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Jornal

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Unimep

Dezembro/2017 • Edição 09

POLÍTICA

André Borges/ Agência Brasília

BALÉ Homens saltam o preconceito para se realizarem como profissionais da dança. P.24

Presença feminina em cargos representativos no Brasil é inferior à de países do Oriente Médio; aspectos culturais e sociais são entraves à igualdade

Crise moral abre espaço para debate de ideias libertárias no Brasil. P.04

#mulheresnapolítica Samuel Pancher

Entre 190 nações pesquisadas, Brasil ocupa 116ª posição no ranking de representação feminina no Poder Legislativo

Mesmo com 75 milhões de mulheres aptas a votar nas eleições de 2016, o que representa 53% do eleitorado no Brasil, a representatividade feminina na política é muito baixa nos governos federal, estadual e municipais. Na cidade de Limeira, por exemplo, dos 21 vereadores, três eram mulheres nas legislaturas de 2009 e 2013. Esse número aumentou para quatro na legislatura atual. Em Piracicaba, que conta com 23 vereadores, apenas uma mulher representou a cidade nas duas últimas legislaturas. Atualmente, a bancada feminina conta com duas representantes. Já em Rio Claro, nas últimas três eleições, duas cadeiras foram ocupadas por mulheres no Legislativo. Apesar do número de parlamentares ter aumentado de 12 para 19 nas últimas eleições, a participação feminina se manteve estável. Para o sociólogo Conrado Ferranti, os números brasileiros evidenciam o histórico de que o pai e o filho eram os indicados para assumir responsabilidades. Isso, segundo o sociólogo criou a cultura de que certos papéis são masculinos e acabou por estimular, ainda hoje, até as mulheres a preferirem votar em homens. P.05

NEGROS

IMIGRANTES

ACESSIBILIDADE

RESSOCIALIZAÇÃO

DINHEIRO

Acesso à educação de qualidade contribui para o enfrentamento do preconceito e garante condições para que os negros também ocupem lugares de destaque na sociedade. P.06

Desenvolvimento econômico do Brasil na última década segue atraindo haitianos à região de Piracicaba. P.09

Jovem de Santa Bárbara d´Oeste aprende Libras sozinho para ajudar amigo surdo a fazer as tarefas da escola. P.10

Fora da prisão, homens encontram dificuldades para conseguir vagas no mercado de trabalho em meio a 13 milhões de desempregados no Brasil. P.11

Comunidade do Pereirinha representa grande parte da população que sobrevive com renda inferior a um salário mínimo. P.13

Idosos vencem o medo e rompem a barreira do isolamento digital Disposição para aprender, persistência e apoio da família são fundamentais para que os idosos aprendam a lidar com as ferramentas de comunicação do século 21. A funcionária pública Elem Lima, 25, lembra quando o pai, o aposentado José Alves de Lima, 75, ganhou o primeiro smartphone. “Ensinei ele a

mandar áudio pelo WhatsApp porque era mais fácil do que escrever, mas mesmo assim foi uma dificuldade para ele aprender. Ele gritava achando que não dava para ouvi-lo, mas depois que aprendeu a usar, meu pai mandava áudio para mim e para minha mãe com a gente dentro de casa”, lembra Elem, aos risos. P.08

Divulgação

EDITORIAIS

ENTREVISTA Helião, do grupo RZO, analisa o rap brasileiro e seu poder como instrumento de luta contra a desigualdade social. P.12

Leia “Mas onde está minha voz? ”, sobre os dilemas enfrentados pelas minorias; “Contribuição brasileira”, que aborda o papel de cada um contra o preconceito, e “O dever de todos para termos um Brasil melhor”, uma reflexão da busca pela igualdade. P.03

io C ost éA nto n Jos

Confira as charges do Salão Universitário de Humor de Piracicaba que retratam minorias. P.15

O processo de transição de gênero é longo e muitas vezes traumático. Algumas pessoas passam pela auto opressão e pela falta de compreensão ao perceber não se enquadrar no padrão. Essa sujeição e discriminação presentes levam muitos a desenvolverem problemas maiores, como a depressão. Foi o caso de Daniel Gimenes, 20, que demorou cerca de dez anos para entender por que não conseguia se ajustar às suas roupas e ao seu corpo. A psicóloga Priscila Gomes explica que mesmo que os pais e familiares apoiem o transexual, ele mesmo pode ter dificuldades em aceitar o conflito em relação à sua identidade de gênero. P.21

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ARTES

Transexuais enfrentam batalhas pessoais para serem aceitos

Daniel Gimenes só se sentia bem quando usava roupas que escondiam as curvas do corpo feminino

Filip e

José


página

edição 09 • Dezembro/2017

ARTIGOS

Coisa de esquerda ou de direita? Expediente Órgão Laboratorial do Curso de Jornalismo da Unimep Reitor Pro Tempore Fábio Botelho Josgrilberg Diretor da Faculdade de Comunicação e Informática Belarmino César Guimarães da Costa Coordenador do Curso de Jornalismo Paulo Roberto Botão Editor João Turquiai Junior MTB 39.938 Redatores Ana Carolina Lopes Ernega, Andressa Antunes Mota, Beatrís Cortelazzi Porta, Beatriz Karoline Venancio, Carolina Prestes dos Santos, Daniela Borges, Fernando Jacomini, Filipe de Souza José Sérgio, Gabriel Leme, Gabriela Melo, Júlia Lopes, Laís Seguin, Lorem Camargo, Larissa Anunciato de Oliveira, Lara Marangoni, Larissa Pereira de Souza, Leonardo César Benedito, Mariana Requena, Marcelo Uliana, Nicole González Reyes, Patrícia Amorim, Raabe Kamala, Rafael Muniz, Raquel Soares, Rosa Cardoso, Samuel Pancher, Thiago Scanholato, Vinícius Alexandre Moraes Figueiredo Projeto gráfico, diagramação e arte final Sérgio Silveira Campos (Laboratório de Planejamento Gráfico) Correspondência Faculdade de Comunicação Campus Taquaral, Rodovia do Açúcar, KM 156 - Caixa Postal 69 - CEP 13.400-911 Telefone (19) 3124-1677

Laís Seguin

laisseguin50@gmail.com

No dia 30 de agosto deste ano, a Justiça de São Paulo aceitou o pedido formulado pelo Ministério Público para impedir a realização de um show do cantor Caetano Veloso, na ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), no Bairro Planalto, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. Se analisarmos a história desse cantor, saberemos que ele é um ativista político com ideologia de esquerda, e o ponto que eu destaco aqui é o fato de que, para um cidadão que não tem educação ética-política, ofender e atingir a luta de um movimento social é como atingir um partido político, sem a consciência de que isso é atingir a própria cidadania e democracia. Quando foi censurado, Caetano Veloso disse que isso não acontecia com ele desde o período da ditadura (1964 – 1985). A direita ficou feliz e a esquerda não. É como a luta de um lado contra o outro, o que é controverso visto que o próprio conceito da palavra implica numa atividade contra opressão, e vivemos uma. Cada um trata a opressão como se ela fosse a única, e se esquece de algum modo da opressão sofrida pelo outro. Quem esquece a opressão não se torna um opressor? Qual afinal é o alcance da luta dividida? Se a esquerda em si se organiza como uma luta contra a opressão, uma esquerda dividida seria sua própria destruição e opressão. Independente de posições políticas de esquerda ou de direita, desigualdade social é discutida tanto na teoria

quanto na prática, mas esquecer-se disso seria algo de “direita”. O que é chamado de extrema-direita são fascistas, centro-direita é capaz de se preocupar com algumas questões sociais. Por outro lado, entre aqueles que se dizem de esquerda e até participam de partidos de esquerda, há machistas e até mesmo racistas, acredite. Quando a pessoa não é um cidadão ético-político, tende a se envolver com política individual. Atualmente, o autoconhecimento é um importante contexto nas lutas políticas no Brasil. Sim, porque, se há pessoas com nenhum interesse por política, existem também as pessoas que, por defenderem os direitos humanos, são tratadas como esquerda, buscam uma identidade e isso tem uma conotação ruim hoje em dia. Ao mesmo tempo, a revolta em propor uma revolução comunista, em sentido de opressão nos divide entre petralhas e coxinhas. Mas, ainda assim, as pessoas gostam de se dizer da esquerda ou da direita. O termo esquerda é bem usado na luta contra a desigualdade social, na luta por direitos fundamentais dos seres humanos, na luta contra a opressão e o autoritarismo dos governos. Xingar alguém por ser de esquerda seria um elogio. Mas no atual cenário, as pessoas estão pensando pouco no que dizem e nas consequências do que dizem. Com isso, fica claro que, por trás da luta política, há algo que se refere a ética de uma luta. A ética da luta depende do bom uso e da boa prática da luta. Aquele que luta mal, pode acabar atrapalhando a luta pelo bem comum. Isso quer dizer que toda luta só é luta se for do outro.

Educação é antídoto contra o preconceito Raquel Soares

khell_soares@hotmail.com

Desde que a Aids, doença causada pelo vírus HIV, e que interfere na capacidade de o organismo combater infecções foi identificada, em 1980, a ciência tem estudado formas de tratamento, combate e prevenção ao vírus. Apesar de todo o avanço e evolução científica, o preconceito enfrentado pelos portadores do vírus é o pior sintoma da doença. A intolerância social, a dificuldade de entrada no mercado de trabalho e a rejeição lideram a lista das principais queixas de pessoas que vivem com HIV. Nunca na história da ciência e

do mundo foram feitas tantas descobertas revolucionárias em tão pouco tempo, mas, também, nunca houve tanto crime de ódio na mesma proporção. Somos protagonistas de um genocídio, não como o ocorrido na Alemanha nazista, mas repleto de falta de empatia. A Aids não é transmitida através de um aperto de mão, sorriso, nem de um abraço solidário. Andar na mesma calçada não é um fator de risco. A Aids ainda não tem cura, mas o preconceito tem. Nelson Mandela, o mais importante líder da África do Sul, disse que a educação é a arma mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo. Vamos começar hoje?

Quando o peso é diferente do padrão Carolina Prestes dos Santos carolinaprestes.model@gmail.com

Dizem que o preconceito contra a obesidade não existe, que o obeso deve se aceitar da maneira que é, pois isso não é um problema imposto pela sociedade, é a própria pessoa que tem complexo com o corpo, que não se aceita. Mas é contraditório quando vemos que não existe um acento diferenciado para um obeso numa van, ou que em um ônibus com 42 lugares, apenas um é preferencial para quem tem medidas diferentes da maioria. O obeso sente dificuldades até quando fica doente e, ao ir para o hospital, não encontra uma maca em dimensões maiores, uma cadeira de rodas maior, ou até mesmo um aven-

tal que lhe sirva. Será mesmo que não existe um padrão de tamanho para tudo? A padronização do corpo magro não está somente na mídia e na boca das pessoas, está no mundo inteiro, como uma forma de viver. Seja magro e será normal. Seja magro e não terá que pedir por uma cadeira que não seja de plástico na lanchonete, não terá que implorar por um lugar no ônibus e nem passar sufoco no hospital. A obesidade pode ser desenvolvida pelo consumo contínuo de alimentos de baixa qualidade nutricional e pelo sedentarismo, por exemplo. Mas não se pode ignorar que a carga genética pode levar a pessoa a ganhar peso com muita facilidade, o que a colocará inevitavelmente em situações muito desagradáveis.


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editoriais

Dezembro/2017 • edição 09

Mas onde está minha voz? V

ivemos, muitas vezes, sem que nossa voz seja reconhecida em nossas escolhas. Na história, mudos, por condição física ou alegórica, passam despercebidos sem conseguir modificar sua realidade. De dificuldades de inclusão social a preconceitos de raiz histórica, vemos na região de Piracicaba e cidades vizinhas uma micro realidade do que o Brasil sempre enfrentou: a desigualdade em todos os âmbitos, econômica à sócio-política, difícil de ser mudada. Sem força nas decisões e sem voz nas reivindicações, indivíduos sujeitos a essa desvalorização se encaixam na situação de minorias.

A herança do país favorece a exclusão de certos grupos. Foram três séculos sob regime escravo que embasam o preconceito racial até os dias de hoje, além de um passado de organização social patriarcal e ditames de coronéis, que deixam de lado a valorização das classes baixas, das crianças e outros segmentos. Não se ouve falar nas aulas de história, por exemplo, sobre como deficientes físicos viviam no período colonial. Apesar das garantias conquistadas com o tempo, visto a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelecida pela ONU, em 1948, a realidade

O dever de todos para termos um Brasil melhor

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uando se fala sobre o conceito de minorias, a subjetividade toma conta do pensamento. De acordo com a vivência, conhecimento ou ideologia do interlocutor, diferentes definições para uma mesma palavra podem ser encontradas. De fato, não é fácil cravar o conceito definitivo para estabelecer uma minoria. Um exemplo são as mulheres, maioria da população, mas que se encaixam no conceito por diversos fatores relacionados à desigualdade. Nesta edição, o leitor encontra diferentes reportagens que abordam as minorias. Mais do que exemplos isolados, o que esse conjunto de matérias mostra é a força de grupos que podem ser considerados minori-

tários, mas representam grande parte da população que precisa ser ouvida. E mais do que apenas ouvir, integrar as denominadas minorias à população, expondo as diferenças para que haja entendimento e tolerância é papel fundamental na construção de uma sociedade justa. A integração de nossas diferenças para a construção de uma sociedade devidamente igualitária depende do interesse de todos em enxergar o outro como ele realmente é: apenas mais humano, com suas diferenças e peculiaridades, mas que merece respeito e direitos como qualquer pessoa. Quando não for mais necessário falar sobre minorias, nosso país terá atingido o tão esperado patamar de igualdade.

insiste em se mostrar inversa. No preâmbulo, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”, mas a igualdade não alcançou sete dos 13 setores de trabalho avaliados em 2015, pelo Jornal Nexo, quanto à diferença de salários entre homens e mulheres. Nesses sete, elas ganham menos ou, no mínimo, se equiparam ao valor recebido pelos homens. Não só dados, porém atitudes ainda provam que as diferenças continuam sendo um obstáculo para a igualdade.

Nossa Constituição Federal, de 1988, define em seu artigo 5º a necessidade de isonomia para todo ser humano, sem haver distinções inclusive para com outras nacionalidades, mas imigrantes no Brasil, pessoas de diferentes gêneros, faixas etárias e até ideologias continuam em desvantagem, vítimas da divisão de opiniões, quando pouco se debate, mas muito se discute com a intenção de impor um só “lado da moeda”. Pouco se coloca em pauta, por exemplo, os direitos das empregadas domésticas e a não discriminação de homens que fazem balé, vistos muitas

vezes com estranheza. Contra dificuldades enfrentadas por esses e outros casos, as próximas páginas trazem questões enfrentadas no dia a dia de minorias que ainda não tiveram suas necessidades atendidas ou sofrem por não ter seus direitos postos em prática. É comum não ouvirmos falar dos “diferentes” ou nem nos preocuparmos com a situação em que vivem. Dessa forma, surge a importância de descobrir os problemas que eles enfrentam ao nosso redor e, sem saber, podemos estar colaborando para que suas vozes, suspiros e gritos, não sejam ouvidos.

Contribuição brasileira

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miscigenação no Brasil não pode ser vista como positiva, e é grave vê-la assim. Essa mistura de culturas, raças e classes sociais poderá ser chamada de bela apenas quando houver a contribuição dos brasileiros para que as reivindicações de grupos que mais precisam sejam conquistadas, e os direitos, de fato, garantidos. São situações que estão bem longe de se aproximarem de um cenário minimamente aceitável. O famoso “isso não é comigo” faz com que quem não sente na pele as dificuldades enfrentadas por pessoas que fazem parte de uma minoria — no sentido de número e de direitos e conquistas — deixe de se preocupar com o que realmente vem acontecendo. Há, inclusive, gente que ainda

não faz a mínima ideia da desigualdade, em todos os aspectos, presente no cotidiano. E, com isso, ao mesmo tempo em que os fatos vão se agravando, eles se tornam banais. Não é válido culpar apenas os governantes e a falta de políticas públicas pela não solução das dificuldades sociais e da discriminação racial, por exemplo, quando, quem critica, nada faz para ajudar a sanar esses problemas. Nada adianta o ativismo barato e hipócrita em redes sociais quando os autores dos chamados “textões”, discriminam, fora da internet, pessoas diferentes a eles e praticam a intolerância a qualquer opinião ou modo de vida que não se encaixe aos princípios adquiridos. É de extrema importância,

antes de tudo, que haja o respeito e o cooperativismo ao próximo. Há exemplo de gente que ainda acredita em dias melhores e que, realmente, atua em favor do próximo, para que haja essas melhorias. Conforme a reportagem “Nova morada”, na página 9 desta edição, uma estudante do curso de relações internacionais da Unimep dá aulas de português a haitianos que vieram a Piracicaba em busca de condições de vida mais dignas, para que, assim, consigam se adaptar ao país e ter maiores chances de sucesso. São com esses gestos, que parecem simples, que muita coisa pode melhorar em um Brasil de mistura de povos e ainda com suas minorias, sendo essas com as mesmas garantias, na teoria, em terem uma vida digna.

CRÔNICA

Mostre-me no que somos diferentes Larissa Anunciato de Oliveira larissapre@gmail.com

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embro-me quando criança de ler uma história sobre um gato e uma gata. Ele era vira-lata e vivia pelas ruas, ela era uma gata de raça que tinha uma dona. Em dado momento da história, os dois gatos se encontram, e a gata fala para o vira-lata que eles nunca poderiam ser amigos pois eram diferentes. Então, o gato sem dono não entende o porquê e questiona: “Se você possui dois olhos, um nariz, quatro patas, bigodes e mia para Lua igual a mim, em que somos diferentes?”. Essa situação dos dois gatos sempre me chocou na infância, afinal eles tinham os mesmos aspectos físicos e até mesmo hábitos parecidos, e eu não entendia a razão da gata branca achar que eles eram tão diferentes. Já adulta, vendo os recentes dados de mortes no Brasil que constam do Atlas da Violência 2017, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, descubro

que, atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras e, além disso, os negros possuem 23% mais chances de sofrerem violência do que qualquer outra raça. Então, logo me veio à cabeça esse conto dos dois gatos novamente, pois qual é a diferença que as pessoas negras têm para morrerem mais? Com certeza não é pelo fato de possuírem olhos, braços, pernas e comerem feijão com arroz, iguais às outras pessoas, mas, hoje, entendi que a diferença que a gata se referia era um fato social e não necessariamente físico. O negro na nossa sociedade tem uma imagem negativa, socialmente construída, após anos de exclusão geral. Isso cria um abismo social no qual negros e não negros (com isso quero dizer qualquer outra raça com exceção da negra) frequentando os mesmos lugares provocam visões diferentes e de maneira consciente ou inconsciente expostas a julgamentos completamente opostos. É algo tão encrustado em nossa cultura que até mesmo os personagens dessa injustiça, por vezes, acostumaram com

essa forma de pensamento. Não questionam mais o por que serem abordados pela polícia sem um real motivo, das pessoas trocarem de calçada por acharem que serão assaltadas ou não poder usar capuz de moletom perto de um posto de gasolina ou mercado pelo preconceito da população acreditar que essa é somente a aparência de um ladrão. Nesta sociedade, aceitando-se esse preconceito, logo se aceita a morte desses negros; aceitando a morte dessas pessoas, acredita-se que não existe outra solução a não ser esta realidade. É claro que existem movimentos constantes de pessoas que não aceitam isto, lutam por sua igualdade e direitos. O gato julgado pela gata não aceitou o veredito como verdadeiro. Não pensou na possibilidade de que a diferença deles podia ser pelo fato de um não possuir uma raça especifica ou um dono. Era-lhe compreensível a diferença se ele não tivesse patas, bigodes ou miar. E quanto aos humanos? Qual a real diferença entre nós? Não pode ser a cor da pele!


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edição 09 • Dezembro/2017 Ricardo Stuckert

Faixa presidencial será transmitida novamente em 1º de janeiro de 2019; democracia brasileira foi classificada como defeituosa pela revista britânica The Economist

Democracia

dani7b.o@gmail.com

Corrupção, reformas aprovadas sem apoio popular, candidatos à presidência de 2018 condenados na Justiça. Transbordam razões para a desilusão com a democracia e o descontentamento da população. Nessa desorientação quanto ao rumo do país, surgem manifestações de grupos insatisfeitos, como os anarquistas. A democracia brasileira é defeituosa, de acordo com o Índice de Democracia de 2016, produzido pela revista britânica The Economist. Mas, para alguns, o regime também gera falsa liberdade. Allan e Fabrício, aluno de letras e professor de filosofia, respectivamente, ativistas do pensamento anarquista individualista, acreditam nessa falta de liberdade e reafirmam no sistema decadente uma crítica de séculos. “Se um é capaz de fazer escolhas por milhões, milhões também deveriam ser capazes de tomar decisões por eles mesmos”, afirma Allan Sacheto, 24, contra o modelo de democracia representativa. Ambos fazem parte da parcela predominante da população, de 15 a 39 anos, que não viveu o regime autoritário (1964-1984)

Pixabay

ANARQUISMO

Daniela Borges de Oliveira

sob

Crise moral da política brasileira coloca em xeque regime vigente no país e abre espaço para o debate de ideias libertárias ou só passou por seu período de abertura política. Mas tomam um rumo diferente da porcentagem de 17% da população que prefere uma ditadura a uma democracia. O anarquismo é variado em vertentes e forte como estilo de vida atualmente. A busca pela liberdade individual, pelos conceitos de “faça você mesmo” e de autonomia frente às instituições – não esperar que só o governo atenda nossas reivindicações – são aspectos em comum desse perfil. Um exemplo é o anarco-feminismo, que luta contra a divisão patriarcal da sociedade. Além de debater novos rumos da maternidade e do casamento. Trabalho “Todas as leis trabalhistas na Constituição de 1934 foram conquistas do movimento

O libertário está com dificuldade em se consolidar, porque existe hoje uma corrente muito forte que tende para o totalitarismo” anarco-sindicalista”, relembra o historiador Francisco Carlos Almeida Santana, pós-graduado em metodologia do ensino de história. Apesar da forte repres-

são do Estado, a organização operária na década de 1910 foi marcada pelo anarquismo trazido por imigrantes europeus, que auxiliou na conquista de direitos como aumento salarial, regulamentação dos trabalhos infantil e feminino, e jornada de trabalho por 8 horas. Para ele, “o libertário está com dificuldade em se consolidar, porque existe hoje uma corrente muito forte que tende para o totalitarismo”. Hoje, a perda de direitos no mandato vigente, com desaprovação de 84%, de acordo com pesquisa do Instituto Ipsos, como a possível precarização da lei que define o trabalho escravo, é vista pelo pensamento libertário como forma de controle autoritário sobre a população. Nesse furor de insatisfação, Fabrício Oliveira, 36, enxerga uma perseguição de grupos

contrários pelo governo. “É um jogo político, agora é a vez dos anarquistas”, afirma. Para Francisco, o anarquismo como ideologia não suprime a democracia, já que um de seus princípios, o da autogestão, condiz com o modelo de governo vigente no Brasil. Frente à crise política que contribui para o pessimismo dos brasileiros, o pensamento libertário movimenta adeptos e duras críticas, que o aproximam do extremismo dos terroristas.

Uma colônia anarquista no Brasil O Brasil se tornava pela primeira vez República, se industrializava e atraía imigrantes europeus. Foi assim que recebeu Cecília, colônia baseada no pensamento anarquista. O ano é 1890, quando o italiano Giovanni Rossi desembarca próximo a Palmeira, no Paraná. “Nós devíamos ir a Porto Alegre, mas o mal de mar fazia sofrer tanto dois dos nossos companheiros, que decidimos poupá-los (...) e

“É um jogo político, agora é a vez dos anarquistas” Fabrício Oliveira, professor de filosofia, que enxerga perseguição do governo aos grupos contrários.

William Godwin (1756-1835), primeiro a pensar que o estado é um mal e a sociedade pode viver sem ele. Marido da feminista Mary Wollstonecraft, que em 1792 publicou a Reivindicação dos Direitos da Mulher. EUROPA Inglaterra, fim do séc. 18

descer aqui”, em um de seus romances, Rossi explica a escolha. Por quatro anos, a colônia sobreviveu de subsistência, sem chefes ou regulamentos. Em seu período mais populoso, o terreno que se acredita ter sido cedido pelo imperador D. Pedro II para Rossi abrigou 150 habitantes, muitos contrários à ideologia anarquista, principalmente a aspectos como o ateísmo e o amor livre. Apesar do insucesso, descrito

Comuna de Paris, baseada em propostas anarquistas como propriedade coletiva, abolição de salários e leis Séc. 19

1871

por Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado, em seu livro “Anarquistas, graças a Deus”, como a situação precária de trabalho e períodos de fome que seus avós passaram ao se voluntariar na colônia, o experimento ilustra como o anarquismo adentra ao país vindo da Europa, de forma a ser uma alternativa à maneira que se enxerga e se coloca em prática a função do Estado na sociedade. (DBO)

Lei de Expulsão de Estrangeiros Expulsa estrangeiros do território nacional, responsáveis por trazer ao país as ideias anarquistas e socialistas: “Art. 1º - O estrangeiro que, por qualquer motivo, comprometer a segurança nacional ou a tranquilidade pública, pode ser expulso de parte ou de todo o território nacional.”

1890 Principais teóricos do anarquismo: Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), na França; Mikhail Bakunin (1814-1876), Piotr Kropotkin (1842-1921) e Liev Tolstói (1828-1910), na Rússia; Errico Malatesta (1853-1932), na Itália.

Colônia Cecília (criada pelo italiano Giovanni Rossi)

Allan Sacheto, estudante de letras, ao contestar o modelo de democracia representativa

Lei Celerada Criminalizava eventos que incitassem a revolta dos trabalhadores contra o patrão

Ressurgimento do ideal libertário com a abertura democrática

1927

1907

BRASIL

“Se um é capaz de fazer escolhas por milhões, milhões também deveriam ser capazes de tomar decisões por eles mesmos”

Séc. 19 ao séc. 20 – Imigração europeia para o Brasil, principalmente italiana

De origem grega, anarkhia, se traduz em an – sem e arkhê – soberania, reino. O símbolo faria alusão à máxima de um importante teórico anarquista, Proudhon, “A anarquia é ordem”. A letra “A”, semelhante em diferentes alfabetos, dentro da letra “O” de “ordem”. No dicionário Aurélio, anarquismo é uma “teoria que considera a autoridade um mal e preconiza a substituição do Estado pela cooperação de grupos associados”, mas também remete à confusão e desordem. Os principais aspectos desse estado de sociedade são a cooperação, a solidariedade e a liberdade. A ideologia defende a abolição do Estado e vê no ser humano a capacidade de viver em harmonia naturalmente, sem instituições que o forcem como as leis. O anarquismo possui várias vertentes como, por exemplo, a mutualista e a individualista. Esta última que diz que a sociedade deve se adaptar ao indivíduo.

“estilo de vida”, anarco-feminismo, etc.

Déc. 80 e 90

1917 Greve geral anarco-sindicalista em São Paulo e Rio de Janeiro. Reivindicações por melhores condições de trabalho

Por trás do símbolo

Hoje 2000

Ditadura Militar (1964 - 1984)

Encontro Internacional de Cultura Libertária (UFSC)


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Dezembro/2017 • edição 09 Samuel Pancher

OPINIÕES

“Acredito que a participação feminina depende do interesse delas também. Meu primeiro voto foi para uma mulher e não me arrependo” Homens são maioria nas casas legislativas brasileiras; em Rio Claro (foto) apenas duas mulheres atuam como vereadoras

Baixa POLÍTICA

representatividade Presença feminina em cargos representativos é inferior à de países do Oriente Médio; mesmo com lei obrigando partidos políticos a abrir espaço para candidatas, aspectos culturais e sociais dificultam paridade entre homens e mulheres

Samuel Pancher

samuelpancher7@gmail.com

Setenta e cinco milhões e duzentos mil eleitoras estavam aptas a votar nas eleições de 2016. Apesar desse número representar 53% do eleitorado, a representatividade feminina na política ainda é baixa nos estados, municípios e na esfera federal. Na região de Piracicaba, os números comprovam essa realidade. Na cidade de Limeira, dos 21 vereadores, três eram mulheres nas legislaturas de 2009 e 2013. Esse número aumentou para quatro na legislatura atual. Em Piracicaba, que conta com 23 vereadores, apenas uma mulher representou a cidade nas duas últimas legislaturas. Atualmente, a bancada feminina conta com duas representantes. Já em Rio Claro, nas últimas três eleições, duas cadeiras foram ocupadas por mulheres no Legislativo. Apesar do número de parlamentares ter aumentado de 12 para 19 nas últimas eleições, a participação feminina se manteve estável.

Exige um certo constrangimento para que mulheres se candidatem e entrem na disputa” Os desafios da representatividade feminina em um ambiente predominantemente masculino são sentidos não só por quem disputa as eleições, mas também por quem se elege e disputa espaço com os colegas homens nas câmaras municipais, Câmara Federal e Senado. “Muitas vezes a gente sente que tem que comprar mais brigas para ser respeitada”, diz Caroline Gomes (PSDB), que

foi eleita aos 26 anos para seu primeiro mandato na Câmara de Rio Claro. “As pautas femininas não são poucas, e essa demanda acaba recaindo em mim e na minha colega mulher. É um desafio a mais que temos que dar conta”, diz. Apesar de nunca ter sido vítima diretamente de atos de machismo, Caroline diz que o ambiente favorece os homens. “Se você não se estabelece como liderança forte e reafirma suas posições, lhe é tirado o protagonismo, o que não deixa de ser uma forma de limitar nosso potencial”, explica. Nacional Levantamento realizado em 2015 pela União Inter-Parlamentar dá ideia do tamanho da disparidade entre homens e mulheres na política nacional. De um total de 190 países pesquisados, o Brasil ocupa apenas a 116ª posição no ranking de representação feminina no Legislativo. Atualmente, 55 dos 513 deputados são mulheres (10,7%).

As mulheres são maioria do eleitorado mas preferem votar em homens”

No Senado, o percentual é um pouco maior: dos 81 senadores, 12 são mulheres, o que representa 14,8%. Os números estão bem abaixo da média mundial de 22,1% de mulheres ocupando cadeiras nos parlamentos. As taxas brasileiras são ainda inferiores aos da média do Oriente Médio, com uma taxa de participação feminina de 16%. Os números brasileiros revelam uma tendência histórica, como explica o sociólogo Conrado Ferranti. “Desde a formação das nossas famílias, baseada na figura do pai e do filho mais velho que assumia as responsabilidades, foi se criando uma cultura de que certos papéis eram masculinos”, explica. Ainda segundo ele, essa cultura incentiva as próprias mulheres a desconfiarem de candidatas do sexo feminino. “É uma ideia tão nativa na cabeça da sociedade, que as mulheres são maioria do eleitorado mas preferem votar em homens”, observa. Já para a cientista política Letícia Gross, outro fator que contribui para a pouca participação feminina nas decisões dos rumos do país é a falta de interesse. “Por ser uma atividade erroneamente associada aos homens, exige um certo constrangimento para que mulheres se candidatem e entrem na disputa”, diz.

Kauan Alves Talarico, estudante

“Não levo em consideração se o candidato é homem ou mulher. Acho que propostas e plano de governo são mais importantes” Fernanda Matiak, microempresária

“Acho que o número de mulheres tende a aumentar. A sociedade está mudando e a política vai mudar também” Valter Argeo, produtor de eventos

Direito que não se traduz em números Conquistado em 1932, o direito das mulheres ao voto passou por diversas etapas até atingir um patamar igualitário ao masculino. Esse período de discrepância entre os direitos eleitorais de homens e mulheres provocou reflexos culturais que são vistos até hoje. A primeira aprovação do voto feminino foi parcial, permitido somente às mulheres casadas, com autorização dos maridos, às viúvas e solteiras que tivessem

renda própria, o exercício de um direito básico para o pleno exercício da cidadania. A maior mudança na legislação brasileira veio em 1934, quando as restrições ao voto feminino foram eliminadas do Código Eleitoral, embora a obrigatoriedade do voto fosse um dever masculino. Em 1946, a obrigatoriedade do voto foi estendida às mulheres. Depois de 83 anos de o direito ser garantido no papel, é a re-

presentatividade que se mostra como um desafio político importante para as mulheres no século 21. Um cenário que se mostra especialmente desigual no Brasil. A baixa presença feminina em cargos eletivos públicos no país é um contraponto ao próprio eleitorado (53% dos aptos a votar são mulheres). As raízes desse problema têm origem social, cultural e histórica e o debate pode ser a chave para atenuar a situação. (SP)

Não ocupamos um lugar de protagonismo, diz deputada Em 2016, a participação feminina aumentou, mas ainda representa apenas um terço dos elegíveis. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do total de candidatos das eleições, 155.587 (31,60%) eram do sexo feminino, enquanto 336.819 (68,40%) eram homens. Na disputa para os cargos de vereador em todo o país, a proporção de mulheres foi ainda maior: 32,79%. Na disputa para o cargo de prefeito, 12,57% dos candidatos eram do sexo feminino. Integrante da Comissão dos Direitos da Mulher na Câmara Federal, a deputada Ana Peru-

gini (PT) avalia que estratégias de curto, médio e longo prazos precisam ser tomadas para que a política, de maneira geral, no país seja mais igualitária. “O Brasil ainda está muito aquém de outros países menores ou com menos mulheres proporcionalmente falando. Não ocupamos um lugar de protagonismo que deveria ser nosso, ficando atrás inclusive de países menos desenvolvidos, como Angola, Ruanda e Bolívia”, avalia. Apesar do percentual de mulheres candidatas ter ultrapassado 30% nas últimas eleições, ainda há uma dificuldade dos partidos e coligações nos mu-

Levantar o interesse feminino pela política é uma tarefa que esbarra na nossa cultura”

nicípios atenderem o que está previsto na lei eleitoral, que estabelece que cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Analisados friamente, os números demonstram eficácia da lei. Em 2008, o percentual de mulheres candidatas a vereadora era de 21,3%. O aumento de cerca de 25% representa cerca de 50 mil candidaturas femininas a mais em oito anos. “O fato de existir uma legislação e, mesmo assim, as candidaturas ficarem perto do limite legal, só comprova que existe de fato uma falta de interesse por

parte das mulheres. Levantar o interesse feminino pela política é uma tarefa que esbarra na nossa cultura”, afirma a cientista política Letícia Gross. João Walter Marcondes, presidente do diretório municipal do PSDB de Rio Claro, concorda. “É muito difícil atingir o que estipula a lei. Existe uma resistência bem grande por parte das mulheres de se lançarem na vida pública e isso acaba sendo até frustrante para nós”. Para atingir o mínimo de participação feminina, os partidos, às vezes, apelam para formas criativas de preencher a cota. “Nas últimas eleições, as duas fi-

lhas do nosso vice-presidente tiveram que se candidatar apenas para que a lei fosse cumprida. É realmente complicado”, avalia Marcondes. Para a deputada Ana Perugini, expor e debater o tema é a principal forma de se construir uma política mais igualitária. “Mostrar que o machismo é um problema estrutural e debater formas de mudar isso, é como a sociedade pode contribuir para a consolidação da nossa democracia”, avalia Ana, que também coordena a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos das Mulheres no Congresso Nacional. (SP)


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Conhecimento libertador IGUALDADE

Acesso à educação de qualidade contribui para o enfrentamento do preconceito racial e garante condições para que os negros também ocupem lugares de destaque na sociedade

Júlia Lopes

julialpsmoreira@gmail.com

Leonardo César Benedito lcbenedito@outlook.com

Mariana Requena

mariana.requena.fogaca@gmail.com

Jairo Silva, 39, é negro, de origem humilde, jornalista, além de presidente e um dos fundadores da “Associação Anjos da Alegria”, em Americana, grupo que faz visitas a hospitais, casas abrigo e asilos para levar alegria e distração aos pacientes e moradores. Para o jornalista, que é o único a ter formação superior entre os sete irmãos, o preconceito está ao seu redor desde a época da escola, quando tinha que lidar com os apelidos racistas que recebia dos colegas, muitos inspirados no personagem Mussum, do programa “Os Trapalhões”, da TV Globo, líder de audiência na época. “Surgia em mim uma angústia tão grande que eu não queria ir para a escola”, relembra. “Isso diminuía a minha autoestima. Então comecei a perceber o quanto o preconceito contra negros é forte”. De acordo com ele, atualmente os negros no Brasil ainda não têm as mesmas oportunidades que os brancos,

e Jairo já viveu na pele situações como diferenças salariais no exercício da mesma função, mesmo que houvesse a alegação de que a cor da pele não era o motivo a injustiça. Silva se considera uma pessoa muito questionadora, com opiniões diferentes das pessoas com as quais convivia, e essa característica, aliada ao desejo de dar voz à sociedade frente ao poder público, foi o motivo de escolher o jornalismo como profissão. Formou-se na Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), e em sua turma, dentre cerca de 60 alunos, além dele, havia apenas mais um aluno negro. “O acesso do negro à universidade é muito difícil, não pela falta de capacidade, mas

pela questão econômica, pois muitos trabalham no período livre ou são desestimulados a procurar uma formação”, acredita o jornalista. “Se eu não ganhasse bolsa da faculdade, jamais teria condições de pagar o ensino de forma integral”. Na opinião de Silva, o poder público deve investir cada vez mais em educação, pois o conhecimento garante a oportunidade da mudança de vida, e esse pode ser o caminho para a contestação e abandono do racismo. “Somente o ensino tem a capacidade de transformar as pessoas”, conclui o jornalista. Para Cláudia Monteiro, 47, representante da União dos Negros pela Igualdade (Unegro), em Americana, as causas da desigualdade no

país são históricas e se arrastam desde a abolição da escravatura, quando imigrantes brancos foram trazidos da Europa para trabalhar nas lavouras de forma assalariada e os negros ficaram sem trabalho, confinados às periferias. Ainda segundo ela, a educação por si só não resolve a questão do preconceito racial no país. “A educação sozinha não transforma a realidade, é necessária uma ampla reforma social, mas a educação contribui muito para a divisão de renda”, aponta. “Essa reforma social deve ser apoiada em bases de políticas públicas nacionais, como a recriação de ministérios extintos, como o da Igualdade Racial, que

são fomentadores de políticas de ações afirmativas que visam equalizar a sociedade”. Pesquisa Segundo dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, os negros e pardos representam 54% da população brasileira, porém, de acordo com o último censo, apenas 12,8% dos negros entre 18 e 24 anos chegaram ao nível superior. A participação de negros no grupo dos 10% mais pobres do Brasil é de 75%. No grupo do 1% mais rico da população, a porcentagem é de apenas 17,8%.

“Somente o ensino tem a capacidade de transformar as pessoas”

Jairo nasceu em uma família humilde, conseguiu se formar em jornalismo e superar o preconceito

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“A educação sozinha não transforma a realidade, é necessária uma ampla reforma social”

Professor defende política de ações afirmativas

O rapper Daniel Garnet, 33, é uma figura importante para o cenário cultural piracicabano. Ele é um dos líderes da Batalha Central, que reúne diversos jovens em busca de arte, rap e igualdade social. Na infância estudou em uma escola particular de São Paulo, e afirma que seu primeiro contato com o racismo foi aos 4 anos, quando a professora fez uma separação de grupos para uma brincadeira e a criança não foi escolhida para nenhum time. Ao contestar a falta de participação na atividade, Daniel conta que a educadora respondeu que ele não havia sido escolhido porque era “muito

negro”. O rapper se envolveu com a música através de vídeos esportivos na internet, que eram acompanhados por rap e considera que essa foi a primeira vez que viu negros em uma condição de poder, o que o despertou para o estilo musical. A partir daí Daniel passou a gravar fitas cassetes e escrever suas próprias letras. “Estamos muito longe de uma igualdade social entre negros e brancos no Brasil, embora a luta dos negros tenha feito esse quadro mudar um pouco, muito mais do que as políticas públicas”, afirma. (JL/LCB/MR) Daniel encontrou no rap um caminho para vencer o racismo

ão

veitar as oportunidades de formação profissional também levaram Pedro Valentim Marques a ocupar um lugar de destaque no mercado. De origem humilde, Marques precisou abandonar os estudos para trabalhar, mas o gosto pela leitura e o apoio dos amigos o levaram de volta à escola cinco anos depois. Saiu do ensino supletivo e passou no vestibular da Esalq para o curso de engenharia agronômica. Como bolsista na universidade conseguiu cursar o mestrado. Anos mais tarde, depois de trabalhar na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em São Carlos, foi para os Estados Unidos e, aos 36 anos já era doutor. Atualmente, aposentado da docência, atua apenas como presidente do Programa de Educação Continuada em Economia e Gestão de Empresas (Pecege). “Não adianta ficar reclamando, temos que ter objetivos e partir para a luta. É importante ter sonhos, visualiza-los em detalhes, sentir o gosto deles se realizando. Foi assim que consegui começar o supletivo aos 18, doutorado aos 36 e me tornar professor titular da USP aos 54 anos”, afirma. (JL/LCB/MR)

ç lga

estudar na Instituição Superior Evangélico de Estudos Teológicos (Isedet), em Buenos Aires. Morou em uma favela de Belo Horizonte, onde teve contato com militantes negros, padres e pastores que lutavam contra a desigualdade. “Posso dizer que este foi o tempo de minha real formação e consciência da importância da luta pela transformação social”, conta Cesar. Apesar de todo o preconceito enfrentado durante a vida, Cesar Vieira é formado em filosofia, cursou mestrado e doutorado em ciências da religião na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e tem dois doutorados, um deles em educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Unimep (PPGE). “Sou a favor da construção de políticas de ações afirmativas, mesmo que sejam de caráter transitório, mas que possam contribuir para diminuir este fosso histórico que para muitos é uma condição natural”, declara o coordenador. “Tive diversas oportunidades na vida que foram determinantes para que eu pudesse chegar aonde cheguei. Creio piamente que sem essas oportunidades, dificilmente teria condições de estar onde estou”. Os incentivos para lutar e apro-

vu Di

Coordenador de Pesquisa e Pós-Graduação da Unimep, Cesar Romero Amaral Vieira, 57, é negro e também tem origem em uma família simples. Morou no litoral de Vitória, no Espírito Santo, durante parte de sua infância e início da juventude, junto aos pais e irmão mais novo. Durante o ensino fundamental, Cesar estudou em escolas públicas e cursou o ensino médio no colégio da elite capixaba, Martim Lutero. “Lá vivenciei a força do preconceito e da discriminação racial e social. Durante os meus três anos na escola, só havia dois alunos negros, além de alguns funcionários da manutenção”, conta o pesquisador. Piadas e comparações na escola eram recorrentes e Vieira chegou a culpar o pai por não oferecer condições parecidas com a de seus colegas. Segundo ele, foi dessa forma que percebeu o quanto a diferença de acesso ao conhecimento, oportunidades, raça e origem social podem ser determinantes para o futuro de alguém. O professor da escola dominical da igreja foi quem o inspirou para que seguisse a faculdade de teologia. Estudou hebraico na Congregação Israelita Paulista (CIP) e ganhou uma bolsa para

‘Estamos muito longe de uma igualdade social’


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EDUCAÇÃO Fotos: Marcos Santos/USP imagens/Fotos Públicas

OLHOS Cerca de 13 milhões de brasileiros enfrentam dificuldades por não saber ler e escrever; região de Piracicaba tem mais de 36 mil analfabetos

Rosa Cardoso

Rosa Cardoso

rosa.cardoso12@hotmail.com

Quantas vezes você foi ao supermercado, se deparou com produtos novos, chamativos, e logo sentiu vontade de compra-los? Pode ser comum para você, mas não acontece com todos. Muitas pessoas não entendem as letras e descrições dos produtos, e a simples tarefa de fazer compras pode se tornar um grande desafio. Esse é caso de Zuneide Aparecida Dinarti, 63. “Você nunca comprou e vai lá buscar e não sabe o que é. Aí toda hora tem que estar perguntando: tem isso aqui?”. Também não entende as promoções e acaba indo ‘no melhor’. O filho diz para olhar o preço, mas na hora de escolher o arroz, ela pega o “mais soltinho, mais bonito”, diz ela, rindo. A escola não fez parte da infância de Zuneide na pequena cidade de Garça, no interior paulista. Foi matriculada e até chegou a iniciar os estudos, porém não passou da primeira série. Após cinco anos de tentativas para passar de ano, os pais desistiram e a tiraram da escola. “Eu aprendi, mas bem pouco. A minha cabeça não ajudava a juntar as letras”, relembra. Com 10 anos, intercalava os estudos com

o trabalho de copeira. Após sair da escola, começou a acompanhar os irmãos na roça. “Colhia algodão, capinava e ajudava a arrancar amendoim, fui criada na roça”, conta. Esmeralda Rosa dos Santos Santana, 56, é cuidadora de idosos e estudou até a terceira série, foi a única entre 15 filhos que não concluiu os estudos. Com o nascimento dos irmãos, ela, por ser a mulher mais velha, teve que ajudar a mãe a cuidar da casa e das crianças. Com isso, acabou interrompendo os estudos e nunca mais voltou. Ela conta que, quando jovem, perdeu oportunidades de emprego por não saber ler e escrever, e até hoje convive com dificuldades. “Para escrever uma carta e ir ao banco sempre tenho que pedir para alguém que sabe me ajudar”, conta. O analfabetismo também condiciona e limita a pessoa a determinados empregos que não necessitam desse conhecimento. Zuneide sempre foi empregada doméstica, e aprendeu a gostar do trabalho. “Sempre gostei mais de trabalhar só”, explica. Além disso, ela acha constrangedor ficar pedindo informações às pessoas, e isso afeta atividades do dia a dia como sair, viajar e

Zuneide lamenta ter abandonado a escola quando estava na primeira série

pagar contas. “Detesto quando me mandam ir ao banco”, diz ela, descrevendo com certa frustração a dificuldade de acompanhar a senha numérica. “Isso aí é bem difícil para quem não sabe ler”, acrescenta. Preferia como era antigamente, que as pessoas chamavam, “fulano de tal, próximo”. Tanto Zuneide quanto Esmeralda sentem vontade de ler e escrever, mas acreditam que não são mais capazes de aprender por conta da idade. “Eu olho para os livros, revistas e queria entender o que está escrito ali”, diz Zuneide.

“Eu olho para os livros, revistas e queria entender o que está escrito ali”

Adaptação Já Maria Deodato dos Santos, 57, tem uma forma criativa de se comunicar e usar a tecnologia sem as letras. Sua lista telefônica do celular, ao invés de conter nomes, contém ícones para cada pessoa. Para saber as horas, o modo “fala” do celular foi ativado, o que facilita sua rotina. A ideia foi de sua filha, Rosiane Maria dos Santos, 32, que reconhece as dificuldades e faz de tudo para colaborar para a inclusão da mãe. “A gente adaptou e ela liga para quem ela quer”, explica.

Rosiane acredita que em algumas atividades do dia a dia, como assinar holerites e ler contratos de trabalho, a leitura se torna ainda mais importante. Para ela, nessas horas os analfabetos saem prejudicados, pois “nem tudo tem como pedir para outra pessoa fazer”, completa. Milhões Elas não estão sozinhas. Atualmente, no Brasil, existem 12,9 milhões de analfabetos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada em 25 de novembro de 2016, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse número corresponde a 8% de toda a população. A taxa de analfabetos regrediu desde o último estudo feito em 2005, em que as pessoas com mais de 15 anos que não sabiam ler e escrever somavam 11,1%, porém, de forma lenta levando em consideração que existe programas federais voltados para a alfabetização de jovens e adultos em todo o país como o EJA (Educação para Jovens e Adultos) que visa garantir chances a quem não pôde, por qualquer motivo, concluir o ensino fundamental e médio na idade apropriada.

EJA é caminho para aprender a leitura e escrita Na cidade onde vivem Zuneide, Esmeralda e Maria - São Pedro - o Educação para Jovens e Adultos (EJA) disponibiliza o ensino fundamental em seus dois ciclos: Anos Iniciais, que correspondem às classes do 1º ao 5º ano, e os Anos Finais, do 6º ao 9º ano. Porém, a divulgação e incentivos são poucos, o que faz com que muitos nunca voltem a estudar, por isso sobram vagas nas salas de aula. Natanael Gouveia, 27, é secretário da escola Professor Benedito Modesto de Paula, na cidade de São Pedro, que ministra aulas pelo EJA desde 2009. De acordo com ele, as idades dos estudantes do semestre atual variam de 15 a 72 anos. A média tem 45 anos. O perfil também é variado. “A maioria vem do Nordeste e quer fazer a prova de reclassificação para ingressar novamente aos estudos”, e os jovens que procuram são, geralmente, os que possuem

histórico de repetência e optam por concluir os estudos por meio do programa. A professora Luciane Bragagnolo Smanioto, 48, trabalha com alfabetização de adultos há 14 anos e, para ela, a rotina das pessoas que não sabem ler é

uma rotina de dependência, pois precisam sempre de alguém por perto para ajudá-las. “Eles vivem em um mundo escuro”, diz. Ela conta que por meio do ensino no EJA ela consegue promover uma mudança na vida deles, quando vê que eles começam a “sair

Autoconfiança e determinação são fundamentais para o sucesso dos adultos em processo de alfabetização

desse mundo escuro e resolver as coisas por si mesmo”, ressalta, ainda, que sua maior gratificação é ensinar. De acordo com a professora, o perfil da maioria é formado por alunos que levam a sério o estudo, a escola, o aprendizado,

mas apresentam muita timidez e insegurança. Além de fatores como cansaço e problemas familiares, que também os atrapalham. “Se eles tiverem algum problema muito sério em casa em determinado dia, eles não produzem absolutamente nada”,

QUANTIDADE DE ANALFABETOS NAS CIDADES DA REGIÃO Cidade

Aguas de São Pedro Americana Iracemápolis Limeira

População Analfabeta

População Alfabetizada

34

2.213

4.509

167.046

534

15.210

8.767

209.677

Nova Odessa

1.414

39.303

Piracicaba

8.479

280.431

Rio Claro

4.914

144.072

Rio das Pedras

1.346

21.239

Santa Bárbara Doeste

5.602

138.980

São Pedro

1.154

23.805

Fonte: deepask, plataforma que cruza dados de fontes oficiais

afirma ela. Sendo assim, o professor tem que estar preparado para trabalhar em cima de todo esse perfil. Para o adulto, a melhor motivação vem das palavras de valorização, trabalho exercido de forma continua pelos professores em sala. Luciane afirma que esta é uma parte essencial para o aprendizado dos alunos. “É muito importante a gente falar para eles: muito bem; você está indo, continue assim, você vai conseguir”. Com isso, a autoconfiança dos alunos vai se desenvolvendo. Para Aparecida Luiz Polizel, 53, coordenadora pedagógica da escola, a parte mais importante de trabalhar com o EJA é ver a elevação da autoestima das pessoas quando começam a participar. “Eles se sentem muito importantes. O que mais me toca é ver a realização deles começando a conseguir ler e escrever”, finaliza. (RC)


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Fotos: Lorem Camargo

TECNOLOGIA

Exclusão Ana Carolina Lopes Ernega anacaroline.ernega@hotmail.com

Lorem Camargo

loremlima@yahoo.com.br

Raabe Kamala

Cobrança eletrônica de estacionamento em cidades com parquímetros pode representar uma grande barreira aos idosos

Disposição para aprender, persistência e apoio da família são fundamentais para que os idosos consigam se adaptar às ferramentas de comunicação do século 21

raabe_kamala@hotmail.com

“Me sinto mais jovem mexendo, vejo que isso faz bem para minha saúde porque trabalha a mente”, declara Irene Maria da Silva, 75, que aprendeu a manusear o celular smartphone com a ajuda de seus netos, e hoje navega tranquilamente pelas redes sociais. Ao longo do tempo, as inovações tecnológicas foram se atualizando e trazendo novas formas de socialização para a população em geral. Telefone, rádio, TV e computador são alguns dos aparelhos mais usados pela sociedade contemporânea. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira a partir dos 65 anos cresceu 1,53% de 2000 a 2010, o que representa mais de 14 milhões de pessoas, correspondendo a 7,38% dos brasileiros. Se adaptar não é uma tarefa fácil, requer aceitar o desconhecido e, acima de tudo, enfrentar a mudança radical dos seus hábitos. Neste contexto, a busca para se manter atualizado na sociedade faz com que idosos com mais de 65 anos de idade procurem se integrar à era digital. A funcionária pública, Elem Lima, 25, lembra quando seu pai, o aposentado José Alves de Lima, 75, ganhou o primeiro smartphone. “Ensinei ele a mandar áudio pelo WhatsApp porque era mais fácil do que escrever, mas mesmo assim foi uma dificuldade para ele aprender. Ele gritava achando que não daria para ouvi-lo, mas depois que aprendeu a usar, meu pai mandava áudio para mim e para minha mãe com a gente dentro de casa”, lembra Elem, aos risos. Evandro Souza, autor do documentário “Rugas de Vida”, que retrata diferentes vertentes da terceira idade, observa que os idosos, quando se adaptam

Apoio e orientações da filha Elem foram fundamentais para que José Alves aprendesse a usar os aplicativos do smartphone

Só consegui acessar quando comecei a mexer todos os dias com muita insistência e dedicação” ao uso das novas tecnologias, aumentam o nível de interação com a família e os amigos. “Semana passada, entrevistei uma senhora, e ela disse que encontrou vários familiares no Facebook, com os quais havia perdido contato. Ela também

conversa com frequência com as filhas por meio do WhatsApp”, conta Evandro. Com base em uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), o IBGE comprovou que, ao contrário do que se imagina, os idosos usam cada vez mais a internet. Em cinco anos, o percentual de pessoas acima de 60 anos que acessam a rede mais que dobrou: eram 5,7%, em 2008, superados pelos 12,6%, em 2013. Na prática “Aprendi sozinha a mexer na internet. Meus netos me explicavam, mas eu não conseguia entender. Só consegui acessar quando comecei a mexer todos os dias com muita insistência e dedicação, porque se não fosse isso, teria desistido na primeira vez

Para a terceira idade, a maior dificuldade é guardar e assimilar o conteúdo ministrado” que mexi e não consegui achar a calculadora”. lembra Irene, que tem um filho que mora em Portugal e, antes de ter um celular com todas essas ferramentas, só conseguia ouvir a voz dele com um celular que fosse muito avançado. Hoje é bem diferente,

pois ela consegue conversar com ele por vídeo e matar pelo menos um pouco da saudade. Por essa introdução ser cada vez mais fixada no cotidiano da terceira idade, é de extrema importância que ações sejam criadas a fim de facilitar a aproximação entre idosos e tecnologia. Para assegurar os direitos dos idosos foi criada em 2003 a Lei 10.741, conhecida como Estatuto do Idoso, que prevê no artigo 21 o acesso às técnicas de comunicação, computação e demais avanços tecnológicos para integração dos idosos à vida moderna. Repetição “Para a terceira idade, a maior dificuldade é guardar e assimilar o conteúdo ministrado, devido à idade. Por isso, em nossa meto-

dologia, trabalhamos com o processo de repetição. Repetimos o conteúdo até eles aprenderem. Só assim mudamos para o outro módulo do curso”, explica Fernando Mello, que é proprietário de uma escola de tecnologia para a terceira idade, que funciona em Piracicaba desde 2011. O que muitos idosos sentem é que a exclusão acontece não somente pelo desinteresse ou pela dificuldade de aprendizado, mas também pelo fato de que sites e programas não são planejados para esse público em ascensão. “A verdade é que me sinto isolada pela tecnologia digital. Vejo que ela é voltada só para os jovens, os fabricantes não têm uma preocupação com os idosos, eles fazem a gente se sentir como se não servíssemos mais para nada”, lamenta Irene.

‘Se parar por algum tempo, vai ter dificuldade no amanhã’ Para o professor Luís André Claudiano, bacharel em sistemas de informação, a dificuldade da terceira idade para entrar no meio tecnológico é não ter crescido com a tecnologia. “Um software é pensado para atender todas as pessoas. Aquela pessoa que não teve acesso à tecnologia, não nasceu naquele momento, teve uma vivência completamente diferente e, após 20 ou 30 anos, começa a mexer com o computador, ela vai ter uma dificuldade maior realmente”, avalia. Segundo Claudiano, o medo de descobrir esse novo mundo também impede o idoso de querer manusear a tecnologia. “A criança já nasce com o dedo clicando em alguma coisa, diferente das pessoas que têm um pouco mais de idade e que têm medo de apertar alguma coisa e ocasionar algo errado”.

O que muitos pensam é que os idosos apenas utilizam a tecnologia para o lazer, mas um levantamento da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) mostra que o número de idosos no mercado de trabalho formal cresceu, de 2010 para 2015, 58,8%. Não só a experiência, mas a adaptação às novidades que

servem para facilitar o trabalho conta para se manter no mercado, como afirma Claudiano. “A maior dificuldade nos dias de hoje é realmente acompanhar a evolução da tecnologia. Se parar por algum tempo, vai ter dificuldade no amanhã, e isso depende da pessoa querer também”, alerta o professor Claudiano.

Marcos Santos/USP Imagens/Fotos Públicas

Percentual de pessoas com mais de 60 anos que acessam à internet passou 5,7%, em 2008, para 12,6%, em 2013

EVOLUÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

1870 1900 Telefone Rádio

1924 1971 TV Computador

Como é o caso do administrador de empresas Roberto Borges, 71, que teve que aprender por necessidade depois de entrar na equipe voluntária do Observatório Social de Piracicaba. “Mantenho o mínimo necessário atualizado, mas muitas vezes nos sentimos analfabetos. Eu não sabia enviar uma mensagem de voz”, lembra Borges, que respondeu às perguntas da entrevista por WhatsApp. “Consegui com certa habilidade, mas é frustrante quando não se sabe mexer em alguma tecnologia”. O avanço tecnológico e o envelhecimento estão na mesma corrida, com passadas diferentes, mas na mesma busca: conhecer o novo. (ACLE/LC/RK)


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Dolems Desouvre deixou o Haiti há quatro anos em busca de emprego; compreensão da língua portuguesa é um dos maiores desafios enfrentados pelos imigrantes

Lá no meu país não tem trabalho, então vim aqui para trabalhar e mudar minha vida”

Nova IMIGRAÇÃO

MORADA

Haitianos chegam às cidades da região em busca de oportunidades; terremoto que assolou o país em 2010 e desenvolvimento econômico do Brasil na última década estimulam a saída da nação mais pobre da América

Fotos: Gabriela Melo

Larissa Grosso, estudante de relações internacionais na Unimep, dá aulas de português aos haitianos

Aulas de português são oferecidas aos haitianos Em uma iniciativa que começou há dois anos, por meio de parceria entre Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e a Secretaria Municipal de Trabalho e Renda (Semtre), a estudante de relações internacionais Larissa Grosso, 22, dá aulas de português para haitianos na sede da pasta. “Elas têm muita importância para a integração do haitiano com a língua portuguesa, já que quando chegam no Brasil não sabem quase nada em português”, explica Larissa. A estudante conta que, além do benefício para os imigrantes do Haiti, dar aulas de português trouxe a ela experiências pessoais e profissionais. “Hoje falo que sou uma educadora popular, eu ensino o que aprendi na minha

vivência acadêmica e pessoal”, conta. Segundo Fabíola Oliveira, uma das principais dificuldades que os haitianos encontram ao chegar ao Brasil é, de fato, o idioma. “Se você não consegue se comunicar, você tem problemas de emprego, e problemas de emprego acabam gerando uma série de problemas em relação à permanência dessas pessoas aqui”, avalia, contando que outro problema que os imigrantes enfrentam é o processo de reconhecimento de diploma para as pessoas que têm ensino superior. “São muito custosos e demorados e podem levar o imigrante a procurar um emprego inferior pela falta deste reconhecimento”, finaliza. (FJ/GM)

Fernando Jacomini fejacomini@gmail.com

Gabriela Melo

gabi_melooliveira@hotmail.com

Wadnot Errilus, 33, era pedreiro e trabalhava em uma plantação quando morava no Haiti. Até que, por causa de um terremoto que atingiu o país em 2010, decidiu vir sozinho ao Brasil, deixando a família por lá. Há quase três anos em Piracicaba, ele trabalha como vendedor de peixes em um supermercado, e conta que se acostumou rapidamente com a região. Ele está entre as diversas pessoas que vieram ao Brasil em busca de oportunidades melhores. “É um país muito fácil de se adaptar. A única coisa que sinto falta é de ficar junto com minha mãe e com meu filho, então tenho vontade de ir ao Haiti para visitá-los”, conta. Um diagnóstico sobre a migração haitiana para países-membros e associados do Mercosul, feito pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) e pelo Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH) mostra que o movimento de imigração haitiana no Brasil é crescente. Entre 2010 e 2014 foram autorizadas 20.824 residências permanentes aos haitianos. Já em 2016, o total de residências autorizadas, entre temporárias e permanentes, foi de 67.226. Segundo Fabíola Oliveira, coordenadora do curso de relações internacionais da Universidade

Wadnot Errilus foi um dos haitianos que deixaram a ilha caribenha depois do terremoto de 2010

Metodista de Piracicaba (Unimep), a migração em massa de haitianos para o Brasil está relacionada ao terremoto que abalou o país em 2010. Com o passar do tempo, no entanto, a professora começou a pesquisar sobre outras causas que motivam a vinda deles ao Brasil, curiosidade despertada pelo número cada vez maior de imigrantes. “A gente constatou que eles também vinham por motivos econômicos e não apenas pelo desastre ambiental”, observa a professora. Também do Haiti, Dolems Desouvre, 28, está há quatro anos em Piracicaba. Quando vivia em sua terra natal, trabalhava em uma plantação com o pai, até que decidiu vir junto com um amigo em busca de melhores condições de emprego. “Lá

A gente constatou que eles também vinham por motivos econômicos e não apenas pelo desastre ambiental”

no meu país não tem trabalho, então vim aqui para trabalhar e mudar minha vida”, disse. Atualmente Desouvre trabalha em uma metalúrgica em Piracicaba, mas relata que foi bastante difícil a inserção no mercado local. “A maior dificuldade foi a língua portuguesa. É muito difícil para falar”, considera. Ainda com algumas dificuldades com o idioma, Desouvre é um dos haitianos que faz aula de português na Secretaria Municipal de Trabalho e Renda (Semtre). A pesquisa da OIM e do IPPH mostra ainda que o Brasil é o país sul-americano com o maior movimento de imigração haitiana, o que, segundo o diagnóstico, é motivado pela economia do país e por estar em uma “rota” de deslocamentos entre Haiti e outros países. Fabíola, entretanto, afirma que o movimento é, de certa forma, preocupante, pois ainda falta bastante ajuda do governo brasileiro, fazendo com que os imigrantes precisem encontrar emprego para se sustentar. “O governo delibera sobre a possível permanência desses estrangeiros, a forma como eles vão viver, moradia e alimentação, mas não existe um programa diretamente ligado a isso”, observa.

Americana é a cidade que mais recebe bolivianos Quem também sai da terra natal em busca de melhores oportunidades de emprego são os bolivianos. Em 2015, a Bolívia ocupava o segundo lugar em imigração para o Brasil. Na região, Americana é a cidade que concentra o maior número de imigrantes bolivianos. A maioria deles chega para trabalhar nas confecções de roupas. Uma imigrante que não quis se identificar, relata que veio ao Brasil para turismo e tinha a intenção de ficar apenas por dois meses. Porém, conseguiu emprego em uma indústria têxtil em Americana e decidiu permanecer na cidade. A jovem está há sete anos no país. “Eu gostava muito de morar na Bolívia, mas estou no Brasil pois o custo de vida é menor”, contou. (colaboraram Júlia Lopes e Carolina Prestes)

Nova Lei de Migração altera direitos e deveres A Lei de Migração foi aprovada pelo Senado em maio deste ano e traz uma série de mudanças nos direitos e deveres dos estrangeiros que vêm morar no Brasil ou que visitam o país. Antes de o documento ser aprovado, o Estatuto do Estrangeiro priorizava a segurança nacional, os interesses econômicos e do trabalhador brasileiro, além da organização institucional. Agora, o que deve ser levado em conta são os direitos humanos, sendo repudiado qualquer tipo de discriminação, enquanto o

acesso e tratamento igualitários dever ser garantidos entre estrangeiros — independentemente da nacionalidade — e brasileiros. Até então era proibido que os estrangeiros participassem de manifestações políticas e de sindicatos ou fizessem transmissões radiofônicas. Agora fica garantido o direito de reunião com intuito pacífico, associação sindical e que o imigrante tenha cargo, emprego ou função pública. Eles também têm direitos como educação, saúde, progra-

mas e serviços sociais, aposentadoria, proteção ao trabalhador, justiça, entre outros. A professora Fabíola de Oliveira conta que existem incertezas sobre os resultados da nova lei. “De forma geral, a gente está numa expectativa do que vai acontecer com a aplicação”. Com a nova lei, passa a ter direito à residência no Brasil, o imigrante, residente fronteiriço ou visitante que tenha oferta de trabalho, que já tenha possuído nacionalidade brasileira no passado, recebido

asilo, seja menor de 18 anos desacompanhado ou abandonado, seja vítima de tráfico de pessoas ou trabalho escravo, ou esteja em liberdade provisória ou em cumprimento de pena no Brasil. Todos terão de ser identificados por dados biográficos e biométricos. No entanto, a residência poderá ser negada se o interessado tiver sido expulso do Brasil anteriormente, praticado ato de terrorismo ou estiver respondendo a crime passível de extradição, por exemplo. (FJ/GM)


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SOLIDARIEDADE ACESSIBILIDADE

Leonardo César Benedito

na palma da mão

Raphael, à direita, traduz em Libras perguntas do repórter para Vinicius, à esquerda

Raphael da Silva aprendeu Libras sozinho para ajudar o amigo, portador de deficiência auditiva, nas tarefas da escola

É SEU

Leonardo César Benedito lcbenedito@outlook.com

Mariana Requena

mariana.requena.fogaca@gmail.com

Vinicius de Souza, 19, nasceu surdo e nunca estudou em uma escola especial. Ele é ex-aluno da Escola Estadual Neuza Maria Nazatto de Carvalho, instituição da rede pública de ensino regular de Santa Bárbara d’Oeste, e na qual cursou toda a sua formação escolar. O problema é que Vinicius, até a sexta série, não tinha intérprete em suas aulas, direito garantido por lei desde 2005. O processo de aprendizagem era difícil, até que o rapaz passou a estudar na mesma turma de Raphael da Silva, 19, que, ao perceber as dificuldades enfrentadas por Vinicius, se dispôs a aprender Língua Brasileira de Sinais (Libras) para ajudar o amigo. Raphael estudou a linguagem sozinho e, para compre-

Lei nº 7.853/89, de 1989

Lei nº 7.853/89, de 1999

Lei nº 10.436/02, de 2005

É crime recusar ou suspender a matrícula de um aluno por conta de sua deficiência. A lei é válida para instituições públicas e privadas. A pena para o infrator pode variar de um a quatro anos de prisão, mais multa.

A rede regular de educação deve receber e incluir alunos portadores de qualquer tipo de deficiência em todas as séries e modalidades de ensino. É prevista aplicação de multa em caso de descumprimento do decreto.

O ensino de Libras deve ser incluído como disciplina na formação de professores. Além disso, deve haver intérpretes disponíveis para alunos surdos no ensino regular. Em caso de descumprimento, cabe aplicação de multa.

Se houver transgressão de qualquer uma das leis, o Ministério Público deve ser acionado.

Divulgação Inep

Enem 2017 contou com videolibras para tradução das questões da prova

Prova do Enem oferece recurso de videolibras O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), destacou no exame deste ano a questão da deficiência auditiva. A prova de redação do Enem, realizada no dia 5 de novembro, teve como tema os “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. Nas redes sociais, grande parte dos candidatos expressou dificuldade com o tema, considerado difícil por conta do pouco conhecimento prévio sobre o assunto. Para a edição deste ano, o Ministério da Educação (MEC) ofereceu aos deficientes auditivos o recurso de videolibras, que apresenta todas as questões da

prova traduzidas para a língua brasileira de sinais. A ferramenta, ainda em fase experimental, pode ser usada para até 20 alunos por sala. Neste ano foram registrados 1.635 mil candidatos que optaram por videolibras, os quais também receberam a prova impressa, o cartão de respostas e o cartão de redação, além de terem direito a duas horas adicionais para realização do exame. Atendimentos O atendimento especializado também contemplou participantes com autismo, baixa visão, cegueira, deficiência física, deficiência intelectual, déficit de atenção, discalculia, dislexia, surdocegueira e visão monocular. Dentro de uma política de

inclusão, o Inep também ofereceu atendimento específico para gestantes, lactantes, idosos, estudantes em classe hospitalar. No Enem 2016, 101.896 participantes solicitaram atendimento específico e 68.907, atendimento especializado. Recursos de atendimento foram demandados por 18.306 participantes. Até a edição passada, era possível fazer esse pedido durante a prova, o que não será mais aceito. No ano passado, 7.131 deficientes auditivos e 2.290 surdos fizeram o exame. Juntos, eles representaram 0,1% do total de inscritos. O recurso de tradutor-intérprete de Libras foi solicitado por 3.562 participantes e o de leitura labial, por 1.624. (Informações do Ministério da Educação)

ender Libras, emprestou livros de Vinicius sobre o assunto e conheceu as letras do alfabeto, com as quais podia soletrar as palavras. Quando tinha dúvida sobre como sinalizar algo, perguntava ao amigo, aumentando aos poucos o seu vocabulário. Na época, Vinicius também não era muito fluente na língua, então acabaram aprendendo os sinais juntos. Após algum tempo, o governo do estado ofereceu um curso de Libras para intérpretes, professores e alunos interessados. Porém, segundo Raphael, o curso não era muito bom, pois partia do princípio de que o estudante já sabia alguma coisa da linguagem, que não é fixa e nem universal. “O que vejo hoje na rede pública em relação à acessibilidade, de forma geral, é a falta de artifícios, tanto para que os deficientes aprendam novas habilidades, quanto para que os interessados em ajudar aprendam a fazer isso”, afirma. “A Libras é considerada língua oficial brasileira, então é necessário que ela seja incluída nas escolas”. Com o tempo, a escola passou a oferecer intérpretes para Vinicius, porém, segundo ele, a adaptação era difícil e os profissionais eram trocados sempre a cada dois anos, o que fazia o processo de ajustamento ser iniciado novamente. A Secretaria de Educação do Estado informa que essas trocas ocorreram devido ao fim do contrato de trabalhos dos tradutores, sendo alguns temporários na rede, mas que a diretoria de ensino que atua na cidade, antes mesmo do fim do contrato, providenciou outro profissional para substituir aquele que deixava o cargo. A rede estadual de São Paulo, que possui 5.200 escolas, conta hoje com 1.370 professores interlocutores de Libras, segundo a secretaria.

Escola tem estrutura improvisada para atender aluno com macrocefalia Segundo o Censo Escolar de 2016, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 57,8% das escolas brasileiras têm alunos com deficiência ou transtornos globais do desenvolvimento incluídos em classes comuns, porém menos da metade dessas escolas, apenas 23,3%, têm dependências e vias adequadas a alunos com deficiência ou mobilidade reduzida. Karen Leme, 24, é estagiária em pedagogia na Prefeitura de São Pedro e atua auxiliando professores em turmas que têm alunos com necessidades especiais na rede de ensino regular. Atualmente, Karen trabalha na escola Emeb Professora Adriana Daniel como cuidadora de um aluno de cinco anos, portador de macrocefalia, uma alteração em que a cabeça da criança é maior do que o esperado para a idade, e que pode gerar sequelas cerebrais como atraso mental, epilepsia e alterações musculares que dificultam a locomoção. De acordo com ela, a criança possui pouca mobilidade nas pernas e necessita de um andador adaptado com rodinhas para se locomover e, ainda que bem atendido pelo Atendimento Educacional Especializado (AEE), Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), psicólogos e fonoaudi-

“Não existe em São Pedro, além da Apae, uma escola preparada para receber alunos portadores de deficiência” óloga, existem dificuldades no espaço físico da escola, como mesas e colheres adaptados ou pias que ele consiga alcançar. “O garoto tem que utilizar o banheiro feminino da escola, pois é o único com trocador e ele necessita de fraldas. Além disso, ele encontra dificuldade em andar dentro da sala de aula, que é pequena, sem esbarrar em mesas ou colegas”, conta. Apesar disso, os funcionários sempre buscam uma solução para a criança, seja adaptando mesas ou torcendo colheres para que ele consiga utilizá-las. De acordo com a funcionária, as crianças também têm forte papel na inclusão do aluno, já que buscam integrá-lo às atividades e convivência. A lei nº 11.700, de 2008, assegura que a criança deve estudar em uma escola pública próxima

à sua residência a partir dos quatro anos de idade, e a criança em questão estuda na escola de seu bairro. “Não existe hoje, em São Pedro, além da Apae, uma escola completamente preparada para receber alunos portadores de deficiência, ainda que seja direito deles, por lei, frequentar a rede regular de ensino e que essa seja adaptada para recebe-lo”, diz ela. Auxílio Segundo a Secretaria de Educação da Prefeitura de São Pedro, a escola recebeu em 2017 verbas para solucionar as questões de acessibilidade. O repasse, recebido antes da criança começar a frequentar efetivamente a escola, foi utilizado para a compra de uma cadeira de banho, um assento redutor para vaso sanitário, jogos pedagógicos e alfabeto adaptado. “O Atendimento Educacional Especializado atende atualmente 79 crianças com 10 psicopedagogas e presta apoio a todas as escolas da rede municipal”, afirma Maria de Fátima Giacomeli, supervisora de educação inclusiva. “A parceria da prefeitura municipal através da Secretaria de Educação está gradativamente atendendo as crianças que necessitam de estimulação e gerando observações de encaminhamento para a rede pública de saúde”, finaliza. (LB e MR)


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Marcas do passado RESSOCIALIZAÇÃO

Fora da prisão, homens encontram dificuldades para conseguir vagas no mercado de trabalho em meio a 13 milhões de desempregados no Brasil; país tem a quarta maior população carcerária do mundo Anúncio de emprego atrai dezenas de homens à região central de São Paulo; crise econômica diminui oferta de trabalho em praticamente todas as áreas

Carolina Prestes dos Santos carolinaprestes.model@gmail.com

O Brasil é o quarto país com a maior população carcerária do mundo, o que indica uma necessidade maior de empregabilidade e ressocialização daqueles que já cumpriram a pena e hoje procuram por oportunidades, que são poucas. Segundo dados do Ministério da Justiça, disponibilizados em 2014, a população carcerária brasileira cresceu 400% em 20 anos, totalizando 711.463 deten-

tos, dos quais parte tenta mudar de vida e encontrar um espaço na sociedade tão logo acerta as contas com a Justiça. “Voltar ao convívio com a sociedade e conseguir um emprego foi muito difícil, pois as pessoas não aceitam o seu passado, ou melhor, a vida que você já teve”, diz o ex-presidiário Wagner José, 25. Leila de Souza, analista de RH da empresa Asserh, diz que a procura de ex-presidiários por emprego, pelo menos na empresa onde ela trabalha, não existe. “Aqui nós não temos a procura, Cesar Itibere/Fotos Públicas

Programa faz apelo por vagas a ex-presidiários O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou o Portal de Oportunidades, uma página na internet que reúne as vagas de trabalho e cursos de capacitação oferecidos para presos e egressos do sistema carcerário. As oportunidades são oferecidas tanto por instituições públicas como entidades privadas, que são responsáveis por atualizar o portal. A iniciativa é mais uma etapa do Programa Começar de Novo, criado pelo CNJ em 2009 para estimular a abertura de vagas de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e egressos do sistema carcerário. No início deste ano, depois que uma onda de brigas entre facções

criminosas deixou dezenas de mortos em presídios das regiões norte e nordeste, o presidente Michel Temer (PMDB) anunciou investimento de R$ 30 milhões para ampliar o Começar de Novo. Quando participou do anúncio de ampliação do programa, o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, não informou de onde sairão os R$ 30 milhões, mas disse que a meta do governo é beneficiar 15 mil detentos com qualificação profissional. Por meio do Começar de Novo, os tribunais de Justiça estaduais promovem ações de qualificação e firmam parcerias com empresas visando a reinserção profissional de detentos. Dados do CNJ mos-

Valter Campanato/Agência Brasil

Ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, participou do anúncio do investimento de R$ 30 milhões no Programa Começar de Novo

tram que 16.622 vagas de emprego foram criadas pelo projeto desde 2009, mas somente 11.828 foram preenchidas.

Cartilha Os presidiários de todo o país contam com mais uma ajuda fornecida pelo CNJ: a produção da Cartilha da Pessoa Presa e a da Cartilha da Mulher Presa. Os livretos contêm conselhos úteis de como impetrar um habeas corpus, por exemplo, ou como redigir uma petição simplificada para requerimento de um benefício. Esclarecem ainda sobre deveres, direitos e garantias dos apenados e presos provisórios. As Cartilhas, além de estarem disponíveis no portal do CNJ, são distribuídas pelo grupo de monitoramento e fiscalização do sistema carcerário dos estados. Para as empresas que oferecem cursos de capacitação ou vagas de trabalho para presos, egressos, cumpridores de penas e medidas alternativas, bem como para adolescentes em conflitos com a lei, o CNJ outorga o Selo do Programa Começar de Novo. (Fonte: Agência Brasil)

As pessoas não aceitam o seu passado, ou melhor, a vida que você já teve” sabemos que existem empresas que oferecem oportunidade para os que estão em presídio, mas para aqueles que já saíram é bem difícil, por isso acho que nós nunca tivemos procura”, analisa. Já Nayara da Silva, da empresa SBO RH, diz que tanto a procura quanto as oportunidades para ex-detentos são raras. “Já tivemos a procura, apesar de ser muito pouca, mas as oportunidades para essas pessoas são muito difíceis”, comenta. Para o sociólogo Rodrigo Telles, um aspecto a ser considerado é que boa parte dos presos é pobre, sem escolaridade. “Se para quem já tem alguma formação é difícil encontrar emprego, imagina para quem não tem nenhuma capacitação”, ressalta. Desse modo, o sociólogo acredita que a ressocialização deveria começar no momento em que o indivíduo foi preso, não apenas quando sai da prisão, já que não encontrando um espaço, as chances de voltar à criminalidade são grandes. A psicóloga Juliana Andriolli diz que pensar na ressocialização

e empregabilidade para ex-presidiários é considerar que cada sujeito se constitui em um universo particular, mas que as formações moral, social, cultural e emocional dependem da construção coletiva. Ainda assim, Wagner José conta que muitas vezes, ao procurar um emprego, ouviu um não como resposta, mesmo apenas ao tentar entregar o currículo. “Uma vez quase perdi um emprego quando me pediram os meus antecedentes, só não fui [dispensado] porque meu chefe me ajudou”, recorda. “Um ex-presidiário é sempre mal visto, e são raras as oportunidades. As pessoas deveriam entender que existem aqueles que realmente não querem nada com nada, mas também existem os que decidiram ser diferentes, um novo homem”, comenta. Rodrigo Telles também acredita ser essencial o apoio de amigos e familiares, e considera muito importante o acompanhamento psicológico, pois são diversos fatores que podem conduzir uma pessoa ao mundo do crime. Oportunidade O governo de São Paulo oferece um programa de apoio ao egresso do sistema penitenciário que ajuda a encontrar oportunidades para liberados definitivos e condicionais, e para adolescentes que cumprem ou cumpriram a pena. O objetivo do projeto é oferecer mão de obra qualificada e impulsionar a reintegração no estado de São Paulo.

ESCOLARIDADE DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA BRASILEIRA

53%

Se para quem já tem alguma formação é difícil encontrar emprego, imagina para quem não tem nenhuma capacitação 12%

11% 07%

06%

Analfabetos

Ensino fundamental incompleto

Ensino fundamental completo

Ensino médio incompleto

Ensino médio completo

Dados do Ministério da Justiça, em 2014

CRISE

Desemprego entre os jovens atinge maior marca em 27 anos Dados do IBGE apontam que a maioria dos jovens à procura de emprego tem entre 18 e 24 anos Carolina Prestes dos Santos carolinaprestes.model@gmail.com

Dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) revelam que o Brasil tem a maior taxa de jovens desempregados em 27 anos, sendo a maioria na faixa etária entre 18 e 24 anos. No terceiro trimestre deste ano, o número de jovens à procura de emprego nessa faixa etária chegou a 4,2 milhões, segundo dados do Ins-

tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Bruna, 21, já entregou currículo em vários lugares, mas dificilmente é chamada para entrevistas. “Na maioria das vezes, eles não chamam, pois precisa ter experiência e é difícil um jovem ter experiência, né?”, lamenta. Outra questão abordada pela jovem Luana Beatriz, 22, é que existe preconceito com os jovens que não cursam o ensino superior. “Hoje em dia até para

Pedro Ventura/Agência Brasília/Fotos Públicas

Número de jovens à procura de emprego chegou a 4,2 milhões no terceiro trimestre do ano

ser auxiliar administrativo é preciso estar cursando administração, imagino que daqui a pouco isso será exigido até para os faxineiros. Eles [empregadores] não imaginam o quanto é difícil para um jovem entrar numa faculdade”, desabafa. O empresário Sandro Neves oferece oportunidades de trabalho aos jovens, mas reconhece que grande parte das empresas não faz o mesmo para evitar a preocupação e despesa com treinamentos para os novatos. “É o que escuto de amigos empresários. Eles não querem ficar treinando. É muito mais fácil contratar alguém que já sabe fazer o trabalho”, explica.


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Site Vaidapé

Helião encontrou no rap a oportunidade para falar sobre a desigualdade social no Brasil

É uma grande estratégia simpática aos ouvidos principalmente das crianças, a maioria delas gosta” O rap na educação brasileira pode ser usado para treinar sílabas tônicas, dicção, ritmo, improvisação, criatividade, rima, música, além de trabalhar a timidez, o espírito de coletividade e o trabalho em grupo. É uma grande estratégia simpática aos ouvidos principalmente das crianças, a maioria delas gosta.

ENTREVISTA Gabriela Melo

gabi_melooliveira@hotmail.com

Laís Seguin

laisseguin50@gmail.com

Leonardo César Benedito lcbenedito@outlook.com

Mariana Requena

mariana.requena.fogaca@gmail.com

Hélio Barbosa dos Santos, 48, mano de Pirituba, bairro da Zona Oeste de São Paulo, é famoso no cenário do rap nacional e até hoje tem grande influência na nova geração de rappers e MCs. Mudou-se da Bahia para São Paulo ainda criança de colo, cresceu ao lado de sua mãe, padrasto e mais tarde de suas tias. Desde os 5 anos Helião tinha contato com a música e a vivência das ruas até se encontrar no rap. Ao lado do rapper Sandrão, Hélião criou o grupo RZO (sigla para Rapaziada da Zona Oeste). Em 1999 o grupo lançou o primeiro disco, intitulado “Todos São Manos”. Após o sucesso do primeiro disco, o RZO se tornou um dos principais grupos de rap nacional. Além de Hélio e Sandrão, o grupo foi responsável por revelar outros rappers de grande importância no meio, como Negra Li e Sabotage. Depois de alguns anos de pausa, o RZO retornou em 2015 com uma formação que inclui Helião, Sandrão, Negra Li e DJ Cia. O cantor acredita que o rap mobiliza e muda a vida das pessoas, pois a arte afasta o jovem da violência. Também ressalta que o rap na educação brasileira “pode ser usado para treinar as sílabas tônicas, dicção, ritmo, improvisação, criatividade, rima, música, além de trabalhar a timidez, o espírito de coletividade e o trabalho em grupo”. Confira a seguir a entrevista concedida pelo artista para o Jornal de Classe. Como foi a sua infância? Minha mãe, baiana de fibra, não admitia traição. Fico pensando na situação que ela viveu, pois chegou ao ponto de deixar três filhos e marido, me pegar, criança de colo, e ir embora para São Paulo. Chegamos aqui em 1970. Mas não me magoei com a classe paterna, porque tive um bom padrasto, nome feio que nem sei o que é; na verdade ele foi um pai de verdade, cuidou de mim, e teve mais dois filhos, meus irmãos, com a minha mãe. Não era rico, mas tive boa infância,

RZO é uma referência quando o assunto é rap nacional

Injustiça no Brasil é comum, mas não pode ser para nós Helião, do grupo RZO, analisa o rap brasileiro e seu poder como instrumento de luta contra a desigualdade social fui bem cuidado. Tive estudos bíblicos em igrejas perto de casa, conheci meus limites, isso fez com que ficasse vivo. Estudei até a sétima série, naquela época o ensino era melhor do que é hoje. Em qual momento da sua vida você começou a ter envolvimento com o rap e por que isso aconteceu? Não me lembro exatamente quando conheci o rap, porque o estilo veio se transformando, de certa forma sempre existiu. Quando criança, com cerca de 6 anos, cantei hinos na igreja, legal. Depois toquei tambor em uma casa espírita, a vida já confusa, rua, amizades, drogas, desemprego, mal caminho. Fiz samba na favela perto de casa, piorou mais, fiquei meio que fora da realidade, mundo de drogado. Depois fui resgatado pela família, minhas tias que eu amo, irmãs da minha mãe. Moravam na Zona Sul, tinham mais estudo, estavam mais seguras da vida em

O rap nasceu do sofrimento. É movimento de comunidade, mutirão”

São Paulo. Nessa ocasião aprendi como autodidata a tocar baixo na banda de rock do meu tio, e fiz isso por um curto tempo, um ano ou mais. Voltei para Pirituba, minha casa. Então, ia aos bailes de disco-funk em que rolavam músicas de artistas como James Brown e Brass Construction. Essa música se transformou no rap que chegou para a minha geração no cinema, mais ou menos no ano de 85, com o filme Beat Street. Então decidi que iria fazer isso. Vi que não precisaria estudar música, nem formar uma banda com amigos que tocassem, apenas comprar disco vinil instrumental na Galeria 24 de Maio, escrever a rima, ensaiar e ir para a pista cavar oportunidade. Quando começou a carreira como cantor você acreditava que o rap, enquanto instrumento de luta, fosse suficiente para mobilizar as pessoas? A crítica conseguiu dar voz às minorias? O rap como instrumento de luta mobilizou pessoas. Lembro que era sonho o PT chegar ao poder porque não tinha planos para a classe oprimida. O rap foi importante nessa conquista, que mudou a vida da maioria, o povo pobre. Essa luta em algum momento perdeu força, pois o sistema vem investindo nisso sem descanso. Nesse momento estamos trabalhando para reagrupar. Daniel Souza

Por que, de todos os gêneros musicais, ficou como responsabilidade do rap fazer essa reflexão? Porque o rap nasceu do sofrimento. É movimento de comunidade, mutirão. Tem haver com características de pessoas que fazem o rap, elas o têm como porta de saída da desigualdade. O ritmo é dançante, o som é bom, mas sempre se acha os revoltados que têm música boa e, além disso, impõem a condição de ela vir carregada com informações que as pessoas não querem, mas precisam ouvir, sobre as quais necessitam conversar e tentar resolver se quiserem ter um mundo com oportunidades para todos. A arte na comunidade pode afastar os jovens da violên-

cia? Qual é a importância da expressão cultural desses lugares, como o rap e o grafite? A arte afasta o jovem da violência. Todos que se destacam na música, grafite, skate, surf, viram tendência, se salvam e levam muitos a fazer planos, correr atrás de algo que faça bem e garanta seu futuro. Tem que haver mais investimento na expressão cultural, casas de cultura, principalmente no interior, onde há carência de eventos, mas a juventude é muito ativa, brilhante, participativa. Por exemplo, conheço meninos que cuidam da saúde para poderem andar de skate. De que forma o rap pode ser utilizado como instrumento de aprendizagem na educação brasileira?

O rap como instrumento transformador de vidas, principalmente de crianças e adolescentes, recebe o valor que merece? Muda de um artista para outro. Temos profissionais, amadores compromissados, festas. Alguns ganham bem, outros não. Cada um pensa de uma forma com relação ao reconhecimento. Penso que tenho que trabalhar, evoluir, apresentar e colocar preço em meu produto. Injustiça no Brasil é comum, mas não pode ser para nós. Qual sua opinião sobre apropriação cultural? Se um branco se identifica com o visual do rap e decide fazer parte disso, é errado que ele faça? Definitivamente não é errado. Infelizmente, problemas de exclusão social, cultural e racial têm haver com a criação. Mesmo que você não acredite, não tenha tempo, até por questão de inteligência, o melhor a se fazer é apresentar Deus a seu filho, desde pequeno. Esses limites e temores vão ajudá-lo a tomar decisões nos momentos em que ele não estiver com você, então ele entenderá o que é correto a se fazer.

Fotos: Caio Cestari

Helião se apresenta no show de lançamento do sétimo álbum do grupo RZO, no Espaço das Américas, em São Paulo


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Ilustração: Gus Centtini

Beatrís Cortelazzi Porta

Brasil está entre os 10 países mais desiguais

beatris.cortelazzi@gmail.com

Joana D’are Maria Silva de Oliveira, 23, mora com o marido, uma filha e está grávida de um menino. A família sobrevive com ganho mensal de R$ 600. Lucineia Aparecida da Silva, 40, que mora com um filho e uma filha, tem como renda única o salário de pequeno aprendiz que o filho recebe: R$ 516. Samara Marques da Silva, 26, mora com o marido e os três filhos, e vive com o bolsa família de R$ 392 e os “bicos” do marido. E na família de Katielli Izadoro Pinto, 16, que mora com o filho, o marido e a mãe dele, é o salário informal de R$ 800 que a sogra recebe como cuidadora de idosos que garante os itens básicos da casa. Essas mulheres moradoras da Comunidade do Pereirinha, em Piracicaba, têm muito em comum. Os sonhos, a luta, as dificuldades e, especialmente, a realidade. Todas retratam a desigualdade per capita no Brasil e representam o percentual da população brasileira que tem uma renda familiar mensal inferior a um salário mínimo. Pesquisa realizada pelo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2015, revela que 60% da população, ou seja, 165 milhões de brasileiros, sobrevive com uma renda inferior a R$ 1.076,20. Se somada, a renda mensal das famílias entrevistadas não chega perto do que um deputado estadual recebe apenas com o auxílio moradia. No estado de São Paulo, o salário mínimo é de R$ 1.076,20, porém esse número representa 52% a menos que a média da renda dos brasileiros (R$ 2.069,60), e é 47% menor que a média da renda dos paulistas (R$ 1.582,65). Segundo o Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba (IPPLAP), a renda per capita da cidade, em 2010, foi de R$ 912,22, ou seja, 84% do valor do salário mínimo. O contraste fica ainda maior se comparado ao salário de um vereador, R$ 11.492,96, ou de um deputado estadual, R$ 25.322 (sem considerar o auxílio moradia de R$ 2.850) ou de um deputado federal: R$ 33.763. Piracicaba tem 158 comunidades irregulares, isso equivale a 11,5 mil famílias ou 51,5 mil pessoas em situação de desigualdade social. Diante este cenário, para os moradores da Comuni-

RENDA FAMILIAR

Sob o olhar do Pereirinha

Comunidade representa percentual da população brasileira que sobrevive com renda inferior a um salário mínimo dade do Pereirinha, a principal dificuldade é a falta de comida na mesa. “Já chegou a faltar arroz e feijão. A gente só consegue fazer compra com o vale alimentação de R$ 200 de benefício do meu filho. O que é esse valor em um supermercado? Sempre falta, mas eu já passei por coisa muito pior”, aponta Lucineia. Além da renda Tal desigualdade não se dá apenas em número de dígitos recebidos, vê-se claramente na educação, na alimentação, no saneamento, nas oportunidades de emprego e no preconceito diário sofrido por essas pessoas. Por não terem endereço, quando vão se candidatar a uma vaga muitos moradores colocam outro endereço no currículo. “Tem preconceito quando a gente fala onde mora e também por causa de não ter estudado”, diz Joana. “Quando eu morava

Tem preconceito quando a gente fala onde mora e por não ter estudado” no Santa Rosa, eu nunca ficava desempregada. Faz quatro anos e meio que moro aqui e consegui uma vez emprego e era frente de trabalho”, acrescenta Lucineia. Outra queixa é o córrego que atravessa o meio da comunidade do Pereirinha que, por conta do lixo, em dias de chuva, transborda, e em dias muito secos, o mau cheiro atrai animais peçonhentos.

Educação Segundo dados de 2015 do IBGE, em Piracicaba havia 46.230 alunos matriculados no ensino fundamental, e apenas 15.396 no ensino médio. Essa diferença mostra que muitos não estudam até completar a educação básica. O Plano Nacional de Educação prevê a erradicação do analfabetismo até 2024. Todas as entrevistadas na Comunidade do Pereirinha afirmaram não ter concluído o ensino médio. Katielli Izadoro Pinto, 16, parou os estudos antes mesmo de engravidar. Lucimara, sua vizinha, que estudou até a oitava série (atual nono ano), valoriza o aprendizado. “Eu estava falando agora para ela desse negócio de estudar. Nunca é tarde, né? A gente com estudo já não tem trabalho, imagine sem estudo”. Na opinião do economista Francisco Cromodo não fal-

A gente com estudo já não tem trabalho, imagie sem estudo” ta apenas iniciativa do poder público. “Em Piracicaba, por exemplo, existe uma Secretaria de Emprego e Renda. Há muitas possibilidades de estudo e qualificação e isso tudo depende de as famílias estarem atentas e aproveitarem os programas sociais que existem. Existem muitas possibilidades para as pessoas poderem, pelo menos, estudar os filhos e qualificar”, observa.

O mapa da desigualdade, estudo feito pela Oxfam Brasil, chamado “A distância que nos une, um retrato das desigualdades brasileiras”, mostra que os seis maiores bilionários do país juntos, possuem a riqueza equivalente à 100 milhões mais pobres de brasileiros; o Brasil é o país que mais concentra renda no 1% mais rico, acarretando no 3° pior índice de Gini da América Latina (índice que mede o grau de concentração de renda em determinado grupo, ou seja, a desigualdade social), perdendo apenas para a Colômbia e Honduras. O Brasil se encontra na 10ª posição como o país mais desigual do mundo em um ranking com mais de 140 países segundo o Penud (Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Brancos ganhavam, em média, o dobro do que os negros ganhavam em 2015. Em 20 anos, o rendimento dos negros aumentou 12%, isso significa que, se mantido esse ritmo, negros conseguirão equiparar sua renda média com os brancos somente em 2089. As mulheres por sua vez, ganhavam em média 38% a menos do que um homem, em 2015. Se mantida a tendência dos últimos vinte anos, mulheres só atingirão o equilíbrio salarial com homens em 2047. Para a Oxfam Brasil, a redução da desigualdade depende da junção de diversos fatores, como: o poder Executivo, que deve priorizar o investimento público na cidade, fortalecer o papel das Prefeituras Regionais e promover políticas para a geração de oportunidades para as mulheres e jovens. O poder Legislativo, que precisa desenvolver um sistema tributário mais justo e priorizar a redução das desigualdades na produção legislativa municipal. O poder Judiciário, que deve garantir o acesso à justiça dos direitos básicos, certificando o direito à cidade a toda a população. A população, por sua vez, precisa desenvolver mecanismos eficientes de transparência, fortalecendo os espaços e dispositivos de Controle Social. Já o papel do setor empresarial é ajudar desenvolvendo políticas que ampliem a diversidade no setor privado e reduzam as desigualdades salariais nas empresas.

Raquel Soares

AJUDA

Projeto Lázaro auxilia moradores de rua

Produtos de higiene pessoal, alimentação, roupas e corte de cabelo são oferecidos quinzenalmente por integrantes de igreja evangélica Júlia Lopes Moreira julialpsmoreira@gmail.com

Inspirados pelo personagem bíblico Lázaro de Betânia, amigo de Jesus, membros da Igreja do Evangelho Quadrangular Sede, em Piracicaba, realizam quinzenalmente, às quintas-feiras, o Projeto Lázaro, destinado a moradores de rua e pessoas com dificuldades financeiras. Com a intenção de melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, a ação realizada no galpão da igreja oferece recursos de higiene

pessoal, alimentação, roupas e corte de cabelo. O projeto existe há três anos e teve início com atividades nas ruas. Atualmente, as reuniões recebem cerca de 80 pessoas, as quais chegam por indicação de amigos frequentadores ou são levadas por uma van da igreja que passa pelas praças da cidade oferecendo auxílio. Segundo Rodrigo Alves Bueno, 40, um dos organizadores do projeto, a maior dificuldade encontrada é no contato com

esses moradores de rua. “Eles geralmente aparecem com medo e por não conhecerem as pessoas, o ambiente e a forma como o trabalho acabam agindo de modo violento ou arredio. “Já houve casos de pessoas causarem brigas aqui dentro, ou até estarem armadas”, diz. Por outro lado, a esperança e a assistência que o projeto proporciona é o que mantém as doações de roupas e alimentos pelos membros da igreja. Histórias como a de Rodrigo Vicente,

Moradores de rua fazem fila para receberem roupas em projeto mantido pela Igreja do Evangelho Quadrangular Sede, em Piracicaba

53, são muito comuns entre as pessoas que participam das reuniões, pois através dela, há um ano, Rodrigo, que morava nas ruas, foi apresentado a uma assistente social e atualmente está prestes a conseguir uma casa para morar. Pedro Paulo Vilarúbia, 51, é

um exemplo de que não é necessário ser morador de rua para estar presente no Projeto Lázaro. Assim como outros frequentadores do projeto, Vilarúbia possui casa e emprego. Porém, com sua baixa renda, acaba sendo limitado a certas ações. “O meu

ganho serve apenas para pagar onde eu moro, não sobra dinheiro para a alimentação. Então, eu venho aqui e em outros projetos para poder me alimentar. Hoje em dia, se eu pago aluguel, eu não como”, conta. (Colaborou Raquel Soares)


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Gabriel Scomparin

ARTE

Retratos da sociedade Desenhos produzidos pelos alunos do segundo semestre do Curso de Tecnologia em Design Gráfico, da Unimep, em alusão às minorias

Matheus de Paula

Diego Waldez

Marcus Vinicius Crispim Miranda

Matheus de Paula

Marcus Vinicius Crispim Miranda

Heitor C. Simonetti Luan Mellega


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Dezembro/2017 • edição 09

ARTE

Minorias em cena Desenhos que participaram das últimas edições do Salão Universitário de Humor de Piracicaba/Unimep, que em 2017 completou 25 anos

José Antonio Costa, 2016

Denis Leandro Carvalho Fioravante, 2017

Suélen Becker Benitez, 2017

Alex Souza, 2016

Fabricio Rodrigues Garcia, 2014 Suélen Becker Benitez, 2017

Sunkari Preetham Paul, 2017

Alisson Ortiz Affonso, 2016

Paulo Andre Costa de Brito, 2017


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Fotos: Edson Lopes Jr/ A2AD

Falta de registro profissional ainda figura como uma das principais reclamações da categoria

da documentação que formaliza o acordo entre patrão e empregado, aliada ao tempo e ao desgaste da relação, acaba servindo como argumento para que boa parte dos empregadores deixe de cumprir suas responsabilidades. Além disso, ainda existem situações nas quais o trabalhador doméstico é obrigado a exercer tarefas que podem até prejudicar a saúde. Joana trabalha como doméstica há aproximadamente 15 anos, e durante esse período já enfrentou diversas situações de abuso por parte dos empregadores. Uma delas foi quando teve de limpar os azulejos do banheiro usando produtos que foram retirados do mercado devido ao alto risco de intoxicação para quem o manuseia. “Começava a arder meus olhos. Eu saia do banheiro sem fôlego. Até que um dia atacou uma alergia muito forte, da qual sofro até hoje”, desabafa.

CIDADANIA

Vítimas do

desrespeito à

lei

Domésticas sofrem com falta de pagamento do FGTS, não recolhimento de INSS e até problemas para receber o salário Larissa Pereira de Souza Larissasouza55@hotmail.com

* Todos os personagens desta reportagem, exceto as advogadas, foram substituídos para evitar represálias dos empregadores.

“Eles não estavam recolhendo o INSS, e como acabou minha licença maternidade, fui lá falar com eles, mas eles foram brutos comigo, disse [patrões] que iriam me demitir”. O desabafo de Carla, trabalhadora doméstica, é bem comum. Situações similares a essa afetam as domésticas diariamente. O trabalho doméstico tem uma história de importantes conquistas referentes às leis e normas trabalhistas, que buscavam equiparar esse serviço, considerado por muito tempo como atividade informal, ao trabalho regularizado, com jor-

Quando veio essa lei, muitos falaram que não tinham mais condições de arcar com os encargos e aí começaram a dispensar as empregadas

Mudanças na legislação e crise econômica levaram a muitas demissões, segundo advogada

Emenda Constitucional (PEC) das Domésticas, ou emenda constitucional Nº72/2013. A nova lei garante ao trabalhador direitos como o recolhimento do FGTS, segurança no caso de demissão arbitrária ou sem justa causa, seguro-desemprego, pagamento de horas-extras, entre outros. Segundo a advogada Joana Maria Carnio, a PEC somada à crise econômica desenhou

nada fixa, condições básicas de segurança, higiene e respeito. Essas conquistas, no entanto, mesmo que significativas, não foram suficientes para garantir mudanças efetivas no ambiente de trabalho das domésticas. A alteração mais recente na regulamentação do trabalho doméstico foi a lei complementar 150, que entrou em vigor dia 1º de outubro de 2015 e regulamentou sete pontos da Proposta de

um cenário de desestabilidade para as domésticas. “Muitos empregadores da classe média, que são os que mais contratam domésticas, estão perdendo emprego e quando veio essa lei, muitos falaram que não tinham mais condições de arcar com os encargos e aí começaram a dispensar as empregadas, teve uma demissão muito grande”, recorda. A doméstica Cristina espera

Emenda Constitucional nº 72/2013 (PEC das domésticas)

1 A jornada de trabalho do trabalhador doméstico é de 8 horas diárias e 44 semanais

2 O trabalhador doméstico tem direito a receber as horas extras trabalhadas

3

4

O empregador tem que respeitar acordos e regras coletivas

O empregador não poderá deixar de pagar o salário em hipótese alguma. Em caso de descumprimento, o trabalhador doméstico deve entrar em contato com o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da sua região

até hoje receber o valor total dos salários prometidos durante os três anos trabalhados em seu último emprego. “Recebia R$ 400 por mês e eu mesmo saí, não foram eles que mandaram embora”, recorda Cristina, que começou no referido trabalho atuando como diarista, três vezes por semana, e, depois, começou a ir diariamente como empregada doméstica, mas recebendo o mesmo salário de quando trabalhava apenas três dias da semana. Muitas vezes os empregadores deixam de cumprir exigências simples, como o pagamento correto do salário, obrigação que é prevista por lei a todos trabalhadores domésticos – aquele que presta serviço de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial por mais de dois dias por semana. Jéssica também teve que recorrer a uma advogada para receber o pagamento do último mês que trabalhou como cuidadora de idosas. Ela trabalhava aos finais de semana e feriados, com uma rotina de tarefas extremamente extensas, segundo ela. “Nos primeiros meses eu recebi direitinho. Aí, depois, ele [empregador] começou a ‘pisar na bola’, e aí, além de me dispensar, não me pagou”, lamenta Jéssica. Vínculo As dificuldades para receber o salário combinado e os demais benefícios normalmente estão associadas à falta de registro em carteira profissional. A ausência

Justiça Recorrer à Justiça para ter seus direitos cumpridos sempre foi uma dificuldade para o trabalhador, principalmente por causa do medo de perder o emprego, e o longo tempo de espera até o fim do processo. Segundo a advogada do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Piracicaba, Denizete Aparecida, as trabalhadoras do-

Fui lá falar com eles, mas eles foram brutos comigo, disseram [patrões] que iriam me demitir” mésticas, além de enfrentarem problemas comuns, enfrentam também dificuldades para conseguir fontes que confirmem as infrações do empregador e se solidarizem com a situação de injustiça. “É bem complicado apresentar testemunha, já que o trabalho dela é individual, interno, ninguém viu, ninguém ouviu. Então, nós profissionais do direito que defendemos essa categoria precisamos ter muita habilidade, paciência e um certo cuidado para que elas não venham a perder o direito que a gente ainda tenta fazer valer”, explica ela.

Agora, férias podem ser divididas em 3 períodos A reforma trabalhista (Lei 13.467), em vigor desde 11 de novembro, realiza algumas alterações na legislação, até então, em vigor para as domésticas: férias parceladas em até três períodos; que as grávidas possam trabalhar em locais insalubres, sendo afastadas somente a pedido médico; e horário de almoço, que é considerado obrigatório, podendo ser reduzido em 30 minutos caso haja uma negociação entre patrão e empregado. Além da reforma trabalhista, a reforma previdenciária (PEC

287/16), que deve ser votada pelo plenário da câmara ainda esse ano, também ocasionará grandes mudanças para a categoria. Idade mínima e o tempo de contribuição terão um aumento gradua: 65 anos para homens e 62 para mulheres e o tempo mínimo de contribuição irá aumentar de 15 até 25 anos. Mudança que afeta diretamente a categoria das domésticas na qual grande parte das trabalhadoras não são registradas e quando são, muitas vezes o empregador não realiza o recolhimento do INSS. (LPS)


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Diversidade no INCLUSÃO DOWN

mercado de trabalho Cotas garantem participação dos jovens portadores da síndrome no mundo corporativo; estudo revela benefícios para empresas e empregados; famílias temem o preconceito

Tomaz Silva/Agência Brasil

Isabella Ercolin isaersantos@gmail.com

Rafael Muniz

programarafaelmuniz@hotmail.com

A inclusão de pessoas com deficiências intelectuais, entre elas os jovens com Down, está em prática em cumprimento à obrigatoriedade de cotas, que deve representar de 2% a 5% do quadro funcional para empresa com mais de 100 funcionários. O artigo 27 da Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece os direitos igualitários ao trabalho de pessoas com qualquer tipo de deficiência. Devido à dificuldade em recrutar deficientes físicos ou sensoriais (visual e auditivo), as empresas optaram pela inclusão de deficientes intelectuais, encontrando no processo grandes resultados com jovens com síndrome de Down. Com o objetivo de inserir jovens com Down no mundo corporativo, várias entidades promovem treinamentos de habilitação. Em Piracicaba, por exemplo, a Associação Síndrome de Down desenvolve a inclusão no mercado de trabalho para os jovens acima de 16 anos. O processo começa com um grupo que passará por treinamento durante o período de 2 a 3 meses, no qual a associação trabalhará questões pessoais e, principalmente, as qualidades que os jovens mostrarão durante as reuniões semanais. “Trabalhamos os direitos trabalhistas e as relações entre o chefe”, confirma Lucas Braga, psicólogo responsável pela inclusão acrescentando que também é oferecida uma consultoria individual, na qual vão trabalhar as expectativas do jovem e também às suas necessidades, tentando oferecer opções de vagas que tenham haver com o perfil.

A pessoa não precisa ser cuidada por todos e nem excluída, ela tem que fazer parte da equipe como qualquer outro” O Espaço Pipa, também de Piracicaba, desenvolve um trabalho junto às empresas, oferecendo apoio e monitoramento no processo. Logo depois que o jovem souber em qual setor da empresa ele será incorporado,

a entidade inicia a etapa denominada como a sensibilização da equipe. “A gente propõe essa reunião, não para falar da pessoa e sim para desconstruir algum preconceito e tirar dúvidas”, explica o psicólogo, apontando que há muitas fantasias e desinformação em questão à doença. “A pessoa não precisa ser cuidada por todos e nem excluída, ela

tem que fazer parte da equipe como qualquer outro”, ensina. “Uma das principais dificuldades no processo de inclusão é em relação aos horários, pois muitos jovens com deficiência não estão habituados a cumprir determinado cronograma requisitado”, aponta a assistente social Giovana Tavares da Silva, da Associação de Reabilitação

Infantil Limeirense (Aril). Braga ainda revela que há resistência familiar na questão de inclusão ao mercado pelo medo de sofrer preconceito. “O maior problema é o excesso de cuidado que a família, em muitos casos, tem e acaba por delegar às empresas questões que fogem totalmente do ambiente de trabalho”, finaliza. Isabella Ercolin

Associação Síndrome de Down Piracicaba, responsável pela inclusão dos jovens acima de 16 anos

Profissionais do Ministério Público do Rio de Janeiro entregam panfletos informativos durante o ato na orla de Ipanema

Benefícios Estudo realizado pelo Instituto Alana junto do McKinsey & Company revela que a inclusão de pessoas com Down nas empresas pode agregar valores para a saúde operacional. E a inserção dos portadores da síndrome no mercado de trabalho é benéfica para ambos os lados. Porque ao trabalhar, esses jovens têm a chance de ter mais independência e qualidade de vida, por conta do aprimoramento das suas relações sociais, autonomia e aprendizado. Já do lado da empresa, o ganho benéfico é a habilidade de uma organização alinhar, executar e renovar-se mais rápido que seus concorrentes, que sustenta um desempenho brilhante das empresas.

Fundação promove inclusão no mercado de trabalho Instituto revela dificuldades Em Campinas também existe uma instituição responsável pela inclusão dos seus jovens no mercado de trabalho, desde 1999. A Fundação Síndrome de Down tem foco na formação do jovem para o mercado de trabalho. O programa é composto por quatro etapas. A primeira delas é a iniciação ao trabalho, que visa proporcionar em primeira mão experiências no mundo do trabalho, como relacionamento interpessoal, pontualidade, responsabilidade, comportamento adequado, elaboração de

currículos e preparação para o processo seletivo. Após esse processo, vem a vivência prática profissional, na qual os jovens são direcionados a algumas empresas formais que aceitaram colaborar e disponibilizam vagas em torno de três meses, podendo ser renovado de acordo com cada pessoa. Logo depois dessas duas novas etapas, a seguinte é a contração formal, via CLT, que funciona como uma mediação e inclusão formal no mercado de trabalho. E a última etapa é o sócio laboral, que é como uma avaliação através

de um acompanhamento em empresas parceiras da Fundação Síndrome de Down. Trampolim O Senac de Limeira oferece cursos gratuitos que buscam inserir jovens e adultos com deficiência intelectual em ambientes corporativos, como o Programa de Educação para o Trabalho (PET Trampolim). Os alunos aprendem sobre comunicação, desenvolvimento humano e pessoal, tecnologia, sistemas e processos organizacionais, atendimento ao cliente, atitude

empreendedora e visitas técnicas, caso não seja alfabetizado ainda contam com a disciplina de letramento, participam de todos os eventos organizados pelo Senac Limeira, para que haja contato com o mundo externo e possa contribuir no desenvolvimento e auto estima. O curso tem parceria com a Apae de Limeira e para se inscrever é necessário ter no mínimo 14 anos, autonomia para frequentar as aulas e vínculo comprovado com instituições especializadas em atendimento para pessoas com deficiência intelectual.

para compreender a inclusão De acordo com o Instituto Mano Down, de Belo Horizonte, que também faz o papel de inclusão profissional dos jovens com síndrome de Down, há muitas dificuldades enfrentadas no momento de incluir os portadores da doença no mercado de trabalho, sendo que os deficientes intelectuais são negligenciados em alguns momentos por conta do preconceito que a sociedade possui. Em entrevista ao jornal O

Globo, o presidente do Instituto Mano Brown, Leonardo Gontijo, comentou que as empresas já os procuraram para que o deficiente constasse no quadro de funcionários em função de cumprimento da lei de cotas, mas que não precisavam ir trabalhar. Outro caso foi que procuraram pelo Instituto em busca de um “grau menor” de síndrome de Down, uma classificação pequena e quase inexistente. (IE/RM)


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Esther Moraes

Nova etapa de luta POLÍTICAS PÚBLICAS

Um ano depois do fim da favela Zumbi dos Palmares, em Santa Bárbara d´Oeste, moradores aguardam regulamentação de cooperativa de reciclagem; infraestrutura de residencial é alvo de reclamações

Laís Seguin

Laisseguin50@gmail.com

A mudança para os apartamentos do Bosque das Árvores, em dezembro de 2016, não eliminou todos os problemas enfrentados pelos moradores que viveram 14 anos na favela Zumbi dos Palmares, em Santa Bárbara d´Oeste. Como a maioria vive do trabalho informal, e é proibido entrar na área do conjunto de apartamentos com carrinhos de coleta de recicláveis, os moradores decidiram criar uma cooperativa a quatro quilômetros de distância dos apartamentos financiados pelos governos federal e estadual, como parte do programa Minha Casa, Minha Vida. Elisabete Maria de Lima Matos, 35, conhecida como “Betinha”, está desempregada, porém tentando se integrar à cooperativa. “A principal dificuldade que enfrentamos é o desemprego. Sei que as políticas públicas dão a impressão de algo mara-

vilhoso, mas isso é uma realidade ainda distante. Aqui não entra ônibus para quem trabalhava em outra cidade ou em outros bairros. Então, além da questão da reciclagem, muitos perderam o emprego por conta disso”, lamenta. Antônio Carlos Vianna de Barros, 58, mais conhecido como Carlinhos Barros, ou Salvador do Zumbi, foi quem teve a iniciativa da criação da cooperativa em parceria com a administração pública. “A cooperativa permite que muitos ali que vivem na informalidade pudessem ter continuidade a um emprego com local próprio para trabalhar e sem as condições insalubres de ficar na rua sujeitos às intempéries da natureza, trânsito, ou aos esforços para empurrar por longas distâncias aqueles carrinhos e ter que vender a coleta para compradores que, muitas vezes, exploram os coletores”, explica. Após longo processo de tramitação de documentos e negociações, há um ano a cooperativa de trabalho dos Coletores de Reciclagem Juntos Somos Mais Fortes começou a trabalhar no pátio das indústrias Romi e ter seus primeiros ganhos financeiros. Busca-se, neste momento, regulamentar a parceria com a prefeitura e obter a cessão de uso do terreno, bem como a construção do galpão para suas atividades e, nesse sentido, os

moradores têm cobrado agilidade das secretarias de Meio Ambiente e Desenvolvimento, já que muitos cooperados estão desempregados e sem condições de honrar com seus compromissos de pagamento da nova moradia (pagamento de condomínio, água, energia e prestação da casa). A cooperativa é constituída na sua maioria pelos antigos moradores da favela Zumbi dos Palmares e outras da cidade, que também vivem em situação de vulnerabilidade social. A presidente da cooperativa é Graziela Alves Neto, 28. Ela explica que o valor para se manter no condomínio varia de R$ 120 a R$ 150. No Residencial Bosque das Árvores, os antigos moradores do Zumbi estão divididos em seis condomínios: Amoreira, Araçá, Jequitibá, Manacá, Graviola e Cerejeira.

Graziela lamenta o fato de o residencial ter sido construído longe do local onde os moradores tinham vínculos. “Nos jogaram sem preparação, sem orientação. No Zumbi tínhamos tudo, e aqui não temos nada, uma praça, um postinho ou uma escola perto. O serviço é incompleto, um abandono. Não nos sentimos incluídos na sociedade”, reclama. Origem A favela Zumbi dos Palmares – comunidade que homenageia o líder da resistência quilombola por moradia – foi estabelecida a partir de um remanejamento, em 2002, em Santa Bárbara d´Oeste. A comunidade já abrigou cerca de 250 famílias, divididas em barracos, e foi destruída pela prefeitura em dezembro de 2016. O local onde se situavam, no leste da cidade, era terreno da Igreja Metodista, e a ocupação

era irregular por se tratar de área particular. Por pressão dos moradores, a instituição cedeu a área com a intenção de que no local a prioridade fosse para a construção de moradias. No final do ano passado, no entanto, enquanto a comunidade esperava pela regularização da área e a chegada do saneamento básico, a Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), entrou na Justiça com pedido de permuta, o qual exigia de volta o terreno, em troca de a prefeitura oferecer outro para os moradores. Moradias A população foi contemplada com moradias populares no Residencial Bosque das Árvores, atrás do Parque Olaria – local totalmente oposto da cidade, e que foi motivo de indagação, pois a resolução do Ministério da Cidade ressalta que comunidades precárias ou faveladas devem

ser realocadas no entorno da ocupação e serem mantidas próximas ao seu local de trabalho, vizinhança e escolas. O terreno conta com cerca de 24 mil metros quadrados. O espaço dos apartamentos do condomínio tem 47,83m2, com dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço, sendo que as famílias têm, no mínimo, cinco integrantes. O processo se deu e a comunidade da favela Zumbi dos Palmares passou a residir em um local livre de esgoto a céu aberto e outras formas de violação de direitos que ferem a dignidade humana. Porém, a mudança não se atentou à questão da habitação sustentável, visto que muitos que ali residiam e viviam do serviço informal não poderiam levar seus carrinhos para a coleta da reciclagem, pois não haveria como acomodar esse material. Graziela Alves Neto

“Aqui não entra ônibus para quem trabalhava em outra cidade ou em outros bairros”

Trabalhadores aguardam regulamentação de parceria entre a cooperativa e a Prefeitura de Santa Bárbara d´Oeste

Apartamentos do Residencial Bosque das Árvores foram construídos longe da área onde ficavam os barracos da favela Zumbi dos Palmares

Cooperativa fortalece identidade de ex-moradores do Zumbi dos Palmares Esther Moraes

O principal objetivo da cooperativa de reciclagem é o empoderamento e fortalecimento das famílias que hoje vivem no Residencial Bosque das Árvores. Permitir, por meio do emprego, o fortalecimento da autoestima, criar no espaço de empreendimento fundos de reserva que permitam que em um futuro próximo seus trabalhadores possam ter creche, cesta básica, assistência jurídica, bem como oficinas para a consciência cidadã de que “o trabalho de todos é continuidade para a inclusão de outros que estão fora do processo”, avalia Carlinhos. Para não perder a identidade negra dos antigos moradores da favela Zumbi dos Palmares, o Movimento Negro de Santa Bárbara d’Oeste, junto com

o coletivo feminista Carolina Maria de Jesus, tem realizado atividades culturais com eles, como batuques de matriz africana, batalha de rimas, pinturas e trançar de cabelos afro. Graziela Alves, presidente da Cooperativa de Coletores de Reciclagem Juntos Somos Mais Fortes, defende que os moradores deveriam ter sido melhor assistidos pelo poder público, com cursos para geração de renda e projetos culturais como danças. “Dizem que mudamos de vida e talvez tenhamos mudado, mas se realmente mudamos, essa situação precisava acabar porque não nos sentimos prontos. Nos sentimos rejeitados porque tiraram nossa identidade, criaram novos problemas e nem tivemos escolha”, complementa. (LS)

Coletivo feminista Carolina Maria de Jesus promove atividades para fortalecer a cultura negra na cidade de Santa Bárbara d´Oeste


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ADOÇÃO

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Oportunidade de uma Andressa Antunes Mota andressaantunes.mota2@gmail.com

Daniela Borges de Oliveira dani7b.o@gmail.com

Larissa Pereira de Souza larissasouza55@hotmail.com

Vinícius Alexandre Moraes Figueiredo Viniciusfigueiredo1998@gmail.com

Com a nova estrutura de acolhimento, a reabilitação da família é mais valorizada e, quando não possível, adotantes são preparados para lidar com crianças que já trazem consigo uma história

nova vida

* todos os nomes usados, exceto o da advogada, são fictícios para preservar a segurança dos entrevistados

A aceitação e acolhimento de uma criança em uma família substituta ou adotiva é uma ação que gera grandes mudanças na vida da criança. Tanto sociais, quanto, principalmente, psicológicas. Mesmo ainda sendo um tabu, a adoção tem a capacidade de transformar não só a vida da criança, mas também a do casal, que adentrando ao universo dela, passa a ter outro olhar sobre a realidade. “Eu falo que eu fiquei grávida dia 15 de janeiro, quando eu recebi a ligação, e eu tive ele no dia 22 de janeiro de 2016”. Laura, 39, contadora e mãe definitiva de Pedro, desde o início do mês de novembro deste ano, conta como foi a adoção do filho, que à época completava 10 anos. Com histórico de adoção na família, Laura e seu marido, Marcos, 48, tiveram participação e apoio de parentes que faziam projetos antes mesmo da adoção efetiva. Apesar da mãe biológica do menino ter recorrido à sua guarda, a falta de condições dela encaminhou a criança para o atual casal, que se emociona com a construção de uma nova família. “A Justiça errou muito com ele, porque o devolveu várias vezes para a família sabendo que não tinha estrutura para recebe-lo”, revela Laura. Pedro, em meio às dúvidas que a separação com a família gerou, via uma falta de amor por parte de sua mãe biológica e não conheceu seu pai. Sua história é extensa, passando por momentos de fome, experiência com trabalho escravo e até noites passadas na rua. Depois desses momentos, Pedro passou longo período em um lar adotivo – uma das modalidades de acolhimento institucional, os antigos orfanatos ou reformatórios, que atualmente são instituições de acolhimento provisório, estabelecidas pela lei nº 8.069 de 1990, o Estatuto da Criança e do adolescente (ECA). Nela, além do lar adotivo, os abrigos, casas de passagens e

residência inclusiva, com estrutura adaptada para pessoas com deficiência, também são estabelecidos como modalidades de acolhimento institucional. O processo de habilitação para adoção de Pedro foi conturbado. Foram dois anos até o casal entrar na fila pelo atraso na realização do curso preparatório, visto que a ficha de adoção havia sido perdida. Porém, por não darem restrições na escolha da criança, desde a aceitação de

Quanto mais exigências forem feitas em relação à idade, sexo e cor da criança, mais tempo demora”

certos problemas de saúde até a idade, o tempo até conhecerem o filho foi rápido. Com a guarda de Laura e Marcos, o menino não pode revisitar a família biológica. Porém, seus pais dão liberdade para que, quando completar 18 anos, retome contato com os parentes. Para Pedro, a mãe diz: “talvez você tenha um monte de perguntas para fazer para ela (a mãe biológica), a gente vai junto com você”, conforta. Daniela Borges

Demora Mais de sete mil crianças estão cadastradas no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), e à espera delas estão mais de 40 mil famílias adotantes, como são chamadas as famílias que querem adotar. Porém, a demora em fazer a adoção acaba, muitas vezes, causando a desistência de quem pretendia adotar.

O CNA foi criado em 2008 para facilitar a adoção, mas o processo, que antes da iniciativa era lento, continuou devagar – de seis meses a dois anos – mesmo após a criação do cadastro de famílias adotantes e de crianças à espera de um lar. Um dos motivos dessa demora, segundo a advogada Paula Batista, é o nível de exigência das famílias. “A duração de um processo de adoção pode variar de acordo com o estado, comarca e até mesmo vara judicial que tramita o processo, bem como depende das exigências realizadas pelos interessados em adotar. Quanto mais exigências forem feitas em relação à idade, sexo e cor da criança, mais tempo demora”, completa a advogada.

‘Nunca proibimos ele de ver a mãe e nem ninguém da família’ Laura e Marcos se diferenciam da maioria das famílias que preferem adotar crianças de até 3 anos; grande parte das crianças à espera de uma família tem entre 14 e 15 anos de idade

Projeto prepara jovens para vida autônoma Quando completam 18 anos, os adolescentes precisam deixar as instituições de acolhimento que os acolheram devido à fragilidade ou rompimento dos laços familiares. Com a morte de uma jovem em Piracicaba, que, depois deixar o lar, encontrou na prostituição uma forma de se sustentar e se envolveu com as drogas, a Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), em parceria com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente (CMDCA) e com a Pastoral do Serviço da Caridade (Pasca) criaram a “República Acolhedora”, pois perceberam a necessidade

“A vantagem é que eles sabem exatamente o que está acontecendo”, conta a família ao comparar a adoção tardia com a preferência comum por até dois anos de idade. Em experiências como o afrontamento, ao riscar colchão com palavras contra os pais, Laura percebe uma forma de Pedro provar o amor deles. “Você risca (as palavras) e aproveita o risco e faz um desenho no colchão”, conta sobre a forma de lidar com o momento, que costuma ser motivo de devolução da criança para o Lar.

Mais de 40 mil famílias brasileiras aguardam na fila para encontrar uma criança para adoção

desses jovens estarem preparados para a vida adulta. O projeto funcionou durante 2016 e visava desenvolver a autonomia de quatro adolescentes sem um lugar para ficar. Elas participaram de rodas de conversa sobre a administração da casa e de cursos profissionalizantes para encontrarem um emprego, entre outras atividades. Daí, então, surgiu a inspiração para o “Vida Independente”, que atende adolescente entre 16 e 18 anos em situação de acolhimento institucional em Piracicaba. Segundo a estudante de psicologia da Unimep, que par-

ticipou da República Acolhedora como estagiária e agora atua no Vida Independente, Maithe Mikaella Setin, 23, a autonomia dos adolescentes em acolhimento deve ser trabalhada antes deles deixaram o lar. Pois então saem com um projeto de vida em mente e capacitados para viverem de forma independente. Maithe observa que os adolescentes precisam conhecer o mundo fora do acolhimento. “A gente ensina eles a pegar ônibus, fazer compras no supermercado, visitamos o Sesc, teatro, Engenho Central, a Unimep. Tiramos

eles da instituição”. Além disso, o “Vida Independente” também proporciona que os participantes construam um projeto de vida através de conversas sobre o futuro desligamento da instituição, e busca inseri-los no mercado de trabalho – a partir da participação deles no grupo de orientação vocacional oferecido pelo Centro de Estudos Aplicados em Psicologia (Ceapsi) da Unimep, que os auxilia desde a redação do currículo à maneira de se portar em entrevistas e como é o relacionamento dentro de uma empresa. (AAM/DBO/ LPS/VAMF)

A história de João, de Iracemápolis, também teve momentos delicados para ele e para o casal que conseguiu adotá-lo. João é um menino de um ano, que nasceu em um meio familiar um pouco conturbado. Marcia e Carlos, amigos da família biológica de João, resolveram ajudar a mãe biológica, que tinha mais dois filhos, através de pequenos gestos como levar a criança ao médico, à igreja ou até mesmo alimentar o menino enquanto a mãe biológica cuidava dos outros filhos. Nisso, João tinha sido praticamente adotado pela família de Marcia. Mas, segundo conta, o menino tinha contato com a mãe. “Nós nunca proibimos ele de ver a mãe e nem ninguém da família biológica, sempre levávamos ele pra ver ela”, recorda. No mês de abril de 2017, o Conselho Tutelar da cidade de Iracemápolis tirou a criança da casa de Marcia, levando-a

para um abrigo de menores na cidade de Limeira onde a criança ficou até novembro. O abrigo conta com cuidadoras que são chamadas de “mães sociais” e lá estavam mais cinco crianças que, assim como João, aguardavam a decisão da Justiça sobre o futuro de cada uma. Segundo Marcia, a denúncia que levou o Conselho a tirar o menino de sua casa partiu do pai biológico, que mesmo distante queria a guarda do filho. “Eles tiraram o menino de mim inventando que a mãe biológica tinha abandonado a criança aqui e tinha ido embora pra Bahia, coisa que nunca aconteceu”, conta. Durante o tempo que João ficou em Limeira, Marcia só pensava em uma coisa: no bem-estar dele, “não importa com quem, sendo com a minha família ou com a mãe biológica, eu só queria que ele saísse do abrigo e voltasse pra Iracemápolis”, desabafa. (AAM/DBO/LPS/VAMF)


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PROFISSÕES

Andressa Mota

não cheira bem

andressaantunes.mota2@gmail.com

Para manter a cidade limpa, Adriano de Souza, 44, e seus companheiros correm nas subidas, sem parar, ao carregar sacos de lixo pesados; estão expostos a perigos como cair do caminhão, ou que o veículo perca o freio e volte sobre eles. Além disso, pegar lixos com cacos de vidro expostos ou com alimentos em decomposição são outros detalhes da rotina dos garis, que Souza comenta ao mostrar uma cicatriz recente na mão direita. Como seria a cidade em que os sacos de lixo deixados na calçada pela manhã não desaparecessem, e que as garrafas pet fossem deixadas para se decompor na natureza? Os profissionais que realizam tais atividades, como o gari ou o catador de materiais recicláveis, são vistos diariamente pela população e colaboram com a manutenção da limpeza urbana. Porém, relatam que não são percebidos de acordo com a importância do trabalho que realizam. “Tem gente que olha com diferença, acha apenas que a gente está fazendo a obrigação, que é recolher o lixo”, lamenta Souza, que prestou o concurso público em 2015 para serviços gerais, mas foi chamado há seis meses em caráter de urgência para compor a equipe da limpeza urbana de Tatuí, pois a prefeitura deixou de terceirizar o serviço. As mulheres da equipe que recolhe materiais recicláveis da Cooperativa Renascer de Tatuí também relatam situações de preconceito no exercício da profissão. Há seis meses, nas

Fotos: Andressa Mota

Lembrados quando algo Garis no exercício da profissão; sociedade contemporânea não vê o ser humano por trás das funções sociais, aponta psicóloga

dias sem pegar lixo fica um caos isso aqui, se a comida ficar dois dias já está com larvas”, observa.

Coletores de materiais recicláveis e garis enfrentam preconceitos diários durante o trabalho; profissionais são desvalorizados mesmo diante da importância das funções que desenvolvem manhãs de segunda, terça e quinta-feira, elas saem logo cedo da atual sede para recolher os materiais não orgânicos, pois a quantidade de material que chegava à cooperativa diminuiu. No começo, algumas tinham vergonha de retirar os materiais recicláveis dos sacos de lixo da cidade – em regiões onde a população não tem o hábito de pensar na coleta seletiva; ou não iam quando o caminhão passava pelo próprio bairro. “Tem gente

que tapa o nariz, não olha na cara”, conta Luana Aparecida de Souza, 23, mulher trans que trabalha na cooperativa há três anos e sente no dia a dia que muitas pessoas nas ruas reagem às coletoras com repulsa. Para a psicóloga Karina Garcia Mollo, os profissionais de algumas áreas são lembrados apenas quando o serviço essencial realizado por eles deixa de ser prestado. “Uma greve de garis incomoda a cidade, o processo de

Tem gente que tapa o nariz, não olha na cara”

higienização social é perturbado e precisa ser retomado para que volte a aparente ordem social”, avalia. Karina comenta ainda que isso acontece porque a sociedade não vê o ser humano por trás das pessoas que ocupam determinados postos de trabalho. Souza conta que já chegou a ouvir reações espantosas, como: “então, você cata lixo?”. Mas ele não se deixa abalar. Tem a convicção de que contribui com o próximo diariamente. “Quinze

Remuneração Para os garis, não existe feriado. Adriano de Souza conta que nessas ocasiões os garis recebem horas-extras. Essas, assim como a insalubridade de 40% – adicional ao salário pela função expor o trabalhador a agentes nocivos à saúde –, são contabilizadas ao piso salarial dos trabalhadores de serviços gerais, R$ 991. Ele comenta ainda que, pelos riscos que a profissão oferece, esse adicional não é suficiente. Ao se lembrar do companheiro que chegou a cair do caminhão em movimento, diz que sua categoria profissional deveria contar também com o adicional de periculosidade. A psicologia Karina Garcia Mollo, ao usar como exemplo as profissões de gari ou de coletor de materiais recicláveis, observa que elas são desvalorizadas mesmo com a importância social do trabalho que realizam – principalmente no mundo contemporâneo com a lógica produção-consumo-descarte – pela fácil reposição no mercado de trabalho. “Por não ter um grau de escolaridade muito exigido, ela pode ser logo descartada e reposta por outro independente da existência ou não desse sujeito”, observa.

‘Amizade’ rende água, café, bolo e conversa na calçada Com o trabalho pesado que realiza, debaixo de sol ou chuva, a cooperada Luana Aparecida de Souza, 23, relata que em alguns dias, ao chegar em casa à noite, não consegue mexer o pulso pelo peso que arrastou no “bag” – como chama a grande

sacola que usa para armazenar os materiais recicláveis. Pelo cansaço do trabalho, as cooperadas pedem água em algumas casas, e, assim, observam que nem todos querem oferecer. Alguns moradores só o fazem em copos descartáveis, como

relata Rosana Machado, 36. Dorcas Aparecida, 40, lembra que uma amiga, ao pedir água, recebeu uma sacola de gelo arremessada de longe. Já a cooperada Josiane Machado da Silva, 31, antes de pedir água, observa o comportamento da pessoa em relação a ela. “Tem gente que nem olha na minha cara, então, eu vejo pela pessoa e peço água, porque sei que vai dar”, relata. Porém, as cooperadas também relatam que o tratamento que recebem depende dos moradores do bairro. Com alguns deles, elas chegam a manter conversas amigáveis e recebem, além da água, um cafezinho ou pedaço de bolo no meio do expediente. A psicóloga Karina observa esse relacionamento com os moradores como algo importante para que as profissionais sejam humanizadas pela sociedade. Para a psicóloga, é preciso enxergar a história de vida de cada profissional. “Você não tem que ter uma relação com o outro só pelo mercado, mas pela própria existência. Porque ele não está naquela situação à toa”, conclui. (AM)

Luana Aparecida de Souza trabalha na cooperativa em Tatuí há três anos

Josiane Machado da Silva sustenta os cinco filhos e, com o salário da cooperativa, paga para uma babá cuidar do filho mais novo

Mulher sustenta cinco filhos com salário da cooperativa Ao arrastar sua sacola pelas ruas de Tatuí, Josiane Machado da Silva, 31, conta que muitos não reconhecem a importância da sua profissão. “Falam que o meu trabalho é sujo, mas não”. A mãe que mantém sozinha os cinco filhos enfatiza: “eu tenho orgulho do que faço”. Ela e os cinco filhos passaram o mês com o salário que Josiane recebeu em julho, aproximadamente R$ 400. Lembra que precisou faltar alguns dias durante o mês anterior para resolver a documentação da visita das crianças ao pai, seu ex-marido, que está preso. Mas mesmo quando não falta, assim como as outras coopera-

das, recebe, em média, R$ 750. Pois o dinheiro arrecadado com a venda dos recicláveis é dividido entre os 30 cooperados – de acordo com o expediente de cada um, depois das despesas da cooperativa serem abatidas. Para complementar a renda no sustento das crianças, Josiane recebia auxílio do Programa Bolsa Família, mas o benefício está suspenso há quatro meses. Como relata, a filha de 12 anos precisou ir ao posto de saúde, mas o atestado médico não foi fornecido. Assim não teve o que apresentar para justificar a falta da menina na escola, como exige o programa. Com o salário do mês na cooperativa, ela ainda

paga a babá, R$ 200, que fica com seu filho mais novo, no período da tarde, quando a criança não está na escola. Sentada no banco da praça para descansar – com suas companheiras de profissão, depois de agruparem os recicláveis nos bags que o caminhão passará para recolher – Josiane calcula o valor do salário do próximo mês e reflete que não pode sair da casa do ex-marido e começar a pagar aluguel. Afinal, como ela fala, tem cinco bocas para alimentar. Mas mesmo sem a despesa a mais e com a ajuda que recebe dos conhecidos, “o que sempre acaba primeiro é o leite”, conta. (AM)


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Filipe José

GÊNERO

Luta por RECONHECIMENTO Transexuais enfrentam batalhas dentro e fora de casa para serem aceitos; processo de transição de gênero é longo e pode ser traumático

Beatriz Karoline Venancio beatrizvenancio-@hotmail.com

Filipe de Souza José Sérgio gui.filipe08@gmail.com

“Sempre pensamos no modelo de família que rejeita o transexual, mas esquecemos que em algumas vezes, mesmo que os pais e familiares apoiem o sujeito, ele próprio pode ter dificuldades em aceitar seu conflito em relação à sua identidade de gênero”, revela a psicóloga Priscila Gomes, 29. O processo de transição de gênero é longo e muitas vezes traumático. Alguns passam pela auto opressão e falta de compreensão do que acontece consigo, ao perceber não se enquadrar no padrão. Essa sujeição e discriminação presentes levam algumas pessoas a desenvolverem problemas ainda maiores, como a

depressão. Foi o caso de Daniel Gimenes, 20, que demorou cerca de dez anos para entender por que não conseguia se ajustar às suas roupas e ao seu corpo. “Aos 12 anos modifiquei meu guarda-roupa para trajes masculinos e largos, na tentativa de esconder meu corpo cheio de curvas. Só postava as selfies em que estivesse mais semelhante a um homem, e essa era uma atitude consciente, me sentia melhor assim”, conta Daniel. Foi só com o apoio dos amigos e alguns familiares que conseguiu melhorar. Há três anos começou um tratamento hormonal e se prepara para a mastectomia, cirurgia de retirada das mamas, marcada para janeiro. Conseguir aceitação pessoal é o ponto mais importante, já que outros obstáculos não seriam enfrentados sem esse ponta pé inicial. Mariá

Daniel se prepara para retirar as mamas em cirurgia marcada para o início de janeiro

Torres, 23, desde nova customiza suas roupas e tem hábitos mais femininos. Aos 21 anos colocou silicone nos seios, mas lembra que achar um profissional qualificado que aceitasse de primeira a fazer o procedimento não foi fácil. Como mulher transexual nunca teve muitos problemas com as pessoas próximas, mas o problema é exatamente com os desconhecidos. “Sempre que estou andando na rua, alguém para o carro para me perguntar o preço do programa. Nós somos muito sensualizadas”, lamenta.

Identidade Em busca de deixar o gênero de nascimento o mais distante possível, os transexuais, além de poderem optam pela cirurgia de mudança de sexo, podem alterar seus nomes sociais nos documentos. Atitude que Daniel acredita amenizar constrangimentos até mesmo na busca por emprego. No entanto, esse é um processo lento e burocrático. Dura em média um ano ou mais, pois é necessário recorrer a um processo judicial, no qual é exigida comprovação da identidade de gênero através de laudos médicos e perícias psicológicas. Nesse momento, o ideal é poder contar com profissionais que tenham a devida compreensão.

Mudança de sexo pode custar até R$ 100 mil A redesignação sexual, conhecida como “cirurgia de mudança de sexo” foi legalizada no Brasil em 2003. Para a realização, o paciente deve comprovar acompanhamento psicoterápico, por no mínimo dois anos, ser diagnosticado como transexual, ter laudo psicológico favorável e ser maior de 21 anos. Outros procedimentos comuns são a mastectomia (retirada das mamas), histerectomia (retirada do útero), redução do pomo de adão, plástica mamária recons-

trutiva (próteses de silicone) e tireoplastia (extensão das pregas vocais para mudança da voz). As cirurgias, que devem ser feitas por profissionais especializados, podem representar um problema aos interessados, uma vez que os valores são elevados. “Meu orçamento para mastectomia está em torno de R$ 8,5 mil em uma clínica particular em São Paulo”, conta Daniel Gimenes. Já a mudança de sexo pode chegar a R$ 100 mil. (BKV/FSJS).

bissexualidade

VISIBILIDADE

Precisamos falar sobre

Paulo Pinto/Fotos Públicas

Orientação sexual é a menos discutida e problematizada na sociedade contemporânea; luta por representatividade existe até nos grupos LGBT Lara Marangoni laraboopy@hotmail.com

Patrícia Amorim paty281@hotmail.com

A bissexualidade é a orientação sexual que constitui basicamente na existência de um indivíduo com desejo sexual pelos dois sexos, no entanto é comum encontrarmos no posicionamento das pessoas monossexuais, ou seja, com desejo em um sexo, diversas manifestações de discriminação contra esses indivíduos, como nas frases “bissexualidade não existe” e “isso é só uma fase”. Amanda Camolesi, 18, é assumidamente bissexual e revela já ter passado por essa situação. “As pessoas duvidam muito da minha sexualidade porque todos acham que eu preciso escolher um lado”, diz. Amanda relata que os bissexuais não têm visibilidade na sociedade porque essa não é considerada uma orientação sexual verdadeira, faz parte da crença de que só existem os extremos, ou seja, os homossexuais e os heteros. Ela diz que esse pensamento se expande dentro do movimento LGBT, e que por isso não se sente representada. “O próprio grupo LGBT privilegia os extremos, lésbicas e gays são muito mais representados do que os bissexuais”. De acordo com ela, é por estar entre os extremos que os bissexuais sofrem preconceito “por serem considerados como quem não sabe o que quer”, explica.

Além de sofrer com o apagamento social nas relações cotidianas, a mídia brasileira não favorece os bissexuais, tanto quanto os homossexuais, na questão da visibilidade. “A bissexualidade ainda não tem praticamente espaço algum na mídia brasileira, diferente da homossexualidade, o tema além de não ser abordado, não é ao menos citado”, diz Ana Luiza Leite, 19, que é bissexual e também relata ter sido questionada por conta de sua sexualidade. Beatriz Bachega, 17, diz que também não se sente representada no grupo LGBT, e muito menos na sociedade. Ela conta que nunca encontrou nada na mídia brasileira que focasse exclusivamente nos bissexuais, e como na sua família não existe ninguém que faça parte da comunidade LGBT, ela cresceu acreditando que era hetero. De acordo com ela, a bifobia existe e está presente na sociedade a partir do momento em que sua sexualidade é posta em dúvida por aqueles que não a compreendem. “A gente sofre um duplo preconceito, um por não ser hetero, outro por ser considerado confuso”, relata. Para Sarah Mantuan, 18, que também é bissexual, esse preconceito não se trata de uma bifobia, mas de uma lésbofobia, ou seja, ela diz que as mulheres bissexuais sofrem preconceito quando estão em um relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo, porém, quando

Participante da 13º Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo

promove eventos quanto à representatividade bissexual, mas que esses são sempre escassos de pessoas, portanto o real problema está na auto aceitação, pois, uma vez que isso acontecer o indivíduo vai militar pelos seus direitos e ter mais representação. “Tem espaço dentro do movimento, às pessoas que participam promovem atividades, debates, discussões e até busca por direitos, por pautas especificas, principalmente dentro da saúde. O que está carente são mais pessoas que se identifiquem quanto bissexuais, seja masculino ou feminino.”

é um relacionamento com o sexo oposto, a pessoa não sofre preconceito, pois é considerada hetero. Inclusive existe quem considera esse “lado hetero” uma vantagem para os bissexuais, no entanto Sarah argumenta que “de maneira alguma é uma vantagem você estar em um relacionamento hetero quando se trata de uma mulher, porque uma mulher estar em um relacionamento com um homem é problemático, sofre muito abuso”, avalia. ONG A ONG CASVI é responsável pelos assuntos que abordam a comunidade LGBT da região de Piracicaba, trabalhando, portan-

A bissexualidade ainda não tem praticamente espaço algum na mídia brasileira, diferente da homossexualidade

to, pelos direitos humanos com enfoque na sexualidade. Raissa Almeida, 24, é membro da ONG participando ativamente de suas ações, e foi inclusive eleita para a cadeira bissexual no conselho municipal de atenção a diversidade sexual do município. De acordo com ela, a dificuldade está na “pessoa se empoderar e se assumir naquela orientação e querer participar do movimento”, ou seja, ela diz que são organizados eventos e ações específicos para o debate bissexual, no entanto a quantidade de pessoas que participam é muito pequena, devido à relutância da pessoa bissexual se aceitar. Raissa defende que a ONG

Responsabilidade De acordo com a psicóloga e psicanalista, Disete Devera, que também atua como professora na Unimep, a questão da representatividade bissexual é um tema polêmico, contemporâneo e que demanda muita responsabilidade ética quando da discussão desse assunto. “A gente tem que se reportar a esse sujeito que sustenta uma afirmação de que ele não se vê representado, e indagar: o que a gente tá chamando de representatividade?, porque por outro lado, cada um vai ter uma posição e história diante disso”, avalia. A psicóloga afirma que para tratar desse assunto, é necessário um estudo bem aprofundado da questão. “A gente tem muita delicadeza ética de não patologizar posições subjetivas. É um risco querer responder objetivamente a questões que não são objetivas, que são da ordem da diversidade, das posições subjetivas de cada sujeito no mundo”, orienta.


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SAÚDE

esporte

Atletas sentem grande melhora na agilidade, equilíbrio, força muscular, coordenação motora e resistência física

Josi Schmidt/Agência de Notícias do Paraná

Antídoto chamado

Elas melhoram a autoestima, a autonomia, a segurança, a autoconfiança, a autoimagem, perdem o medo das coisas”

É imprescindível respeitar as limitações, adequando modalidades e objetivos pessoais. É preciso haver acompanhamento e muita atenção na hora de executar um movimento. É necessário respeitar todas as normas de segurança, evitando novos acidentes, e o mais importante: estimular sempre o desenvolvimento da potencialidade individual.

Por diversão ou competitividade, atividades físicas garantem benefícios ao corpo e à mente das pessoas com mobilidade reduzida

ngr010@alumnos.ucn.cl

Está comprovado que praticar esportes com regularidade traz inúmeros benefícios para a saúde física e mental dos praticantes, além de melhorar a qualidade de vida. Para as pessoas com deficiência, praticar esportes pode representar muito mais que saúde. Fazer atividade física tanto por competitividade quanto por diversão pode trazer ao indivíduo benefícios físicos e psicológicos.

No aspecto físico, os atletas podem sentir grande melhora na agilidade, equilíbrio, força muscular, coordenação motora, resistência física, melhora dos aparelhos circulatório, respiratório, digestivo, reprodutor e excretor, entre outros. Já na parte psicológica, o atleta terá uma melhora da autoestima, da integração social, redução da agressividade, estímulo à independência e autonomia, potencialidades, motivação para atividades futuras, desenvolvimento da capacidade de resolução de problemas, entre outras melhorias.

Nicole González

Nicole González Reyes

Marina Casini Mattus acredita que o esporte é uma forma de reinventar as pessoas com mobilidade reduzida: “o esporte está além da terapia”

Prefiro dar aulas para pessoas com deficiência, diz professor

‘Passei a dar mais valor à vida’ Thiago Schanholato tscanholato@gmail.com

Daniel Rivabem Mizuhira, 40, é professor de educação física e trabalha há 20 anos com a equipe de basquete sobre rodas na Associação dos Amigos e Paradesportistas de Piracicaba (AAPP). Ele começou o trabalho como espectador, foi escolhido quando estava no segundo ano da faculdade, e não conhecia a prática com pessoas com deficiência. O contato, no entanto, foi suficiente para o professor ter certeza de que o trabalho valeria muito a pena. “Prefiro dar aulas para pessoas com deficiência física, do que para uma pessoa que está normal, porque valorizo muito a força de vontade e o esforço de vir praticar o esporte no ginásio, apesar das dificuldades para chegar até aqui para treinar”, explica. As principais dificuldades relatadas pelos professores são em relação à locomoção dos atletas. “Há um sistema de transporte que é para trazê-los aqui, mas é insuficiente”, conta Mizuhira. No âmbito da superação pessoal, o professor observa que o fato de estar na quadra, realizando o desejo de jogar contribui para que o atleta evolua consideravelmente, independente de ganhar

Nicole González

Daniel Rivabem Mizuhira valoriza a força de vontade e o esforço dos alunos da Associação dos Amigos e Paradesportistas de Piracicaba

Há um sistema de transporte que é para trazê-los aqui, mas é insuficiente” um jogo ou não. “Eu sempre falo que nós formamos pessoas. Então, assim, independente de ganhar um jogo ou perder, é claro que eu quero ganhar, mas se isso não acontecer, eu tenho

Livro As pessoas com deficiência conseguem encontrar uma maneira de renascer no esporte. A ideia é defendida pela autora do livro “Além das Medalhas”, Marina Casini Mattus, 22. Sua motivação para escrever o livro e a escolha do tema foi porque desde pequena gostava de esportes, e as Olimpíadas de 2016 estavam próximas do período de conclusão da faculdade de jornalismo. Resultado: Marina decidiu fazer como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) um livro sobre as paraolimpíadas, pois quase ninguém falava sobre a prática esportiva por deficientes.

consciência de que meus atletas estão sendo formados como pessoas”, considera. A Associação dos Amigos e Paradesportistas de Piracicaba está à procura de crianças para formar uma equipe de basquete sobre rodas, “Além de brincar, as crianças se preparam para a vida com o esporte, para futuros empregos, entre outros objetivos de realização pessoal. O esporte melhora totalmente a vida dessas pessoas. Tudo é melhor, a mudança alcançada através do esporte é mágica”, avalia Mizuhira. (NGR)

A autora relata que ao conversar com os paratletas se deu conta de como o esporte foi um remédio para eles. Miguel Soares Paulino, por exemplo, sempre foi atleta, teve uma vida próxima ao esporte e, de repente, no auge de sua vida, aos 20 anos, ficou tetraplégico. Enfrentou um longo período de aceitação, mas o esporte trouxe um desafio para ele, uma meta para alcançar: encontrar uma nova forma de ver a vida. A professora de educação física Eline Rozante Porto, que trabalha com deficientes físicos há 25 anos, confirma os benefícios da prática esportiva à saúde das pessoas com mobilidade reduzida. “Elas melhoram a autoestima, a autonomia, a segurança, a autoconfiança, a autoimagem, perdem o medo das coisas, das pessoas e das situações novas e diferentes, entre outros”, aponta. Com o esporte, o desenvolvimento vai acontecendo de modo positivo e sem muitos traumas, porque as situações vão aparecendo e vão sendo resolvidas de modo natural e adaptado, sem dramas.

A prática de atividade física é recomendada por especialistas da área da saúde, defensores dos benefícios para o corpo e a mente. Entretanto, há quem pense não ter condições para tal, ou quem se descobre capaz, não somente de praticar um esporte por lazer, mas de participar de competições, superando limites e descobrindo um novo sentido para a vida. Aos seis anos, Sérgio Bortoletto, 37, teve que amputar a perna por causa uma trombose. “Todo mundo achou que a vida tinha acabado e a vida apenas começou de novo, encontrei o basquete, o esporte adaptado onde me encontrei novamente na minha vida. Levou cerca de um ano e meio e eu já estava no basquete e minha vida já estava tomando outro rumo, muito melhor do que antes. Eu passei a dar mais valor à vida”, reforça o hoje atleta. Antes de iniciar sua vida no esporte, Bortoletto viva dentro de casa, sozinho, trancado em seu quarto. “O basquete foi essencial para eu recuperar minha autoestima. Devo tudo

ao esporte. Graças a ele, pude fazer novas amizades, pude ver que tem gente em situação pior que eu, e, com isso, consegui me aceitar como sou”, conta. Na vida de Ana Carolina Paes Alleoni, 37, fisioterapeuta, nunca faltou atividade física. Da caminha ao vôlei, passando pela musculação e a natação, ela sempre procurou fazer algum exercício. Em outubro de 2016, porém, ela percebeu um sangramento. O histórico familiar a levou ao médico e a consulta foi agendada para dezembro. “Contei que tinha um tio, um avô e uma avó que morreram com câncer de intestino. Eu queria um exame para ver se não havia realmente nada mais sério. Então, o médico pediu a colonoscopia”, lembra. Ana Carolina realizou o exame e, no dia seguinte, recebeu uma ligação: o médico queria vê-la no hospital. Ao chegar, soube que três pólipos haviam sido identificados, sendo que um deles apresentava aspecto duvidoso. “Retirei os pólipos, foi feita a biópsia e descobri que um deles era maligno. Câncer. Foi um baque. Sou casada, tenho um filho de 11 anos, mas fui ao hospital sozinha. O mundo

caiu na minha cabeça naquele momento. Eu sou nova, nunca bebi ou fumei, e não como carne vermelha”, conta. Em janeiro deste ano, a fisioterapeuta deu início à quimioterapia. A primeira sessão foi menos complicada do que ela imaginava. O que a prejudicava eram as dores no corpo, definidas por Ana Carolina como terríveis. “Falei com o médico e ele recomendou alguns remédios, mas eu não queria me entupir de remédio. Então, ele disse para eu procurar uma atividade física, sempre respeitando meu limite. “O Lukas Bueno (treinador) é meu ex-cunhado e disse para eu fazer muay thai, praticar em meu ritmo. E aí comecei, tomei gosto e fiz inclusive uma graduação, vou fazer a segunda em dezembro”, conta. “O esporte me ajudou demais, motiva. O pessoal da academia sabe do meu problema e abraçou a causa. Eu cheguei a fazer quimioterapia e, no dia seguinte, vinha treinar. Eu passava mal, vomitava e voltava a treinar. O diagnóstico mudou minha vida, e o esporte também. Dou valor a coisas que antes eu não dava”, ressalta Ana Carolina.


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SUPERAÇÃO

Marcelo Uliana

marcelo.uliana876@gmail.com

Vinicius Figueiredo

viniciusfigueiredo1998@gmail.com

O ser humano é altamente adaptável, quanto a isso não se tem dúvidas. Com a evolução da espécie, passamos a adaptar o ambiente ao nosso redor de acordo com as nossas necessidades. Mesmo com a transformação do planeta, ainda existem aqueles que mais sofrem com a falta de adaptação para o seu jeito de viver. Seja na imensa dificuldade para se locomover na rua, ou até mesmo na quase escassa oportunidade de emprego, os deficientes são o grupo que, por fatores genéticos, fatores virais ou bacterianos, fatores neonatais ou fatores traumáticos, têm que superar o dobro de obstáculos para atingir seus objetivos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de 1 bilhão de pessoas vivam com alguma deficiência em todo o mundo. De acordo com a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), feita em 2010, 45 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência. Ou seja, 23,91% da população. Hoje em dia, com o avanço da tecnologia e da medicina, as pessoas que possuem algum tipo de deficiência podem realizar tarefas da mesma forma que qualquer outra pessoa. O esporte é uma alternativa para aqueles que buscam se superar em relação às limitações físicas. “Era complicado por minha causa. Eu tinha um pouco mais de preconceito do que as outras pessoas. Mas, com o tempo, isso foi passando”, diz Leandro Catalini, 26, que nasceu com má formação congênita dos membros inferiores. Quando criança, Catalini lutava contra o preconceito não apenas de outras pessoas, mas também dele mesmo, que se sentia incomodado pela situação. Hoje Leandro encontrou no esporte a sua redenção. O bancário já praticou tênis de mesa, natação, futsal, e hoje integra as equipes de basquete sobre rodas e atletismo da Associação dos Amigos e Paradesportistas de Piracicaba (AAPP), além

que vale Leandro encontrou no basquete sobre rodas uma oportunidade de superar sua deficiência

ouro

Diego Santillana/Líder Esportes

ESPORTE

Esforço realizado pelos atletas com deficiência é dobrado, pois além da superação física dentro das competições, os atletas precisam superar os obstáculos psicológicos Arquivo pessoal

Renata sentada em cima de um banco adaptado para a prática de arremesso de pesos e dardos

de jogar futebol com os amigos aos finais de semana. O jovem, que na infância sofria com os apelidos como ‘robô’ ou ‘perna de pau’, lembra com muito bom humor das dificuldades de locomoção que tinha quando criança, “Só ia a certos lugares no colo da mãe, da avó, ou de quem pudesse me carregar”, hoje em dia Leandro usa um skate para se locomover. O esporte faz parte da vida de Leandro desde criança. A família, mesmo sabendo da deficiência, sempre o tratou como uma pessoa normal e nunca o proibiu de praticar qualquer tipo de modalidade. Com três anos de idade, Leandro já chutava bola na parede da garagem de sua casa. Um ano mais tarde, a natação também faria parte da vida do atleta. Hoje, gerente do banco Santander em Piracicaba, Catalini diz que a limitação física não é empecilho para nenhum trabalho. “Nunca vi a minha deficiência como dificuldade, e tenho

Eu tinha um pouco mais de preconceito do que as outras pessoas. Mas, com o tempo, isso foi passando” certeza que isso me ajudou a não me acomodar. Aprendi a superar muita coisa em minha vida graças ao esporte. Como minha deficiência não me impede de trabalhar, nada mais justo que eu trabalhe e garanta o sustento da minha família” completa. Foi através das competições e das práticas esportivas do dia a dia que o atleta conseguiu vencer todos os desafios e, assim, elevar

sua autoestima. Hoje é exemplo para muitas pessoas que o acompanham em círculo de amigos, nas quadras ou na Rua do Porto. “Se hoje eu estou conquistando tudo que eu sonhei para mim quando criança, eu devo ao esporte. O esporte me ensinou que temos que fazer as coisas com muito amor e carinho, buscar vencer sempre e nunca desistir. O esporte me fez um homem, um vencedor”, completa Catalini. Medalhista Antigamente, quem sofria por alguma doença ou deficiência se “afundava” em problemas psicológicos, devido ao preconceito e à falta de inclusão. Hoje, graças às possibilidades oferecidas pelo esporte, a situação é totalmente diferente. A prática de exercícios diários ajuda na superação e no fortalecimento da autoestima dessas pessoas. Foi assim com a paratleta Renata Prestello. Quem a vê conquistando medalhas não imagina o esforço que a jovem de 26 anos teve para alcançar tamanha superação. Aos oito meses de idade, Renata quase morreu vítima de septicemia. Aos 12 anos, a atleta teve de amputar a perna esquerda. Superadas todas as dificuldades, a atleta tem uma coleção de 50 medalhas, resultado de suas conquistas no atletismo e na natação. O ingresso de Renata nos esportes começou quando a mãe da estudante leu uma reportagem publicada em um jornal da cidade. Na ocasião, a Secretaria de Esportes, Lazer e Atividades Motoras de Piracicaba oferecia incentivos e bolsas de estudos para pessoas que, com deficiência, estivessem dispostas a praticar esportes. Renata só passou a participar por insistência dos pais. Até que, em 2007, depois do primeiro campeonato disputado, se viu capaz e se descobriu na área. Segundo a atleta, o esporte ajuda no desenvolvimento psicológico das pessoas que sofrem algum tipo de deficiência. “Ajuda muito! Cada pessoa que sofre com essa mudança pode, sim, mostrar que mesmo depois de ficar paraplégico ou sofrer de outro tipo de deficiência, a vida continua”, finaliza a atleta.

Fernando Frazão/Agência Brasil

Paraolimpíada: o sonho dourado Foi em 1960, na cidade italiana de Roma, que a primeira competição esportiva internacional exclusivamente realizada para deficientes físicos foi realizada. Em sua primeira edição participaram 420 atletas de 20 países. As delegações eram formadas exclusivamente por cadeirantes. Graças ao médico alemão Ludwig Guttman, que idealizou esse tipo de competição após começar a trabalhar com os veteranos da Segunda Guerra Mundial, no ano de 1948, e participou ativamente também da edição Italiana 12 anos depois. As paraolimpíadas, que são chamadas assim devido a junção das palavras paraplegia e olimpíadas, são realizadas há mais de 50 anos. No Brasil, o esporte paraolímpico surgiu em 1958, quando foi criado o primeiro clube esportivo do gênero, o Clube dos Paraplégicos de São Paulo. Mas só na década de 80, com a criação do Comitê Paraolímpico Brasileiro, o esporte ganhou

maior estrutura e expressão. Os principais astros dessas competições, assim como os atletas olímpicos, têm uma história de superação por trás do brilho das medalhas. Muitos superaram o preconceito e a discriminação através do esporte. Apesar de representarem uma grande fatia da população brasileira, cerca de 23%, segundo censo do IBGE realizado em 2010, esse tipo de dificuldade de inclusão do deficiente na sociedade e no mercado de trabalho prejudica o lado emocional. Muitos acabam desistindo de levar a vida como antes e se entregam à deficiência, mas boa parte busca no esporte um novo sentido para vida. “O esporte em si trabalha muito na superação das dificuldades, tanto para pessoas comuns quanto para o atleta que tem deficiência”, comenta Sileno Santos, que há 15 anos é técnico do time de basquete em cadeira de roda, ADD Magic Hands, atual campeão nacional

da categoria. “O atleta que é deficiente tem que ter o dobro da vontade de um atleta normal, pois tem que enfrentar todas as dificuldades de acessibilidade para sair de casa e vir para o treino, então o lado psicológico é muito importante”, completa. A paraolimpíada realizada no Brasil, em 2016, trouxe aumento de popularidade para a categoria e mostra o quanto o país ainda precisa evoluir na ligação entre o deficiente e o esporte. Pódios Na Rio 2016 foram mais de 278 atletas, sendo 181 homens e 97 mulheres, um recorde histórico na competição, recorde também no número de medalhas conquistadas, 72 ao todo. Sozinho, o nadador Daniel Dias conquistou nove medalhas, alcançando a marca de 21 pódios na carreira. “A divulgação e a grande cobertura da mídia, e também o fato de a competição ser no país contribuíram para

Daniel Dias, maior medalhista paraolímpico brasileiro, conquistou nove medalhas na edição dos jogos de 2016

o aumento da popularidade do esporte”, completa Sileno. O sucesso de público e o sucesso de resultados chegaram aos poderosos, que anunciaram ainda mais investimentos para o esporte paraolímpico. Leonardo Picciani, então ministro do esporte, detalhou em entrevista ao site da Rio 2016, que o governo não vai precisar construir novamente centros de treinamentos em todas as regiões do país, pois já estão concluídos. “Nós

não vamos precisar construir novas instalações, mas manter funcionando as que existem. O orçamento discricionário do Ministério do Esporte para o próximo ano é maior do que para este ano”, disse à época. Estrutura O maior e principal centro de treinamento paraolímpico fica no estado de São Paulo. O espaço de 95 mil metros quadrados de área abriga treinamentos e

competições. As modalidades contempladas são: atletismo, basquete em cadeira de rodas, bocha, natação, esgrima em cadeira de rodas, futebol de 5, futebol de 7, goalball, halterofilismo, judô, rúgbi, tênis, tênis em cadeira de rodas, triatlo e voleibol sentado. Ele está dividido em 11 setores que englobam áreas esportivas de treinamento, hotel, centro de convenções, laboratórios, condicionamento físico e fisioterapia. (MU/VF)


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edição 09 • Dezembro/2017

Fotos: André Borges/Agência Brasília/Fotos Públicas

Presença masculina nas aulas de dança clássica é pouco observada nas escolas brasileiras

DANÇA

SALTANDO

preconceitos Escassez de homens em escolas de balé no país é resultado da intolerância a uma atividade considerada ‘coisa de mulher’

Bailarino é destaque na peça Don Quixote, apresentada pelo Teatro Bolshoi no Brasil, em Brasília

Raquel Soares

khell_soares@hotmail.com

Postura ereta, movimentos circulares dos membros superiores, verticalidade corporal, disciplina, leveza, harmonia e simetria são algumas das características do balé clássico. O balé nasceu na corte europeia, por volta do ano 1400 e, em princípio, somente os homens podiam dançar. Na época, dançar era um sinal de status elevado e de boa educação. O primeiro balé registrado na história é de 1489, em comemoração ao casamento do duque de Milão com Isabel de Árgon.

Benefícios da dança para o corpo e a mente João Vitor Fontana, 17, ressalta as melhorias que o balé lhe proporcionou em diversos aspectos da sua vida. “Me sinto bem, me sinto livre. Notei mudanças positivas no meu corpo, na minha mente, aqui eu me distraio, esqueço os problemas”, observa. Os bailarinos relatam vontade de crescer cada vez mais na profissão escolhida, mas a cultura do país, que não valoriza esse tipo de arte, dificulta o processo. O esforço deve ser contínuo. O mercado de trabalho do bailari-

Raquel Soares

Com o passar do tempo, a humanidade foi desconstruindo costumes, crenças e modos, e criando novos. O balé passou de expressão artística interpretada exclusivamente por homens para arte socialmente vista e estereotipada como ‘coisa de mulher’. Com medo da exposição, dos olhares tortos e do preconceito que paira sobre os homens quando descobrem o sonho de se tornarem dançarinos, muitos deles desistem ou começam a dançar mais tarde do que a maioria das meninas. Nas academias de balé espalhadas pelo país, a presença masculina nas aulas de dança clássica é pouco observada.

Encontre o sentido da sua vida, não deixem que te limitem, ouça o que pulsa dentro de você”

Bailarinos Yuri Peron e João Fontana se esforçam para ganhar espaço em um mercado muito competitivo

Não muito raro alguns homens são obrigados a abandonar o curso por pressão dos pais ou de familiares. Jussara Sansigolo, 61, proprietária do Ballet Jussara Sansigolo, tradição em dança em Piracicaba, presenciou inúmeras situações nas quais o preconceito derrotou a vontade de realizar um sonho. Ela se lembra de quando um menino de 11 anos chegou à escola trazido pelos pais, com muita vontade de dançar. A mãe, empolgada, o incentivava, mas o pai, visivelmente incomodado, perguntava se o filho teria que “rebolar” muito. “O menino entrou na sala de aula e o pai ficou olhando pelo

no é extremamente competitivo e escasso, poucos são os que conseguem fama nacional e internacional. Hoje, as artes se misturam e se complementam. Não há segregação entre a dança, o teatro, a música e as demais expressões artísticas, elas convivem juntas, em harmonia. O sapateado, dança popular espanhola, caracterizada pelo martelar rítmico dos tacões dos sapatos no chão, é o estilo escolhido por João Victor de Souza, 11, após assistir a uma apresentação. João, que há três meses descobriu-se na dança é motivo de orgulho da mãe, Juliana da Cruz, 37, que admira sua evolução em tão pouco tempo. “Como mãe eu me sinto muito emocionada e realizada, pois vi meu filho fazendo algo que eu jamais imaginaria. Ver o meu filho feliz e realizado é a coisa mais importante do mundo”, define. Os bailarinos, Yuri Peron, João Vitor Fontana e Giovanni Lucano possuem grandes ambi-

vidro. No primeiro passo dado pelo garoto, o pai ordenou que tirassem o filho dele da sala, interrompendo a minha aula. O menino chorava e pedia para ficar, mas o pai dizia: você nasceu para jogar futebol, vamos embora”, recorda Jussara. Diante desse cenário, são poucos os homens que, contra todas as dificuldades, persistem no sonho de serem bailarinos. Giovanni Lucano, 21, é prova autêntica de que balé também é coisa para homem. Giovanni começou a dançar com 15 anos, incentivado pela tia bailarina, que o apresentou a esse universo, e aos 16 anos entrou para o Cedan (Companhia Estável de Dança de Piracicaba). Desde então, Lucano se apresenta em diversos espetáculos, como “O Menino Maluquinho” e “Diário de um Banana”. Trabalhou com a dupla de palhaços Patati e Patatá, em turnê nacional que durou 18 meses. Atualmente trabalha no musical “Hoje é Dia de Maria”, em São Paulo e, além de dançar, atua e canta. “O balé é minha vida e a forma de me expressar que me faz sentir vivo”, define Giovanni, que sempre contou com o apoio dos pais. Para Yuri Peron, 21, bailarino e estudante de artes cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o balé é uma forma de adoração à Deus. “Ter alguém especial para quem dedicar a minha dança, significa muito para mim”, conta Yuri, que encontrou no balé liberdade e fuga das situações ruins pela qual passava. Final feliz Marcelo Moraes, 43, e Daiane Ribeiro, 39, conheceram-se na escola Ballet Jussara Sansigolo. Foi dançando que eles se apaixonaram e se casaram. Com formação acadêmica no exterior, hoje, de volta ao Brasil, são professores na mesma escola em que se conheceram. Lorenzo Moraes, 4, é fruto do relacionamento de 21 anos.

ções e sabem o que é preciso para chegar lá. Corajosos, desafiaram os preconceitos, e, sem fazer muito alarde, alteram mais uma vez à história do balé, composta por altos e baixos. Yuri Peron conta que, quando criança, tinha vontade de dançar e de fazer outras coisas consideradas inadequadas para seu sexo. Então, ele reprimia suas vontades e não levava suas ideias adiante por medo do que as outras pessoas pensariam. Conforme crescia, quebrou alguns preconceitos que muitas vezes existiam dentro dele mesmo, e, aos poucos, foi dando espaço para novas oportunidades em sua vida. “Temos que superar os nossos próprios pré-conceitos, porque depois que o fizermos nada mais é capaz de nos abalar. Encontre o sentido da sua vida, não deixem que te limitem, ouça o que pulsa dentro de você. Que chova preconceitos, mas eu vou continuar dançando”, afirma Yuri. (RS/colaborou Júlia Lopes).


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