente. Sua justificativa é que embora soubesse sobre a restrição, achava que havia sido revogada há cinco anos. Andreson Bispo da Silva
Homens que tiveram relações sexuais com outros homens em um período de 12 meses não podem doar sangue. Isso parece uma restrição da década de 80, mas ocorre em 2017, segundo a portaria 158 de 2016 do Ministério da Saúde. Mas a mesma portaria diz, em outro artigo, que a triagem para a doação é isenta de manifestação de preconceito e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Na prática, o que acontece é que muitos homossexuais passam por constrangimentos na hora de doar sangue. É nesse momento que descobrem que serão impedidos por conta de relações sexuais. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu em abril deste ano à ministra Cármen Lúcia que fosse agilizado o processo que julga a regra. Em setembro de 2016, Fachin já havia liberado a ação para ser incluída na pauta de julgamentos do plenário. A ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5543 começou a ser julgada no dia 26 de outubro deste ano e recebeu quatro votos contra as medidas do Ministério da Saúde e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), o do relator Fachin mais dos ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber. O ministro Alexandre de Moraes considerou a ação parcialmente procedente. O ministro Gilmar Mendes pediu vista da ação e agora não há previsão de quando o julgamento será retomado. Para ser considerada inconstitucional, a medida precisa receber pelo menos seis votos dos 11 ministros do Supremo. Enquanto o julgamento não termina, a restrição continua existindo. “Me senti como se estivesse fazendo algo errado. Mesmo estando em ótimo estado de saúde, parecia que meu sangue não prestava”. Quem conta isso é o
sangue estejam baixos e veicule campanhas de conscientização sobre doação, o órgão cria obstáculos para os interessados. A ONG All Out realizou, em 2016, a campanha Wasted Blood (“sangue desperdiçado”, em tradução livre), em parceria com a agência de publicidade Africa. O intuito era mostrar a quantidade de homens gays no Brasil que gostariam de doar sangue mas são impedidos. A campanha reuniu a assinatura online de mais de 200 mil homens. Isso representa cerca de 90 mil litros de sangue - o suficiente para ajudar mais de 800 mil pessoas. Mesmo com o demonstrativo, a portaria mantém o grupo em “comportamento de risco” e o Ministério prefere evitar a coleta. Só que todo sangue doado, seja por quem for, é obrigatoriamente testado, com o objetivo de identificar quaisquer riscos ao receptor. Thales Garbo é estudante de enfermagem e já teve vontade de doar sangue, mas soube da restrição por meio de amigos. Ele aponta que essa me-
O TAMANHO DO DESPERDÍCIO
População Brasileira
207,7 milhões
97.114 litros
3% 1,8% 3,7 milhões
Número de doadores Número ideal de doadores Litros de sangue que poderiam ser arrecadados Fonte: Campanha Wasted Blood no Brasil
863.000 pessoas poderiam ser ajudadas
Jonathan Felipe Rodrigue Rissi não pode doar sangue por conta da restrição do Ministério da Saúde
6,2 milhões
Fonte: campanha Wasted Blood (ONG All Out, 2016)
Andreson Bispo Silva
estudante Pedro Martins, que foi enquadrado no “grupo de risco” por ser homossexual. Ele conta que durante a entrevista no hemonúcleo de Piracicaba, foi questionado sobre quantos parceiros sexuais havia tido. Ao responder que tinha se relacionado com um homem, foi avisado que não poderia doar sangue por conta das condições impostas pelo Ministério da Saúde. Entre 2012 e 2017, 129 candidatos foram impedidos de doar sangue por manterem relações sexuais com outros homens em Piracicaba, segundo dados da assessoria de imprensa do HC (Hospital das Clínicas) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
8
edição 07 • Novembro/2017
Pela
sombra
Arquivo Pessoal
Thais, 20 anos, sonha em ser enfermeira
A superação dos albinos no cotidiano e o desamparo do poder público
Julya Zani
julyazani@outlook.com
Por mais “invisíveis” que pareçam, os albinos chamam a atenção por onde passam pela diferença. “O diferente sempre assusta de princípio, mas eu sempre tirei de letra”, diz a albina Thais Tavares, de 20 anos. A estudante de enfermagem, ainda que aparente ser frágil pela sua mutação genética, mostra que o albinismo lhe fez muito bem, principalmente para o seu amadurecimento. “O albinismo serviu muito para criar entendimento sobre minhas limitações mediante algumas situações no decorrer da minha vida”, comenta. Ainda assim, os albinos são invisíveis por aquele que deveria ser o primeiro a enxergá-los: o poder público. Não há no Brasil lei que os auxiliem diretamente nem pesquisa demográfica de quantos vivem no país. “Albinos não constam no Censo do IBGE, são uma parcela invisível, porque não se conhece o número de albinos no Brasil, assim fica difícil traçar planos para elaborar políticas públicas”, aponta Roberto Bíscaro, professor e criador do blog Albino Incoerente. “Além da invisibilidade advinda da inexistência de dados sobre quantos somos, nosso banimento das estatísticas assume contornos ainda mais perversos. Talvez, se fôssemos contabilizados, entraríamos no mapa das políticas inclusivas observadas nos últimos anos”, conclui Bíscaro.
Talvez, se fôssemos contabilizados, entraríamos no mapa das políticas inclusivas observadas nos últimos anos” Roberto Biscaro A cor dos olhos, da pele e do cabelo são determinados pela quantidade de melanina que nosso corpo produz. É o que falta aos albinos. Além das diferenças exteriores, eles também sofrem de diversos problemas de saúde por conta da doença, como na visão e na audição. O termo óculo cutâneo resume as variantes mais graves da doença, ou seja, o albinismo afeta tantos os olhos (óculo) como a pele (cutâneo). “Assim que nasci meus pais observaram o meu problema de visão. Me diagnosticaram com uma série de problemas visuais, auditivos e albinismo também. No começo meus pais ficaram um tanto assustados, afinal nunca haviam ouvido falar sobre o albinismo”, conta Thais. Ela se diz sortuda por ter nascido no lar certo. “Acredito firmemente que Deus escolheu a pessoa certa para me dar à luz, minha mãe sempre me cuidou como uma boneca”, diz.
Ao sair de casa, os albinos enfrentam alguns inimigos na rua. Além do sol, seu maior inimigo, têm que lidar com xingamentos e apelidos maldosos. Foi o que aconteceu com Thais. “Superei cada etapa, bullying, dificuldades e preconceitos. Antigamente me incomodava, hoje já não ligo e até gosto”. Tratamento e cuidados O albinismo não tem cura, mas existem vários cuidados que os portadores devem tomar para que não haja nem agravamento da doença nem a causa de outras. “Os principais cuidados que esse fototipo deve ter são: usar cosméticos que ajudem a varrer os radicais livres e a diminuir a perda de água na pele. Em especial, aumentar a hidratação das camadas da pele mais profundas às mais externas e não se esquecer do protetor solar, que é indispensável”, aponta a esteticista Luana Tedeschi. Os albinos devem ter acompanhamento regular de médicos especialistas em pele, audição e visão. “Hoje em dia eu faço acompanhamento com otorrino, uso aparelho auditivo e faço acompanhamento com dermatologistas e com oftalmologista. Também uso óculos e protetor solar, o que é recomendado para todos”, elenca Thais. A jovem, que sonha ser enfermeira, já enfrentou barreiras que muitos duvidaram. “Hoje trabalho no hospital da Unimed e curso enfermagem. Acredito que o céu é o meu único limite”, pontua.
Não há nada de errado Mulheres que não querem ter filhos trazem relatos de pressões sofridas por conta do gênero Como amo o que eu faço, não teria como me dedicar 100% na criação de um filho” Paula Correa
Não é fácil, o julgamento vem às vezes pela família, pela religião” Daniela Zampieri
Ana Paula Veronezi anpveronezi@hotmail.com
Paula Correa, de 38 anos, decidiu não ter filhos. Assim, conta, é possível viajar, passear e, enfim, “curtir a vida a dois”. Segundo censo feito em 2010 pelo IBGE, 14% das mulheres brasileiras não querem ter filhos. As entrevistadas por esta reportagem contam que estão cansadas de ouvir a sociedade dizendo que só encontrariam a verdadeira felicidade após terem filhos. Para muitas, a liberdade é uma forma de felicidade. Quem diz isso é a psicóloga, feminista e promotora legal popular Daniela Zampieri. “Existem outras formas da mulher se encontrar plena, feliz e realizada. A própria independência, a liberdade, é uma delas”, diz. Camila Ramos, de 35 anos, relata que sente seu relógio biológico “apitando”, mas o que não vem é a vontade de ter um filho. “As pessoas só faltam colocar um filho no meu útero”,
diz Camila, julgando ser uma forma de preconceito. Para a psicóloga Daniela, essas mulheres precisam ser firmes na escolha. “Não é fácil, o julgamento vem às vezes pela família, pela religião etc. Algumas religiões colocam isso como uma máxima, que a mulher nasceu para procriar”, explica. Debora Galante, de 24 anos, acha que não existe preconceito, mas uma tentativa de mudar a ideia da mulher. “Eu vejo mais pelo lado de falar que é bom ter filhos, querendo mudar [uma ideia contrária]”, conta. Ela relata também que as pessoas pressionam sobre a questão da velhice e solidão. Para Debora, ter um filho teria criado barreiras em sua atuação profissional. Não quero filhos, e daí? Ainda segundo o censo do IBGE, quanto maior o grau de escolaridade da mulher, mais tarde ela decide ser mãe. Para muitas, a questão profissional tem um grande peso na hora
de cogitar um filho. Paula, por exemplo, passa 12 horas fora de casa por conta do trabalho. “Como amo o que eu faço, não teria como me dedicar 100% na criação de um filho”, diz. Por outro lado, Daniela diz que encaixar um filho na vida não é difícil, mas exige versatilidade. “Se pensarmos sobre as gerações passadas, nossas mães e nossas avós davam conta de serem mulheres, esposas, mães, trabalhadoras e o que mais fosse necessário”, comenta. Debora, que é veterinária, conta que às vezes precisa sair de madrugada para atender uma ocorrência e voltar tarde da noite para casa. Por conta dessa rotina, ela acha difícil inserir uma criança em seu estilo de vida. “No mundo machista que ainda vivemos, fica mais difícil ainda. Não rola você sair de casa para trabalhar e seu marido ficar olhando a criança. Então o que acontece é: ou a mulher ter que abrir mão da sua carreira ou de ter filhos. Os dois juntos, fica complicado”, diz.
O outro lado da moeda Elizangela Luciene Marçal Souza tem 4 filhos. Para ela, a maternidade não era um sonho. “Era uma consequência de anos de casada, algo natural”, comenta. Mas Elizangela respeita mulheres que não desejam filhos. “Impor a maternidade seria um erro com ela e com a criança”, pontua. Além disso, ela conta que ter filhos foi uma experiência humanizadora. É comum ouvir relatos de pessoas idosas que envolvam a necessidade (e a vontade) de casar cedo e ter muitos filhos. Mas não foi o que Aparecida Gomes Zuliani, de 80 anos, escolheu. Ela se casou em 1969, aos 32 anos, e teve apenas dois filhos. “Eu quis ter independência financeira antes de casar, para ter condições de comprar uma casa com o meu marido. Tive meu primeiro filho logo no primeiro ano de casada e a outra só veio alguns anos depois”, lembra. Aparecida conta que sentia julgamento nas perguntas que faziam a ela. “[As pessoas] me jul-
. Maria Rita Zuliani
Aparecida Gomes Zuliani, 80 anos, é mãe de 2 filhos
gavam também porque não me casei mais cedo. Uma de minhas irmãs se casou com 18 anos e teve onze filhos. Todo mundo perguntava se eu não tinha vontade de ter mais filhos e que eu precisava fazer isso logo porque estava ficando velha”.
9
Novembro/2017 • edição 07
Fotos: Isabela Sabéllico
Acessibilidade limitada dificulta locomoção de deficiente no Engenho Central
TURISMO
Inacessível
Pessoas com deficiência reclamam da pouca adaptação no município e falta de conscientização da sociedade Isabela Sabéllico Sobral isabellico19@gmail.com
Seis pontos turísticos na região da Rua do Porto, em Piracicaba, não possuem acessibilidade completa para atender as pessoas com deficiência auditiva, motora e visual. As informações foram solicitadas pela reportagem, a fim de averiguar a adaptação dos locais públicos que o município oferece aos 75 mil deficientes que vivem na cidade, equivalente a 22,5% da população local, segundo dados do Censo de 2010. De acordo com a prefeitura, a área da Rua do Porto, ocupada por restaurantes, prédios antigos e residências, dispõe apenas de rampas. A maioria dos estabelecimentos não corresponde ao
mínimo exigido em questão de adaptação. O Engenho Central é mais acessível, pois há rampas em quase todo o complexo, facilitando a circulação pelos principais prédios do espaço (teatro, salão de humor etc), além de sanitários que atendem cadeirantes e pessoas ostomizadas. Conta, também, com vagas de veículos reservadas para pessoas com deficiência. Em relação ao Largo dos Pescadores, o local possui acessos a pessoas com deficiência, porém as edificações no entorno não estão preparadas para um atendimento completo a quem necessita. Já o Museu da Água e o Aquário Municipal são adaptados apenas com rampas, atendendo somente os cidadãos com deficiência motora. A Casa
do Povoador não dispõe de acessibilidade, mas o entorno, sim, de acordo com a assessoria. Segundo as informações do executivo, os locais não possuem acessibilidade universal, atendendo todos os níveis de deficiência, pelo fato de os espaços físicos terem sido construídos há muito tempo. “Isso ocorre porque muitos deles são bem antigos e ao longo dos anos tiveram seu uso adaptado, como é o caso, por exemplo, do Engenho Central, que de usina de açúcar e álcool passou a ser utilizado como complexo cultural”, explica a assessoria. O coordenador do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência (Comdef ), Francisco Nuncio Cerignoni, relata que a principal luta da entidade diz
respeito ao aumento da acessibilidade no município. Cerignoni disse que ano a ano existe certa melhoria no quesito de adaptação nos locais, o problema é que o trabalho é mal feito. “Recentemente, a prefeitura rebaixou guias de várias ruas da cidade, mas, pouco tempo depois, fizeram recapeamento em alguns destes locais. O resultado foi uma elevação entre a rua e a calçada”, explica. A deficiência visual representa a maior incidência no município. Segundo dados do Censo, o problema afeta 55 mil cidadãos em Piracicaba. De acordo com o coordenador do Comdef, a acessibilidade para estes é ainda mais precária. A confirmação disso é o fato de que existe apenas um semáforo sonoro em toda a cidade. A ferramenta fica em frente a Avistar, localizada na Av. Antônia Pazinato Sturion. Andrea Campeliare Almeida, coordenadora da entidade, explica que mesmo havendo este auxílio a situação é difícil devido à falta de conscientização da população. “Os motoristas simplesmente não respeitam o semáforo, eles passam no sinal vermelho. A Secretária Municipal de Trânsito e Transporte de Piracicaba (Semuttram) e a Polícia Militar tiveram que fazer uma campanha de trânsito, para tentar amenizar esta falta de respeito por parte dos cidadãos que estão no volante”. O vereador André Bandeira, deficiente motor há 21 anos devido a um acidente de carro, relata que, de fato, a cidade precisa melhorar no quesito de acessibilidade. O problema é a falta de verba. “Nós estamos tentando resgatar o déficit que a cidade tem em relação à adaptação aos deficientes, já que não foi trabalhada esta questão ao longo dos 250 anos do município. Mas, infelizmente, atualmente é difícil devido à crise financeira instalada na cidade e no país”, explica. O parlamentar, cujo mandato visa a luta pelos deficientes, disse que tudo em Piracicaba precisa ser feito pensando na acessibilidade. Bandeira enfatiza que a frota de ônibus do município é praticamente 100% adaptada com elevador, servindo de referência. “Nós, deficientes, queremos envelhecer com qualidade de vida, por isso, é de extrema importância que a cidade se desenvolva neste quesito”, comenta.
Conscientização é um dever de todos Pessoas com deficiência defendem a ideia de que a melhor acessibilidade que elas podem ter dentro do município é a conscientização e respeito por parte da sociedade. A aluna da Avistar, Jandira Donette Gomes, 66, ficou cega há 10 anos. A aposentada relata ter muita dificuldade ao andar pelas calçadas, devido à ausência de sinalização e pela falta de respeito dos cidadãos. “As pessoas não nos respeitam. Quando eu estou na rua, quase sou levada por quem passa, muitos trombam em mim”, disse. Segundo Jandira, uma das alternativas sugeridas para melhorar esta realidade é a elaboração de ações que conscientizem os indivíduos. “Deveriam distribuir cartazes, promover
palestras, ampliar estas questões sobre a falta de acessibilidade e a dificuldade que nós deficientes temos, por conta da postura da sociedade”, disse. Brás Antônio Mendes, 62, que também é aluno da Avistar e possui baixa visão, devido à retimose pigmentar, disse que sai de casa apenas acompanhado pela esposa. Para ele, não existe condição. “Em todas as palestras que nós, alunos da entidade, vamos, a questão de acessibilidade sempre é abordada. Outro dia eu estava andando pela rua e bati a cabeça em uma árvore que estava mal podada. Não sei de quem foi a culpa, mas sofri as consequências”, explica. Já o atleta de basquete da Associação dos Amigos e Para-
desportistas (Aapp) de Piracicaba, Junior Cesar Paulino, 36, questiona a falta de adaptação ao redor do Ginásio Municipal de Esportes Waldemar Blatkauskas. “Não há comodidade nenhuma para nós, cadeirantes, ao redor da quadra que treinamos”, explica. Ju n i o r d i s s e q u e o u t ro problema enfrentado pelos atletas é a dificuldade de os treinos serem realizados com outras modalidades, devido ao espaço esportivo ser dividido. “Não é só nós que podemos treinar no local, e isso dificulta na hora de competir. Por estarmos sem treinar frequentemente, não temos como jogar de igual pra igual com outra cidade”, relata.
Único semáforo sonoro em funcionamento no município fica em frente a Avistar
10
edição 07 • Novembro/2017
Da
periferia
à sala de transplante Jovem espera quatro anos por um transplante de rim
Larissa Santos de Oliveira laarists@gmail.com
O Dia Mundial do Rim, comemorado em 9 de março, revelou este ano um número surpreendente de pessoas no Brasil que aguardam na fila de espera por um transplante. Segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), o número de 21.264 pacientes engloba donos de apartamentos luxuosos, até moradores de comunidades carentes. Inseridos na mesma luta, essas pessoas desejam incansavelmente vencer doenças renais crônicas e retomarem um antigo estilo de vida. Infelizmente, o número de doadores efetivos ainda não supriu a demanda. No longo processo de espera muitas famílias sofrem ao perderem entes queridos que não encontraram um órgão 100% compatível. Por outro lado, pessoas celebram a sorte de levar uma vida normal novamente após realizar um transplante. “Eu ficava mal pelas pessoas que choravam quando eu ia para a hemodiálise”. Jonatas Silva Matias Pereira de 23 anos, morador de periferia no interior de São Paulo, fez parte dos felizardos que integraram a lista de trans-
médicos recomendaram a hemodiálise - filtragem do sangue por uma máquina. O procedimento é indicado apenas para pessoas com insuficiência renal crônica. Jonatas então entrou para a fila para receber uma doação. Transplante A sogra do jovem, Therezinha Scarpa Vicente, se prontificou a doar o órgão. A dupla passou por um processo de exames médicos que comprovaram 99% de compatibilidade. Apesar de um resultado positivo, foi necessário um pedido judicial para provar que o caso não se tratava de venda ilegal de órgãos. No mesmo período o rapaz foi informado pelo Hospital do Rim que o órgão de um doador
morto era 100% compatível com o do paciente e que estava disponível para transplante. “Nossa, na hora que falam você não acredita. Eu pensei, será que vou ou não vou?” Após cinco meses depois do transplante, Jonatas e sua noiva, Samantha Scarpa comentam sobre os novos planos, desafios e o casamento, que acontece em novembro deste ano. “A gente começou a planejar o casamento dentro do hospital”, comenta Samantha. Doador vivo Posterior a uma tentativa frustrada de doar medula óssea, a sogra de Jonatas decidiu doar um rim. “Eu tinha anemia e não podia doar a medula”, a mulher que sempre quis ser doadora ainda manteve a decisão, mesmo após o transplante do genro.
Therezinha encontrou um amigo que também precisava do órgão e se prontificou a ajudá-lo. Apesar de receber muitas mensagens negativas de familiares, ela entendeu a importância da ação e ainda reclama da falta de conscientização da população brasileira. “Tem muita gente que depende da boa vontade de outra pessoa. Eu passei a pesquisar sobre isso e eu vi tanta coisa que me motivou a doar.” No processo de exames e procedimentos psicológicos, a mulher comenta que muitas vezes os conselhos dos próprios Psicólogos são desmotivadores. “É necessário que pessoas influentes falem sobre doação para que as famílias sejam conscientizadas”, afirma Therezinha. Samantha, Jonatas e Therezinha. A descoberta em família da doação de órgãos
a veir
e Oli
d ntos
Sa rissa
plantados de rim do estado, no primeiro semestre de 2017. Após aguardar quatro anos por um novo órgão, o piracicabano, acometido de glomeruloesclerose segmentar e focal (Gesf ), descobriu que estava com insuficiência renal em 2013. Diferente de muitas pessoas que percebem cedo os sintomas da doença, o jogador de futebol já estava em estado crítico quando foi encaminhado ao hospital. Imediatamente passou a ser atendido no Hospital das Clínicas em São Paulo. A partir daquele momento, todo o acompanhamento de Jonatas foi realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Eu comecei a tomar corticoide, que é um tratamento muito difícil, causa inchaço, indisposição e te deixa com uma aparência feia”. Após um ano e meio de tratamento, mas sem resultado, os
La
Um recomeço na
Marco Aurelio Ribeiro de Souza Jr. masouza38@hotmail.com
terceira idade
Aparecida, Jalindo e uma nova história
Marco Aurélio
Idosos se conheceram e casaram em casa de acolhimento de Santa Bárbara D’Oeste
Idosos que deixaram suas casas, ou de seus filhos, para viver em casas de acolhimento às vezes encontram a chance de recomeçar a vida. É o caso da Aparecida Vicentin, de 83 anos, que mora há mais de seis anos no asilo São Vicente de Paula, localizado em Santa Bárbara d’ Oeste. Segundo Aparecida, é muito bom estar ali porque encontra as condições necessárias para viver. Foi para a instituição por não ter mais condições de pagar o aluguel da casa onde morava sozinha. Ela mantém contato com sua família, principalmente
País envelhecido O Brasil possui 3,5 mil asilos privados e públicos. A maior parte das entidades são filantrópicas (65,2%), as instituições privadas com fins lucrativos representam 28,2% e as públicas, 6,6%, segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Essas instituições estão concentradas na região Sudeste do país, e segundo o instituto, o gasto mínimo por residente é de R$ 717,91. O Estatuto do Idoso estabelece
com seus filhos, que a busca aos finais de semana para almoçar. A ida de Aparecida para a instituição foi tão especial que resultou em um casamento com o Jalindo Borges, de 83 anos, um dos residentes mais antigos do asilo, com mais de 20 anos de casa. Ao contrário da esposa, Jalindo não tem muito contato com a sua família, seu parente mais próximo é uma sobrinha, que ele não vê há algum tempo. Aparecida e Jalindo estão casados há dois anos. Ela conta que se conheceram depois de três anos que ela já morava na instituição. O casamento ocorreu na igreja do asilo. Jalindo está casado pela quarta que as instituições podem reter até 70% da aposentadoria do idoso. No país há aproximadamente 83 mil idosos vivendo em asilos. A quantidade de asilos públicos pode se tornar um problema por conta do número de idosos que vem aumentando gradativamente com o passar dos anos no Brasil. Hoje eles são aproximadamente de 23 milhões, podendo passar de 34 milhões nos próximos 20 anos, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).
vez: duas esposas morreram e também passou por uma separação. Já Aparecida foi casada uma vez e seu marido morreu aos 58 anos. A instituição promove atividades com jogos, danças e eventos culturais, para estimular tanto a parte cognitiva, quanto a física. Jalindo e Aparecida gostam de jogar bingo e pescar aos finais de semana, mas ambos relatam que têm saudades de voltar a morar num sítio, de onde trazem as melhores lembranças de quando eram mais jovens. Jalindo conta com detalhes a sua infância e sente saudades de lidar com o gado. Aparecida e Jalindo consideram a pedagoga Magali Alcalde uma mãe, pois ela procura fazer de tudo em prol da felicidade e comodidade dos idosos. Magali está na instituição há 6 anos e é responsável por promover jogos, passeios, viagens e por manter contato com os idosos. Ela conta que a relação é muito “recíproca” e procura devolver todo o afeto que recebe dos idosos. A pedagoga relata que uma de suas qualidades é falar baixo e se expressar bem e que os residentes do asilo aprenderam isso com ela. Por ser responsável por propor as atividades, ela trabalha nessas dinâmicas, a afetividade, amor e o perdão.
11
Novembro/2017 • edição 07
A saga por um
B.O.
Travestis enfrentam obstáculos para fazer uma denúncia na polícia
clayton_muryllo@hotmail.com
Registrar um B.O. (boletim de ocorrência) não é agradável. E pode ser também muito desconfortável se o registrador for uma travesti. Segundo a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), mais de 90% das travestis não registram o boletim de ocorrência por medo de serem discriminadas na delegacia. Com isso, muitas acabam deixando seus casos de lado. Em 2013, por volta das 11h da noite, a travesti Carol Satyro foi intimidada em uma festa. Ela foi impedida de usar os banheiros feminino e masculino. Segundo Carol, desde o momento que chegou ao local os seguranças começaram a persegui-la. “Ficaram uns 10 em minha volta, parecia que eu tinha feito algo errado”, comenta.
O escrivão deu risada diversas vezes, brincou com a situação. Em nenhum momento levou meu caso a sério” Carol Satyro
No dia seguinte, Carol decidiu ir à delegacia registrar o B.O. pela situação. Ela conta que pensou ser uma boa ideia. Mas só parecia. Carol relata que ao chegar na delegacia foi tratada com descaso pelo escrivão. O B.O. foi registrado no 6º Distrito Policial de Piracicaba. Pelo que Carol contou, ficou tudo apenas no papel. “O escrivão deu risada diversas vezes, brincou com a situação. Em nenhum momento levou meu caso a sério”, diz. Por esse motivo, ela resolveu não levar o processo adiante. Meses depois, uma transexual foi proibida de entrar no banheiro feminino no mesmo local que Carol e ainda foi expulsa do estabelecimento com a mãe. A confusão também gerou B.O. por parte da transexual.
No Ceará, após o caso de Dandara - travesti que foi torturada e morta em fevereiro deste ano - as delegacias da mulher no estado passaram a atender travestis e transexuais. Quem assinou o decreto foi o governador do Ceará, Camilo Santana. Até hoje, porém, não existem delegacias voltadas a travestis e transexuais no Brasil. “Seria ótimo se houvesse, mudaria muita coisa” ressalta Carol. Quando surgiram a Delegacia de Defesa da Mulher, em 1985, e a Lei da Maria da Penha, em 2006, o número de relatos sobre casos de agressões contra mulheres cresceu exponencialmente. Carol acredita que o mesmo aconteceria com as travestis e transexuais. Porém, segundo o coordenador da ONG Casvi (Centro de Apoio e Solidariedade à Vida), Anselmo Figueiredo, o certo não seria existir uma delegacia voltada a travestis e transexuais, mas sim um Centro de Cidadania LGBT. Essa instituição acompanharia o processo de fazer o B.O., oferecendo atendimento com psicólogos, advogados e profissionais capazes de ajudar nos casos. “O Casvi cumpre esse papel de receber as pessoas, de fazer toda a orientação e de acompanhar na delegacia para fazer o boletim de ocorrência. Mas como não é um Centro de Cidadania LGBT, não tem essa assistência social exclusiva para oferecer”, explica. Ainda de acordo com Figueiredo, as principais causas de discriminação enfrentada por essa parcela da população são machismo, transfobia e falta de conscientização. Neste ano, houve um caso atípico. Após ser agredida fisicamente por cinco homens, a travesti Samantha Dias foi à delegacia registrar o B.O. e o atendimento funcionou. “Apenas falei a verdade na frente do policial”. O boletim foi feito e a vítima teve os seus pertences devolvidos. A Secretaria de Estado da Segurança Pública foi questionada sobre as orientações que passam as delegacias no atendimento a travestis, mas até o fechamento da matéria a reportagem não obteve retorno.
Clayton Murillo
Clayton Murillo
AGRESSÃO NO CANAVIAL Thaina Penélope, 24, foi agredida por três homens no meio do mato. “Um deles me pediu uma informação sobre um lugar e me levou para o canavial dizendo que não gostava de viado, que eu tinha que morrer. Daí surgiram os outros dois, eles me seguraram e espancaram”, conta. Na época, Thaina tinha 16 anos. Ela
Agentes da Exclusão O que ocorre quando a medida socioeducativa não cumpre sua função Emily Gomes
emily7sg@gmail.com
Relato um drama. Cenário: Limeira, cidade da RMC (Região Metropolitana de Campinas). Personagens: adolescentes que cometeram atos infracionais e passaram pela medida socioeducativa. Clímax: tendo o mesmo problema que diversos cantos do Brasil, “a cidade das joias” tem maior número de jovens apreendidos da região. ECA descumprido O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) entrou em vigor em 1990.Nesse mesmo ano, nascia José Augusto (nome fictício), que experimentaria a medida socioeducativa 13 anos depois. Apreendido por assalto à mão armada, foi levado para São Paulo- na época, Limeira
ainda não tinha uma unidade da Fundação Casa. Lá, ele passou um dia em uma unidade provisória, onde precisou se manter em silêncio para não ser agredido. “Se fizesse alguma coisa sem levantar a mão, apanhava.” relata. Em seguida, foi levado para a Unidade de Inteligência Policial de SP (UIP 6), onde passou dez meses. “Não tem acompanhamento fora da unidade [...], tem abuso de autoridade, não pode falar … [você acaba] vivendo violência na unidade onde era para ser reeducado.” diz José. Hoje, José tem 27 anos e permanece no tráfico de drogas. Rede ‘batata quente’ Muitos indivíduos como José estão por aí. Os índices de reincidência provam que se perdeu algumas batalhas no combate contra a violência. E a culpa re-
CAMPEÃ DE APREENSÕES Limeira alcançou maior índice de apreensões de menores no ano de 2016 Dados obtidos no G1.com
APREENSÃO DE AUTORES DE ATO INFRACIONAL Dados de 2016
554
467 Desde 2012, o número vem crescendo Na unidade da Fundação CASA de Limeira, 70% dos jovens estavam no tráfico de drogas
120
Os dados citados ocorreram em flagrantes
Cam
p ina
s
c Pira
ic ab
a
Li m
e ira
“Já não resolveu no passado quando fui agredida”, diz Thaina Penélope sobre preferir não ir à delegacia
foi levada ao Hospital Fornecedores de Cana de Piracicaba para primeiros socorros e internação. Por lá, ela fez o B.O. e relata que a queixa não deu em nada. Hoje, prefere não ir à delegacia quando sofre algum tipo de agressão. “Já não resolveu no passado quando fui agredida. E outra, eu tenho medo de apanhar de qualquer um”, relata.
cai sobre os agentes de formação do adolescente.. Segundo a psicóloga do Centro de Referência Especializado de Assistência Social de Limeira (Creas), Sara Alves, a eficiência do encaminhamento do adolescente depende da rede. Essa “rede” é composta por quatro instâncias: sociedade, escola, família, Estado. Todos possuem parcela nos índices alarmantes. O raciocínio é que quanto menos os meios envolvidos cumprem seu papel (ou menos recursos tiverem), mais o trabalho é comprometido. “Como vou garantir o acesso à escola se a escola não aceita ele [o adolescente]?”, questiona Sara. A assistente social do Cedeca (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Limeira) Mariana Peres diz que a sociedade dificulta o acesso àquilo que acredita ser necessário para se ter reconhecimento. Ela também diz que as condições das famílias mais a falta de justiça levam ao crime e às drogas. “Para cometer ato infracional, muitos direitos foram violados. Quando fala de reincidência, fala do problema”,
diz. Mariana comenta que a escola “faz de tudo para ele [o adolescente] não ir [ser reinserido no ambiente escolar]”. Isso é confirmado por Sara: “Tem uma forte relação do que chamamos ‘fracasso escolar’ com o meio infracional”, afirma. José mesmo já tinha abandonado os estudos quando cometeu o ato infracional. Ele diz que precisava de um meio de ganhar dinheiro. Desconstrução Para a assistente social do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública, Priscila Schimabukuro, para desconstruir rótulos como o de aluno-problema é necessário fazer parcerias para reconstruir a identidade e preservar a dignidade dos adolescentes como é defendido pela Constituição. Para isso, ela defende a construção da rede de apoio envolvendo Estado, escola e família. “Limeira! Vamos parar de encarcerar tanto moleque?”, convoca Marisa Feffermann, psicóloga e pesquisadora do Instituto de Saúde da Secretaria do Estado de São Paulo.
12
edição 07 • Novembro/2017 Letícia Regina Alves
Vanessa e Nicoly Coral. Mãe e filha se tornaram melhores amigas
Vanessa
Isabelle
Vanessa Coral engravidou aos 16 anos. Como na maioria dos casos, não houve planejamento. Ela conta que sentiu medo, mas jamais pensou em aborto. No começo o pai da criança não deu apoio, o suporte ficou ao cargo dos avós maternos.
Isabelle Cordeiro Luiz foi mãe aos 17 anos. O pai da criança não deu apoio, não é presente e nem procura saber do filho. Ela parou de estudar para trabalhar e sua vida mudou. “Além de ser muito nova, as responsabilidades aumentaram, tive que criar juízo, pois estava chegando alguém que dependeria de mim pra tudo”. A família não reagiu bem à notícia. “No começo não gostaram, choraram muito, alguns até falaram para minha mãe me levar pra fazer o aborto”. Ela conhecia métodos contraceptivos, mas não os usava.
Eu comecei a namorar o pai da minha filha com 16 anos e resolvi que minha primeira vez seria com ele. Usamos preservativo, pra mim tudo era muito novo. Desconfiada, minha mãe comprou o teste de farmácia, e lá fui eu para o banheiro. Chorei demais quando vi as duas fitinhas do teste, um desespero tomou conta de mim. Minha mãe ficou feliz, mas eu estava com medo. E agora? Meus sonhos? Eu sou nova. Tantas coisas passaram na minha cabeça. Meu pai me apoiou e foi tudo tranquilo. Hoje, graças a Deus, não me arrependo dessa escolha. Amo demais minha filha que hoje tem 11 anos.
Comecei a namorar com 14 anos. Aos 15 tive minha primeira relação e aos 16 engravidei. Meus pais nunca conversaram comigo sobre o assunto, nem mesmo quando comecei a namorar. No momento foi um choque, pensei caramba ‘minha vida acabou’, só que eu não fazia ideia de que ela estava apenas começando. Algumas pessoas devem nos julgar por sermos mães novas, ou mães solteiras, mas já vi muitas mil vezes mais responsáveis que outras por aí. Não vou ser hipócrita, já parei pra pensar várias vezes na minha vida e sim, já me arrependi da gravidez, já pensei como seria se eu tivesse alguém pra me orientar quando mais nova, se não tivesse me tornado mãe tão cedo, realmente muita coisa seria diferente. Aí de repente me dá um estalo e penso em como seria minha vida sem esses beijos, abraços, carinhos, bagunça, estresse, “mãe você é linda”, “mãe eu te amo”, “bom dia, dorminhoca”. Sinceramente minha vida não faria sentido nenhum sem ele aqui comigo. Não sou nada sem meu filho!
Daiane Daiane Souza engravidou aos 17 anos. Não concluiu os estudos pois parou na 8° série do ensino fundamental. Conhecia os métodos contraceptivos, mas não usava nenhum. À época, os pais dela não gostavam, hoje dão-lhe apoio. Conheci o pai do meu filho pelo Facebook. Começamos a namorar e fomos morar juntos. Descobri que ele já tinha sido preso por tráfico. Pensei: tudo bem, mudou e aprendeu com o erro. Mas ele era agora usuário de drogas. Ainda assim, trabalhava e comprava o necessário para a casa. Até eu engravidar e ele perder o emprego. Ele começou a roubar minhas coisas para trocar por drogas. Para usar, me trancava em casa e levava a chave. Tive que sair da casa que estava com o aluguel atrasado e fui morar na garagem dos meus pais. A bolsa estourou enquanto ele saiu para usar. Na maternidade, pedi pra ele me ajudar porque já estava sem forças e ele me bateu lá dentro com nosso filho quase nascendo. No primeiro natal do meu filho, o abandonei mesmo sem tê-lo desmamado ainda com minha mãe dois dias para ficar com o pai dele. Depois disso me separei. Me arrependo até hoje por isso e me sinto a pior mãe do mundo. Às vezes me pego chorando sozinha, lembrando.
O outro lado da história
Adolescentes que se tornam mães contam relatos de vida, medo e alegria Letícia Regina Alves lehralves@gmail.com
O número de adolescentes grávidas caiu 17% entre 2004 e 2015 no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. A quantidade de bebês nascidos de adolescentes corresponde a 18% dos três milhões de nascidos vivos no país em 2015. Na região Sudeste nasceram 179,2 mil crianças filhas de adolescentes, quase um terço do total do país. Para a Psicóloga Ana Carolina Pascoalete, a gravidez precoce traz prejuízos para mães adolescentes. “Por muitas vezes ela não ter maturidade nem a responsabilidade. Estão em um período transitório deixando algumas atitudes infantis para começar a se identificar com a vida adulta, é difícil para essa jovem deixar de ser filha e passar a ser mãe”. Pascoalete também chama a atenção para a importância dos pais em conversar sobre o assunto com os filhos, esclarecer e ajudar eles a se descobrirem. Para a psicóloga, não é privando os filhos que esses fatos serão evitados: “a informação é o melhor caminho para se criar uma estruturação”.
Algumas pessoas devem nos julgar por sermos mães novas, ou mães solteiras, mas já vi muitas mil vezes mais responsáveis que outras por aí” Isabelle Luiz
A segunda-feira de um refugiado Lucia Teodoro
Eder, Wadnot e Dolems fazem parte do grupo de alunos em nível intermediário
Haitianos se habituam ao idioma e a cidade piracicabana
Lucia Teodoro
luciaqteodoro@gmail.com
Toda segunda-feira, duas salas de aula são preenchidas aos poucos por refugiados na sede da SEMTRE (Secretaria Municipal do Trabalho e Renda). A aula começa às 18h30, mas a sala só se completa depois das 19h. É que grande parte dos haitianos que frequentam o curso vão direto do serviço para a aula de português. A sala de aula é dividida em dois grupos: iniciantes e Intermediários. Cada sala tem duas professoras voluntárias. Uma delas, Maria Nogueira, estudante do curso de relações internacionais na Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba), é responsável pelas aulas dos alunos iniciantes. Muitos deles não têm nenhuma base no idioma, tendo conhecimento apenas das línguas oficiais do Haiti: a francesa e a crioula haitiana. Clarissa Godoy Zaia, também aluna de relações internacionais, ministra aulas para os alunos intermediários. Naturalmente, algumas palavras de nosso extenso vocabulário são desconhecidas deles. Por exemplo, durante a leitura de um texto sobre a Bahia, percebe-se que palavras típicas como “vatapá” e “acarajé” soam engraçadas e aguçam
Venho aqui para buscar uma vida melhor” Wadnot Errilus a curiosidade dos alunos para saber se já viram ou comeram os pratos típicos. O aprendizado acontece de maneira mútua. Alunos experientes ajudam na intermediação de um novo colega de sala e ensinam palavras em crioulo e francês para as professoras. O curso de língua portuguesa para haitianos teve início em maio do ano passado e está previsto para concluir em outubro de 2020. Cerca de 20 pessoas são beneficiadas pelo convênio entre a Prefeitura de Piracicaba/ SEMTRE com a Unimep. Wadnot Errilus, de 32 anos, é um dos alunos do curso de português. O peixeiro é natural de Port-de-Paix e mora na cidade há dois anos e meio. O haitiano diz que resolveu mudar de sua cidade natal pelos terremotos e furacões que passa-
vam por lá e destruíam tudo que havia construído. “Venho aqui para buscar uma vida melhor. Aqui é uma cidade boa e tranquila. Eu gostei daqui”, conta. No Brasil, Wadnot pôde constituir uma família. Ele é casado com a brasileira Tatiana, com quem tem uma filha de seis meses chamada Valentina. Paixão em comum O esporte une uma cidade, um estado, o nosso país. No Haiti, isso também acontece. Entre as diversas paixões da população de lá, uma é compartilhada com os brasileiros: o futebol. Eder Joseph não esconde a alegria ao falar que irá ver pela primeira vez um jogo do XV com um amigo. O refugiado mora em Piracicaba há dois anos e seis meses, com sua esposa, também haitiana. Ele trabalha como feirante em um supermercado e aos sábados se reúne com o time para jogar futebol. Os jogos acontecem às 17h no campo da área de lazer do bairro Vila Rezende. Dolems Desouvre também joga no time dos haitianos. O ajudante de caldeiraria era vizinho de Eder no Haiti, na cidade de Arcahaie. Ele mora em Piracicaba há quatro anos e, assim como o seu antigo vizinho, veio por indicação de amigos que já moravam na cidade. Os ex-vizinhos matam a saudade do país em que viviam com pequenas festas em casas haitianas, com muita música, dança e comidas típicas.
casa da
13
Novembro/2017 • edição 07
A
maioria
Caroline Giantomaso cmgiantoma@unimep.br
A Câmara de Vereadores de Piracicaba (SP) é composta hoje por 23 vereadores, a maioria homens brancos e heterossexuais. O levantamento feito pela reportagem do Jornal de Classe, com base nas informações disponíveis no site da Câmara e do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), mostra que dos parlamentares que assumiram o cargo após as eleições municipais de 2016, apenas dois são mulheres e três não se declararam como brancos - dois pardos e um negro. Os LGBT+ também não têm representantes no legislativo de Piracicaba. Além disso, o patrimônio acima da média também caracteriza quase todos os parlamentares da cidade. Segundo um relatório lançado em janeiro de 2017 pela Oxfam, com base em dados do Credit Suisse, a média patrimonial dos brasileiros é de R$ 60 mil. De todos os vereadores, dois deles não declararam o patrimônio, 19 têm valores acima de R$ 60 mil, divididos em bens, investimentos e dinheiro em conta. Os outros dois declararam valor menor do que a média. A falta de minorias sociais na Câmara reflete diretamente nas demandas dos movimentos sociais que as representam na sociedade. Mulheres, negros, LGBT+, pobres e deficientes quase não têm representação no legislativo de Piracicaba, apesar de representarem números expressivos: a população da cidade é composta em 51,1% de mulheres; 27,3% é preta ou parda na cidade; 20% possui alguma deficiência. Não há um estudo que especifique porcentagem de LGBT+, mas o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgou que pretende começar a contabilizar no Censo.
LGBT+ Dos 23 vereadores eleitos em 2016 em Piracicaba, nenhum é assumidamente do grupo LGBT+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis). Para o arquiteto Eduardo Paribello, assumido gay, com a falta de representatividade no legislativo, os temas relacionados ao grupo são negligenciados. “São pessoas heterossexuais que dominam o setor político e não entendem como é a realidade das minorias”, opina. Ele afirma ainda que se tivessem vereadores assumidos ou engajados na causa afetaria a vida de crianças e adolescentes, principalmente. “O número de suicídios adolescentes diminuiria, já que haveria política de conscientização e educação nas escolas”, explica.
NEGROS No Tribunal Regional Eleitoral, três vereadores que foram eleitos em Piracicaba não se declararam como brancos: Paulo Campos (PSD) e Aldisa Marques (PPS), conhecido como Paraná, se consideram pardos. O único que se declarou como negro foi Isac Souza (PTB). De acordo com o portal da Câmara de Vereadores, nenhum dos três sugeriu alguma lei ou projeto sobre igualdade racial neste mandato. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 27,3% da população da cidade é preta ou parda.
DEFICIENTES Vereador pelo quarto mandato, André Bandeira (PSDB) é o único portador de deficiência na Câmara de Piracicaba. Ele é cadeirante e, segundo o portal do legislativo, propõe regularmente melhorias na cidade para deficientes físicos. Entre outras propostas, ele é autor de uma indicação que solicita que “espaços públicos deverão ter brinquedos acessíveis para crianças com deficiência ou mobilidade reduzida” e de um projeto de lei que fala sobre a obrigatoriedade de exibições com legendas para deficientes auditivos em todas as salas de cinema da cidade. O projeto está em andamento.
MULHERES As duas mulheres que compõem hoje a parcela feminina na Câmara de Vereadores de Piracicaba são Nancy Thame (PSDB) e Coronel Adriana (PPS). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população da cidade se divide em 48,9% de homens e 51,1% de mulheres. “Se somos mais da metade da população, o natural seria que essa metade estivesse representada pelas mulheres”, argumenta Thame. A vereadora também afirma que a representatividade das mulheres na Câmara poderia causar uma transformação na sociedade. “Eu tenho certeza que o mundo com representatividade desse espaço pode ser bem melhor”, diz.
Falta de representatividade das minorias sociais predomina na Câmara
Aldisa Marques Paraná (PPS) Gênero: Masculino Cor da pele: Parda Mandato: 1º (1.606 votos/ suplente) Patrimônio: R$ 67,5 mil Ocupação: Trabalhador rural Deficiente: Não
Fotos: Arquivo da Câmara de Vereadores / Davi Negri Fontes: Justiça Eleitoral e Câmara de Vereadores
Jonson Oliveira (PSDB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (2.457 votos) Patrimônio: Não cadastrado Ocupação: Comerciante Deficiente: Não
Laércio Trevisan Jr. (PR) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 3º (2.502 votos) Patrimônio: R$ 1.170.605,88 Ocupação: Vereador Deficiente: Não
Com mais diversidade de pessoas ocupando esses cargos, mais visibilidade e apoio seriam conquistados e menos ‘curas gays’ seriam apresentadas” Eduardo Paribello, arquiteto
Lair Braga (SD) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (1.821 votos) Patrimônio: R$ 146.154,11 Ocupação: Radialista Deficiente: Não
Marcos Abdala (PRB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (1.224 votos) Patrimônio: Não cadastrado Ocupação: Cabeleireiro e barbeiro Deficiente: Não
A situação de Piracicaba, com apenas duas mulheres em 23 vereadores, se repete no Brasil inteiro” Nancy Thame, vereadora
Após pressão popular, casa abrigo é incluída no orçamento 2018
André Bandeira (PSDB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 4º (2.779 votos) Patrimônio: R$ 1.320.278,16 Ocupação: Vereador Deficiente: Sim (cadeirante)
Matheus Erler (PTB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 2º Patrimônio: R$ 830.355,83 Ocupação: Advogado Deficiente: Não
Dr. Ary Pedroso Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 6º (5.377 votos/mais votado) Patrimônio: R$ 531.990,45 Ocupação: Médico Deficiente: Não
Nancy Thame (PSDB) Gênero: Feminino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (1781 votos) Patrimônio: R$ 1.864.440,35 Ocupação: Agrônoma Deficiente: Não
Carlos Gomes da Silva/ Capitão Gomes (PP) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 5º (1.794 votos) Patrimônio: R$ 320.595,12 Ocupação: Militar reformado Deficiente: Não
Osvaldo Schiavolin (PSDB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (1.477 votos) Patrimônio: R$ 1.072.700,00 Ocupação: Empresário Deficiente: Não
Coronel Adriana (PPS) Gênero: Feminino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (2.104 votos) Patrimônio: R$ 528.445,83 Ocupação: Policial Militar Deficiente: Não
Paulo Campos (PSD) Gênero: Masculino Cor da pele: Parda Mandato: 2º (4.770 votos) Patrimônio: R$ 270.000,00 Ocupação: Vereador Deficiente: Não
Dirceu Alves da Silva (SD) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 3º (2.434 votos) Patrimônio: R$ 532.370,69 Ocupação: Empresário Deficiente: Não
Paulo Henrique (PRB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 3º (3.673 votos) Patrimônio: R$ 251.017,51 Ocupação: Vereador/pastor Deficiente: Não
Gilmar Rotta (PMDB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 2º (2,746 votos) Patrimônio: R$ 49.882,45 Ocupação: Vereador Deficiente: Não
Paulo Serra (PPS) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (2.015 votos) Patrimônio: R$ 988.877,66 Ocupação: Médico Deficiente: Não
Isac Souza (PTB) Gênero: Masculino Cor da pele: Preta Mandato: 1º (2.670 votos) Patrimônio: R$ 526.439,27 Ocupação: Analista de Sistemas Deficiente: Não
Pedro Kawai (PSDB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 2º (2.258 votos) Patrimônio: R$ 68.200,88 Ocupação: Comerciante Deficiente: Não
Ronaldo Moschini (PPS) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 2º (1.626 votos) Patrimônio: R$ 1.401.534,93 Ocupação: Médico Deficiente: Não
José Longatto (PSDB) Gênero: Maculino Cor da pele: Branca Mandato: 8º (1.842 votos) Patrimônio: R$ 157.486,04 Ocupação: Corretor de Imóveis, Seguros, Títulos e Valores (fundamental completo) Deficiente: Não
Rerlison Rezende (PSDB) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (3.524 votos) Patrimônio: R$ 250 mil Ocupação: Outros/pastor Deficiente: Não
Wagner Oliveira (PHS) Gênero: Masculino Cor da pele: Branca Mandato: 1º (1.654 votos) Patrimônio: R$ 3,7 mil Ocupação: Empresário Deficiente: Não
Emenda ao PPA 2018-2021 que previa construção da casa foi rejeitada e mulheres protestaram Diante da pressão popular para inclusão da casa abrigo para mulheres vítimas de violência no orçamento de 2018 em Piracicaba, a demanda foi acatada pelo executivo. Antes, a Câmara de Vereadores tinha rejeitado uma emenda da vereadora Nancy Thame (PSDB) ao Plano Plurianual (PPA) 2018-2021, que previa a construção do equipamento. Por conta da rejeição inicial da proposta, mulheres do coletivo Marias de Luta fizeram um ato durante a audiência pública da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) no dia 30 de agosto. Na ocasião, uma delas lembrou casos de feminicídio na cidade enquanto as outras levantaram vestidos em cabides representando cada uma das mulheres mortas. Depois ela citou o nome dos vereadores que foram contrários à emenda. O protesto pedia a inclusão da casa abrigo na LDO, no entanto a lei foi aprovada sem emendas no dia 13 de setembro. Na época, o coletivo emitiu uma nota que diz que aprovação do PPA sem a casa abrigo era um descaso. “A rejeição da emenda só escancara o descaso do poder público municipal com as mulheres em situação de violência e, para além disso, com seus filhos”, dizia o documento. Após a pressão, o executivo decidiu remanejar recursos de outras ações para a casa abrigo na Lei Orçamentária Anual (LOA) 2018. O valor direcionado para a demanda é de R$ 200 mil, mas ainda não se sabe como o recurso vai ser usado. A casa abrigo é um dos mecanismos de enfrentamento da violência previstos na Lei Maria da Penha (11.340/2006), no Artigo 35, que diz que ela pode ser uma iniciativa de qualquer esfera do governo. Questionada pela reportagem, Nancy Thame salientou a importância da casa abrigo e citou que as ocorrências de violência contra a mulher cresceram 34% de 2015 para 2016 na cidade. Para ela, o serviço é uma forma de garantir a dignidade da vítima. “É um equipamento que pode oferecer às mulheres vítimas de violência doméstica um serviço temporário e eficiente, com segurança e sigilo e garantir a dignidade da pessoa humana”, explicou. Apesar de já incluída na LOA 2018, a casa abrigo ainda não foi aprovada. Os vereadores vão votar o projeto de lei em 15 de dezembro.
14
edição 07 • Novembro/2017
Fotos: Caio Nogueira
Dezenove passagens, nenhum emprego Nathan Oliveira nunca teve uma família. Foi para o crime e, atualmente, pede esmola na rua Caio Nogueira
caionogantunes@gmail.com
Perdeu a mãe para a Aids aos nove anos de idade e nunca conheceu o pai. Foi assim que Nathan Luiz Henrique cresceu. Sem ter para onde ir, a rua foi o lugar que o acolheu. “A mulher que me criou, infelizmente, morreu quando eu mais precisei dela. A primeira pessoa que me deu um conselho e afeto depois que ela partiu foi o cara que estava vendendo droga na esquina”, disse Nathan, de 23 anos. Segundo Nathan, o traficante perguntou o motivo de sua tristeza, ao que de respondeu ser a perda de sua mãe. “O que ela não pode te dar, você consegue o dobro comigo”, disse o traficante. Foi nesse ponto, Nathan conta, que começou a roubar e traficar – o que o levou para a cadeia. Chamado de “Bin Laden” pelos amigos, devido a sua barba, Nathan sempre foi muito ativo. Queria mostrar para todos que era o melhor em tudo que fazia. Piracicabano, cresceu no meio de traficantes que o colocaram na mesma vida.
Ninguém quer saber o que você faz hoje, só querem saber o que você fez”. Nathan Oliveira Com um total de 19 passagens pela prisão, vive hoje pedindo dinheiro na rua, já que nunca conseguiu um emprego. Ele mesmo diz o quão difícil é carregar esse estigma de já ter sido preso. “Eu vou atrás de trabalho, mas quando eles veem que tenho antecedente criminal, muitas das vezes o que foi feito há dois, três anos, é usado para me julgar no dia de hoje”, comenta.
A vida lá dentro Na cadeia, Nathan acordava às 7 horas da manhã e escolhia entre tomar banho de sol – mesmo que estivesse chovendo - até o meio dia ou ficar trancado na cela. Dormia ou em colchão (com mais de um preso) ou no chão. Conta que ficava numa cela com outros 80 presos, sendo que a capacidade máxima era de 40. Comia alimentos estragados, com cabelo e barata. Tomava água suja. Apanhava de policiais lá dentro, segundo ele, sem nenhum motivo aparente. Nathan reconhece seus erros e se arrepende do que fez, mas cobra que a sociedade tenha outros olhos para ele e tantos outros em situação parecida. Não trabalha porque não lhe dão oportunidade. Pede dinheiro na rua porque é o que sobra para fazer. Para ele, se não ajudam com uma coisa nem outra, só resta uma saída: roubar. “É bem mais prático você roubar do que pedir centavos na rua. Mas se você for preso, nada daquilo terá adiantado. Só que se você for pedinte, será humilhado”, conta. “No CDP (Centro de Detenção Provisória) de Piracicaba
Nathan relatou sua batalha diária para sobreviver em uma sociedade preconceituosa; durante a entrevista ele arrecadou moedas que pediu na rua
você é igual um passarinho. Pegou o passarinho, trancou na gaiola e só vai tratando com a comida. É como se estivesse engordando o gado para amanhã ou depois vendê-lo ou levá-lo ao abatedouro. Você se apega em Deus lá dentro e tem os familiares para dar atenção”, relata. A vida aqui fora A vida como ex-presidiário não tem sido fácil. Hoje, Nathan não rouba e não trafica. Ele pede
dinheiro na rua, na rotatória do mercado Coop, na avenida Prof. Alberto Vollet Sachs, em Piracicaba. Lá, ele até consegue arrecadar dinheiro, porém, insuficiente para comer. Dez centavos aqui, vinte centavos ali. Essa é a vida do jovem. Há poucos meses, ele presenciou uma das cenas mais tristes da sua vida. Seu amigo, “Ricardinho”, foi morto. Ele devia dinheiro a traficantes e não tinha como pagar. Três tiros tiraram
sua vida. Nathan não conseguiu ajudá-lo e o viu agonizando em sua frente. Hoje, Nathan conta que é feliz por estar vivo, mas triste por tudo que já passou e passa. Ele não tem expectativa sobre a vida. Não pensa sobre ela, porque sabe que amanhã pode não estar mais aqui. Nunca desejou bens materiais, apenas acreditou que o tráfico lhe traria afeto. “Não adianta ter tudo (bens) e ser infeliz”, diz.
CARCAMANO HUMANO
Fotos: Reprodução
Ex-morador de rua conta sua história, que envolve imigração, alcoolismo e paz interior De 1997 a 2017, a presença da cultura negra no rap nacional
Thierry Marsulo
thierrygmarsulo@gmail.com
O ano era 1997. Nas televisões, o axé e o pagode faziam sala em programas de auditório. Titanic, uma das maiores bilheteria do mundo, chegava às salas de cinema para a alegria dos casais apaixonados. Na música, MMMBop dos irmãos Hanson chegava às rádios para um dos maiores one hit wonders da história. O ano é 2017 e as coisas não estão melhores.
1997 - Sao Paulo Dezembro de 1997. O grupo formado por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e Kl Jay não era iniciante no mundo da música, mas foi no seu quarto álbum de estúdio que receberam a atenção que mereciam. O grupo Racionais Mc’s foi fundado em 1988 e com o disco Sobrevivendo no Inferno o som chegava como um meteoro em chamas no ouvido da sociedade brasileira. Um álbum maduro, crítico e ácido nas medidas certas. Abordando temas como a desigualdades sociais, miséria, racismo e preconceitos. Impactante para todas as gerações, o trabalho foi presente do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, para o Papa Francisco. Um dos motivos da explosão dos Racionais para
o Brasil foi a incorporação do clipe Diário de um Detento, uma das faixas principais do disco, na programação da MTV, transformando assim a música composta por Mano Brown em parceria com um presidiário em um produto para a juventude brasileira. A periferia de São Paulo viraria o berço do rap nacional. O grupo abriu espaço para as novas gerações ao mostrar uma nova perspectiva de vida. As batidas de Kl Jay unidas às letras e composições dos outros integrantes causam desconforto nos ouvidos desavisados e transforma Sobrevivendo no Inferno um divisor de águas para rap/hip hop nacional, rendendo um julgamento da sociedade moderna e na vida na periferia.
2017 - Sao Paulo Galanga Livre não é uma obra prima do rap nacional, ainda. É depois de uma longa espera que o Mc Rincon Sapiência, ou Manicongo, mostra o peso sofrido pelos negros brasileiros nos dias de hoje. Lançado 20 anos após Sobrevivendo no Inferno, o álbum de Rincon faz história na cena cultural por quebrar paradigmas. O Mc na verdade é Danilo Albert Ambrosio, poeta e rapper brasileiro. O nome de MC foi baseado no jogador Freddy Rincón, seu ídolo dos times do Palmeiras e do Corinthians. Foi abraçado pela Boia Fria Produções para estourar no país. Galanga Livre é o nome de seu próprio conto, a história de um escravo
que conseguiu assassinar o senhor do engenho e fugir. Jogando na cara a posição atual do país sem perder a pose, o rapper paulistano preza pela valorização das minorias, sejam elas negros, pobres, mulheres, trabalhadores e usuários de drogas. Rincon estourou nas redes sociais com o clipe Ponta de Lança (verso livre), uma resposta em rap para a cena musical funk no país. O álbum é apresentado pelo próprio cantor: na faixa Intro ouve-se a sintonia da rádio do MC; a seguir, somos guiados por ritmos brasileiros com uma mistura norte-americana. A finalização nos provoca a pensar sobre todos os conceitos do álbum.
Caio de Araujo Lima
caio_araujo_lima@hotmail.com
Um destino como tantos outros, porém com uma trajetória de vida peculiar como poucos. Essas sentenças definem Pedro Poppi. Há mais de uma década abrigado em uma casa de acolhimento, o ex-morador de rua de poucas palavras remonta os momentos que o levaram até ali, tanto em entrevista à reportagem quanto no livro “Caminhos – Histórias de vida” (desenvolvido em parceria com alunos do curso de Psicologia da Unimep). Piracicabano, nascido em 1959, ele mescla as memórias de sua história às da mãe italiana, a qual nunca conheceu, numa tentativa (aparentemente inconsciente) de amenizar tal lacuna. Poppi, num exagero espontâneo - característico do estereótipo de seus antepassados - diz ter vindo para o Brasil ainda bebê em um avião. Criado pelos avós e tios, dava muito valor à família, fato que pode ser sentido no tom acalorado da voz. Teve uma infância feliz, porém não menos turbulenta. Ainda pequeno, foi levado por uma de suas tias a um orfanato, época em que faz questão de lembrar as brincadeiras e o convívio com as demais crianças. Meses depois seria buscado pelo avô, que julgava a situação inaceitável. Aos 14 anos, com a morte dos avós, Pedro teve de morar com a mesma tia que o havia enviado ao
orfanato. O relacionamento difícil o fez passar boa parte de seu tempo livre fora de casa. Ele conta que começou cedo a trabalhar como cortador de cana. Anos depois, conheceu Rosana, com quem teve sua primeira filha, Michele. Rosana faleceu, vítima de uma obstrução no vaso cerebral seguida de cirurgia de risco mal sucedida. Poppi conta que as lembranças se tornaram tormento, o que o levou a deixar sua filha sob a tutela da avó materna. Nunca mais a veria novamente. Afundado em tristeza, encontrou na bebida o conforto que precisava. Pedro casou-se outras três vezes, tendo um filho em cada matrimônio. Apesar disso, seus relacionamentos foram breves e terminaram pelo mesmo motivo: a dependência do álcool. Decidido a se isolar ao invés de ver aqueles ao seu redor sofrerem, ele foi viver na rua. Lá, ele diz, não teria quaisquer compromissos. Após anos de rua, carona e bebida, Pedro foi acolhido por uma instituição de assistência social em Piracicaba. Sem usar álcool, Pedro Poppi agora está aposentado. As marcas deixadas pelo tempo são notáveis - não só na pele, mas também na quietude e no jeito turrão. Porém, nas amizades conquistadas em seu novo abrigo e, sobretudo, no contato com a natureza, o carcamano encontrou sua paz.
15
Novembro/2017 • edição 07 Retrato de Marta Rocha em sua juventude
da minoria
Um símbolo aline_olaya@hotmail.com
Mulher, negra, idosa, pobre e ex-prostituta. A história de vida de Marta da Rocha mostra aos 75 anos o quanto as minorias sofrem, em seus vários tipos. As marcas deixadas pelo preconceito, pelo sofrimento da infância e pela experiência vivida ao ser obrigada a se prostituir não impediram que essa mulher conseguisse se reerguer e ter uma vida digna atualmente. Todo o sofrimento vivido por ela não se tornou motivo para que o sorriso em seu rosto e a vontade de viver deixassem de existir. Retrato vivo de minorias que sofrem diversos tipos de opressão. Mineira, Marta vive em Piracicaba e foi nossa entrevistada para contar sua história. Leia a seguir alguns trechos de sua entrevista.
Eu comecei a chorar e queria me matar porque queria sair dessa vida”
INFÂNCIA Nasci em Varginha (MG). Meu pai tocava lavoura, nós fomos pra Juréia (MG) quando eu tinha 4 anos, era a filha mais velha e tinha mais dois irmãos. Nós íamos trabalhar na roça, passávamos fome porque só comia quando colhia a plantação. Minha mãe foi criada na fazenda, então a mulher que era dona da fazenda ajudava muito, dava comida quando faltava. Minha mãe era lavadeira, lavava roupa e limpava a fazenda. Aí tivemos que ir embora porque teve retomada de posse nessa fazenda e virou uma confusão, aí fomos pra Monte Belo (MG) de trem. Chegamos lá, era no meio do mato, um amigo do meu pai arrumou essa fazenda pra gente trabalhar. Lá não tinha escola, nem podia falar de escola, os pais não deixavam a gente ir. Eu só fui aprender a ler e escrever aqui em Piracicaba depois de velha. ABUSOS Eu fui tirada dos meus pais pelo juiz de menor porque meu pai abusava de mim. Ele fazia eu ir na plantação, aí lá ele tirava a roupa e fazia eu pegar. Eu chorava, tinha uns 6 anos, eu contava pra minha mãe mas ela não acreditava. Até que um dia, minha mãe viu. Eu tava dormindo, minha mãe acordou com meus gritos e viu que meu pai não tava na cama, entrou no meu quarto e meu pai já tinha erguido meu vestido, tirado minha calcinha e abaixado a calça dele (choro). Ele já ia mexer em mim. Aí ela percebeu o porque eu não queria ir pra roça. Nisso minha mãe chamou a polícia da época, os donos da fazenda, e eles deram um cacete no meu pai, quase mataram ele. Iam levar ele e matar, mas eu não deixei e falei “não mata ele não, tem mais meus irmãozinho pra ele criar” (choro). Aí o juiz tirou eu deles e eu fiquei no juizado de menor. NOVINHA Aí me mandaram pra São Paulo, com o irmão do juiz. Ai que dia triste (choro). Pegaram
Eu fui tirada dos meus pais pelo juiz de menor porque meu pai abusava de mim” todas minhas roupinhas, me botaram no carrão do juiz e nunca mais voltei pra casa dos meus pais. Me levaram pra trabalhar de ajudar numa pensão, de estudantes de medicina, mas depois me devolveram porque eu era muito novinha. Aprendi a trabalhar cedo. Depois o doutor deu eu pra outra casa, uma mulher me pegou pra ajudar a cuidar dos filhos dela. Mas a mulher me devolveu porque eu era muito novinha também. Aí me mandaram pra um lugar onde tinha um monte de criança, pra eu ajudar as freiras a cuidar das crianças. As irmãs judiavam muito de mim. Eu fiquei lá, tinha horário pra tudo, pra levantar, pra tomar banho, pra dormir, até pra ir no banheiro. Mas aí encheu muito de criança, eu era mais velha, e as irmã me falaram que eu precisava arrumar logo um lugar pra morar. Aí arrumei uma outra mulher pra morar com ela e trabalhar de empregadinha pra ela, limpava a casa dela e cuidava dos filhos. Nessa casa o motorista da família “mexeu” comigo, daí eu gritei e ele parou, não chegou a me estuprar por completo. PROSTITUIÇÃO Depois de um tempo eu fui morar em uma outra pensão só de menor e uma mulher chamada Ruth foi lá pra buscar meninas, ela falou que era pra morar e trabalhar numa chácara em Piracicaba. Eu tinha uns 12 anos. A primeira noite, a gente ’tava deslumbrada que era tudo lindo, casa entapetada, cheia de cortina. Aí perguntei pra ela quando é que a gente ia trabalhar né, ela me disse “pera só um pouquinho”. Quando eu vi foi chegando aquela homarada, levei um susto e comecei a chorar e eu perguntei “porque é que tem esses homens?” aí ela falou “pra ir pro quarto, vocês tem que dar”. Nossa mãe do céu, eu era criança, nem sabia direito, não era nem acostumada com
homem. Quando eu vi aqueles homem pelado e eu tinha que tirar a roupa, eu ficava com medo e chorava, apanhei tanto. Eu falava “olha o tamanho disso, você vai me machucar” e eles falavam “agora eu já paguei, vai ter que tirar a roupa”. Quantas vezes tive que ir lá nas farmácias da governador tomar injeção porque ficava machucada. Eles pagavam pra cafetina o quarto e as meninas, aí ela dava uma parte pra gente do dinheiro. As menor de idade ela só dava pra homem mais rico. A gente ficava tudo num salão dançando, pros homens escolher. CUIDADOS Uma vez fiquei grávida, mas era muito nova então me mandaram pra um hospital em São Paulo e fizeram um aborto, um tempo depois fizeram laqueadura. Nunca fiquei com doença nenhuma, mas cuidei muito de amigas doente, com as partes podres. Mas em todos os apartamentos do puteiro tinha um kit pra fazer lavagem e não pegar doença. Era bem difícil porque não era todo dia que ’tava disposta, mas fazia porque não tinha outra opção. A gente pagava um real de diária pra comer e morar lá e não tinha pra onde ir, não saía de lá por isso. Mas logo deram parte e o juiz fechou a casa. Depois disso eu viajei muito como prostituta, pra Sorocaba, São Carlos, Rio de Janeiro, trabalhando na noite. REVIRAVOLTA Depois de um tempo, um dia eu comecei a chorar e queria me matar porque queria sair dessa vida. Fui trabalhar em firmas de empregada, trabalhei com muita gente de nome em Piracicaba. Fui cuidadora de repúblicas da Esalq. Aí eu amiguei com um rapaz, tirei ele da rua e da droga. Eu trabalhava em uma padaria e consegui um trabalho pra ele lá também. Paguei pra ele tirar carta e dei um carro. Morava na curva do S, pagava aluguel. Mas ele era muito mulherengo e me batia. Aí eu aguentei mais um pouco, mas depois larguei e vim morar na Vila Rezende. Fui trabalhar com uma assistente social, na avenida São Paulo, aí ela trabalhava na prefeitura e ajudou a conseguir aposentadoria pra mim. Hoje em dia eu vivo de aluguel, com a minha aposentadoria.
Fotos: Aline Olaya
Aline Olaya
Apesar da vida difícil que teve, Marta é uma mulher de fibra
PRECONCEITO Eu sofri muito preconceito. Uma vez quando eu era menor ainda e trabalhava pra Ruth, ela dava toda semana, pra duas meninas, um almoço em um restaurante e levava no cinema, um policial buscava a gente e levava porque éramos todas ‘de menor’. Nesse dia, a gente se arrumou bem bonitinha, eu e uma outra menina, chegamos no restaurante São José, aí o garçom chegou e fez um sinal na pele e falou “ó infelizmente aqui nós não servimos gente de cor” porque éramos duas mulatinhas. Eu com ela levantamos e ficamos morrendo de vergonha. (choro) Outra vez foi a mesma coisa, o dono falou que não podia ‘gente de cor’ ser servida lá. Mas aí contamos pra Ruth e quando ele foi lá ela não deixou mais entrar na zona. Eu tenho muitos amigos, isso que me ajudou muito a conseguir sobreviver, conseguir emprego. Depois que eu saí do prostíbulo nunca mais eu fiz nada. Eu fico muito triste porque tem gente que até hoje fala “imagine ir na casa dela, ela foi de zona, eu não quero ela aqui em casa, minha casa não é pra gente assim” (choro). Uma vez eu fui num aniversário na casa de uma mulher aqui da rua de trás, fui toda alegre até levei presente pra ela, ela jogou agua em cima de mim com aqueles toldos, falou assim “é melhor você ir embora e procurar seu lugar porque aqui é casa de família” eu chorei tanto. Você pensa que eu não sinto onde tem gente que não gosta de mim? Eu não sou boba. Mas hoje em dia eu me considero gente de família. (choro) CASAMENTO Eu não me arrependo de não ter casado, porque vejo o quanto tem casamento ruim. Vivo bem sozinha e tenho muitas amigas maravilhosas. Só sinto falta da minha família, queria conhecer a minha mãe que nunca mais vi, ela e meus irmão (choro). É bem difícil só isso. EXPERIÊNCIA DE VIDA Se eu pudesse dar um conselho para os jovens seria estudar bastante e construir uma carreira. Não ir atrás de coisas sem futuro. Ajudar essas pessoas que usam droga, tentar tirar esse povo desse mundo horrível, dar carinho. Com carinho e sorriso você consegue ajudar as pessoas. Eu sou feliz, só não sou por completa pela falta da minha família. E eu queria muito aprender a ler e escrever por completo, porque eu só consigo ler e escrever por cima. Eu creio muito em Deus, tudo o que eu peço eu vejo! Se eu não tivesse sido obrigada a entrar na vida que eu entrei, eu teria estudado muito. Seria professora ou assistente social hoje em dia para ajudar as crianças, pra quem não tem condições.
O garçom fez um sinal na pele e falou: ‘não servimos gente de cor’”
A gente passava fome porque só comia quando colhia a plantação”
Mesmo com a idade, continua vaidosa e se cuida bem
16
edição 07 • Novembro/2017
VERDADE
Milhares de jogadores de futebol profissional vivem uma realidade muito diferente das grandes estrelas do esporte. Para a maioria, uma partida é mais do que um jogo
Bruno Gomes
bruno.localizacao@gmail.com
A Copa Paulista, torneio de futebol profissional disputado entre times, na maioria, do interior de São Paulo, chega à última rodada da primeira fase. A partida do Internacional de Limeira contra o Rio Branco de Americana encerra a etapa classificatória. O clube limeirense lidera o campeonato e o resultado dessa partida é apenas esportivo. Mas para os jogadores do Rio Branco, há muito mais em jogo. Somente a vitória garante a classificação do clube e o emprego dos atletas. Muito longe das modernas arenas construídas para a Copa do Mundo de 2014, o jogo acontece às 10h no campo do Inter, Major José Levy Sobrinho, em Limeira. O estádio é grande para o padrão dos clubes pequenos. Porém, o desgaste e a falta de manutenção do local revelam a situação do futebol interiorano. O time do Rio Branco chega ao estádio duas horas antes da partida. O ônibus entra por uma entrada lateral e estaciona em frente ao vestiário destinado ao time visitante. Um a um, os jogadores descem apressados. Neto Bahia, Tremonti, Rufino, Lucas Duni, Mima, Fauver. Nomes desconhecidos. Não estão em álbuns de figurinhas, videogames e nem são destaques na imprensa esportiva. Porém, retratam a situação da maioria dos jogadores de futebol profissional no Brasil. Jovens, negros e de classes sociais baixas que circulam pelos clubes de futebol à procura de oportunidades em grandes times. Para a maior parte, esse sonho é uma ilusão. Segundo relatório da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), em 2016, quatro em cada cinco jogadores registrados receberam até mil reais por mês.
Neto Bahia, Tremonti, Rufino, Lucas Duni, Mima, Fauver. Nomes desconhecidos. Não estão em álbuns de figurinhas, videogames e nem são destaques na imprensa esportiva.
A partida começa em uma hora e não há nenhum torcedor na arquibancada. O time do Rio Branco se prepara no vestiário para o aquecimento no gramado. O goleiro Neto Bahia, um dos mais experientes do elenco com 33 anos, é o primeiro a atravessar o corredor e subir as escadas que acessam o campo de jogo. Quando não está competindo, mora com os pais em Vitória da Conquista, cidade do interior baiano. Solteiro e sem filhos, Neto é um dos milhares de jogadores itinerantes que assinam contratos curtos com os clubes, sem garantia de prorrogação deste vínculo. Entre janeiro de 2016 e setembro de 2017, ele foi
dispensado e recontratado três vezes pelo time americanense. Ele é um dos atletas que irá embora - mais uma vez - se o time não vencer a partida. A carreira do goleiro Neto é resumida pela incerteza e pela insistência. Além de jogar no interior paulista, atuou em pequenos times da Bahia e de Santa Catarina. A aposentadoria dos campos está cada vez mais próxima. Mesmo assim, ele não sabe como será a vida após pendurar as luvas. “O dinheiro que eu ganho com o futebol, eu ajudo a minha família, não sei o que vou fazer depois. Gostaria de continuar trabalhando no futebol, mas não parei para pensar nisso ainda, eu não sei nem como será amanhã
se perdermos o jogo”, diz. Durante todo o ano de 2016, cerca de 21.800 atletas foram registrados em algum clube do país. Em janeiro deste ano, apenas 9.000 permaneciam empregados. A taxa de desemprego entre os jogadores de futebol é de 59%. Ou seja, quatro vezes superior à média nacional no mesmo período. Comparando com outras profissões, de acordo com dados do CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), não há informações sobre uma categoria com números tão desiguais. Os times entram em campo. Quem toma a frente e puxa a fila do time rio-branquense é o zagueiro e capitão do time, Tiago Bernardi.
Aos 37 anos, o zagueiro esguio com 1,90m de altura é um exemplo para todos os jogadores da equipe. Com uma história vitoriosa dentro do Rio Branco, Tiago é natural de Araras, mas já rodou o mundo. Jogou em clubes de cinco países europeus. Disputou a Liga dos Campeões da Europa pelo FC Thun, time da Suíça, em meados dos anos 2000, além de defender clubes da elite do futebol brasileiro. Sobre a profissão de atleta, Bernardi é sucinto. “A vitória é o ganha pão do jogador de futebol”, resume. Ele está emprestado ao time de Americana mas tem contrato até 2018 com o Velo Clube de Rio Claro. Mesmo assim, não é omisso em relação à
situação da maioria do elenco. “A classificação permite continuar trabalhando e demonstrando o potencial. A chance de renovação aumenta, assim como a possibilidade de contratação por outro clube”, cometa. Toda a história de Bernardi no futebol é deixada para trás dentro de campo. Quando o jogo começar, o resultado também depende dele. “Viver do futebol significa abdicar de muitas coisas, principalmente na juventude. A vida de um atleta é muito regrada e solitária, longe da família quase o tempo todo. Quando eu comecei a jogar, os dirigentes não gostavam que os jogadores jovens estudassem, diziam que era perda de tempo. Hoje isso é diferente”, revela o zagueiro.
Fotos: Bruno Gomes
Apito. Rola a bola Os próximos 90 minutos definirão o futuro dos jogadores do Rio Branco. O calor não dá trégua. Pouco antes das 11h, o juiz apita e encerra a primeira etapa. O placar segue 0 x 0. Esse resultado classifica o Rio Branco porque a combinação de pontos das outras partidas está ajudando o time. Em outro ponto da cidade de Limeira, Flávio (apelidado de Robinho pelos colegas), jogador das categorias de base do Rio Branco, acompanha a partida pelo rádio. Com 19 anos, ele já carrega uma experiência que poucos colegas tiveram a chance. Aos 13 anos, foi selecionado e contratado pelo time do Grêmio de Porto Alegre. Deixou a família e os amigos no interior paulista e viajou mais de 1.200 quilômetros para viver nas dependências do clube. Durante dois anos, morou na capital gaúcha ao lado de uma centena de garotos de todas as partes do país. “A estrutura do Grêmio era muito boa. Eu senti falta da minha família, mas estava lá buscando o meu sonho”, lembra.
Quando eu comecei a jogar, os dirigentes não gostavam que os jogadores jovens estudassem, diziam que era perda de tempo.” Tiago Bernardi Enquanto ele sentia saudades de casa, Luciana Correia, mãe de Flávio, ficava com o coração apertado porque seu único filho - ainda uma criança - estava tão longe dela. “Não queria que
ele fosse, mas era uma grande oportunidade. Ao mesmo tempo em que eu me preocupo com a educação dele, também queria vê-lo feliz e por isso deixei ele ir”, disse ela sobre o período que o filho ficou longe de casa. Ao término do contrato, foi dispensado e voltou para casa. Esta foi a primeira das muitas rejeições que enfrentou na carreira, apesar da pouca idade. O baque foi tão grande que ele preferiu se afastar do futebol. “Fiquei dois anos sem jogar, não sabia mais se queria aquilo pra mim”, pontua. No segundo tempo, o ritmo do jogo é bem mais lento, o calor não ajuda muito. Os jogadores parecem exaustos desde os primeiros minutos. Pior para o Rio Branco. Aos dez minutos, o Internacional abre o placar em uma bola cruzada na área. Dois minutos depois, outro gol do time da casa. A chance de classificação está escapando e os jogadores não tem reação. O terceiro gol do Inter acontece enquanto dois jogadores do Rio Branco discutem bruscamente no campo de ataque. Fim de jogo.
Após derrota, o goleiro Neto retornará para a Bahia com o futuro indefinido
Na saída de campo, todos estão apáticos e exaustos. A volta para Americana é melancólica. Sem nenhuma partida programada para o restante da temporada, todos estão dispensados. Ainda em setembro, o ano já acabou para muitos desses jogadores. Neto retornará para a Bahia à espera de um novo clube. Tiago cumprirá seus últimos dias de contrato e voltará para Rio Cla-
ro. E, com a desclassificação da equipe profissional, Flavio foi informado que está liberado e não permanecerá no clube. Durante três meses o alojamento do Rio Branco esteve lotado. Abrigou jogadores jovens e experientes que conviveram lado a lado. Dividiram a rotina do dia-a-dia e a saudade da família. Mas poucos dias após a eliminação, todos já voltaram para casa. O
alojamento está vazio. De repente, o silêncio é quebrado por um tropé de garotos que passam correndo. Mateus, Pablo Henrique, Tiago Camilo, Clebson, Ismael e Alan. Cada um com um sotaque de um canto do país. Jogadores da categoria sub-15. O sonho? Seleção brasileira, times europeus e dinheiro. O ciclo de esperança e frustrações está garantido para a próxima geração.