Jornal
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Unimep Dezembro/2017 • Edição 08
Primeiro professor indígena da Unicamp, Selvino Kókáj Amaral fala sobre desafios e sonhos. Página 8
Ameaça de verão
Moradores da Portelinha relatam problemas na comunidade com as chuvas. Página 3
Atrativo para a terceira idade Centro Dia do Idoso desenvolve atividades em Piracicaba. Página 4
Inclusão
Grupos de voluntários fazem trabalhos de integração com comunidade surda. Página 5
PROMOTORAS LEGAIS POPULARES Movimento feminista auxilia mulheres no combate à violência e ao preconceito. Página 7
ASSÉDIO SEXUAL NO TRABALHO Quebrar o silêncio é necessário para combater o crime. Página 9
PRECONCEITO QUE POUCOS VEEM Histórias de nordestinos no estado de São Paulo. Página 16
E se ficassem
só os negros? Ensaio fotográfico evidencia que eles ainda têm pouco acesso à universidade. Páginas 12 e 13
edição 08 • Dezembro/2017
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EDITORIAL
Um para você, dois para mim... Q uando fizemos a primeira reunião de pauta do jornal, decidimos que ele teria um conteúdo temático, focado nas minorias sociais. Mas por que dar destaque a esses grupos minoritários? No papel, “todos são iguais perante a lei”, e o estado deve assegurar o direito dessas minorias, segundo o art. nº 5 da Constituição Federal. Claro que, o que temos para hoje é um sistema que favorece os grandes grupos, interessados no capital próprio e que se organizam para proteger e dar poder a um político que atenda às suas necessidades. Do outro lado, temos os grupos minoritários, que além de serem tratados de forma desigual, ainda são discriminados por diversos motivos, sejam étnicos, religiosos, de sexualidade, físicos ou culturais. Essa minoria, na verdade, é uma maioria que ninguém vê e,
portanto, vulnerável socialmente. Aquela que, muitos de nós fazemos parte e que precisa lutar para ter direito, um direito que, teoricamente, já lhe é garantido pela constituição. Somam um número tão grande de indivíduos, que são impossíveis de serem ignorados. Mas infelizmente são. Não teríamos uma matéria sobre assédio sexual no trabalho, se as mulheres fossem tratadas igualitariamente como os homens. Ela ainda é vista para muitos como a provedora do lar, o sexo frágil e o objeto sexual. Mas aí está o movimento feminista das Promotoras Legais Populares para provar o contrário. Ainda que não implementado de modo eficaz, a mulher tem seus direitos garantidos pela justiça, portanto, é necessário continuar a resistência contra os padrões vigentes estabelecidos, a fim de garantir uma vida justa e igualitária.
Também são destaque na edição as condições precárias de moradores da favela da Portelinha. Esses seres humanos parecem não se encaixar no artigo nº 6 da constituição, que prevê o direito à moradia e à assistência aos desamparados. Afinal, o que vemos são moradores esperando promessas dos órgãos públicos, enquanto estão expostos a doenças contagiosas, esgoto a céu aberto, lixo e falta de água. E assim chegamos à velha discriminação racial. Mas espera aí. Dizem que “no Brasil não existe racismo”. Será mesmo? Você já imaginou como seria nossa universidade se tivessem apenas os estudantes negros? O resultado é surpreendente e é destacado no ensaio fotográfico das páginas 12 e 13. É nesses lugares que o racismo se torna menos invisível, quando notamos a presença de negros em
espaços que não são socialmente delimitados para eles. Evidente que só não repara no racismo quem se beneficia dele. Mas para os negros, certamente, ele nunca deixou de existir. Nem só de problemas sociais este jornal foi impresso. Destacamos as boas iniciativas de trabalho voluntário para deficientes auditivos, idosos, cadeirantes e uma entrevista com o primeiro professor indígena da Unicamp, representando uma vitória contra os privilégios dos grupos dominantes na sociedade. Queremos fugir do “mais do mesmo” e trazer as histórias e realidades dos menos favorecidos socialmente. Eles são os que mais precisam de atenção, por serem discriminados e desamparados pelos poderes públicos, que infelizmente atuam a favor do privado. Deu para entender a importância dessa temática?
Expediente Órgão Laboratorial do Curso de Jornalismo da Unimep Reitor Pro Tempore Fábio Botelho Josgrilberg Diretor da Faculdade de Comunicação e Informática Belarmino César Guimarães da Costa Coordenador do Curso de Jornalismo Paulo Roberto Botão Editor Wanderley Florêncio Garcia MTB MG-06041 Editores Assistentes Lucas Lima Natália Marim Thaís Passos Repórteres Andressa Menghini Camila Angelocci Débora Bontorim Fernanda Camilo Fernanda Juliano Fernanda Toledo Gabrieli Emboaba Jacqueline Passos Letícia Ortolani Lucas Camargo Donato Lucas Lima Mariana Vale Murillo Gomes Natália Marim Sttefanie Erescov Thaís Passos Thalles Cristiano Orientação de diagramação Ivonésio Leite de Souza Ilustração Lucas Lima Projeto gráfico, diagramação e arte final Sérgio Silveira Campos (Laboratório de Planejamento Gráfico) Correspondência Faculdade de Comunicação Campus Taquaral, Rodovia do Açúcar, KM 156 - Caixa Postal 69 - CEP 13.400-911 Telefone (19) 3124-1677
ARTIGO
Inclusão das pessoas com deficiência na sociedade: avanços e desafios * Francisco Nuncio Cerignoni
H
á no mundo pessoas com deficiência desde que a humanidade existe. A deficiência, não é doença, nem castigo, faz parte da diversidade humana. Como sempre existiram foram motivo de preocupação para a sociedade. Na Grécia e em Roma antigas as crianças que nasciam com alguma deficiência eram eliminadas do convívio social. Em Sparta eram atiradas do monte Tayetos e em Roma eram despejadas no esgoto do Templo da Misericórdia. A principal política pública era o extermínio. Isso perdurou até o século VI da nossa era. Mas a sociedade evoluiu e, na Idade Média, as pessoas com deficiência deixaram de ser eliminadas e foram excluídas, vivendo solitariamente isoladas, sendo consideradas bruxas e tendo parte com o demônio.
Eram julgadas e punidas como um estorvo para a sociedade. Com o passar dos tempos essa situação feria o olhar dos poderosos da época que, num ato de piedade, as confinaram em grandes instituições de caridade ou em manicômios. Era a exclusão institucional. Até final do século XIX vivemos, portanto, um tempo de EXCLUSÃO. A sociedade continuou seu processo de evolução e no inicio do século XX, com a ampliação do estudo das ciências, notadamente com os avanços da medicina, surgiu o modelo médico da deficiência e o paradigma da integração, onde a pessoa com deficiência deveria desenvolver todas as suas aptidões físicas e intelectuais para se integrar à sociedade. É uma via de mão única – a deficiência era da pessoa e a ela competia superar sua condição para participar da vida social. No final do século XX com o
avanço dos movimentos de luta dos trabalhadores, das mulheres, dos grupos mais vulneráveis, das minorias, surge o modelo social da deficiência e o paradigma da inclusão, onde a pessoa com deficiência deve desenvolver toda sua capacidade intelectual e física e a sociedade deve se preparar para acolher essas pessoas em seu seio. É uma via de duas mãos – a pessoa com deficiência deve se preparar e a sociedade também. Agora em pleno século XXI a deficiência se tornou uma questão política. Com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, a primeira convenção sobre direitos humanos no terceiro milênio, a pessoa com deficiência agora é detentora de todos os direitos em igualdade de condições com as demais pessoas. Podemos dizer que a partir do século XX vivemos um tempo de INCLUSÃO. Mas não são poucos os desa-
fios para essa inclusão: eliminar as barreiras é o principal deles. Barreiras atitudinais, eliminando os preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminações. Barreiras arquitetônicas, eliminando as “barreiras físicas” construídas no interior e no entorno de edificações e nos espaços públicos. Barreiras comunicacionais, eliminando os entraves na comunicação entre todas as pessoas, com e sem deficiência. Barreiras programáticas, metodológicas, instrumentais e naturais que inviabilizam as pessoas com deficiência de exercerem sua cidadania. Evoluímos muito, como humanidade, na acolhida às pessoas com deficiência. Mas ainda temos um longo caminho a percorrer. * Francisco Nuncio Cerignoni, 68 anos, é engenheiro agrônomo e coordenador do Comdef (Conselho Municipal do Deficiente), além de ser deficiente físico.
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Dezembro/2017 • edição 08
Atrás da casa de Valdete Pinto de Jesus passa o esgoto a céu aberto
Quando chove na Portelinha
Moradores enfrentam problemas como esgoto a céu aberto e inundações
Natália Marim
nataliapmarim@gmail.com
Problemas como falta de galeria pluvial, ausência de local para escoamento de água, esgoto a céu aberto em 70% da comunidade, vazamentos e mato alto na favela da Portelinha, em Piracicaba, preocupam os cerca de 10,5 mil moradores que vivem em 3,5 mil barracos. A população vive em condições precárias na área, localizada entre o Jardim São Paulo e o Tatuapé, que se agravam com a chegada do período de chuvas intensas. Segundo o líder comunitário Claudenicio Ferreira dos Santos, conhecido por todos como Deco, os moradores enfrentam muitos problemas com a água das chuvas, que se empoça
formando lama e barro, o que quase impossibilita o tráfego de veículos e pedestres. “O que nos aflige mais é o transtorno no dia da chuva, época em que a situação se intensifica e vira um caos total, ninguém consegue andar. A água desce da ladeira da comunidade e invade a casa das pessoas. Estamos esperando o asfaltamento, que foi prometido no início do ano, no primeiro dia da posse do prefeito, mas todos sumiram”, disse. Por vezes, o motorista José Joaquim Silva Junior, o Tito, sai para trabalhar e chega com os pés cheios de lama na empresa. “Quando chove, fico todo sujo. Não conseguimos nem ficar em pé por conta da terra, meu filho de 10 anos chegou a cair. Fica escorregadio. Nós, moradores,
precisamos nos virar e colocar lama, pedras, para poder andar. Os carros que passam andam de lado, é muito perigoso”. Após ter sua moradia alagada várias vezes pela enxurrada, a dona de casa Vanessa da Silva Gama construiu uma mureta em frente à porta de entrada para impedir que a água entre. “Quando chove forte, é perigoso até que leve uma criança, porque aqui é área de risco. Nunca fico sossegada, então prefiro ir para a casa dos meus vizinhos”, comentou. Ela mora há sete anos na comunidade com o esposo Reinaldo e a filha de 7 anos. Ainda de acordo com o líder comunitário, durante o processo de urbanização, a Prefeitura retirou o concreto que a popuFotos: Natália Marim
lação havia colocado no terreno e instalou, há três meses, a rede coletora de esgoto, até então, em apenas 30% da favela, deixando os cascalhos soltos, o chão quebrado e o restante do esgoto a céu aberto. O trabalho foi realizado por meio do Semae (Serviço Municipal de Água e Esgoto) e teve início em 28 de março deste ano. “Para cimentar, gastamos dois caminhões de terra, cimento, manilhas. A Prefeitura quebrou a frente da minha casa inteira para fazer a rede de esgoto, que, mesmo após o término do serviço, não foi ligado. Trabalho mal feito. O odor é insuportável”, comentou a dona de casa Ana Lucia de Toledo Juliano, que mora há cinco anos na comunidade com o esposo e dois filhos, de 1 e 4 anos. Ela definiu como “descaso” a forma de tratamento do órgão público com a população. O ajudante geral Valdete Pinto de Jesus reside há seis anos em um barraco com sua mulher Graziela onde, atrás, passa o
esgoto a céu aberto. “Fica muito mau cheiro, crianças passam mal. A água transborda e carros já chegaram a cair dentro do córrego. Já apareceu escorpião, aranha, rato, em minha casa. Fora os mosquitos da dengue, pois isso vira um foco para eles”, afirmou. De acordo com Deco, no ano passado, a população já enfrentou surtos de doenças virais, como hepatite, dentro da Portelinha, devido à contaminação da água por esgoto não tratado. Ele relata sua indignação com a situação que os moradores enfrentam e espera melhorias por parte do poder público. “Nossa condição é desumana, passamos por muitas dificuldades. Somos idosos, crianças e queremos ser vistos. Somos povo de bem. Não somos tratados nem ao menos como cidadãos. Esperamos providências, pois o trabalho mesmo não estamos vendo acontecer. Não queremos resposta verbal e, sim, em forma de trabalho mesmo”, pontuou o líder comunitário.
RESPOSTA
Vanessa da Silva Gama construiu uma mureta para que a água não entrasse em seu barraco
O líder comunitário Deco implora por melhorias na comunidade
A Prefeitura informou que a urbanização da comunidade Portelinha começou no início deste ano, como primeira medida do novo governo do prefeito Barjas Negri (PSDB), quando foi aplicado lajão britado em ruas e vielas e realizada a limpeza e recolhimento de entulho, além de uma passagem com tubos para facilitar o trânsito de pedestres. O Semae já instalou 1.099 metros lineares de rede de água, que abastece as moradias da comunidade com água tratada. Também na Portelinha foram instalados 30 conjuntos de iluminação. Em uma segunda etapa, para a mesma comunidade, estão previstos mais 13 pontos de iluminação. “A Águas do Mirante fez 341 novas ligações de esgoto. Além disso, implantou 2.312 metros de rede de esgotamento sanitário. A empresa também instalou 52 poços de visita na comunidade”, informou a assessoria de imprensa da Prefeitura. Em relação à questão do esgoto a céu aberto, a equipe da Águas não localizou nenhum
extravasamento. A Águas do Mirante informou que os serviços ainda estão em andamento e que a estimativa de conclusão é dezembro de 2017. A Prefeitura, por meio da Semob (Secretaria Municipal de Obras), afirmou que será instalada uma pequena rede de galerias de águas pluviais na Portelinha. “A obra vai depender das condições do tempo. Se chover, é impossível entrar com máquinas no local. É preciso lembrar que a Portelinha foi formada a partir de invasão de área verde e que o terreno é irregular, o que dificulta a entrada de veículos e também impede algumas melhorias. De acordo com o TAC (Termo de Ajuste de Conduta) assinado no ano passado com o Ministério Público para a urbanização de quatro favelas - Três Porquinhos (Novo Horizonte), Portelinha (Tatuapé), Caiubi (Kobayat Líbano) e Sabiás -, com serviços de rede de água e esgoto, drenagem e iluminação, a Prefeitura tem prazo de seis anos para essa urbanização”, comunicou a Prefeitura em nota.
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Fotos: Lucas Lima
Alternativa para
Idosos participam de atividades artesanais propostas pelas cuidadoras
terceira idade
Uma ‘segunda casa’, a ‘creche’ para idosos tem atividades e oficinas em grupo, de segunda a sexta-feira
Lucas Lima
lcslimabr@gmail.com
A rotina dos 22 idosos atendidos pelo Centro Dia do Idoso “Irmã Maria Luigia Moschini” não é mais a mesma desde que eles entraram na entidade. Desde 8h, horário de entrada, até as 17h, quando vão embora, eles desenvolvem atividades motoras e intelectuais com os colegas, cuidadoras e oficineiros, que melhoram a qualidade e o estilo de vida do grupo da terceira idade. Inaugurado há três anos, o Centro Dia do Idoso funciona como uma ‘creche’, que recebe os idosos cadastrados no projeto, financiado pela Prefeitura e inspirado do programa “Amigo do Idoso”, do governo do Estado de São Paulo. De acordo com Magali Santos, assistente social e coordenadora da instituição, Piracicaba foi pioneira na iniciativa. Cláudia Ferreira é uma das cuidadoras e relata o dia a dia dos idosos na entidade. “Eles chegam às 8h e tomam o café da manhã, depois fazem o despertar (um alongamento). Quando não há oficineiros, somos nós, cuidadoras, quem damos a eles as atividades. Às 9h30, fazem outro lanchinho e em seguida retornam para as atividades. Às 11h30, eles almoçam e vão para o descanso —alguns gostam de dormir e outros preferem ficar aqui no salão. Eles retornam às 13h30 para outro despertar e continuar as atividades; fazem outra pausa às 14h30 para comer alguma coisa e, por fim, às 16h30, eles tomam a sopa, para ir embora” conta. Os trabalhos desenvolvidos pelas cuidadoras envolvem atividades pedagógicas, jogos, pintura, costuras e artesanato. “Eles fazem brincadeiras, boliche, bambolê, ajudam a colar, a fazer fuxico [artesanato]. Uma
coisa ou outra sempre tem a mão deles”, comenta Magali. As atividades do Centro Dia do Idoso também são direcionadas para as datas comemorativas, como Dia dos Pais e Dia das Crianças, por exemplo. “Eles estão fazendo um palhacinho que será entregue para as crianças de uma creche. Daí a Prefeitura cede o ônibus para eles levarem as lembrancinhas”, cita Cláudia. Além das atividades da instituição, as oficinas também ocupam o tempo dos idosos no Centro Dia do Idoso, como é o caso da “Musicalização para a terceira idade”. O projeto da musicista Rafaela Mafaldo ocorre todas as terças e quintas-feiras, das 14h às 16h. “As atividades que eu desenvolvo trabalham a coordenação motora, a memória, o trabalho em grupo. Incentivam a tocarem um ao outro. É um pouco voltado para o lúdico por parecerem atividades para crianças, por serem algo prazeroso. É uma forma de trabalhar a música como diversão, lazer”, alega Rafaela. As oficinas têm uma rotatividade de três meses e são aprovadas e supervisionadas pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. O Centro Dia do Idoso também tem uma parceria com a Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Atividades Motoras, que envia um responsável pelas atividades de educação física com o grupo da terceira idade. Às quartas-feiras, uma fisioterapeuta voluntária atende o grupo e, quinzenalmente, às sextas-feiras, é realizada a oficina de autoestima, de acordo com Magali. Oficinas realizadas durante a semana, trabalham várias áreas do corpo do grupo
“Segunda casa” Enedina Silva, de 81 anos, foi a primeira a entrar na entidade —frequenta há três anos. Ela diz que a filha lhe apresentou o Centro Dia do Idoso por precisar trabalhar e não poder ficar sempre com a mãe. “Eu gosto daqui porque a gente faz amizade, tem os colegas. Aprendi artesanato; tem um quadrinho em casa que eu fiz”, diz. Francisco Balduino, de 82 anos, está satisfeito com a instituição. “É muito bom aqui, é animado e todo mundo respeita todo mundo. As cuidadoras tratam bem a gente. Quando eu chego aqui, é o mesmo que estar entrando no céu”, afirma. Ele passou a frequentar a entidade há um ano e três meses porque os netos tinham que trabalhar. “Eu vou ficar sozinho em casa? Eu não, é mil vezes aqui!”, ressalta. No Centro Dia do Idoso há dois anos e nove meses, Luzia Medeiros, de 80 anos, conta que a filha lhe apresentou a entidade e ela gostou do lugar. “Eu venho aqui três dias por semana, de van, e acho maravilhoso. Falo que essas cuidadoras são minhas filhas, por uma beleza que são. É uma delícia ficar aqui, o pessoal é muito bom
e nunca tive encrenca com ninguém. A gente faz ginástica, dança, artesanato; em casa eu fico só bordando e assistindo à TV”, relata. A caçula da instituição é Lúcia Elias, que tem 74 anos e está lá há três meses. Sua filha, Solange Elias, de 55 anos, comenta que a trouxe porque quer a mãe —que sofreu de AVC (acidente vascular cerebral)— ativa. “Se ficar em casa, ela só vai ficar na frente da televisão, mas aqui tem muitas atividades que vão ajudá-la a trabalhar com a cabeça e ela está apaixonada”, fala. Questionada sobre a mudança de Lúcia, Solange afirma ter sido “ótima”. “Agora ela chega em casa e conta o dia dela inteiro. Por estar cansada, só espera o horário do jantar e depois vai dormir”, cita.
COMO FUNCIONA? Em Piracicaba existe apenas uma unidade do Centro Dia do Idoso, com capacidade para 30 pessoas. O Cras (Centro de Referência de Assistência Social) é responsável pelo cadastramento, que visita o idoso para verificar a situação dele, depois envia o relatório ao Centro Dia do Idoso, que procura novamente o interes-
sado, em seguida, ele passa por uma avaliação geriátrica para analisar a saúde mental e verificar se está apto a cumprir as atividades diárias da entidade. O encaminhamento do idoso também pode ser realizado pelo Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) ou PAD (Programa de Assistência Domiciliar).
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Fotos: Letícia Ortolani
A inclusão do
surdo sociedade na
Grupos realizam trabalho voluntário para incluir a comunidade surda Letícia Ortolani tihortolani@gmail.com
Quatro grupos desenvolvem trabalhos voluntários junto a surdos em Rio Claro, Santa Bárbara d’Oeste, São Pedro e São Paulo. O objetivo é incluir a comunidade deficiente em diversas atividades, por meio da interpretação e tradução em Libras - Língua Brasileira de Sinais. Existem 9,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva no Brasil, segundo dados do Censo de 2010, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A Libras é um sistema linguístico de natureza visual motora com estrutura gramatical própria, utilizada pelas comunidades surdas, oficializada na lei 10.436/02 e no decreto 5.626/05. O grupo Mãos de Fada, de São Paulo, surgiu do trabalho de interpretação de contos do português em Libras, no principal festival de contação de histórias em São Paulo. Thalita Passos, psicóloga e especialista em tradução e interpretação de Libras e Português, e Patrícia Torres, atriz e produtora, desenvolveram este projeto especialmente voltado para as crianças que não tinham acesso a este tipo de cultura. Patrícia conta que “o grupo viu a necessidade de tornar os contos acessíveis para crianças surdas, assistindo uma narração de histórias na sua língua,
De repente, me vi querendo me comunicar e estar inserida no meio deles” Náthaly Moura dos Santos
a Libras”. De acordo com as responsáveis pelo Mãos de Fada, elas perceberam a importância de contribuir no resgate da tradição de contação de histórias e na divulgação da Libras, tudo por meio da arte. O repertório é bem diversificado, desde histórias de encantamento ou dos irmãos Grimm, até temas sobre inclusão e contos brasileiros. As integrantes do grupo Mãos de Fada despertaram o interesse em Aline Cardoso de Moraes, que nasceu prematura e com deficiência auditiva. Em meio aos gestos e sorrisos, a jovem conta: “Eu vi o teatro na minha língua, a Libras, e isso é muito importante. E eu tive uma ideia, vou fazer isso futuramente”. Em São Pedro, a história se repete. Gediane Tenório, que se especializou na linguagem dos sinais, explica que sentiu o desejo de passar adiante os conhecimentos adquiridos. No espaço cedido pela Escola da Família, ela e um grupo de voluntárias realizam trabalhos voltados à comunidade surda.
Náthaly Moura dos Santos, tradutora e intérprete de Libras e uma das voluntárias, teve o primeiro contato com a língua na faculdade, durante uma breve apresentação teórica sobre o tema. Em 2014, ela participou de um grupo de estudos do programa Escola da Família, um curso básico da linguagem. Náthaly conta: “foi onde me apaixonei pela língua. A didática que a professora Gediane Tenório usava durante as aulas era cativante, assim como a própria língua”. Ao longo dos anos, por frequentar eventos ligados à cultura surda, a jovem pode conhecer outros deficientes. “De repente, me vi querendo me comunicar e estar inserida no meio deles”, explica. Náthaly pretende se aperfeiçoar na linguagem. “A inclusão ainda é precária, apenas vemos pessoas falar sobre como a inclusão é precisa, mas poucos de fato exercem a cidadania de forma correta, sem julgar a capacidade que cada um possui”, afirma.
Uma iniciativa de inclusão da comunidade surda acontece no meio religioso. Em Rio Claro, a Igreja Batista da Paz, há cerca de três anos, conta com a colaboração do intérprete Diego Rocha Stefani. “Acredito que foi algo que Deus me escolheu para fazer”, declara. Outra motivação do intérprete foi conhecer a história de uma jovem surda que frequentou a igreja por três anos, porém nunca conseguiu entender o que era dito durante as reuniões. Relata que ela quis
até procurar uma outra igreja onde houvesse a interpretação. De acordo com Diego, atualmente quase dez pessoas desenvolvem a interpretação da Libras em Rio Claro. Existe também uma associação de surdos que promove ações e eventos em prol dos deficientes auditivos. Segundo ele, um problema que impede as pessoas de aprenderem a Libras é a timidez, pois é uma linguagem totalmente visual, requer movimentos corporais, além de estar sempre se inovando.
Grupos interagem no Sesc Piracicaba. No alto, Patrícia Torres e Thalita Passos em contação de histórias em Português e Libras
Na Paróquia São Sebastião, em Santa Bárbara d’Oeste, existe a Pastoral do Surdo. Verônica dos Santos Silva França, uma das voluntárias, formada em Pedagogia e pós-graduada em Libras, explica que é muito importante que o deficiente se sinta inserido e acolhido pela sociedade e, especialmente, pela igreja. Outra motivação é a evangelização da comunidade. “A intenção de evangelizá-los é justamente para ajudá-los a não se perderem no mundo, levando a eles o caminho, a verdade e a vida que é Jesus”, diz . Atualmente, já são cinco intérpretes envolvidos no Pastoral do Surdo. Todos os entrevistados afirmaram que a inclusão social da comunidade surda ainda é um tema que deve ser muito questionado, levando em consideração que na prática ela é extremamente fraca. São poucos os intérpretes da linguagem de Libras. “A inclusão (da comunidade surda) é importante nas escolas, prefeituras, hospitais em todos os lugares”, defende Diego Rocha Stefani.
Crianças assistem contação de histórias: acesso a conteúdo cultural
Vida pós-ocupação
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Elenilda Santos da Silva em frente a nova moradia
Os moradores que esperaram por anos para mudar de endereço, finalmente conseguiram e relatam a nova vida Fernanda Juliano da Silva fer_julisilva@hotmail.com
As últimas famílias que viviam na ocupação Zumbi dos Palmares, localizada na zona leste da cidade de Santa Bárbara D’Oeste por mais de 15 anos, mudaram para o bairro Jardim Santa Fé em 2011 e para o condomínio Bosque das Árvores em 2016. Elenilda Santos da Silva, Manuel Francisco Pedro, Kátia Regina Coti e Débora Raiane da Silva de Oliveira, estavam entre os diversos contemplados às novas moradias. O loteamento Jardim Santa Fé foi sorteado a famílias que viviam na ocupação Zumbi dos Palmares, e entregues em 2012. Ao todo foram 109 unidades habitacionais, de 175 m2 murados. A construção foi fiscalizada pelo Ministério das Cidades, por meio do órgão gestor do contrato, a Caixa Econômica Federal e pela Prefeitura de Santa Bárbara d’Oeste. Já o Residencial Bosque das Árvores é um empreendimento de interesse social financiado pelos programas Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, e Casa Paulista, do governo do estado de São Paulo e é destinado às famílias com renda mensal de até R$ 1,6 mil. As 1.320 moradias, com 48 m2 foram a solução para boa parte da população que morava na ocupação Zumbi dos Palmares, e também moradores que viviam em áreas consideradas de risco. Devido ao preconceito por conta da localização, Elenilda
Família Silva enquanto aguardavam pela nova moradia, em maio de 2016
Santos da Silva, 22, colocava o endereço da fábrica que trabalha em currículos, cadastros médicos e onde mais precisasse. “O povo discriminava muito, achavam que todas as pessoas que moravam lá, eram pessoas que não prestavam. Se você falava que morava no Zumbi, as pessoas já não tinham boa visão disso”, relatou. A família da jovem também teve problemas com chuvas, riscos de desabamentos, lamaçal dentro de casa e animais peçonhentos caminhando pelos cômodos. Mas tudo mudou a partir de dezembro de 2016. A família Silva realizou o maior sonho desde que chegaram da Bahia há 11 anos, ter a casa própria. A felicidade está estampada no
rosto de cada um dos familiares. Agora, morando em um apartamento feito de tijolos e não mais de restos de madeiras, todo pintado, decorado, com dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço, é o que Elenilda chama de lar. Conhecem a segurança de ter uma casa e o medo de chuva, lama dentro de casa, animais peçonhentos, já não existe mais, a vida para eles mudou, e a gratidão também os acompanhou. Muito apegada à religião, Elenilda sempre menciona o quanto foi abençoada com a nova moradia, e não tem do que reclamar. O mesmo aconteceu com Kátia Regina Coti, 40, que chegou por volta de 2003 na antiga ocupação e ali teve os cinco filhos,
mas viu a realidade mudar com a mudança de endereço. Na ocupação, já teve o barraco tombado pela chuva, presenciou invasão policial quando estava sozinha com as crianças, teve que matar animais peçonhentos e muitas outras situações extremamente desagradáveis que ninguém deseja passar. Mas com a inscrição no programa do Governo Federal, “a vida mudou”, afirma. A segurança agora é real, assim como os outros moradores também ressaltam. O medo de chuva, animais peçonhentos e invasão domiciliar por policiais, já não faz parte do dia a dia da família Coti. De três cômodos em um barraco, a família passou para um apartamento com quatro cômodos e um banheiro. “Eu não via a hora de mudar, ali (ocupação Zumbi dos Palmares) eu sofria demais, molhava tudo, minhas crianças não dormiam, era muito difícil ali”, relatou Kátia. Prestes a completar um ano morando no novo apar-
tamento no Residencial Bosque das Árvores, ressalta o quanto a mudança foi importante, na questão de segurança, lazer e bem estar. Agora os filhos podem brincar ao alcance de seus olhos, a tranquilidade é maior e não dormem mais com chuva dentro de casa. O filho mais velho de Katia, assim que eles mudaram, ficou extremamente feliz e até questionou-a: “mãe, agora não vai pingar mais na nossa cabeça, né?”, relatou Katia. Já Débora, 26, que é vizinha de condomínio de Kátia e Elenilda, não viu a ocupação como um grande problema, durante os seis anos que morou lá. Até preferia o antigo endereço, por conta da localização e do espaço que as crianças tinham para brincar. “Foi uma ansiedade tremenda pra poder mudar logo, mas também depois que mudou, vivia com vontade de voltar pra lá”, relatou Débora. Anos de ocupação trouxeram para a família Oliveira um comodismo maior. Fotos: Fernanda Juliano da Silva
Ela só ressalta que uma casa de tijolos é mais segura em relação a chuvas e a animais peçonhentos, mas o pequeno espaço no condomínio para as crianças brincarem, a falta de privacidade e de interação com os vizinhos e a localização afastada em que o residencial encontra-se, não favorecem em nada. “Dificuldade que tem aqui é se tem que sair a pé daqui pra ir lá em cima no mercado. Lá (ocupação Zumbi dos Palmares) tudo era perto”. Mas apesar de não gostar do endereço atual, está aprendendo a se acostumar. “Tá sendo bom, porque é uma coisa que Deus deu pra gente, então a gente, querendo ou não, tem que acostumar e ir levando”, disse. A família de Manuel Pedro, 40, teve a sorte de mudar um pouco mais cedo. Há cinco anos, tiraram suas coisas do antigo barraco de quatro cômodo e um banheiro, e foram para uma casa no bairro Jardim Santa Fé, ainda na zona leste, localizado ao lado da antiga ocupação. Por oito anos, eles presenciaram e participaram de muitos acontecimentos dentro da ocupação Zumbi dos Palmares. Manuel foi da associação de moradores, e conseguiu levar ao local, algumas melhorias que não seriam possíveis se não houvesse muita luta. Em 2012, a família foi contemplada e a partir dali tiveram sua própria casa, com sala, quarto, cozinha e banheiro com laje pré-moldada. “Muda muito, porque você tá saindo de um barraco pra uma casa. Hoje, graças a Deus, eu não tenho nada da casinha que ganhei, tudo eu fiz de novo”. Nas casas do Jardim Santa Fé, os moradores tiveram a liberdade de mudar a estrutura e construir da maneira que quisessem. A família Pedro atualmente mora em um sobrado com 205 m2 A vida muda completamente após a saída de uma ocupação para uma residência própria. Dificuldades estão presentes em todos os lugares, mas em uma ocupação, elas triplicam de tamanho. Porém, apesar dos apesares, todos ainda lembram das antigas moradias e resgatam momentos bons que viveram, e as lembranças ruins, deixam de lado. A lição de vida que Elenilda, Katia, Manuel, Débora e tantos outros moradores levam da ocupação Zumbi dos Palmares, é eterna.
O povo discriminava muito, achavam que todas as pessoas que moravam lá, eram pessoas que não prestavam” Elenilda Santos da Silva
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Fotos: Débora Bontorim Saia
MULHERES defensoras Promotoras Legais Populares desenvolvem cursos abertos para capacitação de mulheres no combate à discriminação e no acesso aos seus direitos
O curso é gratuito e tem duração de um ano
As PLP’s chegaram em Águas de São Pedro em abril deste ano, por iniciativa de Daniela Zampieri (esquerda)
Débora Bontorim Saia debora.bontorim@gmail.com
Com o objetivo de compartilhar experiências sobre acesso à justiça e aos direitos das mulheres, o movimento feminista Promotoras Legais Populares chegou a Águas de São Pedro em abril de 2017, por iniciativa de Daniela Zampieri, atual coordenadora do movimento na cidade com Pillar Rondelis. Os cursos acontecem todas as quintas-feiras e abordam temas variados que auxiliam e empoderam as mulheres, lutando contra a opressão. Coordenado pela União de Mulheres de São Paulo, o projeto nasceu em 1993, com o primeiro curso realizado pela organização Themis – Gênero e Justiça (RS), em Porto Alegre. Um ano depois, a União de Mulheres de São Paulo apresentou o seminário “Introdução ao Curso de Promotoras Legais Populares”, com participação de 35 lideranças de estados diversos. Desde então, se espalhou pelo país. Atualmente, o site das Promotoras Legais contabiliza 5 mil promotoras formadas. O curso de PLPs tem duração de um ano e, ao final, as participantes se tornam novas promotoras. As palestras realizadas durante este período capacitam as mulheres a prestar orientação, aconselhar e promover intervenções para disseminar o conhecimento sobre justiça e direitos das mulheres. “O curso pode ajudar inclusive no fim da violência contra a mulher, ainda mais em um país como o nosso em que o feminicídio cresce assustadoramente. Capacita as participantes para a garantia de uma vida justa e igualitária, livre da violência, seja ela qual for”, argumenta Daniela. Além disso, segundo o site do movimento, o projeto ainda atua no acompanhamento de casos, fortalecimento de campanhas contra a impunidade e promoção de debates e seminários. O projeto foi o primeiro a propor a criação do Juizado Especial para os Crimes de Violência de Gênero, em 1998. Ana Bomtorin, participante dos cursos em Piracicaba, auxiliou Daniela a levar o projeto para Águas de São Pedro. Ela destaca a importância do movimento para o fortalecimento feminino. “Quanto mais jovens as mulheres
tiverem acesso e conhecerem seus direitos, mais empoderadas e fortes elas se tornarão, evitando armadilhas do patriarcado em seu caminho”, afirma. “Minha participação no curso foi curta, porém muito intensa e me dá forças para lutar por muitas coisas para que as próximas gerações não precisem passar pelo que passamos”, diz Ana. Daniela conheceu o movimento por meio de uma colega de trabalho. “Na época, atuava como psicóloga no Centro de Referência de Assistência Social. Minha colega falou brevemente sobre o curso e disse que eu tinha o perfil para participar”, relata. “Fiz o curso em Piracicaba, com a primeira turma de 2016. Senti então uma necessidade de trazê-lo para Águas de São Pedro”, afirma Daniela. Em Águas de São Pedro, o curso tem de sete a 11 participantes assíduas. Daniela conta que o número se modifica conforme a disponibilidade das mulheres durante os encontros, que acontecem uma vez por semana na Escola Municipal de Tempo Integral Maria Luiza Fornasier Franzin. Por ser uma cidade pequena, a existência de movimentos como este ganha maior destaque. “Um movimento feminista na cidade é fundamental, ainda mais em uma cidade conservadora, machista e patriarcal como a nossa. Importante também para que as mulheres acessem seus direitos nas áreas de educação, saúde, assistência social e segurança, reivindicando do poder público”, fala a promotora. Sandra Chiavini conheceu o curso em conversas com Daniela, cerca de oito meses antes de o curso ter início em Águas de São Pedro. “Logo depois de conhecer o movimento, tive um problema de abuso em casa e com isso fiquei ainda mais motivada a participar do curso, em busca de impedir que mais ‘manas’ passem pelo que passei”, compartilha Sandra. Além de encontrar apoio com o curso, a futura promotora enxerga no movimento uma maneira de esclarecer direitos das mulheres e ampliar o conhecimento. “A diferença em relação a outros movimentos feministas, é que as PLPs tratam de diversidade cultural, racial e política em um universo de agregar conhecimento. A
partir disso, espero que possamos trazer mais segurança e apoio a mulheres em situação de risco e abusos emocional e sexual, além de oferecer esclarecimento”, completa. Piracicaba Em Piracicaba, as PLPs chegaram há mais de 20 anos, com iniciativa de Amélia Teles, integrante da União de Mulheres de São Paulo. O primeiro curso foi ministrado entre 1996 e 1997, mas não atingiu a duração de um ano, necessária para a formação de novas promotoras. Em 2016, o movimento foi retomado na cidade e formou 20 PLPs. Atualmente, o curso é realizado aos domingos e conta com a participação de 20 mulheres. Silvana Veríssimo, promotora legal formada em Piracicaba, destacou o suporte do curso no combate à violência. “O Brasil é o quinto país no mundo onde mais se matam mulheres, mesmo após a efetivação da Lei Maria da Penha e da Lei contra o feminicídio. Vivemos em uma sociedade machista, temos um atraso cultural que precisa ser revisto; os brasileiros precisam ser reeducados”, argumenta Silvana. O contexto em Piracicaba, segundo Silvana, não é exceção. “É uma cidade machista, conservadora e racista, com altos índices de violência contra as mulheres, por isso é fundamental termos vários movimentos feministas na cidade. Precisamos cobrar dos órgãos públicos a implantação das políticas direcionadas às mulheres”, discorre. Segundo o portal de noticias G1, a violência contra mulheres em Piracicaba cresceu 34% entre 2015 e 2016, conforme dados da Guarda Municipal. Em 2016, a Guarda atendeu 51 casos e no ano anterior, foram 38 ocorrências. A Guarda Municipal implantou a Patrulha Maria da Penha em maio deste ano para atender ocorrências de mulheres vítimas de violência. Segundo dados divulgados pela Guarda, a equipe, composta por oito guardas civis, já contabiliza 3.955 rondas periódicas realizadas e a prisão em flagrante de dois agressores. A patrulha também recebe medidas protetivas, empregadas depois das denúncias de agressão com o objetivo de garantir a proteção das envolvidas.
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Fotos: Antoninho Perri/Unicamp
‘Vou levar para minha aldeia’
Selvino Kókáj Amaral é o primeiro índio a ministrar aulas na Unicamp e pretende levar o que aprender para sua aldeia
Murillo Gomes
murillocgomes@hotmail.com
Acostumado a lecionar para crianças do ensino fundamental de aldeias no Rio Grande do Sul, Selvino Kókáj Amaral enfrenta, no segundo semestre deste ano, o maior desafio de sua vida. Ele se tornou o primeiro professor indígena em toda a história da Unicamp, onde vai ensinar kaingang, sua língua materna, a alunos de Línguistica da universidade. Amaral aprendeu português aos 12 anos, quando começou a frequentar uma escola fora da Terra Indígena do Guarita, local onde nasceu, no noroeste do estado gaúcho, a cerca de 500 quilômetros de Porto Alegre. Apesar disso, a língua não foi uma barreira na hora de lidar com os universitários, mas sim a relação com “o homem branco”. “Conviver com o homem branco, pessoas não-indígenas, foi um impacto. Para falar a verdade, não me caiu a ficha ainda de que estou em uma das maiores universidades do Brasil. Estou levando tudo no modo mais modesto possível”, relata o professor.
Apesar do desafio, ele não se intimida com as diferenças culturais enfrentadas no dia a dia. “Eu sei quais são as minhas origens e posso fazer tudo o que o não-indígena faz, sem deixar de ser índio”, afirma. InDiomas Em maio deste ano, a Unicamp lançou um edital para selecionar oito professores interessados em lecionar durante um semestre para cursos de graduação da univer- s i d a d e .
Através do convite do grupo InDIOMAS, que trabalha com o conhecimento de línguas indígenas e de sinais na relação entre universidade e sociedade, ele foi um dos aprovados para o “Programa Professor Especialista Visitante em Graduação”. Hoje, ele é um dos responsáveis pelas disciplinas Línguas Indígenas I e Tópicos de Línguas Indígenas. Além das aulas, que são introdutórias, Amaral ministra palestras e trabalha no desenvolvimento de um di-
cionário da língua kaingang, projeto tocado desde 2013 pela universidade e que ganhou força com a chegada do nativo. “É mais um desafio que me faz crescer como profissional, ajuda com a minha formação”, diz. Em Guarita, Amaral cresceu ao lado de seis irmãos. Durante a infância, segundo a cultura dos kaingang, o jovem é preparado para ocupar o lugar do pai. “Pensando na lógica de que o pai vai ficando mais velho e um jovem tem disposição para
isso, ele vai substituir o pai em vários aspectos, como trabalhar e cuidar da casa.” Dessa maneira, ele aprendeu cedo a fazer artesanato, cuidar da colheita e dos animais e, principalmente, a sobreviver com o que a mata o oferecia. “A gente tem a cultura da gente, e ela é bem tradicional. Eu sempre vivi através da caça, pesca, coleta de frutas. Praticava esportes correndo
no mato, correndo atrás de galinha, de cachorro, caçava passarinhos, atirava com arco e flecha”, relembra. Convites Atualmente, Amaral mora com um casal de professores na cidade universitária. Ele diz que tem recebido diversos convites para atuar em outros cursos superiores, mas que após a conclusão do projeto, prevista para o fim de dezembro deste ano, o desejo é “retornar para as origens”. “Eu sei que os alunos não vão aprender totalmente o kaingang, mas isso tudo é uma troca. O que eu aprendo aqui hoje, também vou levar para minha aldeia, e são esses os meus planos”, diz o professor. De acordo com o último levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia cerca de 820 mil indígenas no Brasil. Destes, 502 mil eram habitantes de áreas urbanas. O mesmo levantamento registrou 274 línguas indígenas e 305 diferentes etnias no país.
Espíritas relatam casos de discriminação Religiões afro-brasileiras Sttefanie Erescov sttefanie.reis@gmail.com
Centros de religião espírita kardecista enfrentam preconceitos quanto desenvolvem trabalhos sociais de auxílio à comunidade. Faltam doadores e também recursos. Idely Maria Soares, ex-tesoureira do centro Allan Kardec de Nova Odessa, conta as dificuldades de encontrar doadores de fora da comunidade espírita, e acredita que a grande causa é a intolerância religiosa. “Muita gente está mais preocupada com os “achismos” do que é a doutrina em vez de ajudar o próximo” relatou. O centro possui um programa de auxílio a mães solteiras de baixa renda, um projeto de amparo a pessoas desabrigadas e também realiza a entrega de cestas básicas para a comunidade carente da região. Idely ressalta que os projetos poderiam atender mais pessoas
se a sociedade deixasse os preconceitos de lado e se dispusesse a ajudar. “Aqui a gente não pede nem pra quem recebe o auxílio muito menos para colaborador seguir a doutrina, você tem total liberdade religiosa e ainda pode, sim, ser voluntário”, declarou. Além de obterem respostas negativas na hora da arrecadação de fundos com empresários e com a comunidade novaodessense, o centro espírita também enfrenta obstáculos, gerados pela falta de tolerância, na hora de oferecer ajuda. “Eles não entendem muito bem que o intuito é só ajudar, várias vezes não aceitam as doações. Nunca faríamos mal a alguém que a gente quer ajudar” concluiu. Jaqueline Nunes frequentadora da casa espírita Caminho de Damasco, também em Nova Odessa, relata o obstáculo que ocorre anualmente durante a tradicional Festa das Nações da cidade.
Muita gente deixa de consumir na barraca do centro espírita por preconceito mesmo” Jaqueline Nunes “Muita gente deixa de consumir na barraca do centro espírita por preconceito mesmo, todo ano o boato de que fazemos trabalhos de magia com a comida servida ressurge a sempre abala um pouco as nossas vendas” conta. O centro espírita participa da festa municipal há mais de dez
anos e utiliza a receita obtida para desenvolver os projetos de auxílio, ajudar casas irmãs, como a Allan Kardec, e manter as instalações da entidade. Além disso o Caminho de damasco promove chás beneficentes, venda de caldos e bingos enquanto o Centro Allan Kardec realiza anualmente a sua venda de pizzas, ambos com a finalidade de arrecadação de fundos. A religião espírita Entende-se por religião espírita aquela que vem dos ensinos dos espíritos. A religião espírita kardecista consiste nos ensinamentos de origem espiritual traduzidos e repassados à sociedade por Allan Kardec. Segundo dados do IBGE, o número de pessoas que se declaram espíritas cresceu cerca de 65% entre os anos de 2000 e 2010. Há 7 anos, 3,8 milhões de pessoas no país se identificavam com a religião.
sofrem preconceito Lucas Camargo
lucscamargo@yahoo.com.br
Os recentes casos de ataques aos terreiros de Umbanda e Candomblé colocam as religiões afro-brasileiras em destaque quando o assunto é preconceito. A situação em nossa região não é diferente. “São cristalinos o preconceito e a intolerância, além de constantes as violações de templos religiosos”, afirmou Linda de Sá, que participa de um templo de Candomblé em Americana há 17 anos. Uma vez que a maioria dos terreiros não possui identificação visual, a religião só vem à tona após o início da sessão com o som do atabaque e divide a opinião de vizinhos. Luzia Montagnani, vizinha de um terreiro em Sumaré, afirmou que ficou assustada nas primeiras sessões, mas hoje não se inco-
moda. “Ficamos assustados, não conhecia e pensava que era algo ruim, mas depois de conversar com os membros, entendi que faz parte”, afirmou. Já o vizinho Antonio Marco Carvalho, ainda tem receio com o terreiro. “Acho estranho isso de receber espíritos e o barulho, mas parece que não fazem mal pra ninguém”, pontuou. A mãe de santo Edna já se acostumou com as especulações. “Infelizmente, não são todos que compreendem a ação da Umbanda e nossos rituais. Alguns tentam olhar através do portão, outros possuem medo e preferem não saber o que acontece dentro do centro. Falta muita informação”, lamentou. Segundo dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 697 casos de intolerância religiosa foram denunciados de 2011 a 2015.
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Camila Angelocci
o silêncio Casos de assédio sexual no trabalho só se tornam públicos depois de muito tempo. Procuradora orienta mulheres a denunciar
Camila Angelocci
camilaangelocci@hotmail.com
O presidente dirigia palavras obscenas e de muito baixo calão. Falava sobre sonhos e desejos relacionados comigo” Luciana (nome fictício)
Nos últimos cinco anos, o Ministério Público do Trabalho, recebeu 64 denúncias de assédio sexual em empresas da região de Campinas. De janeiro a agosto deste ano, o MPT-Campinas recebeu nove denúncias de assédio sexual. De acordo com a procuradora do trabalho da sede regional em Campinas, Danielle Masseran, os números se mantêm constantes, com uma média de 12 denúncias por ano na região atendida pela sede. Apesar de os números se manterem constantes, é necessário que a população se mantenha alerta, para que os casos de assédio não sejam negligenciados. Para poder tomar uma atitude a respeito, é preciso que a vítima saiba caracterizar o assédio sexual, muitas vezes confundido com o moral. Atitudes que constrangem, como cantadas e insinuações, com o objetivo de obter favorecimento sexual, caracterizam este tipo de assédio. “O assédio sexual ofende a
honra, a imagem, a dignidade e a intimidade da pessoa. Mas em relação ao moral, se destaca pelos seguintes requisitos: presença do assediado e do assediador, conduta sexual, necessidade de rejeição por parte da vítima e necessidade de uma relação de emprego ou de hierarquia”, afirma o advogado trabalhista Aparecido Inácio Ferrari de Medeiros, especialista em casos de assédio sexual e moral em ambientes de trabalho. Apesar de os episódios de assédio sexual no ambiente de trabalho não serem incomuns,
muitos relatos só se tornam públicos após um longo período do acontecido. O medo e a falta de amparo fazem com que as mulheres não busquem ajuda no momento do assédio. É o caso da administradora de empresas Inês (nome fictício a pedido) que sofreu assédio sexual aos 21 anos, ao ser contratada para trabalhar em uma multinacional alemã. “Em determinado momento, o meu chefe começou a me chamar na sala dele e contar que não se dava mais com a esposa, umas conversas estranhas. Eu Marcos Santos
Marina Ruzzi, advogada especialista na defesa de vítimas de assédio sexual no trabalho Camila Angelocci
fiz de conta que não estava entendendo, pois não queria perder o emprego. Na época, não contei para meus pais, nem para meu noivo, porque não queria escândalo, afinal, morávamos no mesmo bairro”, declara Inês. Inês não é um caso isolado, já que muitas mulheres deixam de denunciar por vergonha ou alguma intimidação do empregador. Danielle explica que a dificuldade de provar a prática, muitas vezes, também dificulta a denúncia. “É importante que a vítima se encoraje a denunciar. Essa é a única forma de encerrar o ciclo de abuso nas relações de trabalho”, ressalta a procuradora. Quando não encerrado o ciclo de assédio, o único desfecho encontrado pela vítima, na maioria dos casos, é a demissão. Com Inês não foi diferente. Após três meses de trabalho, deixou o emprego.“Em quem iriam acreditar? Numa novata com três meses de serviço ou num gerente conceituado, com vários anos de trabalho? A gente se sente impotente e vem aquele pensamento absurdo: será que eu agi de alguma forma que deu abertura para que isso acontecesse?”. Para reverter os casos de assédio sexual no ambiente de trabalho, é necessário que as empresas criem um espaço institucional de denúncias, como afirma a advogada Marina Ruzzi, especialista na defesa de vítimas de assédio sexual no trabalho. “É importante que ela [a empresa] fiscalize o ambiente de trabalho - por meio dos seus supervisores e em especial através do setor de Recursos Humanos - para verificar a ocorrência desse tipo de situação”. A auxiliar administrativa Luciana (nome fictício) sofreu assédio sexual ao trabalhar como secretária da diretoria de uma grande cooperativa de serviços, há 11 anos. “O presidente me dirigia palavras obscenas e de muito baixo calão. Falava sobre sonhos e desejos relacio-
A vergonha e o medo de intimidações do empregador fazem com que as mulheres não denunciem os casos de assédio
nados comigo. Foram quatro anos assim”. Luciana, diferente de muitas mulheres que sofrem em silêncio, contatou a assistente social da empresa. Entretanto, por medo de ser demitida, pediu sigilo e não denunciou o caso. “Tinha medo de uma batalha de quem falava a verdade, porque não tinha provas”. A falta de provas é outro ponto que desmotiva a trabalhadora no momento da denúncia. Como explica Marina, “os assédios costumam acontecer ‘às escuras’. “Por isso, é importante tentar anotar os dias em que ocorrem os abusos, as palavras usadas e indicar testemunhas. Como colegas de trabalho nem sempre se sentem seguros para testemunhar contra o empregador, vale dizer que é possível inclusive gravar (com o celular mesmo) esse tipo de abuso (quando for verbal), pois é possível utilizar esse tipo de gravação como prova”, afirma a advogada. Para mudar o cenário dos casos de assédio sexual, é necessário que a população se conscientize. “É importante que o combate à prática seja divulgado, que campanhas de conscientização sejam empreendidas. O MPT, o Judiciário e demais órgãos de proteção estão atentos no sentido de responsabilizar e punir os empregadores que cometem esse tipo de ilícito. Mas, acima de tudo, a vítima deve dar um passo à frente e denunciar”, explica a procuradora Danielle. Vale salientar que além de uma atitude condenável, assédio sexual é considerado crime. De acordo com a cartilha “Assédio Moral e Sexual no trabalho”, produzida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, tal ação é considerada crime pela Lei nº 10.224, desde 2001, com pena prevista de um a dois anos. Tão importante quanto os avanços na legislação, está a necessidade de que a vítima se encoraje, não se intimide e aceite que a denúncia é a única forma de mudar o cenário de assédio no ambiente de trabalho.“Quebrar essa cultura de silêncio e realizar a denúncia é um passo importante para que consigamos mudar a desigualdade de gênero nos ambientes de trabalho”, orienta Marina.
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Fotos: Mariana Villiotti Vale
do Mariana Villiotti Vale marivilliotti@gmail.com
A preparação acontece durante nove meses e cada mulher imagina o seu parto de uma maneira. Quando o momento finalmente chega, algumas mães passam por contratempos e sofrem de violência obstétrica. Esse termo tem sido cada vez mais divulgado, porém, se reconhecer como vítima pode ser mais complicado quando a parturiente não conhece os seus direitos durante o nascimento do seu filho. Segundo a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado” realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, cerca de uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. “Desejo para as mulheres aquilo desejo para mim: partos respeitosos, com a natureza agindo e cheios de amor. Dessa forma, é importante que as mulheres conheçam cada vez mais seus direitos e sejam muito bem informadas durante a gestação para questionar e ter voz ativa durante seu trabalho de parto”, conta a enfermeira obstétrica Camila Casagrande Mela. A partir do momento em que a parturiente entra no hospital, ela tem direito a um acompanhante de sua escolha, seja do sexo masculino ou feminino, e a lei 11.108/2005, também conhecida como Lei das Doulas, garante isso. A violência obstétrica também pode ser psicológica, frases desagradáveis e desrespeitosas
parto
são exemplos comuns ditos por profissionais durante esse momento. “A enfermeira que fez meu parto debochava de mim toda hora, falava que se eu não parasse de gritar meu filho ia nascer com problema no coração”, relata Mariane Rosa. Outro direito que as parturientes têm e desconhecem é sobre a alimentação. O jejum realizado em muitos lugares não é necessário, ao contrário, a mulher tem o direito de comer e beber aquilo que lhe for desejado, principalmente comidas mais leves. Além disso, a mulher também tem o direito de se locomover durante o trabalho de parto, ela deve ter a liberdade de escolher a posição mais confortável que encontrar para ter o seu bebê. “É preciso permitir que cada caso seja de fato tratado com as suas singularidades e não com base em protocolos e generalizações. O que muitas vezes acontece é que
a mulher entra em um serviço de saúde e passa por uma série de procedimentos padrões que nem sempre tem a ver com o que ela ou o bebê precisam ou estão vivenciando no momento”, explica o médico Pedro Tourinho. “Fui para o hospital de madrugada – com dor – várias vezes e a médica plantonista falava para o meu marido que se eu não quisesse tomar os remédios e fazer do jeito que ela queria, eu podia ir embora porque eu estava atrapalhando ela dormir”, conta Francielle Gimenez. Entende-se por violência obstétrica qualquer ato exercido por profissionais da saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 43% dos nascimentos no Brasil são por cesárea, porém o índice razoável seria de apenas 15%, sendo que 80% desse número de nascimentos são na rede particular de saúde. O Ministério da Saúde e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia defendem o parto normal pois os riscos para a mãe e para o
Uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto, afirma pesquisa da Fundação Perseu Abramo
bebê são bem menores. “O meu marido ligou pra polícia e falou que eles (enfermeiros no geral) estavam me induzindo a ter um parto normal – coisa que eu não queria na época e já tinha conversado com o meu médico. Depois disso, em menos de dez minutos, a maca chegou no quarto e me levaram para o centro cirúrgico”, relata Raquel Caserta Salviatto, que realizou o seu parto em 2015. A partir de 2016, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou que o parto cesárea eletivo, ou seja, a pedidos da gestante, só poderá ser realizado a partir da 39ª semana de gestação. Infelizmente, por confiar e acreditar nos métodos utilizados por alguns profissionais na hora do parto, muitas mulheres ainda não se reconhecem como vítimas de violência obstétrica. “Não respeitar o desejo da mulher e querer impor certas condutas por ser ‘rotina’ é a principal violência obstétrica”, conta a enfermeira Camila sobre a Manobra de Kristeller, em que o profissional empurra a barriga da mãe para “facilitar” a saída do bebê. Esse método é comprovadamente prejudicial tanto para a mãe quanto para o bebê, mas, em alguns casos, ainda pode-se observar a sua realização. Segundo
a pesquisa “Nascer no Brasil” da Fiocruz, cerca de 37% das mulheres tiveram um profissional pressionando a sua barriga durante o parto. “Ela (médica) falava que eu não era médica, para eu não me preocupar e parar de ficar perguntando tanta coisa (...) Ela ficava muito brava comigo”, conta Patrícia Lyra. “É muito importante que as mulheres conheçam os seus direitos para que elas sejam mais respeitadas durante o trabalho de parto. Também é importante que a mulher faça o plano de parto e protocole isso no hospital, pois acaba se tornando uma proteção para ela. Se alguma coisa for feita sem o consentimento dela e fora do que está nesse plano de parto, ela pode entrar com ações na justiça”, explica a jornalismo e dona do blog Mães de Peito, Giovanna Balogh. Se você foi vítima de violência obstétrica, procure a Defensoria Pública do seu Estado para realizar a sua denúncia. Para os casos da capital paulista, a queixa pode ser feita através do site do Ministério Público Federal em São Paulo. Outra opção é realizá-la por telefone através do número 180 (canal de Violência Contra a Mulher) ou 136 (canal de Disque-Saúde).
Francielle Gimenez com seu filho, Luca, de 5 anos
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Fotos: Fernanda Camillo
Meu direito
de ir e vir Pessoas com deficiência são movidas pela ideia de livre acesso aos direitos
Reinaldo Chicone, deixa cartinha aos motoristas
Fernanda Camillo camillo.r.f@gmail.com
“Quando eu me tornei um cadeirante era um espetáculo, quando eu fiquei na cadeira de rodas não tinha cadeirante na rua, ninguém tinha coragem de sair na rua e eu andava pra todos os lados incentivando o pessoal a sair na rua”, relatou Pedro Severe, 47, que está na cadeira de rodas há 23 anos. Pedro faz parte das milhares de pessoas na região de que possui algum tipo de deficiência física e depende da cadeira de rodas para se locomover. Morador de Santa Bárbara D’Oeste, Pedro afirma que sair de casa sozinho é um fato im-
possível, pois todas as rampas de acesso que estão no percurso em que passa foram mal posicionadas. “Até hoje eu não consegui subir uma vez sozinho em alguma rampa, preciso sempre que alguém me empurre. Pedro também diz que muitos direitos precisam ser conquistados ainda, ele aguarda há três anos ser contemplado com uma cadeira de rodas motorizada pela prefeitura de Santa Barbara D’Oeste. E relata que para revalidar o cartão do estacionamento a cada cinco anos é necessário passar pelo médico e por uma nova perícia mesmo tendo uma deficiência permanente. Reinaldo Chicone cadeirante há 28 anos enfrenta problemas similares de acessibilidade, porém quando se depara com situações que ferem seus direitos como portador de deficiência física ele costuma recorrer à Unidade de Transporte e Sistema Viário de Americana para fazer denúncias ou tirar dúvidas. Há algum tempo Reinaldo adotou um hábito de deixar uma
cartinha no carro do motorista que estacionar em alguma vaga de deficiente e não tiver identificação. “A ideia surgiu num bate papo com um amigo extremamente preocupado com idosos e deficientes físicos, pois ele tem um membro na família deficiente”. O bilhete de Reinaldo diz: “Caro cidadão, não observamos o cartão de deficiente ou de idoso em seu veículo. Se você não for deficiente ou idoso, seja uma pessoa consciente e evite estacionar neste local. Pense nisso e você será um cidadão de verdade. Seja solidário. Respeite e será respeitado. Se você é deficiente ou idoso e ainda não possui o cartão de identificação, procure a Secretaria de Transporte e Sistema Viário (Setransv) da cidade. Obrigado!” Reinaldo acredita que além de conscientizar o cidadão ele também informa como motorista deve proceder para usar dos seus direitos. Há aproximadamente um mês o CCL (Centro de Cultura e Lazer) de Americana iniciou
aulas de dança gratuitas para cadeirantes, o projeto vem sendo um incentivo para deficientes e seus acompanhantes. Paula Hespanhol, frequenta as aulas com a filha Bárbara, deficiente física, e diz que iniciativas como essa são essenciais para que as pessoas que dependem de uma cadeira de rodas possam ter o seu momento de descontração e exercício físico. Em seu ponto vista, o que falta nessa situação é um transporte de fácil acesso que esteja à disposição. “O problema da acessibilidade está em chegar ao local, a família não tem um carro ou não tem como trazer, nós somos um grupo bem maior, mas a falta de acessibilidade piora quando está chovendo”, disse Paula. A moradora da cidade relata que desde quando sua filha começou a fazer uso contínuo da cadeira de rodas ela vem sofrendo com calçadas irregulares e rampas de acesso, mas garante que essas dificuldades não a impediram de levar a filha para os lugares e batalhar pelos direitos dela. “Minha voz não é apenas
pra mim, porque não é apenas a minha filha a cadeirante, tudo que eu faço é pelos direitos dela”. A Guarda Municipal de Americana (Gama) informou que uma fiscalização é feita para as vagas de deficientes físicos e que o motorista que estacionar nessas vagas sem a devida identificação está sujeito a multa no valor de R$ 293,47 e sete pontos na CNH. O veículo poderá ser removido para o pátio municipal. A Gama também ressaltou que todo guarda de trânsito pode realizar a fiscalização e fazer a autuação estando em ronda pela cidade. A Setransv (Secretaria de Transporte e Sistema Viário) informou que realiza vistorias nas áreas de acessibilidade para cadeirantes. “São realizadas vistorias periódicas e a manutenção é realizada quando constatada a necessidade de revitalização”. As vagas para pessoa com deficiência correspondem à 2% do total de vagas de um estabelecimento, obedecendo ao critério comunitário da vaga, nunca para uso exc l u s ivo d e determinada pessoa ou estabelecimento.
A alegria dos alunos na aula de dança do CCL
Uma vida na rua Andressa Menghini
andressa_menghini@hotmail.com
Jorge Santos da Silva nasceu em Monte Mor e aos 13 anos se mudou para Piracicaba com seus pais e seu irmão mais velho. Com uma infância simples e sem luxo, ele comenta que tinha uma família muito equilibrada e que mesmo com pouco dinheiro, eram felizes. Ele cresceu em uma casa pequena, mas lembra com um sorriso no rosto que passava o dia brincando na rua com seu irmão e que quando voltava pra casa, bem à tarde, sua mãe já havia preparado o jantar. Jorge, com o semblante entristecido, comenta que com o passar do tempo fez amizade com alguns meninos, da escola em que estudou, e que essa amizade acabou o levando para um caminho que, segundo ele, é sem volta.
Jorge passou a usar drogas aos 15 anos e, devido a isso, saiu de casa aos 17. Ele conta que desde sua primeira experiência sua família vivia em brigas. Ele chegava em casa alterado e exigia dinheiro para suprir a abstinência. Jorge lembra que roubava pertences de casa e mentia, dizendo que se não pagasse as drogas que comprou os traficantes iriam invadir a casa. Até que um dia essa mentira se tornou realidade. Jorge levou as mãos à cabeça quando lembrou o dia em que traficantes de quem havia comprado drogas invadiram sua casa. Foram momentos de susto e desespero, pois estava com a família e os homens diziam que matariam a todos. Como os pais não tinham dinheiro para pagar as drogas, os traficantes levaram objetos de valor e isso incluía: fogão, geladeira, máquina de lavar, ventilador e até os mantimentos. A família ficou sem nada e a
Andressa Menghini
Aos 30, Jorge lamenta não ter uma vida melhor e uma família
partir desse dia Jorge passou a viver nas ruas. Ficou uma semana sem ver a família, mas voltou porque estava sendo ameaçado nas ruas. Continuou com sua família até os 19 anos, mas nada mudou e resolveu deixar a casa novamente. Dessa vez, ele continuou nas ruas e conseguiu emprego em um ferro-velho e com o pouco que ganhava, conseguia se alimentar e arcar com o vício, já que para ele é impossível largar as drogas. Balançando a cabeça, Jorge conta que fazem cerca de cinco anos que não tem contato com sua família. A última notícia que teve foi de que se mudaram para a grande São Paulo no ano passado. Hoje, com 30 anos de idade, Jorge lamenta não ter conseguido uma vida melhor e não ter construído uma família. Ele continua nas ruas de Piracicaba, mais especificamente no centro da cidade, sem um lugar fixo e sempre exalta seus cachorros Fusca e Nino, dizendo ser seus fiéis companheiros e que não os larga por nenhuma circunstância.
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Onde estão
os negro
Houve aumento, mas des racial ainda segue evid universidades brasi
Thaìs Passos
tpcthais@gmail.com
Apesar de mais de 54% da população brasileira se considerar preta ou parda de acordo com as últimas pesquisas do IBGE em 2015, ainda não existe a mesma proporção nos números de alunos matriculados nas universidades. Segundo o IBGE, enquanto 3,27% dos que concluem o ensino superior são negros, nos outros grupos étnicos esta porcentagem de graduandos chega aos 10,12%. Esta desigualdade vem sendo construída por meio de um longo processo histórico e um desafio para vencer a discriminação racial é combater a sua invisibilidade e enfrentar o discurso de que “no Brasil não existe racismo”. O ensaio fotográfico a seguir foi realizado em diferentes espaços da Universidade Metodista de Piracicaba e procura retratar a minoria de estudantes negros que estão presentes nela. As fotos foram tratadas para evidenciar o antes e o depois dos locais sem os estudantes brancos, para mostrar como seria a universidade se ficassem somente os alunos negros.
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o
os?
sigualdade dente nas ileiras
Fotos: Thaìs Passos
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edição 08 • Dezembro/2017
Fotos: Fernanda Toledo
Desejo de ser
outro Histórias revelam que a dependência começou muito cedo e que a perda da família contribuiu para retomada da vida Fernanda Toledo
feertoledosilva@gmail.com
Fiquei viciado em camisas, eu entrava numa loja e saia com aquela sacolinha nas mãos e me dava um êxtase” Eyn Melo Ribeiro
O empresário Claudemir Amâncio (esquerda), em seu local de trabalho após ter chegado ao fundo do poço
A necessidade de sentir-se “descolado” perante os amigos, a fuga de problemas pessoais ou a simples curiosidade são alguns dos motivos que levam à busca pelas drogas. De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), a dependência química é vista como um transtorno mental, além de um problema social. Para o diretor da Casa Dia, instituição para dependentes químicos, de Americana e adicto em recuperação, Eyn Melo Ribeiro, a dependência e o vício só acontecem porque, dentro de cada um, existe o desejo de ser outro. Após ser abandonado pela mãe aos 12 anos, Ribeiro teve seu primeiro contato com o álcool e só parou após 18 anos, quando resolveu dar um basta. Depois de vencer o alcoolismo, ainda se sentia vazio, o que o levou a outro transtorno: o consumismo. “Fiquei viciado em camisas, eu entrava numa loja, saía com aquela sacolinha nas mãos e me dava um êxtase, era o desejo de ser outro”, justifica, acrescentando que está há mais de 30 anos sem nenhuma dependência. Beber e usar drogas era moda em sua escola quando, aos 12 anos, o autônomo Rômulo Neves conheceu a cocaína. Filho de uma família de classe média, aos 15 anos recebeu uma proposta para
jogar futebol no Sub 15 do São Paulo, sua carreira como atleta foi curta e aos 18 anos teve um infarto, causado por uma overdose. Hoje está há quatro anos sem o uso de nenhuma substância. Deixar o vício, no entanto, não é tarefa fácil e muitos fatores colaboram para a recaída, um fantasma para todo dependente em tratamento, como a falta de apoio da família e o preconceito da sociedade, principalmente na busca por emprego. O empresário Claudemir Amâncio conheceu o álcool aos 12 anos de idade e sua dependência foi aumentando gradativamente. Quase três décadas de vício, o distanciamento da esposa e da filha e a morte da mãe o levaram ao fundo do poço. Após três meses internado em uma clínica de reabilitação e ser acolhido pela família, seus hábitos e amizades mudaram radicalmente. Há dez anos sem o álcool, ele tem sua própria empresa de pintura e conta com uma média de dez empregados. “Hoje considero que consegui, sem sombra de dúvida, dar a volta por cima”, conclui.
Relação familiar A retomada da confiança dos familiares e o distanciamento de antigas amizades têm sido determinantes para que o químico Patrick Stella Sanches se mantenha distante da cocaína, vício que manteve por dois anos. Ao constatar que a família estava sofrendo por sua causa, ele resolveu pedir ajuda e foi internado por seis meses em uma clínica, retomando os estudos e o relacionamento com sua atual esposa. O abandono da família e dos amigos, aliado ao vício do crack, levou o autônomo Rômulo Neves a morar nas ruas. Quando a namorada engravidou, conseguiu diminuir o consumo, mas bastou morarem juntos para que as coisas desandassem. A sua vida só foi retomada após a segunda internação. Fernando Rodrigo Bugno está em recuperação há três anos. Quando conheceu as drogas, era adolescente e sua primeira experiência foi apenas para “experimentar”. Escondido da família, levou o vício sem ninguém saber durante sete anos, acreditando
que quando casasse daria um fim na dependência mas, ao contrário do que ele esperava, o casamento foi mais um motivo para se afundar no pesadelo das drogas. Segundo ele, cada discussão e briga era desculpa para usar drogas e beber. Três meses depois de deixar a reabilitação, foi rejeitado pela filha de dois anos, seus irmãos não falavam com ele e perdeu a confiança dos pais. Houve o nascimento de sua segunda filha e ele não pode acompanhar. Pensou várias vezes em se matar. Completamente entregue às drogas, sem esperança de um futuro diferente, Fernando chegou ao fundo do poço. “Um dia, ao segurar minha filha Ana Beatriz, de quatro meses, no colo e olhar em seus olhos senti uma sensação diferente, foi aí que decidi que precisava mudar de vida”. Para ele, sua família nunca ter desistido foi de grande importância. Segundo especialistas, o consumo de drogas está relacionado ao processo de interação familiar, se não houver apoio, as chances de recaídas são grandes.
Fernando Rodrigo Bugno e sua família após 3 anos livre dos vícios
Um dia ao segurar minha filha, senti uma sensação diferente, foi aí que decidi que precisava mudar de vida” Fernando Rodrigo Bugno
Empresas adotam método de prevenção para adictos De acordo com uma projeção de dados feita pela Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas), no estado de São Paulo só 5% das empresas oferecem ao funcionário programas de prevenção e controle do uso de álcool e de drogas, o obrigando a procurar alternativas. A empresa Goodyear possui, desde 2005, um programa de reabilitação para empregados dependentes químicos e de álcool e treina seus líderes para saber identificar situações nas quais o funcionário vai trabalhar sobre efeito de alguma substância. O processo de recuperação inclui internação em clínica especializada por um período de 30 dias, além de um ano e 11 meses de acompanhamento da empresa, durante o expediente, por meio de um grupo de apoio. A família do funcionário também passa
pelo tratamento, participando de entrevistas mensais e conversas com psicóloga durante o primeiro ano. A rede de lojas Centauro criou um programa de recuperação para empregados com dependência. São realizados testes constantes por meio de sorteio. Neles é possível verificar o uso de álcool e de outras drogas. Se as substâncias forem comprovadas pelo exame, o empregado é chamado pelo assistente social para um conversa, onde será revelado o tempo em que está envolvido com o vício, em quais condições e como é o relacionamento com a família. Diante dessa realidade, a partir dessa conversa, são apresentadas as opções de tratamento. No caso, a empresa repassa 5% do valor do tratamento para o funcionário e o restante é por sua conta.
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HOMOSSEXUALIDADE Assumir ou guardar para si
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O casal: Adriano Lopez e José de Oliveira
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Jovens e adultos passam pela experiência de revelar sua orientação sexual para a família
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Gabrieli Emboaba
gabi.emboaba@outlook.com
Atualmente, as pessoas têm a liberdade de exercer sua orientação sexual, mas ainda existem famílias que não aceitam os filhos como são e fazem agressões verbais ou buscam terapias para “curá-los”. “Quando os meus pais descobriram a minha homossexualidade, começaram a me agredir muito verbalmente, dizendo coisas sem nexo do tipo: ‘você vai morrer infectado’. Tudo isso me atingiu demais, eu queria que tudo isso acabasse e tentei me suicidar. Até minha avó tentou me ‘exorcizar’, e foi aí que eu vi que tirando alguns amigos eu estava sozinho”. Essa é a história de Richard Katto, estudante de psicologia, que decidiu assumir a homossexualidade para os pais na adolescência. Richard recebia muitas ofensas dos pais. “Eu acabei me excluindo da família, pois não aquentava mais os ataques verbais. Agora está tudo mais flexível e compreensivo. Ainda existem alguns olhares, mas não me atingem. Foram dois anos de medo, discussões e incerteza”, conta. O afastamento e o rompimento com a família são grandes danos que a pessoa pode ter ao assumir a homossexualidade. O estudante João Victor Neves assumiu durante uma briga com o padrasto, “Não me senti preparado em nenhum momento por conta de nossa sociedade não abrir espaço pra isso, ainda mais quando eles percebem que você é gay desde pequeno, pois não querem lidar com o assunto”, relata. A psicóloga Magali Ribeiro já acompanhou casos de adoles-
centes que revolveram assumir-se para os pais mas que não tiveram a aceitação da família, “É sempre um grande tabu quando o adolescente ou o adulto resolve assumir a homossexualidade, na verdade ele vai assumindo aos poucos. Muitos passam pela negação ou a falta de aceitação dos pais, a grande maioria não aceita inicialmente. Depois de um tempo e com muita conversa eles começam a ver o filho de outra maneira, realmente como ele é”, explica a psicóloga. Para Leticia Santos, estudante de relações internacionais, as coisas foram mais tranquilas do que ela esperava. A mãe Shirley aceita o namoro da filha com outra menina sem preconceito. “Acho que é escolha dela, todos são livres para fazerem o que quiser, os seres humanos têm que se respeitar”, diz a mãe. A estudante de teatro Isabella Carvalho assumiu aos 18 anos, quando o pai ofereceu propostas de intercâmbios na tentativa de mudar a orientação sexual. Isabela chegou a procurar ajuda de psicólogos para fazer a vontade dos seus pais e realizou terapias que pudessem buscar a “cura gay”. “Aos 22 anos me assumi novamente com outra mentalidade e com muito mais maturidade. Foi uma decisão difícil, mas que ao mesmo tempo me trouxe muita paz, pois não aguentava mais ficar me escondendo e vivendo uma vida de aparências, uma realidade que não era a minha só pra agradar os meus pais”, conta Isabella. Com o passar dos anos a família de Isabella foi percebendo que por mais que tentassem se esforçar para mudar a cabeça da filha, ela iria continuar com a decisão de assumir a homosse-
xualidade. “Hoje em dia minha mãe aceita e respeita, conversamos muito sobre o assunto e graças a Deus temos uma amizade incrível, consigo enxergar uma pessoa livre de preconceitos. Em relação ao meu pai, ele apenas respeita, que já é o suficiente para a harmonia de casa”, conta Isabella. O professor de português José de Oliveira começou a expressar sua homossexualidade aos 21 anos. “Meus irmãos aprenderam, como todos, diante das circunstâncias e adversidades, a me respeitar”, conta José. Ele é casado com Adriano Lopes há quatro anos em regime de união estável. “Todos de minha geração somos afetivos para lidar com a questão da homossexualidade na minha família. Toda mãe sabe a orientação sexual do seu filho. A grande maioria das mães acolheu ou acolherá o seu filho nas mais diversas e adversas situações ou circunstâncias da vida. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o casamento gay no Brasil completa quatro anos de regulamentação, o número representa um aumento de 51,7% em relação ao primeiro ano de vigor da norma que foram celebrados 3,7 mil casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo, segundo levantamento do CNJ. A norma do Conselho Nacional de Justiça passou a valer para todos os cartórios do país em 14 de maio de 2013. O médico Felipe Alves teve o seu primeiro relacionamento homoafetivo aos 19 anos. Ele decidiu
Racismo no trabalho ths26crist@gmail.com
O racismo ainda é uma das feridas abertas vindas do Brasil colonial e acontece em larga escala no local de trabalho como aponta pesquisa realizada pela consultoria ETNUS. Os resultados obtidos a fim de mostrar a atuação dos afrodescendentes no mercado de trabalho mostraram que 60% dos negros ouvidos pela instituição relataram já ter sofrido injúrias raciais em ambiente profissional. Uma das vertentes em que o racismo costuma aparecer é no tratamento dos empregadores com os funcionários; transmitido no testemunho da corretora de imóveis Nádia Piai, 29. “Fui contratada para ser balconista mas me colocaram para trabalhar de faxineira” conta ela em tom de revolta sobre um antigo local em que trabalhou; por mais frustrante que a situação tenha sido, não foi a única vez, chegando até ser barrada na entrada de um clube em que era sócia. Mesmo assim, algumas situações deste gênero não vem de dentro da empresa, como diz o corretor Amadeu Ferraz Neto,
Segundo pesquisa, discriminação ainda é comum no ambiente profissional na capital paulista, no interior casos também são frequentes Isabela Cancian
Thalles Cristiano
Desempregado há mais de um ano, Emerson Souza é um dos negros que sofrem com o preconceito racial
não comentar nada com a família sobre a homossexualidade e agia naturalmente com todos esperando que tivessem alguma reação. “Meu pai entendeu de primeira assim como toda a minha família. Minhas tias vieram conversar comigo que todos da família me entendiam, mas ao mesmo tempo se acostumavam com a ‘novidade’,
o fato é que sempre todos desconfiam mas não tinham a certeza dita por mim”, conta. Felipe está casado há quatro anos com outro homem e tem uma vida tranquila com a família e no trabalho. “No âmbito profissional nunca passei por constrangimentos, já fui figura pública trabalhei
com comunicação e até hoje questionam se sou gay mesmo, talvez por eu ser discreto e sempre ser muito claro nas minhas escolhas e comportamento. Por incrível que pareça os heterossexuais se sentem à vontade para conversar comigo assuntos que não falariam a outro amigo heterossexual”.
29. “Para gente que trabalha com público é ainda mais complicado” relata cabisbaixo, se lembrando de outras situações em que sofreu racismo na infância. “Algumas senhoras, principalmente as mais velhas, costumam se recusar a serem atendidas por mim só por que sou negro”. O preconceito dificulta a vida profissional dos afrodescendentes desde o início do processo de procura por um emprego, conta Emerson Souza, 21, que permaneceu 18 meses sem nenhum registro profissional em sua carteira de trabalho. “Quando é uma empresa que está fazendo o processo seletivo eles tentam ser cautelosos nas seleções, pois se algum negro resolve denunciar um tratamento diferente complica com a imagem da empresa, embora eu ache que em alguns lugares a etnia influencia sim” conta o jovem que participou de 6 entrevistas de emprego neste período, sem sucesso. Negro, com cabelo curto, Emerson não acha que sua aparência seja um empecilho durante um processo seletivo; diferente dos resultados da pesquisa, onde 70% dos entrevistados acreditam que características da cultura afro, como cabelos cacheados e rastafáris, pesam negativamente na hora da contratação, pois o empregador intensifica um julgamento racista
sob o quesito da “boa aparência”. Após diversos cursos realizados na tentativa de melhorar seu currículo, Emerson, após perguntado sobre o baixo número de negros em cargos importantes, completa dizendo que a falta de interesse gera comodismo entre os trabalhadores afrodescendentes; “muitas vezes por causa dessas dificuldades as pessoas não procuram trabalhos novos e muito menos capacitação, eu acho compreensível levando em conta que algumas delas são humilhadas em local de trabalho, como já presenciei, apenas pelo desempenho de sua função”. O advogado Juarez Batistela conta que o racismo ainda é corriqueiro no ambiente profissional. Entretanto, não existem muitos caminhos a se tomar quando alguém sofre este tipo de discriminação. “Deve-se primeiramente comunicar o superior hierárquico caso a injúria tenha sido feita por um colega de trabalho, o que lhe deveria causar automaticamente uma demissão por justa causa. Porém, caso seja seu chefe que cometa este delito, deve-se imediatamente abrir um boletim de ocorrência pelo crime de injúria racial”, completa Juarez. Além da discriminação racial presente durante um processo seletivo, o maior obstáculo dentro da vida profissional de um afrodescendente é a falta de capa-
citação de acordo com a maioria dos entrevistados pela enquete. Essa necessidade pelo trabalho muitas vezes colocam os colaboradores em situações embaraçosas e degradantes; “Pelo o que eu já vi no meu meio de convívio e de experiências profissionais, geralmente a pessoa que é vítima desse tipo de abuso em serviço não presta queixa por medo de perder o emprego”, afirma. A segregação racial no meio profissional, costuma ser de maneira muito dolorosa, de acordo com Acacio Godoy, presidente da comissão de ética do Conepir (Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Piracicaba). “Não é incomum atribuir à vítima apelidos depreciativos constantemente repetidos no ambiente de trabalho, em reuniões e em grupos” relata. Ainda, segundo ele, em função da discriminação, a pessoa é preterida em promoções e as vezes até removida para lugares distantes e sem estrutura. Como método de denúncia, Piracicaba oferece como alternativa o disk racismo através do número 156. Os atendentes possuem a devida instrução para direcionar a vítima ao Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial que por sua vez, darão orientação e assistência necessária.
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A mesma língua, só outro sotaque Nordestinos relatam histórias de preconceito vividas no estado de São Paulo
Jacqueline Passos
Jacqueline Passos
O artista Tony Azevedo em seu espaço cultural do bloco da Ema e os bonecos de Olinda
jacque.a.passos@gmail.com
“Você tem uma letra de doutor, nem parece que veio de Pernambuco” foi o que ouviu o pernambucano Marcos Antônio Azevedo de Souza, quando estava preenchendo uma ficha na Conferência de Cultura. Tony, como é chamado pelos amigos e conhecidos, é o criador do Bloco da Ema e morador de Piracicaba há 14 anos. Ele relata algumas ocasiões onde sentiu o preconceito na pele e conta sua trajetória piracicabana. Em alguns pontos ele ressalta: “eu sou a cidade” já que trouxe para cá muito da cultura nordestina. Quando chegou aqui, criou o bloco de carnaval de rua, o Bloco da Ema, porque essa seria a forma dele estar em contato com sua cidade natal, Recife (PE). O artista também conta que já teve o muro de sua casa pichado. “Picharam o muro da casa onde eu moro, não me lembro ao certo a frase, mas sei que foi para mim”. Ele também relata que é uma pessoa muito extrovertida e sempre que encontra pessoas que conhece na rua, quer abraçar para demonstrar seu afeto. Em uma dessas ocasiões, uma pessoa que conhecia não aceitou e ainda repeliu o abraço. Mas o artista tenta não se abalar com os comentários maldosos, pois sabe que apesar disso, o trabalho dele é valorizado na cidade, já que tem a adesão de muitos piracicabanos em seus eventos. Além disso, ele também relata que o artista tem como colocar para fora esse sentimento. “Agora imagina um nordestino que não sai de casa? Imagina o mundo para essa pessoa? Aí acaba indo para a violência e para as drogas”. A cozinheira Laine Cleide Passos Freitas, natural de Batalhas, Alagoas, também viveu uma história de preconceito, quando chegou em Santo André, em 1984. A alagoana trabalhava como merendeira em uma escola quando a carteira de uma psicóloga foi roubada. Além de ter sido a primeira pessoa acusada do roubo, ainda ouviu da mulher que teve a carteira roubada: “Essas nordestinas vem para São Paulo invadir terras e roubar”. Na época, Laine era recém-contratada e única nordestina que trabalhava no estabelecimento de ensino. Apesar de ter chorado com a situação, ela afirma que “isso só me deu vontade de mostrar que o país é de todos nós, não fui buscar melhora nos países dos outros e sim no meu. Não tive vontade de voltar para lá, pois aqui falamos a mesma língua, só muda o sotaque.”
Picharam o muro da casa onde eu moro, não me lembro ao certo a frase, mas sei que foi pra mim” Tony Azevedo
A fisioterapeuta Rigerlane de Melo Ramos, de Pindaré Mirim, Maranhão, veio para Piracicaba trabalhar como doméstica. “Eu vim pra vencer e vou vencer”. Ela sempre investiu em cursos, hoje tem sua própria clínica e conquistou seu espaço profissional, motivo de bastante orgulho. Apesar de não ter passado por nenhuma história de preconceito específica, ela conta um pouco do que sente: “as pessoas acham que nordestino é burro, não sabe votar, e que não temos
capacidade”. Laine gosta muito de ajudar as pessoas, e quer sempre incentivar nordestinos a conquistar seu espaço. Por isso, faz parte do MCP (Movimento das Comunidades Populares), que leva cultura para crianças, a maioria delas com pais nordestinos. No dia anterior à entrevista, ela havia levado crianças para assistir a uma peça de teatro. Não é de hoje que a região Sudeste recebe famílias vindas do sertão nordestino à procura de uma nova vida. Muitos vieram há
As pessoas acham que nordestino é burro, não sabe votar, e que não temos capacidade” Rigerlane de Melo Ramos
décadas, como é o caso de José João da Silva, que deixou o município de Lajedo, Pernambuco, em 1974 com a mulher e seus 14 filhos. Seu José se cansou de esperar a chuva e a prosperidade em sua pequena propriedade e veio para Mauá onde começou a trabalhar na construção civil. Hoje, o senhor aposentado de 91 anos, relembra os momentos de dificuldade, já que na época, muitas industrias estavam em ascensão e contratando funcionários, porém davam preferência para pessoas alfabetizadas. Seu José, que é analfabeto e sabe apenas escrever o próprio nome, sentiu nesse momento, o seu primeiro obstáculo. São muitas as histórias de pessoas que passaram por problemas de preconceito ou constrangimento. Poucos tem coragem para relatar. A diarista Iranete Ambrosio da Silva, natural de Pedra Preta, Rio Grande do Norte, relata nunca ter passado por nenhuma história de preconceito, mas sente que as pessoas fazem piadas em relação ao seu sotaque. Porém ela não se incomoda, e ainda diz que sente diferença quando conversa com as irmãs que ficaram no Nordeste. Ela ainda brinca: “Eu acho que não falava isso quando morava lá.” Inúmeras são as histórias de João, José, Maria, Aparecida, homens, mulheres e famílias inteiras que deixaram casas, parentes, costumes e vieram a procura de trabalho e estudo. Mas nem todos os dias essas histórias tiveram seus “dias de glória”. De acordo com o dicionário Aurélio, a palavra Xenofobia significa “aversão aos estrangeiros ou ao que vem do estrangeiro”. E muitos são os casos relatados de xenofobia contra o nordestino. O caso mais famoso em nosso país aconteceu nas eleições para presidente em 2010, quando a presidente Dilma foi eleita. Após a vitória da candidata petista, a estudante Mayara Petruso escreveu em seu Twitter : “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”. Em 2012, Mayara foi condenada a 1 ano, cinco meses e 15 dias de reclusão pela Justiça de São Paulo, pena que depois foi revertida em serviço comunitário e multa, além de ter perdido seu emprego, abandonado a faculdade e mudado de cidade.