Na Prática Ed 22

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Produzido pelos alunos do curso de jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba - Unimep Ano 4 - Edição 22

Novembro/2010

JORNAL LABORATÓRIO

Vida de

cana, do fel ao

néctar e a vanguarda do etanol mostram muitas faces de uma região canavieira

Bruna Sampaio

O amargo no plantio e na colheita, o doce do açúcar, a alegria da cachaça


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Expediente

EDITORIAL

Menos fel, mais doçura “Cortadores de cana” ou “bóias-frias” são assim nomeados os trabalhadores que, em pleno século 21, ainda deparam com algumas realidades de semiescravidão. Trabalham oito ou doze horas diárias, o salário não depende do tempo de dedicação ao corte e sim da produtividade, o esforço é grande e os direitos, muitas vezes, mínimos. Com touca, boné, camisa longa, calça e botas, sob sol escaldante, esses trabalhadores enfrentam exaustivas horas de golpes de facão para possibilitar que o sofrimento se transforme em açúcar e doces dos mais saborosos, em etanol e promessas de um mundo mais limpo, em cachaça e prazerosas caipirinhas. Por todo o Estado de São Paulo, a cana-de-açúcar é paisagem obrigatória. É um chamariz para cidadãos do Norte e Nordeste do País que buscam melhores condições de vida, mas muitas vezes se deparam com a desilusão. Na Prática acompanhou o dia-a-dia desses trabalhadores, desde antes de o dia amanhecer até a jornada terminar, na exaustão do corpo. Falou com quem já passou por essas condições e, aos 80 anos, busca evitar que os netos tenham a mesma sina. Desvendou direitos e realidades. Acima de tudo, desafios. Fomos também até um outro lado da cana, bem dife-

rente: seus produtos. Em pontos de venda de chocolates, falamos com vendedores e consumidores sobre um alimento que acalma e presenteia; em botecos e cachaçarias, encontramos todas as classes sociais consumindo a bebida que relaxa e alegra bons papos; junto a especialistas e estudiosos, vimos o potencial futurista do Proálcool, invenção brasileira que é esperança em época de aquecimento global. Na busca do universo em que está inserida uma das principais matrizes da economia da região de Piracicaba –a cana-, encontramos disparidades e as traduzimos em sabores e sentidos. O amargo da labuta forçada nos canaviais, o doce do açúcar e seus derivados apetitosos, a alegria da cachaça nas rodas de amigos e a esperança do etanol para o meio ambiente. A experiência do trabalho de campo nos leva a defender que o Estado mais rico da federação busque diminuir o lado amargo dessa história. Não é possível que, em pleno século 21, ainda haja um trabalho que ecoa da era colonial, com míseros direitos de fato a quem nele atua. Só quando acabar o fel nas lavouras de cana, será válido o sabor doce, a alegria e a esperança verde que ela propicia.

O Brasil é cercado por sete milhões de hectares de cana, tornando-se o maior produtor do mundo. As principais regiões de cultivo da cana-de-açúcar no País são Sudeste, Centro-Oeste, Sul e Nordeste, onde são permitidas duas safras por ano. São Paulo é o estado que mais produz. O vasto território arável brasileiro o faz peculiar, como um dos poucos com condições de produzir energia verde e exportar. Essas características são históricas. Segundo o presidente da Única, Marcos Sawaya Jank, o envolvimento estrangeiro já era realidade nos séculos XVI e XVII, e o açúcar ainda produzido de forma artesanal já era valioso em alguns países da Europa, comparado ao ouro em pó. Hoje, o potencial é ainda maior. “A presença do capital externo no setor sucroenergético

Diretor da Faculdade de Comunicação: Belarmino Cesar Guimarães da Costa Coordenador do Curso de Jornalismo: Paulo Roberto Botão Edição Marcos Brogna Mtb 30465 Editores Assistentes: Larissa Molina Vieira Júnior Editores assistentes de fotografia: Cynthia da Rocha Fernanda Cristina Pereira Repórteres: Ariane Domiciano, Anderson Junque, Alexandre Almeida, Bruna Sampaio, Bruno Bianchim, , Camila F. Duarte, Daniele Zanin, Débora Fernanda, Fernando Henrique, Ivaneide dos Santos, Jackson Rossi, Janaína Moro, Lavínia Vasconcelos, Letícia Costa, Maria Elvira Evangelista, Mariana Fiocco, Mariane Ferreira, Marina Campos, Syndi Siqueira, Suzana Storolli, Thiago Sanchez Gapareto, Vanessa Gonçalves e Vinícius Boer

Correspondência: Faculdade de Comunicação Campus Taquaral, Rod. do Açúcar, km 156 Cx. Postal 68 - CEP 13.400.911 Tel. (19) 3124-1677

Brasil – e região – se consolida como destaque nas lavouras de cana e na transformação desse vegetal em produtos valiosos ao mundo de hoje

nacional, crescente nos últimos anos, teve nítida aceleração já no início de 2010”, diz. O mercado interno de cana-de-açúcar ainda é de grande valia no Brasil, até mesmo pelo estímulo de crescimento da produção de etanol o crescimento da frota de veículos flex, e indústria de cosméticos Porém, a evolução do mercado internacional e os benefícios da cana para a projeção do Brasil são o tema do momento. “Uma das coisas que incomoda nos outros países em relação ao Brasil é justamente a cana. Qual outro país tem condição de produzir energia verde como a nossa? Europa não dá porque é frio. A cana só cresce em climas tropicais, com uma grande quantidade de luz. Na África do Sul tem alguns lugares que sim. China vai? Não! E nos EUA? Poderia ir, mas já tem toda área ocupada com outras produções”. ressalta.

Reitor: Prof. Dr. Clóvis Pinto de Castro.

Arte Gráfica: Sérgio Silveira Campos (Lab. Plan. Gráfico/Unimep)

A potência verde Letícia da Costa Coelho Suzana Carrascosa Storolli Vinicius Barbosa

Jornal Laboratorial dos alunos do 6º semestre de Jornalismo da Unimep

Participe da comunidade no Or kut Jornal Na Prática/ Unimep

Toda essa força está, em grande parte, no interior paulista, em regiões como a de Piracicaba. “Com a tecnologia cada vez mais inovadora, a produção passou a ser de pessoas trabalhando desde o plantio até a colheita para máquinas que a cada dia superam a mão humana”, explica o responsável pelo departamento da Cooperativa dos Fornecedores de cana de Piracicaba, Pedro Bessi. Esse contexto em transformação desafia em vários sentidos: qualidade de vida do trabalhador e crescimento da economia.

O principal objetivo da comunidade do jorna léo contato com os leitores. Esse espaço está integralme nte aberto à manifestação de suas opiniões, concordando ou não com o conteúdo da ed ição, opinando e sugerindo pautas para as próximas.

Vamos participar, mande seu recado! Valeu Galera!!! Nosso e-mail: jornalnapratica@gmail. com


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SXC

GIRA O MUNDO DA CANA Canavial e atividade humana, muitos bons produtos, trabalho ainda amargo como fel

A cana e o

homem, do fel ao melado

Ela gera o doce que inspira carinho ou a bebida em que se busca alegria, mas é plantada e colhida de forma amarga

Janaina Moro O doce do açúcar, a alegria associada à bebida fermentada e destilada da garapa (a cachaça) ou a vanguarda do biocombustível (o etanol), produtos da cana-de-açúcar, estão longe da realidade de trabalhadores rurais, responsáveis pela própria existência da cana como uma grande matéria-prima para muitos derivados. Oriundos de vários estados brasileiros, principalmente de Minas Gerais, Ceará e Pernambuco, eles vêm para o interior do Estado de São Paulo em busca dos sonhos, como conseguir trabalho, ganhar bem e ter uma boa qualidade de vida. Mas é comum esse desejo se tornar uma ilusão, por vezes pesadelo, amargos como fel. Isso se dá justamente pelas condições de trabalho. Por dia, cada trabalhador corta em média dez toneladas de cana. Por mês, vai para o bolso pouco mais de um salário mínimo, e o cortador tira em média R$ 594. Em alguns casos, enfrenta situações de semi-escravidão, o que faz com que esse ofício esteja entre os que mais geram processos na Justiça do Trabalho. A história de vida de quem enfrenta esse mundo revela episódios tristes. Leonildo de Souza, hoje com 27 anos, veio do Pernambuco para trabalhar no canavial e se surpreendeu com a situação que encontrou, precisando buscar sobrevivência em outros setores. “Achei desumano e logo resolvi mudar de trabalho”, afirma. Hoje, o rapaz trabalha em um supermercado em Rio Claro, onde está parte da família, e recebe por mês em média R$ 900, segundo ele com mais garantias e tranquilidade. De acordo com o Sindicato dos Cortadores de Cana, localizado em Capivari e que abrange nove cidades da região, a maioria dos processos envolve reclamações como baixo salário, invalidez e outros problemas de saúde. Os mais comuns estão relacionados ao salário e rescisão contratual.

“Os processos são encaminhados ao Ministério Público. Caso não sejam resolvidos, vão para procuradoria em Campinas”, afirma Rubens Balan, responsável pela fiscalização das áreas. O fiscal do sindicato diz ainda que a inspeção é feita constantemente e que os trabalhadores também denunciam os casos de abusos, mas o número de processos não foi revelado. Os direitos dos trabalhadores rurais, que inclui os cortadores de cana, são assegurados com base na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e no acordo Coletivo NR 31 das Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho (veja mais no link http://www.riscorural.com.br/nr-31-comentada). Antonio José Bom teve que recorrer à Justiça, na época em que era cortador, para reivindicar o que era correto e não praticado pelos empregadores. Hoje, é presidente do sindicato em Capivari, que

Achei desumano e logo resolvi mudar de trabalho” engloba nove cidades da região. Depois de sentir o amargo, atua no suporte a essa classe trabalhadora. No site do Ministério do Trabalho (www.mte. gov.br), é possível conferir que muitas pessoas ainda são escravizadas dentro desta atividade, precisando ser resgatadas do local onde foram em busca dos sonhos. Nas páginas centrais desta edição, nossa reportagem acompanha um dia inteiro de trabalho em um canavial. Em todas as outras, Na Prática viajou pelo universo da cana-de-açúcar, uma das matrizes econômicas da região de Piracicaba e que envolve as mais diversas realidades humanas, do fel do trabalho ao doce do açúcar, passando pela alegria da cachaça e embarcando na vanguarda do etanol. Todos os gostos, realidades e desafios que partem de um único produto que preenche grande parte da paisagem local.

AMARGO NA BOCA Antonio José Bom vivenciou os desafios como cortador de cana


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Fotos divulgação

CUIDADO E PERIGO Equipamentos de proteção são indispensáveis para a realização do trabalho

‘SUSTANÇA’ E RAÇA É preciso repor as energias para aguentar o batente e refeição é muito importante

A cada 10 minutos,

131 golpes de facão

QUANTIDADE E PESO Trabalhadores se preparam antes de nascer o sol; eles cortam 10 toneladas de cana todos os dias

Em apenas dez minutos, um trabalhador rural corta 400 quilos de cana, num trabalho que pode render problemas à saúde Anderson Junque Enquanto muitos ainda nem pensam em acordar, o trabalho já faz parte da rotina de aproximadamente 5 mil trabalhadores rurais de nove cidades da região, subsidiadas por Capivari, onde se localiza o Sindicato dos Cortadores de Cana. O trabalho braçal requer desses profissionais um esforço enorme para cortar em média dez toneladas de cana todos os dias. “Nós ganhamos aqui por produção. Quanto mais a gente corta, mais a gente ganha”, declarou o cortador cearense José (nome fictício), que realiza pela primeira vez a experiência de trabalhar no canavial. Casado, 38 anos, ele é pai de uma menina. Com família estabelecida em outro estado, o cortador leva uma rotina sagrada. Levanta as 4h40, sobe no caminhão por volta das 5h, iniciando uma longa jornada que se encerra às 17h30, quando retorna do trabalho. “Eu não estranhei o trabalho pesado, estou acostumado com isso”, relata. O padrão médio diário de produtividade, por trabalhador, é de é de dez toneladas. O ganho mínimo de um profissional canavieiro na região de Piracicaba é de R$ 594, caso seja contratado de alguma usina. Já se o profissional for contrato pelo pequeno produtor (geralmente pequenos arrendadores de terras), esse valor acompanha o salário mínimo, hoje R$ 560. Um total de 70 mil trabalhadores rurais migra

todos os anos para o Estado de São Paulo em busca de uma oportunidade de trabalho, segundo dados da Única (União dos Empresários da Indústria Canavieira). Todo esse esforço tem um preço. Com ritmo de trabalho alucinante, os trabalhadores chegam próximos do limite de sua capacidade física. Com os movimentos repetitivos, as mãos incham, as tendinites e as bursites incomodam. Uma pesquisa de autoria de Luiz Paulo Juttel, da “ComCiência”, publicada na Revista Eletrônica de Jornalismo Científico SBPC/LABJOR, afirma que em apenas dez minutos um trabalhador corta 400 quilos de cana, realiza 131 golpes de facão, flexionando o tronco 138 vezes. “É um trabalho pesado, mas eu já estou acostumado com isso”, conta José. Dores nas costas e nas mãos são os sinais mais frequentes das doenças ocupacionais. Essa é uma preocupação diária do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Capivari e Região. “Analiso a ficha com os EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) entregue e assinada pelo trabalhador. Verifico a condição das botas, roupas, chapéu, toca térmica, facão, lima, galão e água. Tudo para preservar a saúde de cada trabalhador”, garantiu o fiscal do Sindicato Rubéns Balan. Apesar de todo esforço, em muitos casos o trabalhador precisa ser afastado de suas funções. Quando isso aconte-

Quanto mais a gente corta, mais a gente ganha” ce, é emitido um CAT (Comunicado de Acidente de Trabalho) e o trabalhador é afastado por 15 dias pagos pela empresa e mais 15 dias pelo INSS (Instituto Nacional da Seguridade Social). Há sempre um médico de plantão acompanhando o trabalho dos cortadores de cana. O afastamento desses profissionais ocorre na maioria das vezes por problemas relacionados ao excesso de atividades físicas repetitivas. “Elas se dividem em doenças profissionais ou tecnopatias, sempre causadas pela atividade laboral – LER (Lesão por Esforços Repetitivos) ou DORT (Doenças Relacionadas ao Trabalho)”, explica a fisioterapeuta Daniele Hilal. Para reduzir esse tipo de problema, é preciso trabalhar com a ideia da prevenção através da ginástica laboral. “É preciso incentivar os exercícios de alon-

gamento, relaxamento, respiratório além das orientações posturais”, orienta a fisioterapeuta. A hostilidade do trabalho rural requer cuidados. Um arsenal de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) é obrigatório a qualquer trabalhador rural. Para realizar esse trabalho no cultivo de cana, são necessários um par de botas (trocadas religiosamente a cada seis meses), óculos de proteção, polaina, toca árabe, luva, chapéu, lima, facão e um garrafão com água. Todos com certificado de qualidade. A refeição é outra preocupação constante: é preciso estar bem alimentado para aguentar o ritmo. “Temos uma nutricionista que acompanha a alimentação dos trabalhadores”, garantiu o presidente do Sindicato, Antonio José Bom. Quando se fala em distância da família e de saudade, José, nosso personagem, se emociona. São nítidos os olhos cheios de lágrimas e a voz pronunciada num tom muito abaixo do natural. Aperta o celular ao peito, como se estivesse abraçando a própria filha, e diz emocionado: “Dou um jeito de falar com ela dia sim, dia não”. Sobre os motivos de ter deixado o Ceará, não deixa dúvidas. “Lá, quando tem seca não tem trabalho. A gente come feijão só com um pouco de sal e dá isso para as crianças. Quem não tem nem isso, precisa contar com a ajuda dos outros”, conta.


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MÃOS QUE PRODUZEM Instrumento que sempre esteve forte o suficiente para garantir o sustendo da família

Tereza tem 80 anos, trabalhou no corte de cana de açúcar quase toda sua vida e só parou aos 63

‘Minha vontade era plantar para mim’ Fotos: Marina I. P. Campos

Jackson José Rossi Marina Isabel Pereira Campos Tereza sempre morou na fazenda e desde muito nova, trabalhava na lavoura. Ela teve doze irmãos e é a mais velha, por isso sempre teve de ajudar os pais. “Fui pra roça quando eu era bem mocinha, tinha uns 13 anos e meu pai me dizia que eu tinha que aprender a trabalhar na roça, pois isso era a única coisa que pobre podia fazer.” Aos 10 anos de idade, já sabia cozinhar, lavar e, aos 11, já costurava. “Meu pai comprava metros de xita (tecidos coloridos e grossos) ou panos de saco de algodão e minha mãe fazia roupas para todos da casa.” “Era na terra mesmo, minha mãe varria todo dia e jogava água, assim o chão ficava duro e sem poeira”, conta, sobre o fato de ter morado em casa de pau-a-pique, de madeira, com o piso sem cimento algum. Diz que sua vida era simples, mas nunca passou fome e os alimentos eram em abundância. “Meu pai criava porco, galinha, peru e tinha uma horta em que plantava de tudo, tínhamos tudo, até leite, o patrão dava das vacas dele.” A mulher cujos traços marcam uma vida de trabalho relata que o lugar onde morava não era deles, era do patrão, mas podiam usar a terra para plantar. Aos 13 anos, ela foi trabalhar na roça, colher algodão e café junto com o pai. Na época, era muito comum mulheres e filhos pequenos trabalharem na lavoura junto de seus pais e os filhos eram educados por meio do trabalho, ela

VELHO COMPANHEIRO Ela mostra o facão e demonstra habilidade com um artefato íntimo de sobrevivência na lavoura

Sempre morei no que era dos outros e, agora, depois de velha, é que pude comprar minha casa” explica. Conta ainda que seus irmãos, assim que entravam na adolescência, já começavam a trabalhar na lavoura. “Meu pai dizia que a melhor forma de fazer os filhos virarem gente que presta é trabalhando, todo mundo ia pra roça, todos os dias, às vezes, até aos domingos.” Aos 17 anos, Tereza se casou, mas continuou trabalhando na lavoura. Ela, assim como seus pais, também levou seus filhos para a roça, e eles também começaram a trabalhar cedo. Nenhum deles teve oportunidade de estudar, pois a escola era muito longe e as crianças tinham de caminhar muito até chegar às salas de aula. Tereza trabalhou na colheita de algodão, café, milho e cana. Trabalhou também carpindo a terra, mas, segundo ela, nunca a família teve dinheiro para comprar seu próprio pedaço de terra. “Sempre morei no que era dos outros e, somente agora, depois de velha, é que pude comprar minha casa, mas minha vontade, mesmo, sempre foi plantar para mim e para minha família”, desabafa. Apesar de haver possibilidades de subsistência em relação à alimentação, a vida na roça estava difícil, pois não havia escola, hospital e, aos poucos, os donos das fazendas paravam de ceder lugar para seus empregados. Então, no início da década de 1980, a família de Tereza comprou uma casa na cidade e se transferiu, aos poucos, para a área urbana, mas continuou a trabalhar na lavoura. Tereza, que hoje tem 80 anos, trabalhou no corte de cana-de-açúcar quase toda sua vida, só parando aos 63 anos, quando se aposentou.

FÉ Na imagem na parede da casa que agora é sua, a fé que nunca deixou de fortalecer sua vida

Agora estamos tentando estudar os netos, para que não acabem como nós” O salário que ganha como aposentada não passa de dois mínimos e essa, segundo ela, foi a herança que ganhou após trabalhar a vida toda na terra, plantando, carpindo e colhendo. A casa que possui, de acordo com a aposentada, foi comprada com o trabalho de todos da família após anos de economia. Para pessoas como essa mulher que entrevistamos, labutar na terra era a única opção de sobrevivência, já que nem ela nem os filhos tiveram chance de estudar. “Isso foi o que restou, agora nós estamos tentando estudar os netos, para que eles não acabem como nós”, sintetiza, sobre o legado de uma vida atuando naquilo que é vital para a sobrevivência humana: a agricultura.


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Jackson Rossi Marina Izabel Pereira Campos João dos Santos acorda às quatro da manhã e, todos os dias, já ao amanhecer, ele mesmo faz a comida. A batata, a carne (quando tem) e o feijão já estão cozidos, porque demoram a serem preparados. O arroz, ele os prepara ao levantar, porque não gosta requentado. Depois, põe tudo em um caldeirão (um tipo de marmita grande) para levar para a roça. Trabalhar sob o sol quente dá muita sede, por isso João leva uma garrafa de água, na qual ele coloca muito gelo. João não tem geladeira, então ele pega o gelo na vizinha – que é formado em um “panelão” de água que ela põe para congelar. No dia seguinte, ele pega o gelo, despeja na pia da cozinha e quebra, com um martelo, em partes pequenas, para que caiba tudo na garrafa. “A água fica geladinha o dia inteiro, porque eu encho de gelo a ‘bujaca’ (garrafa térmica grande usada para por água), só assim para aguentar o calorzão”. Até muito pouco tempo, João não tinha cama, dormia em rede. Mas ganhou uma e doou a rede para seu colega. “Não passo fome, mas não tenho luxo” - na visão de João, ter geladeira e cama é sinal de luxo. João acorda e começa a se arrumar, se veste e coloca sua marmita dentro da bolsa, que ele chama de capanga. Leva também um pequeno pote com álcool, fósforo e um “fogareiro” – que é uma lata de extrato de tomate, com pequenos buracos na transversal - que usa para esquentar sua comida. Ele se veste e, apesar do calor e de passar muito tempo embaixo do sol, usa uma meia alta, que vai até o joelho, uma calça jeans (que tem muitos remendos, principalmente nas pernas), uma camiseta e uma camisa. Na cabeça, põe um gorro e, por cima, um chapéu de palha grande que diz ser para proteger do sol e das palhas de cana que às vezes passam no rosto e podem cortar. Calça uma botina e amarra nas pernas uma espécie de caneleira, que protege de um possível golpe de seu falcão. Dentro da sua capanga, ele coloca uma luva muito grossa e o facão ele leva na mão. João diz que usa a mesma roupa duas ou três vezes na semana, porque não há tempo para lavar. Além disso, as roupas sujam muito e lavar todo dia dá trabalho e gasta o tecido mais rápido.

Amarga labuta O dia ainda não clareou, mas para um canavieiro já é hora de dar início a um trabalho pesado

O ‘pau de arara’ passa às cinco da matina” CAMINHO DA ROÇA O dia ainda não clareou, mas o ônibus que leva os trabalhadores da cana já está pronto para a ida ao canavial

ROMARIA E CALOR Para se proteger do sol e de ferimentos, é preciso usar roupas que potencializam o calor


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Fotos: Jackson Rossi e Marina I. P. Campos

“O ‘pau-de-arara’ passa às cinco da matina, tenho de esperar por ele, lá no ponto”, ele diz. “Pau-de-arara” ou “bozó” são os ônibus que transportam os cortadores de cana até o canavial. João diz que o ônibus pega muita gente na cidade, gasta mais ou menos uma hora para pegar todo mundo e, às 6h, sai para o canavial. Para chegar lá, o tempo gasto também é o mesmo; até chegar ao canavial, são duas horas dentro de um veículo desconfortável e barulhento. Ainda está frio, mas João está bem agasalhado, ele sai de casa e caminha para o ponto de ônibus que fica a dois quarteirões de onde mora. O ônibus chega, encosta e João entra. O veículo é bem velho e está sujo. Dentro dele, já estão seis boias-frias, todos estão calados e alguns cochilam. O pau-de-arara passa em outros locais da cidade e segue lotado. Todos viajam sentados. Os trabalhadores chegam ao seu destino e cada um sai para seus eitos de cana; alguns aproveitam para amolar seus podões (facões). Eles se dividem em grupos e cada grupo vai para um lugar. As marmitas, alguns levam consigo e outros deixam no ônibus. Cada trabalhador fica responsável por uma quantidade de “ruas” de cana. Começam a trabalhar, a temperatura começa a subir; os trabalhadores suam e cortam a cana com muita rapidez. Um dos cortadores diz que não se pode deixar tocos. A cana tem de ser retirada por inteiro, não pode ser despedaçada. Eles avançam sobre a plantação e não há nenhuma nuvem no céu para fazer sombra. Cansaço e calor são o que todos sentem, mas eles não param. A cana, depois de cortada, é amontoada; depois o guincho e caminhão passam colhendo os montes. O sol está a pino. O corpo e o sol mostram que é hora do almoço. Alguns trabalhadores comem ali mesmo, preferem não voltar para o local onde o ônibus está estacionado. Há uma tenda onde os trabalhadores descansam e comem. João volta. Pega sua capanga e retira dela o caldeirão e o fogareiro, esquenta sua comida e come. Ele come com colher, come rápido, pois quer descansar alguns minutos, antes de voltar ao trabalho. Acaba de comer e se deita debaixo da sombra de uma pequena árvore. Naquela região, não existem árvores, restou somente aquele pequeno arbusto e, à sua volta, só se vê cana. João dorme meia hora, acorda e retorna ao lugar onde estava cortando. O ato de cortar cana é muito violento, por isso é fácil acontecer um acidente. Os trabalhadores movimentam os podões com rapidez e força; um movimento falso pode até decepar um braço, uma perna. Mas eles têm habilidade e os golpes são rápidos e certeiros. Mais à frente, carbonizada em monte de terra, havia uma cobra, morta com a queimada. João diz que, com frequência, eles encontram animais queimados nos eitos de cana. O fim da tarde se aproxima e os trabalhadores estão cansados, porém, começa a chover. Alguns já vão parando e retornam para o ônibus, outros só param na hora em que o encarregado que eles chamam de “feitor” (quem observa e dá as ordens) os convoca para ir embora. Os canavieiros entram no ônibus e todos estão sujos de uma mistura de carvão e poeira. Estão visivelmente esgotados, mas, mesmo assim, eles conversam sobre assuntos diversos. O assunto mais falado é sobre a quantidade de metros de cana que cada um cortou. O ônibus trafega em uma estrada de terra, faltam alguns quilômetros para chegar ao asfalto. A poeira lá de fora cria uma nuvem vermelha e não se vê nada quando se olha para trás. De repente, todos se calam, pois o cansaço toma forma em cada um dos cortadores de cana.

COMIDA E BREVE DESCANSO É preciso comer rápido para dar tempo de um descanso para retomar o duro trabalho

Naquele local ainda há muita cana e eles voltarão no dia seguinte para terminar. Quando chove, eles carpem a terra, para o plantio de mais cana, ou para limpar os locais onde ela já está plantada. A volta parece ser mais rápida que a ida e João chega em casa. A roupa que já foi usada por dois dias seguidos é colocada de molho e será lavada no dia seguinte. “Para que a sujeira saia é preciso até dois dias aí”, diz. Ele lava o caldeirão, o facão, as luvas e a caneleira. Depois, começa a amolar o facão. “Deve ficar bem afiado, senão não corta direito”, reforça. O facão é amolado todos os dias. João tem 35 anos, já foi “enrolado” com uma moça que, segundo ele, o trocou por um “mais bem de vida”. Com ela, ele teve três filhos. Ele mora com mais quatro companheiros; um é gari e os outros dois são cortadores de cana e trabalham juntos com ele, na labuta que permite a fabricação do doce do açúcar, da vanguarda do etanol, da alegria da caipirinha, mas que é amarga como fel.

Para a sujeira (da roupa) sair é preciso até dois dias”

HORA DE VOLTAR Exaustos quando a tarde cai, é hora de pegar o ônibus de volta, com a certeza de retomar no dia seguinte


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Crescimento Produção de etanol no Brasil pode ter um “boom” de 145% nos próximos anos como alternativa ecológica de energia

verde SXC

Ivaneide Gonçalves Maria Elvira José Alexandre Fernando Henrique Mariana Fiocco Na próxima década a produção do etanol no Brasil deverá crescer cerca de 145%. O país produz anualmente 26 bilhões de litros e a previsão é chegar em 2019 na casa dos 64 bilhões de litros produzidos em território nacional. As expectativas do governo são muito positivas em ver um produto agrícola, a cana, como um bicombustível, o etanol. Segundo o presidente da Única, Marcos Jank, este ano a produção do etanol e do açúcar deverá ser maior que no ano passado. Ainda assim, Jank diz, em entrevista à Agência Brasil, estar preocupado com a prioridade dada ao petróleo, em função do pré-sal, e isso pode ofuscar investimentos de pesquisas que garantam ao País o reconhecimento internacional da qualidade do combustível extraído da cana-de-açúcar. A previsão da Única é que, este ano, sejam produzidas 33 milhões de toneladas de açúcar e em torno de 27 bilhões de

CAUSA E EFEITO Onda ecológica potencializa o uso do etanol como combustível limpo

litros de etanol. Números que são muito positivos. Segundo o ministro de Minas e Energia, Marcio Zimmermann, 54% dos

Queimada ainda é uma vilã Alexandre Almeida Maria Elvira José Alexandre Ivaneide Gonçalves Várias experiências foram feitas durante décadas para que se encontrasse uma combinação e aperfeiçoamento para o combustível renovado. A demanda inconstante trouxe muitos problemas para a fabricação do etanol e os altos e baixos fizeram com que as usinas se adequassem a novas realidades para atender ao mercado automotivo. Hoje, há modernização em seus parques industriais com novas tecnologias em maquinários modernos e computadorizados. Máquinas colheitadeiras foram lançadas nos mercados, fazendo com que as produções nas usinas aumentassem, ba-

tendo recordes mundiais. Através desse desenvolvimento, veio junto o problema social, como desemprego, mão-de-obra desvalorizadas, trabalhadores sendo explorados e vivendo em condições subumana. A queima da cana-de-açúcar é uma prática agrícola utilizada para facilitar sua colheita manual. É realizada mediante técnicas apropriadas e condições seguras, impedindo que se alastre para outras áreas e evitando, na medida do possível, danos à fauna. Entretanto, trata-se de uma atividade potencialmente poluidora, como diversas outras, as quais são definidas em normas e procedimentos de diversos órgãos responsáveis pelo controle do meio ambiente. Segundo o perito criminal Jefferson Willian de Gapari, existem alternativas

veículos de pequeno porte utilizam etanol, enquanto 42% usam gasolina. Na década de 70, com a crise do pe-

tróleo e o início do Proálcool, o governo brasileiro voltou suas atenções para o etanol, como biocombustivel de extrema utilidade. As indústrias automobilísticas instaladas no Brasil, naquela época, começaram a receber incentivo do governo em tecnologia e até mesmo em subsídio para adaptar seus motores a receber o álcool como combustível. O primeiro carro a álcool lançado foi o Fiat 147, em 1978. Daí até 1986, os automóveis aderiram esse combustível, que ganhou gosto popular dos brasileiros, sendo que a grande maioria dos veículos saídos das montadoras brasileiras, naquele ano, utilizava o álcool. A produção do etanol atingiu um pico de 12,3 bilhões de litros em 1986-87, superando 15% a meta inicial do governo, que era de 10,7 bilhões de litros por ano. A proporção de carros a álcool produzidos no País aumentou 0,46% em 1979 para 26,8% em 1980, atingindo um teto de 76,1% em 1986. Hoje, o etanol volta a ganhar força com dois fatores marcantes: os carros flex e a necessidade de se buscarem recursos energéticos que agridam menos o meio ambiente.

consequentemente, com grande quantidade de palha seca na plantação. Esse risco é maximizado em áreas que servem de passagem ou habitadas por seres humanos. Além disso, a fumaça dos incêndios frequentemente se espalha pelas rodovias e estradas, dificultando a visibilidade dos motoristas, podendo causar graves acidentes. FALTA EVOLUIR Para a colheita da cana, a queimada ainda é um Os incêndios também processo que agride o meio ambiente e a sociedade podem causar danos à menos danosas ao meio ambiente, como a fauna, provocando morte de animais ou colheita mecânica. Tal prática está sendo reduzindo seus habitats naturais, obriadotada e a queima das lavouras de cana gando migrações para áreas impróprias a terá, gradativamente, seu término, que eles. E podem destruir as matas e as áreas deve acontecer em 2017. de preservação que servem como proteOutra problemática da queima é o in- ção para nascentes e cursos de água. cêndio acidental nas épocas de estiaSão desafios para que o combustível gem, que coincide com o estágio em que dito limpo tenha um processo de fabricaa planta se encontra em grande porte e, ção realmente limpo.


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Da ‘marvada’ à requintada

Dos que tomam doses baratas em botecos aos que pagam preço de uísque em cachaçarias, o propósito é o mesmo: a alegria

Bruno Bianchim Martim Thiago Sanchez Gaspareto A eloquência de José Augusto Junqueira, 57, é pausada e freada, de meia em meia palavra, ao se esbaldar em um líquido quente, mas que “desce gelado”, segundo ele. A sensação o fazia ansiar por mais. A dose é cotada a menos de R$ 1. Fã de cachaça, “mas só das vagabundas”, aquelas das mais variadas e “duras de engolir, o líquido está entre seus gostos preferidos e a aptidão pelos goles é tida como entretenimento. “Essa branquinha aqui não é cara, vem da cana e faz muito bem”, assegura, por pouco não deixando escorregar de seus lábios o amendoim que mata sua fome, ao lado da calabresa e as bistecas de porco e boi fritas, em uma sexta-feira à tarde, na região central de Piracicaba, ponto dos boêmios locais.

Em outra mesa do boteco, o ex-professor Manuel da Costa, 66, também desfruta o final de semana que se desenha. “Eu venho aqui para bater um papo, conversar. De vez em quando a gente prova um golinho da danada, mas sem ser muito”, explica, deixando claro o gosto que tem pela bebida desde 1977, ano do término do jejum de títulos corintiano, seu time de coração,. Bem diferente é o cenário em um outro ponto da região, numa chachaçaria em São Pedro, onde a mesma bebida feita de cana ganha um contorno requintado, quase como se fosse um uísque e com preço semelhante. “O que faço é preparar a cachaça e colocá-la para envelhecer”, conta o proprietário, Orivaldo Nicola, que traz o produto feito na cidade de Charqueada. Cada madeira influencia no sabor e na cor da cachaça, mas o de jequitibá é o

que mantém a coloração branca. No estabelecimento de Orivaldo, é possível encontrar cachaças produzidas artesanalmente e envelhecidas em tonéis de madeira – carvalho, castanheira, umburana e jequitibá rosa. A diferença, para alguns clientes, é fácil de sentir. Afrânio Morais de Oliveira é um entusiasta da bebida e explica sobre a qualidade dela. Pingas industrializadas e vendidas em larga escala, segundo ele, pecam no aroma e sabor para se fazer uma boa caipirinha. “Já as artesanais parecem que casam certinho com o limão e o açúcar”. Para os menos ou os mais exigentes, uma coisa é certa: ambas vêm da mesma cana e as intenções ao bebê-las são parecidas: dar um pouco de alegria no fim do expediente do trabalho, num alegre bate-papo com os amigos. Seja com uma “marvada”, seja com uma “artesanal”.

Fotos: Bruno B. Martim e Thiago S. Gaspareto

MARVADA O proprietário do boteco, conhecido como Jacaré, servindo dose de cachaça: R$ 0,50 é o suficiente para “acalmar” clientes

Do Egito até a paixão nacional Mariane Ferreira

CHIQUE Orivaldo entre tonéis onde a cachaça é envelhecida e se torna um produto artesanal, para exigentes

Pinga, caninha ou cachaça. O nome não importa. A aguardente da cana-de-açúcar é usada há muito tempo como bebida, mas poucos sabem que aquela que hoje é usada em comemorações ou para “esquecer os problemas” teve origem é medicinal. A cachaça é uma aguardente, assim como a vodca, a tequila, o rum, o gim, a grappa e o uísque. “Os primeiros relatos remetem ao Egito antigo, onde os egípcios inalavam vapor de líquidos aromatizados e fermentados diretamente no bico de uma chaleira e em um ambiente fechado para curar moléstias,” explica o especialista Thiago Romano. O processo é registrado pelos gregos que passam a chamar o líquido de “acqua ardens” (aguardente). Os Alquimistas, então, atribuem à aguardente propriedades místico-medicinais,

transformado-a em uma bebida receitada para dar longevidade à vida. Com a expansão do Império Romano, a aguardente se espalha pelo globo terrestre, chegando até os árabes, que criam os equipamentos para destilação, semelhantes aos que conhecemos hoje. Aos poucos, bebidas destiladas começaram a ser criadas. Foram os casos da grappa (destilado de uva) na Itália, do whisky (destilado de cevada sacarificada) na Escócia, e, da vodca (destilado de centeio) na Rússia, entre outros. Com a chegada dos portugueses e da cana-de-açúcar, descobriu-se em um engenho da capitania de São Vicente o vinho de cana-de-açúcar, conhecido como garapa azeda. Esse vinho ficou conhecido como cagaça e era servido aos escravos. Com a destilação desse vinho de cana-deaçúcar, surge a cachaça.

A bebida ganha tanta importância que começa a ser usada como moeda corrente para compra de escravos vindos da África. Ela também serviu para aquecer as pessoas que iam para Minas Gerais e estabeleciam residências na Serra do Espinhaço em busca de ouro durante o Século XVII. O sucesso da cachaça tupiniquim causou irritação aos portugueses, que viram cair na colônia o comércio da bagaceira (destilado do bagaço da uva) e do vinho português. Alegando que a cachaça prejudicava a retirada do ouro das minas, a Corte decidiu proibir a partir de 1635 a produção, comercialização e consumo da cachaça. Entre proibições e liberações, os portugueses viram que a paixão brasileira pela bebida só aumentava e resolveram então taxar a bebida. Hoje, até o presidente da República faz propaganda dela em eventos internacionais.


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A felicidade é doce

Produto da cana, o açúcar cada vez mais é usado pela indústria alimentícia

Fotos: Cynthia da Rocha

Daniele Zanin Débora Ferneda A conquista começa pelo olhar, é paixão -e salivação- à primeira vista. Em muitas formas, cores e misturas (do tradicional quindim aos modernos cakes), a atração é quase que inevitável: chocolates, bolos, balas, mousses, tortas, sorvetes e tantos outros produtos que um derivado da cana propicia. Eis o açúcar, vilão dos que vivem em dietas, mas que muitas vezes faz acreditar que em uma mordida a vida pode ganhar um novo rumo. A explosão de sabores é o que faz a tentação ficar ainda mais forte e resistir à glicose torna-se uma verdadeira guerra. “O efeito do doce em meu corpo é reconfortante, preciso comer pelo menos um brigadeiro por dia para me sentir bem”, revela a estudante Aline Demarchi, 21. Procurados em qualquer ocasião, os doces já não são apenas para satisfazer a vontade pessoal. Em uma sociedade em que eles estão em abundância, chegam a ganhar um status de presente e é muito comum encontrar docerias especializadas em mimos muitas vezes caros para ocasiões como aniversários ou datas comemorativas. A variedade de opções que os comerciantes proporcionam eleva a simples vontade de apenas degustar um doce à condição de presentes especiais. “Sempre que vou presentear a minha namorada, costumo usar o doce como forma de complemento, assim o agrado ganha um toque mais especial”, diz Fernando Amistalden, 26, engenheiro agrônomo. Segundo dados divulgados pela indústria sucroalcooleira Cosan, o crescimento do consumo de açúcar levou a um aumento nas plantações de cana em todo o mundo, de menos de 1 bilhão de toneladas anuais no meio da década de 1990 para aproximadamente 1,7 bilhão de toneladas em 2008. A indústria alimentícia pesou nessas estatísticas. Para os comerciantes, o “pecado da gula” só traz benefícios às lojas especializadas do ramo. “Em datas comemorativas como Natal, Páscoa e dia dos namorados,

VITRINE DOS SONHOS Doces em loja da região, onde produto já virou presente para várias ocasiões

a procura dos clientes pelos produtos é incessante, chegando até a formar fila fora da loja”, conta Ângela Amorin, 21, atendente de um estabelecimento da região. A relação que as pessoas constroem com o açúcar vai do amor ao ódio, conta quem trabalha no comércio de doces. “Aqui recebemos cliente fieis que vêm todos os dias. Há caso de alguns que chegam estressados e buscam no doce uma fuga para os problemas”, revela Shirley da Silva, atendente de outra loja. E o fenômeno não se resume às mulheres, como muito se propaga. “Nós dois buscamos bastante os doces, em nossa família todos consumimos de maneira semelhante”, diz Luisiana Mattos, que com o marido diverte-se ao tentar avaliar quem consegue resistir mais aos impulsos que o doce exerce. “Eu, por exemplo, nem posso comer muito, tenho recomendações de consumir a cada 15 dias, mas é difícil

EM FAMÍLIA Casal escolhe produtos em que o açúcar é matéria-prima principal e disputa quem consegue resistir mais

resistir, ainda mais com minha esposa e nossa filha adolescente, que procuram muito por eles”, afirma Mattos, editor de uma revista em Araraquara. A ciência explica esse fenômeno. Segundo o biólogo e pesquisador Luís Paulo Fava, a glicose é responsável por estimular o cérebro a produzir o hormônio serotonina, que causa no organismo uma sensação de bem-estar e prazer. De acor-

O efeito do doce em meu corpo é reconfortante, preciso comer” do com o pesquisador, o corpo demonstra sinais quando há carência do hormônio. Sempre que houver os sintomas de irritabilidade, ansiedade, depressão, crises de choro, além de outros problemas racionais, podem ser sérios indícios de um desequilíbrio da taxa de serotonina no cérebro. Então, dá-lhe açúcar. Mas, sempre é bom alertar que, em demasia, a alegria se transforma em briga com a balança e prejuízos com a saúde.


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Fotos: Lavínia Vasconcelos

O néctar da

cana Em pontos tradicionais de Piracicaba, mantém-se a tradição de saborear a bebida doce e refrescante retirada da moenda Lavínia Vasconcelos Caldo de cana ou garapa? Isso fica a critério do freguês, e como por aqui ele sempre tem razão tanto faz um dos dois para nomear o líquido doce que é dos mais antigos subprodutos extraídos da cana-de-açúcar no processo de moagem. “Bebo com tanta vontade como se estivesse bebendo água, numa ‘golada’ só”, confessa Ana Carolinna Feijó, consumidora declarada do caldo de cana. Pedro Luis Júlio, o ‘seo’ Pedro, 56, é um dos mais antigos vendedores de caldo de cana da cidade de Piracicaba. O ponto onde ele atua com sua barraca também é o mais conhecido da região, a Rua do Porto. ‘Seo’ Pedro trabalha com cana-deaçúcar nesse ponto há mais de 26 anos e desde essa época funciona todos os dias quando está calor e, em épocas mais frias, somente nos finais de semanas e feriados. “A gente começou vendendo milho, só que a freguesia pedia garapa, por isso comecei a fazer”, declara. Hora de chegar para trabalhar ele tem, não passa das nove horas da manhã. Agora, hora de sair em dias de calor é quase impossível de se imaginar. “Quando está quente a gente volta para casa depois da meia noite ou até mais tarde”, conta. Na cidade, o caldo de cana é uma tradição, como muitas pelo interior de São Paulo. Visitantes de cidades da região, como Limeira, Americana e Santa Bárbara do Oeste, prestigiam um cardápio tipicamente piracicabano: caldo de cana, milho verde, pamonha e curau. “Domingo e feriado isso aqui lota, mas de sábado é mais devagar, só que sempre tem gente”, conta o garapeiro.

A etapa mais difícil é o processo de ras- MOENDO SABOR ‘Seo’ Pedro trabalha fazendo caldo de cana na Rua do Porto há 26 anos pagem da cana. Para ‘seo’ Pedro, no calor Receita de Bolo de tudo fica ainda mais chocolate com complicado. “No calor, caldo de cana é duro porque a demanda é maior, já no frio é mais calmo. Tem gente Ingredientes: 2 xícaras de chá de que compra a cana já farinha de trigo, ½ colher de sopa raspada, mas pra mim de fermento em pó, ¼ xícara de não compensa porque a chá de óleo, ¾ xícara de chá de demanda é muito granaçúcar mascavo, ¾ xícara de chá de de”, declara. caldo de cana, 2 colheres de sopa Quando se procura de achocolatado, ½ colher de sopa por um caldo de cana de bicarbonato. para matar a sede no corre-corre do dia o Modo de preparo: colocar o óleo, o açúcar mascavo, o caldo de cana destino é outro: o Cen- O NÉCTAR O caldo da cana moída, tradicional bebida na região e em todo o país e o achocolatado em um recipiente tro da cidade, mais e misturar. Acrescentar a farinha, o precisamente na Praça fermento em pó e o bicarbonato José Bonifácio. Lá, dona Antonia Siorilli nhã até as cinco horas da tarde. “O carpeneirados e misturar até ficar da Silva, 56, é a dona do ponto da praça. rinho fica aqui na praça. Quem abre é o homogêneo. Assar em forno préEla trabalha no local desde que ganhou meu esposo de manhã, que vem de carro aquecido a 180°C por aproximadao direito, há 20 anos. Casada, mãe e avó, para trazer a cana, mas depois do almoço mente 30 minutos. dona Antonia abre seu carrinho de garapa ele leva minha neta no colégio e eu venho de segunda à sexta das nove horas da ma- de ônibus para cá”, conta. A filha ajuda Rendimento: 8 porções no serviço, pois de tarde o movimento é maior e o trabalho aumenta. Quando começou, dona Antonia trabalhou por dois anos sozinha, um trabalho árduo e difícil. “No começo foi complicado, na época do que possui um sabor refrescante, é consumida frequentemente por pessoas de Collor foi mais duro”, confessa. Um copo de caldo de cana sai na faixa todas as idades e classes sociais. O caldo de R$ 2. Já uma jarra de meio litro aca- é obtido através da moagem da cana de ba saindo por R$5, em média. O produ- açúcar em moendas elétricas ou manuais, to pode ser congelado e é um excelente coado em peneiras metálicas e servido ingrediente para alguns pratos culinários com gelo, podendo ser adicionado suco como bolo de fubá, bolo de chocolate, de limão ou abacaxi para dar um sabor creme de chocolate e trança de aveia. especial à bebida. É o néctar de um dos Essa bebida energética, não alcoólica, produtos mais importantes da região.

A gente começou vendendo milho, só que a freguesia pedia garapa”


Mercado em ascensão estimula cursos que focam a cana-de-açúcar como matriz de nova energia Bruna Sampaio Syndi Siqueira Fontes de energia renovável, produzida a partir da cana-de-açúcar, plantas oleaginosas, biomassa florestal e resíduos agropecuários, os biocombustíveis são alternativas mais baratas e eficientes no combate ao efeito-estufa. O aumento de sua demanda produziu na indústria sucroalcooleira brasileira crescimento e modernização. O Brasil é o segundo maior produtor mundial de etanol. A procura pelo biocombustível no mercado internacional constituiu a força-motriz dos altos níveis de produção. Ainda que os Estados Unidos e a União Europeia também produzam biodiesel e etanol em larga escala, o Brasil exporta para esses mercados, por apresentar menores custos de produção, além das vantagens ambientais, que estão associadas à produção atual, com grande concentração em São Paulo, estado com condições favoráveis. Com a necessidade de profissionais qualificados, surgem as Fatecs e Etecs – Faculdade de Tecnologia e Escolas Técnicas –, administradas pelo Centro Paula Souza. Em Piracicaba, há dois anos e meio existe a Fatec, que é ligada ao Conselho Estadual de Educação e sustenta dois cursos de graduação tecnológica: Biocombustível e Gestão Empresarial. Os dois acompanham a Comissão Municipal de Emprego de

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Gosto de

futuro

Fotos: Bruna Sampaio e Camila Duarte

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Piracicaba, que, segundo o diretor e professor Dr. Hermas Amaral Germek, “Foi realizado um levantamento junto ao empresariado para saber qual é a necessidade e deficiência que a cidade tem”. Os alunos da Fatec começam a pesquisar novos negócios e assim desenvolvêlos. “Com uma empresa júnior, esse passa a ser o lugar de gerenciamento e criação dos alunos, onde o conhecimento de empreendedorismo e do alto trabalho os ajuda a estabelecer seus negócios”, explica o diretor. Esse projeto, ainda em desenvolvimento, faz com que Piracicaba desenvolva-se acima dos padrões nacionais, ao gerar emprego e renda, enriquecendo a cidade e quem vive nela.

Quero aprender a produzir os biocombustíveis”

APRENDENDO Aluno em prática durante o curso que ensina a trabalhar com biocombustíveis, futuro para especialistas

Para Marcel Menezes, aluno do último ano de Biocombustível, o que mais o estimula é a produção. “Quero aprender a produzir os biocombustíveis, como o biodiesel, etanol, além das cachaças e outros tipos de bebidas. Comecei a gostar mais do curso quando tive mais contato com os produtos, com estágios na destilaria da faculdade”, conta. Hoje, Marcel trabalha em uma usina piracicabana, que produz cachaça. “Com um mercado de trabalho bastante saturado, se você for um bom profissional tem como entrar em um grupo grande da cidade”, frisa.

Alfabetizando os trabalhadores rurais Camila Duarte

ENSINANDO Hermas Amaral Germek, professor, relata preocupação em atender o potencial da região de Piracicaba

O desafio de acreditar na própria capacidade de aprender, com professores que têm entre 18 e 22 anos, é grande. Mas, apesar disso, 302 alunos com idade entre 16 e 96 anos, atendidos pela parceria entre a Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba) e a Organização de Mulheres Assentadas e Quilombolas do Estado de São Paulo (Omaquesp), se dirigem às escolas dos assentamentos rurais para a apreensão de um novo conhecimento: a escrita. De acordo com a coordenadora da iniciativa, profª Márcia Vieira, o número de cortadores de cana atendidos cresce nos últimos anos, devido à invasão da indústria

canavieira “em todos os espaços”. O programa atende os municípios Bebedouro, Colômbia, Ibitiúva, Jaboticabal, Pradópolis e Sumaré, além do Quilombo de Caçandoca, em Ubatuba. A Prefeitura de Piracicaba também trabalha com esse público, por meio do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos, coordenado pela professora Vera Cecília Meneghini Esteves. Para os educadores, a tarefa é maior que apresentar letras, palavras e textos. O trabalho abrange a conscientização da importância da alfabetização e a luta contra a evasão. De acordo com a professora Márcia Vieira, foram 400 alunos matriculados, um percentual de 24,5% de desistência. De mudanças por causa do trabalho a adoeci-

mento, os motivos são inúmeros. A professora também destaca que o estado de São Paulo se assemelha a regiões mais pobres em números de analfabetismo. De acordo com dados de 2002, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 16,2% da população da região Sudeste é analfabeta, apenas 3,9% a menos que o Nordeste. Veja a situação dos demais estados no quadro ao lado. O Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária) busca sanar essa necessidade, e oferece nas zonas rurais desde a alfabetização até a pós-graduação. O objetivo é que o aprendizado se dê na comunidade, e, além de facilitar o acesso à educação, valorize a cultura desse local.


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