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Nº 73 Agosto/2012

A avenida que une a cidade

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ja Unimep. Aqui você faz

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UNIVERSIDADE • Adquire visão crítica e autonomia intelectual • Tem oportunidade de estágio e inserção no mercado de trabalho • Faz intercâmbios com universidades de 25 países • Realiza pesquisa - produção de conhecimento • Promove extensão - compromisso social e atendimentos à comunidade • Dispõe de 80% de professores mestres e doutores • Exerce inclusão e convivência com a diversidade • Vive cultura e esporte • Tem polo avançado de tecnologia

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Laísa Antonela dos Santos Graduada e Mestranda em Fisioterapia pela Unimep. Participou de dois projetos de iniciação científica durante a graduação.

Mais que um diploma, a sua formação. 4

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JORNALISMO A rua que inspira carta do editor

Expediente

Órgão Laboratorial do Curso de Jornalismo da Unimep Reitor Clóvis Pinto de Castro Diretor da Faculdade de Comunicação Belarmino César Guimarães da Costa Coordenador do Curso de Jornalismo Paulo Roberto Botão

Editora Rosemary Bars Mendez (16.694|) Editores Executivos Saulo de Assis Ronald Gonçales Editores Adjuntos Cintia Tavares, Laura Tesseti, Nayara de Oliveira e Cláudia Assêncio Redatores Amanda Moretti, Carla Rossignolli, Cintia Tavares, Elaine Pereira, Fernando Galvão, Laura tesseti, Leonardo Belquimam, Luana Rodrigues, Nayara de Oliveira, Rafaela Gazetta, Rafhael Justino, Ricardo Gonçalvez, Sabrina Franzol Diagramação e Arte Final Sérgio Silveira Campos (Laboratório Planej. Gráfico) Foto de Capa Fernando Galvão

Correspondência Faculdade de Comunicação Campus Taquaral, Rodovia do Açúcar, km 156 - Caixa Postal 69 CEP 13.400-911 Telefone: (19) 3124-1677

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É NA UNIMEP

s alunos que neste semestre de 2012 terminam o curso de Jornalismo e estão prestes a conquistar novos territórios, enfrentar desafios profissionais e alçar altos vôos, entregam para os leitores da revista Painel mais uma edição produzida por eles, no primeiro semestre deste ano, mas que só agora teve sua edição finalizada  31 anos de ensino qualidade para ser impressa. O conteúdo editorial de segue a linha do número anterior, número 72, distribuída em junho, sobre histórias que  Conceito 4 no Enade/MEC envolvem a rua, num movimento similar ao descrito pelo jornalista João do Rio alma encantadora das ruas, publicado em  no 3 livro mil Ametros quadrados de laboratórios 1908, hoje domínio público. O livro é composto por crônicas que refletem a modernidade da época, assim como mescla os costumes 4 estrelas no Guia do Estudante em dos moradores do Rio 2010 de Janeiro. 2011, e 2009 Longe de qualquer intenção de se igualar a João do Rio – ou Emílio Curso Premiado naCoelho Semana João Paulo Cristovão dos Santos BarretoEstado (seu nomede de nascimento) -, os alunos buscaram inspiração nessa obra para Jornalismo e Expocom pensar as pautas das reportagens que completam as páginas da  Convênios, parcerias e estágios emos revista Painel. Afinal, nas ruas estão as histórias humanas, acontecimentos sociais, os movimentos culturais e políticos; onde empresas de comunicação da região as crianças brincam, onde é possível se divertir, protestar, caminhar,  Programas de Intercâmbio Internacional ler, ver amigos e até mesmo preservar histórias ou recuperá-las por meio de seus monumentos. A vida está nas ruas. E os estudantes Produção jornal impresso, revista, foram ver como essa vida seem manifesta nesse espaço público. rádio, televisão e dainternet A matéria de capa retrata a evolução avenida Armando de Salles Oliveira, que passou por várias mudanças desde sua criação na década de 50 e por ligar Piracicaba com os bairros ‘do outro lado do rio’, Vila Rezende, Algodoal, Santa Terezinha, Balbo e outros mais. Outra (19)com 3124.1676 rua tradicional Informações: na cidade é a Boa Morte, histórias que unem folclore com realidade. Nas ruas estão os vírus ou as bactérias que podem causar doenças graves; mas estão também os idosos e os Acesse nossos sites: jovens que buscam espaços próprios para se confraternizarem. Pode ser ainda o lugar para manifestações culturais, políticas e cívicas; unimep.br/jornalismo como simbolizar sentimentos humanos pelos nomes que levam. soureporter.com.br A rua é o espaço coletivo e representa um lugar da cidadania, com a acessibilidade,jornalunimep.blogspot.com como pode ser um patrimônio histórico, como acontece em Araras, que tombou as ruas de paralelepípedos por ação do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural. A rua inspira. Assim desejamos a todos uma boa leitura.

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Era uma vez

um sem-teto Disposição, superação e fé. Ingredientes fundamentais na trajetória de um ex-morador de rua Cíntia Tavares

ciintiatavares@hotmail.com

Laura Tesseti

laura.tesseti@hotmail.com

Nayara de Oliveira acarolini@gmail.com

U

m menino, e à frente a maior cidade do país. Um caminho solitário de quem aos nove anos deixou para trás família e amigos em busca do desconhecido. As curvas, becos, praças, dutos e esquinas passaram a ser o seu lar. A rua deixou de ser para Anderson da Silva Lopes, atualmente com 37 anos, um lugar onde as crianças se divertem e conquistam amigos. Ela se tornou uma casa, uma família, um porto. Ele morou nas ruas de São Paulo até os 13 anos, passando pela Praça da Sé e viajando pelos lugares, pegando carona em caminhões ou seguindo a pé. Anderson da Silva Lopes, o Pastor Netinho, como é carinhosamente conhecido pela comunidade onde vive em Rio Claro, soube tirar desta triste experiência ensinamentos que hoje ajudam na 6

maneira de enxergar e levar a vida. Para ele, a rua não é o mais tenebroso dos lugares, nem a pior das habitações. Ele reconhece o lugar como triste. Mas, ao contrário disso, afirma ter encontrado ali, muitas vezes, pessoas que o protegeram e que compartilhavam o alimento, ou até mesmo, a droga. Hoje fora das ruas, ele percebe que, como diz a canção – “Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho” – e mantém um trabalho chamado “Geração Para Salvar” na Cracolândia. Uma região da cidade de São Paulo bastante conhecida pela numerosa população de drogados espalhados pelas ruas e calçadas do local, com o objetivo é ajudar crianças, jovens, adultos que queiram sair da vida das ruas. Casado há 16 anos com a pastora Fernanda, Netinho é pai de Gabriella e ganha a vida com a música, uma das paixões herdadas do pai, o responsável por fazê-lo cair na escuridão das ruas quando ainda menino. Sua trajetória profissional tornou-se um marco para a música gospel, pois sua banda Patmus, foi a primeira a gravar um clipe gospel premiado na MTV e na Multishow.  PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


Laura Tesseti

Painel - Como era sua vida na infância? Anderson da Silva Lopes (Pastor Netinho) - Tinha uma família normal, a gente tinha tudo para ser feliz. Meu pai tocava com o Caetano Veloso e era uma pessoa muita querida no meio artístico e por toda família, mas era alcoólatra. Isso o deixava violento. Eu era o que mais apanhava dos três filhos. Foram anos assim, mas eu não podia falar muito com as pessoas porque meu pai era muito querido, então ninguém acreditava. Na época, não existiam leis que protegiam as crianças. Painel - Em que momento você decidiu sair de casa? Pastor Netinho - Quando completei oito para nove anos. Fui tendo mais noção do que estava acontecendo e a única coisa que pensei foi em fugir de casa para evitar a sequência de pancadas. Um dia, ele chegou de madrugada, eu já tinha arrumado uma mala e quando ele já estava dormindo, por volta de 4h30 da manhã, eu fugi. Painel - Você era novo, como fez para fugir? Pastor Netinho - Peguei um trem de Campo Limpo até São Paulo, na Estação da Luz. Decidi ir para São Paulo porque eu tinha muitos parentes lá. Desci e lá era uma loucura, fiquei apavorado. Só tinha nove anos, não tinha a menor noção de nada, era inocente.

Painel - Como foi o seu primeiro dia em São Paulo? Pastor Netinho - Chegou um senhor bem vestido e perguntou: “garoto, o que você está fazendo aqui?”. Inocentemente falei que estava esperando uma tia. Ele perguntou se eu não estava com fome, então eu falei “Claro!”. Ele disse que pagaria um café. Pensei “que legal, achei finalmente alguém decente”. Saímos da Estação da Luz, fomos até o Viaduto do Chá, e quando eu estava chegando saiu um casal de andarilhos de um muro. Um deles estava armado com um estilete e foi cortar a alça da minha mochila para puxá-la. O estilete pegou nas minhas costas, começou a sangrar e doeu muito. Nisso esse senhor me deu uma rasteira. Eles roubaram minhas roupas, minha mochila e meu tênis. Justamente o senhor que eu ac hei que ia me ajudar. Painel - Como começou seu vício com as drogas? Pastor Netinho - Cai sangrando e um deles me ofereceu cola, disse que era anestésico. Eu cheirei na hora e realmente passou a dor. Ali eu fiquei conversando com eles e foi o ponto de segurança que tive naquele dia. Só que aí eu fiquei. Quando deu uma semana já estava totalmente dependente. Painel - Ficou morando com aqueles mendigos? Pastor Netinho - Ali tem um lance que a Prefeitura para em alguns

Drogado, comecei a ter vergonha de ir para casa, aí eu fiquei lá, quatro anos e seis meses. Por incrível que pareça, eu me lembro de cada dia, a não ser aqueles que eu estava fora de órbita. PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

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lugares para tirar os mendigos e as crianças de rua, para que, aos finais de semana, os turistas possam passar e não ver os moradores de rua. Eles levam você para um albergue, então, a gente mudava. Nessa de mudar de um lugar para o outro, comecei a conhecer a molecada da rua, os mendigos, as prostitutas, os homossexuais. Painel - Mas não tinha dinheiro, então como conseguia as drogas? Pastor Netinho - Uma das formas para eu conseguir a grana para usar a droga era sendo mula (entregador de drogas). Levava a droga para as pessoas engravatadas. Elas me davam o dinheiro e eu entregava para o traficante, que me dava a droga. Então eu usava muito. No meu caso, comecei a usar porque passei muita fome e frio. A cola me deixava até dez dias sem comer. Painel - Além de usar drogas, o que mais fez na rua? Pastor Netinho - Na Praça da Sé comecei a roubar bolsas, pulseiras, comecei a fazer tudo o que a rua te oferece. Quebrava vidro de carro para roubar as coisas, pedia dinheiro. Comecei me envolver com os maiores. Painel - E como conseguia lugar para dormir? Pastor Netinho - Você apanha para dormir nos melhores lugares, principalmente nos dutos do metrô, que tem ar quente. É o lugar que as pessoas querem dormir. Ou nos lugares seguros, onde você não vai ser roubado. Painel - Já tentou esconder esse seu passado? Pastor Netinho - Não tenho vergonha. Falo para que as pessoas pensem muito antes de fazer as coisas, de usar ou de experimentar a droga. Porque a droga num momento ela é como uma válvula de escape, mas, a consequência é muito séria. Eu comecei a sofrer essas consequências.

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E lá na rua tem uma coisa que você compartilha; você não consegue comida, dá comida para o cara e o cara para você. Painel - Durante esse período, ninguém da sua família te procurou? Pastor Netinho - Meu pai era músico, engravidou minha mãe com 13 anos, fui o primeiro filho. Meu avô era militar, ele buscou meu pai num show e os obrigou a se casarem. Casaram totalmente desestruturados. Minha mãe é apenas 16 anos mais velha do que eu. E quando eu saí de casa eles nunca foram atrás de mim. Painel - Tentou voltar por conta própria? Pastor Netinho - Tentei voltar uma ou duas vezes, mas na época comecei a crescer muito rápido. Drogado, comecei a ter vergonha de ir para casa, aí eu fiquei lá, quatro anos e seis meses. Por incrível que pareça, eu me lembro de cada dia, a não ser aqueles que eu estava fora de órbita, porque eu comecei a usar vários tipos de drogas. Painel - Tem alguma história que te marcou muito? Pastor Netinho - Têm várias. Lembro de estar em uma roda de moradores de rua e perceber que o meu caso era o único. Encontrei advogados, encontrei um cara que era dono de uma rede de mercados, não é só gente que vive na miséria, que não teve estrutura, é a droga. Na época, a gente não tinha essa noção, hoje sabemos que a droga vai te levar. O mais engraçado era saber que eu estava do lado de gente milionária e perguntava ‘Por que você não volta para sua casa?’ e a pessoa não queria voltar.

Painel - Quando começou a mudança na sua vida? Pastor Netinho - Teve um dia que eu estava na Praça da Sé e têm aquelas pessoas com bíblias nas mãos. Um começou a falar que Deus amava, que podia transformar, tirar as pessoas da rua. Eu comecei a questionar o cara que ‘se Deus faz tudo isso, por que não faz comigo’. Comecei a falar que ele era mentiroso. Eu era totalmente ateu naquela época. Chegou uma hora que eu o agredi e ele continuou insistindo. Painel - Continuou lá escutando o rapaz com a bíblia na mão? Pastor Netinho - Fui para um lugar onde eu sabia que tinha droga. Na época, tinha um negócio chamado mesclado, uma mistura de tudo, até ácido. Usei e fiquei doido. Nessa loucura toda eu fiquei andando, não sei dizer quanto tempo, mas lembro de que quando o efeito da droga foi passando eu estava próximo a uma ponte, bateu a maior depressão. Eu já estava mal, com o corpo todo doendo. Lembro que em frente a essa ponte havia uma igreja e já era 3h30 da madrugada. Painel - Achou que não tinha solução? Pastor Netinho - Alguém na hora começou a falar na minha cabeça: ‘Você nunca vai ser nada, não vai ter futuro’.

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Laura Tesseti

E aquele negócio ficava falando na minha cabeça: ‘O melhor para você é acabar com sua vida’. Aí, acreditei naquilo e falei: ‘É verdade. Eu já tentei fugir de casa, tentei roubar, pedi ajuda e não deu’. As pessoas não acreditam que ali, na rua, pode ter uma pessoa que quer realmente mudança, a maioria não quer, e eu queria. Eu subi na grade dessa ponte e falei ‘Chega, não aguento mais; estou no meu limite.’ Subi nessa ponte e falei “Vou me jogar”. Painel - E o que não te deixou pular da ponte?

Painel - E como foi escutar isso? Pastor Netinho - Fiz uma baita confusão. Sei que nessa onda de eu com a pedra na mão, ele entrou no carro e foi embora. Na hora que ele virou, meu corpo voltou às funções normais, joguei a pedra e fiquei com aquilo na cabeça, pensando se ele era amigo do cara da praça, se ele era o cara da praça, eu não entendi nada. Sei que aquela vontade que eu estava de acabar com a minha vida sumiu, desapareceu, e eu esqueci que eu estava ali para me jogar da ponte e fui embora. Não sei te explicar, mas isso aconteceu e, por causa desse dia, desse homem, não me joguei da ponte.

Painel - Ele era mesmo um policial? Pastor Netinho - Ele parou na minha frente e falou: ‘Ô garoto, eu estava dormindo em casa e Deus me acordou, mandou eu pegar o carro que

As pessoas não acreditam que ali, na rua, pode ter quem quer realmente mudança, a maioria não quer. Eu queria.

Divulgação

Além de atuar como pastor, Netinho segue carreira de músico com a banda gospel Patmus

Ele iria me levar num lugar e falou para eu andar. E eu estou aqui e Deus mandou eu parar, mandou eu sair do carro e pediu para dizer que aquilo que Ele falou lá na praça, Ele está falando para te confirmar hoje, que Ele vai te dar uma família, que Ele vai te tirar da rua”.

Pastor Netinho - Parou um carro próximo onde eu estava. Na hora falei: ‘Vou tacar uma pedra no carro do cara para extravasar’. Ai quase cai, quase escorreguei e fui para a calçada, achei uma pedra. Quando fui tacar a pedra no vidro da frente do carro, que fui fazer a posição de tacar, meu corpo travou. Sabia o que eu ia fazer, sabia que estava com uma pedra, mas o corpo não respondia, e nessa de o corpo não responder, a porta do carro abriu e saiu um cara enorme. Na hora que eu vi, pensei: ‘Meu, é um policial a paisana e o cara vai me bater’.

Painel - Teve problemas de saúde durante esse período na rua? Pastor Netinho - Como eu dormia muito no chão peguei algumas doenças. Tive quase toda a parte interna do corpo comprometida, friagem, infecções, tudo pela droga. Sem comer, fiquei pele e osso. Então meu corpo começou a ter uma reação de dentro para fora, começou a saltar feridas, comecei a ter convulsão. Quando acordava eu estava em hospitais, lembro que muitas das vezes eu ouvia os médicos dizendo que eu estava muito mal, cheguei até ouvir que eu não ia viver muito tempo. Painel - Você ficou muito tempo morando na Praça da Sé? Pastor Netinho - Fiquei. Ali, foi onde eu encontrei amigos que me defendiam. Pelo fato de eu ser pequeno, magro, menor, eles me defendiam dos maiores. Então ali foi minha casa por muito tempo. 

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Painel - Além das doenças, as drogas te causaram mais alguma reação? Pastor Netinho - A pessoa quando se droga, dorme ou anda. Lembro uma vez que eu acordei em Floripa, na praia Joaquina. A única coisa que eu lembro é que em São Paulo, no Mercadão, eu entrei em um caminhão e acordei na Joaquina. Se você me perguntar como eu fiz isso, eu não sei, mas isso aconteceu. Londrina fui também, andando. A droga ela tem umas reações absurdas.

Painel - Ficou naquele lugar? Pastor Netinho - Era uma igreja que estava tendo reunião de jovens e essa banda Katsbarnea estava

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“Foi muito legal meu reencontro com meu pai. Na época, ele me pediu desculpas. Laura Tesseti

Painel - Nessas caminhadas, aconteceu algo que marcou sua vida? Pastor Netinho - Em 1990, acho que 91. Estava passando na rua da Cremação, em São Paulo, e vi um som rolando e pensei: ‘Deve ser uma boate, um bar’. Quando entrei, tinha uns caras tocando uma música mais ou menos isso: ‘Incendeia Senhor a sua igreja, incendeia Senhor a sua noiva’, que é na verdade uma coisa que o pessoal da igreja usa, que é a pessoa incendiar no sentido de crer mais em Deus. Pensei: ‘meter fogo na pessoa? Nossa que lugar é esse? Vamos por fogo então. Esse lugar aqui que eu quero!’. E aí, nessa loucura toda, veio uma senhora (hoje ela é minha amiga, chama Arlete) me abraçou e falou: ‘O filho, seja bem vindo na casa do Senhor’. E me beijou na cabeça, o nde tinha umas feridas. Achei interessante e pensei: ‘Essa mulher é louca ou é porca’. E me abraçou e eu falei: ‘Nossa, casa do Senhor... Que Senhor é esse?’. Aí saiu um cara (ele mora na Alemanha e o apelido dele é Brother Simion), era vocalista de uma banda que chamava Katsbarnea, uma banda que tocava nas faculdades, era uma banda meio contra as drogas.

tocando. No meio da reunião, Estevam Hernandes - que é um pastor -, começou a falar sobre Deus. Não sabia que aquilo era uma Igreja, para mim era uma boate. No meio da fala, ele disse assim: ‘Ei você, garoto que está aqui, Deus falou para você um dia, numa rua, numa praça, que Ele iria te tirar das ruas, que Ele iria te dar uma família’. Ele falou exatamente como o cara da praça e o cara da ponte haviam dito, em épocas diferentes, em anos diferentes. No final do show, fui falar com ele e perguntei: ‘Você conhece os caras lá da ponte e o da praça?’ Ele não entendia o que eu es tava dizendo. Eu disse: ‘Bom, e o Deus lá da ponte?’ Os olhos dele se encheram de lágrima. Ele falou assim: ‘Olha, não conheço essas pessoas, mas conheço Jesus. E Jesus quer mudar a sua vida, quer tirar você dessa situação’.

Painel - E depois, o que aconteceu? Pastor Netinho - Ele perguntou se eu estava com fome, então, me convidou para jantar na casa dele. Acabou a reunião, entrei no carro, fui para a Cremação, onde ele morava. Ele pediu que eu esperasse que eles iriam pedir uma pizza. Estava com muita fome e louco para roubar a casa do cara. Tinha umas comidas de cachorro e eu comi tudo aquilo. Depois disso, comi a pizza e ainda estava louco para roubar a casa. Programei que esperaria eles dormirem e roubaria. Naquele dia, ele me convidou para dormir com eles, no quarto do próprio filho. Pensei: ‘Está muito fácil para roubar isso aqui’. Painel - Qual foi a sensação de dormir em uma cama após tanto tempo nas ruas? Pastor Netinho - Quando deitei no colchão falei: ‘Nossa que coisa boa, cheirando limpo’. Detalhe, eles não me deram banho, eu estava do jeito que eu ficava na rua. Eu falei: ‘Vou esperar todo mundo dormir, aí eu roubo as coisas, pego um saco, uma sacola e levo embora’. Deitei e dormi, só acordei depois de oito dias. Painel - O que aconteceu com você neste período de oito dias? Pastor Netinho - Eu tive convulsão, febre, eles tiveram que chamar médicos, porque eu quase morri. E eles não me levaram ao hospital porque nesse lugar que eles se reuniam, havia médicos e eles mesmos cuidaram de mim. Quando acordei, estava de banho tomado. Mas, lembro que sentia muita dor no corpo, no osso, eu precisava usar droga. Então eles começaram a dar atividades para mim, como limpar banheiro, limpar o local e varrer. Painel - Quanto tempo você ficou morando com essas pessoas? Pastor Netinho - Fiquei um ano morando com eles. Nesse um ano, eu queria fugir, porque eu queria usar a droga. Eles me davam comida ou alguma atividade, como passear no Zoológico, ou em outros lugares.

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Painel - Nunca te pegaram roubando? Pastor Netinho - Lembro de uma situação que foi terrível. Num Natal, eu vi uma carteira cheia de dinheiro numa peça de mármore, na casa de uma dessas pessoas. Deu a recaída. Lembro que fui lá, comi e eles deram parabéns, aqueles negócios de Natal. Aí, fui e roubei a carteira e a mulher me pegou roubando. Quando ela me viu com a carteira nas mãos, ela começou a chorar, porque já fazia um ano que eles estavam me ajudando e, de repente, eles perceberam que na minha cabeça, aquilo não estava tendo resultado. Painel - O que ela fez? Pastor Netinho - Ela começou a chorar e falou: ‘Você é o filho que eu não tive, mas que Deus me deu’. Disse que tinha um presente para mim. Pensei, ‘ela poderia me por para fora’. Ao contrário, ela me presenteou. Ela veio e me abraçou, chorando, eu chorei também. Ela não falou nada da carteira que estava na minha mão, não tinha como esconder. Eu coloquei a carteira no bolso, abri o presente e foi a primeira vez que eu usei um tênis do Michael Jordan. Ela disse: ‘Feliz Natal! Eu te amo. Você é meu filho!’. Ela me viu eu com a carteira e disse: 1Faz o que você achar melhor1. Eu peguei a carteira, coloquei no lugar, e voltei chorando e feliz da vida. Aquelas coisas de amor que eu não tinha nas ruas, com

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Pastor Netinho durante a formatura de sua filha

Divulgação

Painel - Quantos anos você tinha? Você se lembra? Pastor Netinho - 13 anos. Quando eu queria sair, eles me ocupavam. Começaram a me ocupar e, entre um período e o outro, eu me cansava e queria dormir. Como não tinha droga, eu sentia muito sono. Chegava a dormir dois, três dias, direto. E aí, eles me davam remédios. Não só o pessoal da casa, mas também da Igreja, começou a se revezar, afinal, eu era muito agitado em função da droga. Um me levava para a casa do outro. E eles começaram a me dar roupa, banho; e eu roubava eles.

Quando eu saí de casa eles nunca foram atrás de mim. a minha família, eu comecei a ter com eles, com as famílias. Painel - Você foi filho de todo mundo, então? Pastor Netinho - De todos eles, de umas 30 famílias. Muitas vezes eu tive essa recaída de querer roubar, mas eles não falavam nada, eles me abraçavam. Até um dia, no local que eles se reuniam, eles quiseram por carpete, eu ajudei. Só que eles esqueceram que fui um dependente. Sempre falo: ‘Não existe um ex-drogado, existe um drogado controlado’. Eu era um cara que eles estavam controlando e eles foram embora e me deixaram lá. No dia seguinte, acordaram e eu estava desmaiado, tinha cheirado a lata de cola a madrugada inteira. Dei vários motivos para eles me jogarem para fora; mas eles não me jogaram. Painel - Se arrependeu por não atender as expectativas? Pastor Netinho - Lembro que um dia eu sentei com uma daquelas pessoas

e falei: ‘Quero mudar a minha vida. Não quero mais ser dependente. O que posso fazer para retribuir tudo o que vocês estão fazendo por mim?’. Essa pessoa falou: ‘Nada. Só ter vontade e não desistir de você, porque Deus não desistiu e nem nós vamos desistir’. Aquilo acabou comigo. Aquela pessoa falou assim: ‘Vamos fazer o seguinte, faz uma oração comigo’. Fiz a oração com eles e daquele dia em diante não senti mais vontade de usar a droga, eles me puseram na escola, comecei a estudar, me deram trabalho lá mesmo com a coisa que eu gosto que é som. Painel - E como foi o período de adaptação? Pastor Netinho - Sei que foi passando ano a ano, minha vida foi melhorando, meu corpo foi se estabilizando, porque não foi de um dia para a noite que eu fiquei sem. Eu tive que passar por vários processos médicos, muito remédio. Tive que tomar muito remédio controlado também. Painel - Foi lá que você conheceu sua esposa? Pastor Netinho - A minha esposa é de Rio Claro, pertencia a uma realidade totalmente oposta da minha, mas é uma pessoa muito do bem, que sempre me ajudou. A gente se conheceu lá. Ela se reunia com eles também para 11


ajudar pessoas como eu, e a gente se apaixonou, noivou, casou. Eles fizeram meu casamento, me deram tudo, casa, comida, lugar para morar, me deram presente, lua de mel. Painel - E você terminou os estudos? Pastor Netinho - Me formei em engenharia de som, entrei na banda Katsbarnea. Comecei a tocar, foi quando a música gospel começou a evoluir. Na época não existia bandas de rock. Sai dessa banda e montei a minha banda que se chama Patmus e, então, o mercado evangélico começou a crescer, gravamos vários discos. Minha vida mudou totalmente. Tive a minha filha. Painel - Qual é sua fonte de renda hoje? Pastor Netinho - Hoje vivo só de música, tenho a banda Patmus, produzo vários discos. Tenho um estúdio em Limeira. Moro em Rio Claro, mas tenho a minha casa em São Paulo. Vim para Rio Claro porque a minha esposa faz faculdade em Araras. Ela se formou em direito e agora está fazendo psicologia e a minha filha tem o sonho de fazer medicina. Tivemos de nos preocupar com a educação. Estou aqui há um ano, o escritório da banda Patmus continua em São Paulo. Painel - Há quanto tempo a banda Patmus está no meio? Pastor Netinho - A banda Patmus vai completar 14 anos. Temos nove CDs gravados, temos dois DVDs. É uma banda que embora seja gospel foi a primeira banda a tocar na MTV. Na época a PromoLider, uma produtora de filmes, gostou da minha história e da música chamada Caminho. Fiz essa música e estourou nas rádios evangélicas e a produtora propôs fazer um clipe em produção de cinema. Ganhamos um prêmio na MTV e na Multishow. Painel - Seu trabalho é direcionado apenas a evangélicos?

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Muitas daquelas pessoas não vão ter condição de voltar, porque não existe mais condição, só por um milagre. Pastor Netinho - Ele tem conotação, mas não é segmentado para evangélicos, até porque trabalho para todo mundo que quer mudar de vida. Sou pastor há 12 anos, formado em teologia. Fui estudando e até hoje eu estudo. Painel - Você mantém contato com as pessoas que o ajudaram em São Paulo? Pastor Netinho - A maioria eu tenho. São pessoas que vem na minha casa, vou na casa deles. São os meus pais. Hoje tenho contato com a minha mãe biológica e tive contato com o meu pai. Ele faleceu há quatro anos. Tive contatos também depois disso, porque até nisso essas famílias me ajudaram. Diziam que não adiantava estar bem financeiramente, ser casado, não usar mais drogas, se eu não tivesse o contato com a minha família. Falavam que perdão é tudo. Painel - E teve relacionamento com seus pais biológicos após reencontrá-los? Pastor Netinho - Foi difícil fazer isso, mas com o tempo fui conquistando e, hoje, tenho um relacionamento com a minha mãe. É claro que não de mãe, mas tenho relacionamento ótimo com meus irmãos. Foi muito legal meu reencontro com meu pai. Ele me pediu desculpas, se recuperou da bebida, teve que deixar a música, porque ele bebeu tanto que se continuasse na música não conseguiria deixar a bebida. Então, ele deixou a música também, enfim, recuperou a vida dele, casou.

Painel - Qual o maior ensinamento que você trouxe da rua para sua vida? Pastor Netinho - Você tem a mesma probabilidade de estar ali como qualquer outra pessoa, mas é questão de opção ou de escolha. Quando olho para as pessoas, ou para qualquer pessoa na rua, tento não ver indiferença, vejo que ela é só uma pessoa que está num momento de escolha ruim, mas preciso amar essa pessoa, vê-la como eu me vejo. Para isso, eu preciso me amar também, preciso me preservar, curtir a vida, mas com cabeça, com moderação. É independente de religião, a gente precisar olhar para o ser humano com amor. Painel - Existe ‘troca’ de cuidado entre moradores de rua? Pastor Netinho - Por incrível que pareça você vai ver um mendigo ou um menino de rua e um cachorro. E você fala: ‘Poxa, um não larga do outro’. É PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


problema com Conselho Tutelar.

Hoje, tenho um trabalho na Cracolândia; é um trabalho voluntário. A gente tem uma base onde abrimos uma casa com cama. São vários voluntários de diversas áreas.

impressionante, e até um guarda o outro, o cachorro guarda o mendigo na madrugada. E lá na rua tem uma coisa que você compartilha, você não consegue comida, você dá comida para o cara e o cara para você. Existe uma integração, até de drogas, por incrível que pareça. Painel - Então você também aprendeu a ajudar as pessoas? Pastor Netinho - Eu recebi isso lá e não tive isso dentro da minha casa. Na vida normal, por exemplo, quando fui esfaqueado ninguém me ajudou, quem me ajudou foram os mendigos. Hoje, o que eu aprendi da rua é que eu preciso amar o próximo, não amar de boca pra fora, porque é tão banal, falar ‘Ah, eu amo você’, não, mas o que você faz? Por exemplo, você chega para o seu amigo e fala assim: ‘Meu, você está precisando de alguma coisa? Em que eu posso te ajudar? Grana, comida, roupa’. É fazer para a pessoa.

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Painel - Você ajuda pessoas que pedem dinheiro na rua? Pastor Netinho - Sempre falo para as pessoas ‘Nunca dê dinheiro’, porque ela vai atrás da droga. Procura conversar com a pessoa e entender o que realmente está precisando. Ela quer o dinheiro, vai mentir para você. Convença que não é do dinheiro, ela precisa comer, sair daquela vida. Não dou dinheiro, mas convenço a pessoa. Painel - É envolvido em algum trabalho voluntário? Pastor Netinho - Tenho um trabalho hoje na Cracolândia. É um trabalho voluntário, em que a gente tem uma base onde abrimos uma casa com cama. São vários voluntários de diversas áreas, psicólogo, dentista... cada um vai lá e faz o trabalho de graça. De madrugada abrimos para as prostitutas e para as crianças entrarem. Eles entram, a gente oferece comida, conversa, vê o que a pessoa quer, porque a maioria não quer sair desta situação. Essa base chama Geração Para Salvar e é um lugar de drenagem. Quando percebemos que a pessoa quer sair da vida que está levando, a encaminhamos para a casa de recuperação ou para o psicólogo. Isso conforme a idade, porque tem muito

Painel - Financeiramente, como você mantém a Geração Para Salvar? Pastor Netinho - Eu e vários outros cantores pegamos o dinheiro dos CDs e pagamos o aluguel. Os empresários colocam cama, produtos de higiene. Os drogados, por exemplo, quando usam o esmalte, eles cheiram o esmalte, quebram e jogam o vidro no chão, e eles andam descalços, se cortam. Então, os pés dos drogados são muito cortados, e inflamados. Ali que eles pegam as doenças. Então, você tem que ter cuidados de limpeza. Painel - Frequenta muito o local onde a base está localizada? Pastor Netinho - É bem na Cracolândia, na Avenida São João, é um prédio que alugamos faz quatro anos. É um lugar que eu ajudo muito. Não vou muito, acho que uma ou duas vezes por mês. É um lugar que não me traz conforto, é um lugar triste. Embora eu seja muito grato a Deus porque Ele me tirou de lá, mas, ainda assim, é um lugar que me traz muita tristeza, de ver que ali existem pessoas que vão morrer e que não vão ter a oportunidade que eu tive, e, se tiverem, não a escolhem. Painel - Mas você estava lá e quis sair da rua. Qual é a diferença? Pastor Netinho - Hoje o óxi (mistura de pasta-base de cocaína, querosene e cal virgem. É mais devastadora do que crack) é muito mais forte do que as drogas que eu usava. Ele é mais barato, só que compromete a pessoa neurologicamente em três dias por completo. E muitas daquelas pessoas não vão ter condição de voltar, porque não existe mais condição, só por um milagre. E isso eu agradeço a Deus também, porque se eu estivesse lá, certamente hoje eu estaria morto, pelo tanto que eu usei. As drogas que eu usei não me comprometeram como comprometem hoje. 

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sumário

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14 da evolução 14 AA avenida construção da Avenida Armando Salles

de Oliveira foi uma obra de grande porte em Piracicaba na década de 50.

Vemos, mas não enxergamos 18 Poucos municípios preservaram os

paralelepípedos como espaço histórico; o tombamento garante resgatar valores e a memória da sociedade.

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Capacidade especial 20 Não basta somente facilitar o acesso de

Portadores de Necessidades Especiais no espaço público; a conscientização e respeito são fundamentais.

22

Trânsito da cultura e da cidadania Além do fluxo de veículos, as ruas e avenidas têm outra função: difusão de conceitos de cultura e tradições, além de manifestações da população.

Leitura é bom em qualquer lugar 26 Acredite: não há tempo vago que não abrigue uma boa leitura.

Brincando com liberdade 28 Apesar da evolução nos brinquedos infantis afetar a vivência e socialização entre as crianças, as brincadeiras tradicionais ainda continuam a ser praticadas recuperando valores culturais.

Boa Morte 31 A rua tem pontos históricos importantes que permitem entender e recordar o passado.

14

Doença também se pega na rua 34 Cuidados com a higiene são essenciais,

preferencialmente quando as principais contaminações podem ser contraídas na rua.

Na travessa do amor 36 Ao fazer jus ao seu nome, o bairro Vista Alegre

de Santa Bárbara d’Oeste desenvolve trabalhos com objetivo de melhorar o relacionamento familiar e social dos moradores.

Na praça, idosos se divertem 38 Num banco de uma praça, o tempo livre dos idosos dá lugar aos jogos de baralho.

Diversão entre adolescentes 40 O comportamento dos jovens de hoje adequase de acordo com o ambiente e situações do cotidiano. Seja bem vindo à geração Z e Y.

Os flanelinhas sumiram ? 44 É rara a permanência de flanelinhas após

instalação do Zona Azul digital em Piracicaba.

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OPINIÃO

Conversa de rua Cláudia Assencio

“Q

cassencio@hotmail.com

uando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para rua. É nela que se fazem as celebridades e as revoltas. A rua criou um tipo universal que vive em cada aspecto urbano, (...) feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia”. Essas são palavras de João do Rio, jornalista que viveu no século passado, mas que se faz muito atual, quando em tempos de internet e de redes sociais, a informação está à distância de um clique. Sem perceber quantos anos se passaram, ele poderia conversar com Caco Barcelos, Mara Luquet e aconselhar quem está prestes a ser chamado de jornalista de formação. Parece até que a atividade do jornalista se corporativizou e, como o termo “Redação de Jornal”, virou tarefa de escritório, se esqueceu que a vida pulsa lá fora por entre as frestinhas das persianas. Como uma criança que nas ruas se aventura pela primeira vez, são os jovens repórteres da Revista Painel

nº 73, a quem coube a tarefa de “atravessar a rua de si mesmo e olhar a realidade do outro lado de sua visão de mundo”, como ensina a jornalista Eliane Brum, para aprender a arte de “flanar” por elas; de desvendar suas histórias e a de seus freqüentadores. Resgatar o saudosismo das brincadeiras de rua seja nas memórias ou registrado nos caminhos tortuosos de seus paralelepípedos. Perambular com inteligência e olhares atentos para não tropeçar em preconceitos ou cair no lugar comum das deduções. Da experiência de flanar, fica o mandamento: “Lugar de repórter é na rua!” O Flâneur, adverte João do Rio, “é um ingênuo quase sempre, convidado do sereno de todos os bailes para pintar a alma das ruas”. Além das placas com nomes de sentimentos, as ruas têm alma, sim, e são palco de manifestos, de combates, de desafios coletivos e individuas, de civismo e de fé. Aos futuros jovens jornalistas, nessas páginas, ficam as tentativas de fazer das primeiras experiências uma oportunidade de fazer da escrita um ato físico, quase carnal, no diálogo de João do Rio com Caco Barcelos, para apresentar aos leitores um pouco dessa alma encantadora que vive nas ruas.

Do outro lado Rafaela Gazetta

J

rafaela_amigo_16@hotmail.com

á vi e contei várias historias, passei por inúmeras mudanças e presenciei os mais felizes e temíveis fatos. Recebi crianças abandonadas, olhei de perto jovens se destruindo com drogas, fui palco de massacres, conquistas, protestos, passeatas. E embora eu seja hoje, para muitos, acolhedora e hospitaleira, por permitir a livre circulação de pessoas e coisas, fui palco, durante 20 anos na história do Brasil, da maior das injustas e traidoras. Nós, as ruas, durante o regime militar, éramos umas das piores, senão a pior inimiga dos contrários à nova política. Um grupo de amigos reunidos em esquinas, por exemplo, poderia ser fatal. Não se podia falar de política. E quantos jovens e adultos foram perseguidos, presos e mortos, por passarem, talvez, minutos conversando sem sequer fazer nenhuma apologia ao regime. Quanta iniquidade eu assisti sem poder fazer nada. Segundo o ex-ministro Nilmário Miranda e o jornalista Carlos Tibúrcio, escritores do livro Dos Filhos Deste Solo, houve, ao menos, 424 casos de pessoas que PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

teriam morrido ou que são dadas como desaparecidas em razão da ditadura. Neste número estão vítimas de acidentes, suicídios, gente que morreu no exterior e os justiçamentos: esquerdistas assassinados por esquerdistas por serem supostos traidores. Os protestos e passeatas foram iniciativas mais comuns; além de reunirem número significativo de pessoas, eram as únicas formas que encontravam de manifestar insatisfação e revolta. Em 1985 o pesadelo passou e, como diria Rita Lee, “guardo na memória as cenas de um filme em branco e preto, que o vento levou e o tempo traz”. São 27 anos sem ditadura, pouco tempo, mas às vezes sinto-me envergonhada em dizer que, ainda, são em nossas calçadas, esquinas e sarjetas onde o preconceito, a perseguição e o abuso de autoridade mais aparecem. Mas não somos referência, apenas, em situações críticas e turbulentas. Fomos e ainda somos importantes para a realização de eventos alternativos. Na Avenida Paulista, em São Paulo, a Parada do Orgulho LGBT reúne milhares de pessoas todos os anos. Em 2006 a avenida recebeu 2,5 milhões. É por isso que defendemos com unhas e dentes qualquer manifestação que busque a paz e a união entre as pessoas. 15


A aveni

evolu Piracicaba dos anos 50 foi marcada por grandes obras, uma delas foi a criação da Avenida Armando de Salles Oliveira

Fernando Galvão

A avenida Armando de Salles Oliveira é a principal via de acesso da cidade

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Fotos: Arquivo Gazeta de Piracicaba

da da

ução Fernando Galvão fpellini@gmail.com

B

arulho, movimentos, e trânsito intenso. Assim pode ser descrita a Avenida Armando de Salles Oliveira. Com uma circulação de mais de 40 mil veículos por dia, ela é a via mais importante de Piracicaba. Ao longo dos seus 3 km de extensão, notam-se poucos moradores e muito comércio, desde revendedores de carros, até lojas de produtos eletrônicos. “Acho que sou uma das poucas pessoas que ainda moram na avenida. O barulho é muito grande mesmo durante o período da noite, mas eu já me acostumei”, comenta Vagner De-

Avenida vira folia no início do ano

gaspari, que mora entre as ruas Moraes Barros e XV de Novembro. Segundo o arquiteto João Chaddad, a avenida é uma das mais importantes de Piracicaba, pois faz a ligação entre a Vila Rezende e o Centro da cidade, além de ser o melhor caminho entre as cidades de Rio Claro a Limeira e Rio das Pedras a Saltinho. “A criação da via foi de suma importância para o crescimento e desenvolvimento da cidade,”explica. A avenida, construída na década de 50, tem muita história para contar.

Sua trajetória revela bons e maus momentos. Por ter sido construída sob o Rio Itapeva, o local apresenta um grave problema de inundação. “O volume da água hoje é muito grande porque em diversas gestões foram asfaltadas todas as avenidas e ruas de acesso a ela. Antes, como essas ruas eram de paralelepípedo, a água escorria e penetrava no solo. Hoje, não penetram e correm pela superfície, até chegar na avenida”, diz o arquiteto. Helena Santos, moradora da avenida há 10 anos, se lembra da inundação de 2005. Segundo ela, o local parecia um rio. “Era carro, maquina de lavar, colchão. Tinha de tudo boiando na avenida. Depois, quando a água baixou, só ficou lama”, relembra. Segundo o engenheiro civil da prefeitura municipal, Ivan Antônio Patteti, existe um controle feito através de câmeras que monitoram o rio. “Poucas vezes nossa equipe adentrou, pois o acesso é muito difícil. Quando a chuva é muito forte ficamos em alerta analisando, junto com a Defesa Civil, o nível da água no Itapeva”, explica. O secretário de Trânsito e Transportes (Semutran) Paulo Prates diz que outro problema é o fluxo de veículos. Após a enchente, muita lama e sujeira apareceram na avenida

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Quem foi Armando de Salles Oliveira Nascido em 1887, Armando de Salles Oliveira se formou em engenharia civil pela Escola Politécnica de São Paulo. Oliveira foi sempre muito ativo no meio político, integrante do Partido Democrático (PD) e articulista na criação da Frente Única Paulista e ativo na Revolução Constitucionalista de 1932. Ele foi governador do Estado de São Paulo (19331936) e, em sua gestão, criou a Universidade de São Paulo. Rival do então presidente Getúlio Vargas, lançou a sua

candidatura à presidente da República, porém Vargas fechou o Congresso Nacional e cancelou as eleições de 1937, implantando o “Estado Novo”. Após o ato de Getúlio Vargas, Armando de Salles Oliveira ficou em prisão domiciliar por um ano e meio e exilado viveu na França e Estados Unidos, sempre criticando a ditadura imposta em seu país natal. Ele conseguiu sua anistia apenas em 1945, mas muito doente terminou falecendo no mesmo ano.

Arquivo pessoal/Augusto Celso Quintana)

Segundo ele, a dificuldade não é só na Armando de Salles, mas na cidade como um todo. “Em 10 anos, a frota de Piracicaba aumentou 86%, enquanto a população cresceu por volta de 15%. Houve também aumento considerável dos veículos de passagem, em função do crescimento da cidade”, comenta. Segundo Prates, um planejamento para melhorar o escoamento de veículos em toda cidade está sendo feito. “A prefeitura, com um plano de mobilidade, vem trabalhando para minimizar os impactos gerados pelo crescimento da frota, modernizando o transporte coletivo, abrindo avenidas, executando pontes e viadutos”, esclarece. Paulo Prates desmistifica o perigo da famosa “curva do S”, localizada entre as ruas Cristiano Cleopath e Santo Antônio. “Como a via é sentido Centro, e os veículos vindos da Ponte do Mirante e adjacências seguem na grande maioria com destino às áreas comerciais e bairros no entorno antes da curva, conseqüentemente, neste trecho o volume diminui muito, diminuindo assim o risco de acidentes”, explica. O lado festivo do local aparece no início do ano. O Carnaval é uma das alegrias da avenida. Todos os anos ela recebe os foliões que se divertem ao som das escolas de samba da cidade. “É um espaço muito bom. Já é tradição

o Carnaval na avenida, pois aqui é um ponto central, próximo ao terminal e fica fácil o acesso dos moradores de outros bairros”, afirma Odivaldo Daragone, ex-presidente da escola de samba Caxangá. Fotos: Arquivo Gazeta de Piracicaba

Grandes buracos aparecem quando o Itapeva transborda, causando transtornos aos comerciantes

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Lacorte/Arquivo Gazeta de Piracicaba

A construção da avenida foi uma obra de grande porte para a época (à esq.); desfile na Avenida em 1957 (acima); no destaque, interior do córrego Itapeva, que passa abaixo da avenida, é repleto de baratas e morcegos

Dentre tantas avenidas da cidade, a Armando de Salles Oliveira se mostra como um importante marco de Piracicaba. Não só pela sua essencialidade estratégica, mas também pela sua criação em um momento importante para evolução da região. Histórico - A Piracicaba dos anos 50 foi caracterizada pelo empreendedorismo. O prefeito Luciano Guidotti, havia feito diversas obras que mostravam uma cidade pujante. Em sua gestão, entre 1956 e 1959, Piracicaba registrava crescimento urbano com 3.120 novos prédios e 1.073 barracões, a construção de 34 pontes e reforma de estradas, instalação de 1.100 postes com lâmpadas, a abertura de 181 novos trechos de ruas, e a construção do mercado municipal. Uma de suas maiores obras foi a construção da Avenida Armando de Salles Oliveira, que foi continuada por Samuel de Castro Neves e finalizada PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

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por Guidotti. No entanto, a construção consistia na cobertura do Rio Itapeva, que cortava a cidade, assim como o Rio Piracicaba. Uma obra deste porte era um desafio para época, mas foi construída com sucesso. O historiador Augusto Celso Quintana, se lembra da época em que as obras foram iniciadas. Segundo ele, a expectativa pela construção era muito grande. “Todos queriam ver a obra e se perguntavam como era possível fazer uma rua sobre o rio”, diz o historiador. A construção foi feita em parte

com tijolos de barro, tendo a base inferior de pedras argamassadas. O fundo da galeria é de rocha, pois as paredes foram assentadas sobre o antigo leito do rio. Sua característica sinuosa traz a lembrança das curvas do Itapeva, mas o rio não deixou saudade. “Os moradores gostaram das obras, pois era um córrego com muito mato e cheiro forte”, lembra Chaddad. O arquiteto chegou a caminhar por debaixo da avenida e se recorda da cena que presenciou. “Eu caminhei duas vezes dentro do Itapeva. Uma no governo Mendes Thame e outra no governo Humberto de Campos. É assustador. São milhares de baratas e ratos”, recorda. Porém, se a cobertura do rio Itapeva não tivesse sido feita nos anos 50, hoje estaria a céu aberto. Isso por que o Código Florestal (Lei nº4. 771/65) proíbe a cobertura de rio e córregos. A lei é datada de 1965, ou seja, poucos anos depois da obra de construção da Avenida de Armando de Salles Oliveira.  19


Vemos, mas não

enxergamos Amanda Maretti

maandaa_@hotmail.com

C

omo bem lembra o poeta, quem anda pelas ruas dificilmente sabe o valor histórico que elas têm. E que por isso compõe o patrimônio material de uma cidade. Segundo o historiador Alcyr Matthiesen, muitos moradores não sabem a importância que as ruas têm dentro da história de Araras. “As pessoas não resgatam a história. E os paralelepípedos fazem parte desta história e desenvolvimento.

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“Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepia, ao lembrar que aqui passaram sambas imortais, que aqui sangraram pelos nossos pés, que aqui sambaram nossos ancestrais”. Chico Buarque

Hoje como patrimônio ele já não terá asfalto”, conta. Não só os prédios antigos com requintes da arquitetura barroca ou contemporânea que são tombados. A rua, ou melhor, os paralelepípedos, também são. A palavra tombamento é de origem portuguesa e significa fazer um registro do patrimônio de alguém em livros específicos num órgão de Estado que cumpre tal função. O termo a princípio soa estranho. A palavra é utilizada no sentido de registrar algo que é de valor para PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


Fotos: Amanda Maretti

uma comunidade, protegendo-o por meio de legislação específica. O ato de tombar é administrativo, realizado pelo poder público, com o objetivo de preservar bens de valores histórico, cultural, arquitetônico e ambiental. A lei impede que sejam destruídos ou descaracterizados. Assentados na região central de Araras, na metade do século passado (1948), os paralelepípedos guardam muitas histórias, entre elas uma que exemplifica a criatividade e a preocupação dos governantes e líderes da época com a organização do tráfego da cidade. Para demarcar e destacar as ruas preferenciais foram usadas pedras escuras, enquanto que as ruas transversais foram calçadas com paralelepípedos mais claros, criando um contraste visível até hoje. O tráfego em Araras, em 1948 era muito complicado, devido as ruas serem apenas de terra. “A poeira levantava sempre, as pessoas reclamavam demais. O tráfego era realmente muito complicado”, completa Alcyr. Naquela época, o então prefeito interino José Paulino de Oliveira teve a ideia de aproveitar as pedras que havia em uma pedreira na Fazenda Araras. Este local foi desapropriado e a pedreira transformada em paralelepípedos. “Esses blocos foram assentados em grande

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Poucos reconhecem o valor destes paralelepípedos

parte da cidade e que integram a lista de patrimônios tombados em Araras”, conta o historiador Alcyr Matthiesen Sempre que é preciso mexer nas tubulações de água e esgoto, os paralelepípedos são retirados e repostos com facilidade, sem interferir na estrutura de cada rua e todo seu conjunto. “Tombar um espaço que teve uma importante atuação na história de uma cidade é um ato de cidadania. Você está resgando valores de um momento da sociedade e preservando a memória da cidade. Além disso, preserva as ideias de quem um dia pensou naquele espaço. Para seu criador, é uma obra de arte”, opina o arquiteto Felipe Beloto, atual presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultura de Araras (Comphac ). Não é apenas o Comphac que tem o poder de tombar patrimônio de uma cidade. O Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) também atua na mesma área. A diferença é que o Condephaat é ligado ao Estado, responsável pelo tombamento de diversos prédios inclusive os paralelepípedos da região central da cidade. Entre os trechos incluídos no Decreto nº 5.452, de 10 de julho de 2007, homologando o tombamento do pavimento das vias calçadas com paralelepípedos

em Araras, o Comphac nos termos da Lei nº 1.781 de 11 de setembro de 1987, levantou a importância histórica das ruas pavimentadas com paralelepípedos da cidade, as preservando nos termos do projeto de tombamento. Entre os trechos incluídos no decreto estão cerca de 16 ruas, entre elas, as mais importantes como o entorno da Praça Barão, partes das Ruas Tiradentes, Júlio Mesquita, Francisco Leite, Coronel André Ulson Jr. e Vereador Cesário Coimbra, bem como transversais como as Ruas Albino Cardoso, Barão de Arary, Silva Jardim, entre outras. E a lei de tombamentos é clara: “aquele que ameaçar ou destruir um bem tombado está sujeito a processo legal que poderá definir multas, medidas compensatórias ou até mesmo a reconstrução do bem como estava na data do tombamento dependendo do veredicto final do processo” – logo o asfalto não tomará o lugar deles – está dado o recado. “Vamos preservar o que ainda temos diante dos nossos olhos. Infelizmente, muita coisa já se perdeu. E Araras, comparada a outros municípios do país, é rica nesse quesito. E mesmo que um local não seja tombado, não significa que não lhe cabe preservação. Quando um bem público se perde, é parte da memória do povo que vai embora”, completa Felipe Beloto.  21


Capacidade especial Nayara de Oliveira

Q

nacarolini@gmail.com

uase 16 anos e muita vontade de trabalhar. Era o primeiro dia no emprego novo e o horário para ir embora era às 17 horas. Seria, na verdade. Às 18 horas, passando pela portaria, eis que o motorista da van brinca com o segurança do prédio. – Sua arma é de brinquedo, cara? – Mais que depressa, o homem que permanecia horas na portaria pegou seu revolver e um tiro foi o suficiente. A arma disparou sem querer e uma lesão medular o deixou ainda pequeno Nelson Colato em uma cadeira de rodas. Após um tratamento que durou 13 anos, com fisioterapia, 80 sessões de radioterapia, acompanhamento clínico, o pequeno virou gente grande e hoje, com 37 anos, tornou-se um advogado com pós-graduação em Direito Público É especialista em legislação e um dos 10.837 habitantes que possuem algum tipo deficiência, de acordo com dados obtidos pelo Censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e que andam pelas ruas de Nova Odessa, uma cidade com pouco mais de 51 mil habitantes. O mesmo Censo contabilizou, ainda, que o Brasil possui 45,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, ou seja, 23,9% dos cerca de 190 milhões de brasileiros, apresentam pelo menos uma deficiência em qualquer 22

Não se trata apenas de obrigação; a necessidade de adaptações urbanas também é uma questão de consciência.

grau de intensidade, seja dificuldade mental, auditiva, visual ou motora. Diante destes números, é evidente a necessidade de o comportamento humano dar espaço aos princípios básicos do respeito. Todos os dias, estas pessoas saem em busca de realizar seus desejos e, para isto, acabam tendo de colocar em prática o que vai além de qualquer necessidade especial, a capacidade de superação. Para o presidente da Associação de Portadores de Necessidades Especiais de Nova Odessa (APNEN), Carlos Raugust, “acessibilidade significa não apenas permitir que pessoas com deficiências ou mobilidade reduzida participem de atividades que incluem o uso de produtos, serviços e informação, mas a inclusão e extensão do uso destes por todas as parcelas presentes em uma determinada população”. Infelizmente, nem todas as pessoas pensam assim e, tanto em Nova Odessa quanto qualquer outra cidade, estas adaptações acabam sendo realizadas por serem obrigadas por leis. Segundo Raugust, a maior conquista da cidade quanto à adaptação foi a implantação de um elevador no prédio de dois pisos onde funciona a Prefeitura. “Nos

Nelson Colato utiliza o elevador do Paço Municipal todos os dias para chegar a sua sala de trabalho

interiores dos imóveis, as adequações devem existir para um livre acesso de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Os imóveis devem se adaptar para receber as pessoas com deficiênPAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


Fotos: Nayara Oliveira

Extra! O termo PNE (Portador de Necessidades Especiais) nasceu na Conferência Mundial de Salamanca sobre Necessidades Educativas Especiais, em junho de 1994. No entanto, o próprio texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, se refere a “pessoas com deficiência”. Isso em 13/12/06. No Brasil, o Congresso Nacional aprovou a Convenção e seu Protocolo Facultativo pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Exigida por lei, rampas de acesso aos cadeirantes facilita a mobilidade urbana

cia, e não o contrário. E também deve se pensar na hora de fazer uma calçada, evitando degraus, valetas, pisos escorregadios, inclinação e rampas de acesso dentro das normas”. Renato Alfred Raugust é filho de Carlos Raugust. Com 26 anos, também é deficiente e acredita que o preconceito não está nas ruas ou nos imóveis, mas dentro das pessoas. “Se você tem qualquer tipo de deficiência e ficar depressivo, trancado em casa e achar que seus amigos têm que ser deficientes porque você é, você estará sendo preconceituoso. Precisamos mudar essa lógica. Eu nunca sofri preconceitos porque nunca deixei que tivessem essa conduta a meu respeito. Temos que encarar normalmente, temos dificuldades sim, mas quem é de verdade sabe quem é de mentira”. Em 2009, foi elaborado um Plano Diretor de Mobilidade Urbana e Acessibilidade. Criado por uma comissão formada especialmente para localizar e definir estratégias para facilitar a locomoção dos pedestres, além de melhorar o fluxo urbano. “As pessoas precisam aprender que não é porque não existem familiares com PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

necessidades especiais em suas casas que não precisam rebaixar as guias. A municipalidade cumpre seu dever e 70% de seus prédios já estão adequados. Agora, a própria população – não só de Nova Odessa, mas de todas as cidades -, precisam se conscientizar que nas ruas existem pessoas que precisam de adaptações para a sua mobilidade”, disse Colato. Desde então, as obras que vão ser iniciadas ou reformas em prédios públicos da cidade passam por uma avaliação técnica feita por ele. “Verifico se o projeto está dentro dos padrões da ABNT. Em minhas palestras, até brinco um pouco com isso. Digo que se eu não cair numa nova rampa de acesso, é porque ela está boa. É importante ter uma pessoa que também vai ser beneficiada acompanhando as obras”. Mas, estas observações ainda passam longe de ser feitas em construções particulares. “Existe a adaptação visível e a invisível que fica dentro dos prédios, por isso, nem todo mundo tem a consciência que não se trata apenas de obrigação exigida por lei, mas que também é preciso um pouco de conscientização”, afirmou. São dezenas de vagas de estaciona-

mento para deficientes e idosos, guias rebaixadas em diversos cruzamentos da área central e em locais estratégicos como acesso aos comércios. Quando não é possível fazer uma rampa de acesso fixa, são disponibilizadas as rampas móveis, como do prédio onde funciona a Biblioteca Municipal no qual a família doadora do imóvel pediu para que as características históricas do “casarão”, com quase 100 anos, não fossem comprometidas. Todos os micro-ônibus das linhas urbanas do transporte público são adaptados para o transporte de cadeirantes. Isso é apenas o começo, afinal, conscientização é algo que se conquista com o tempo, que pode ser pouco para todas as pessoas que saem diariamente de suas casas e esquecem que as calçadas de suas residências continuarão a ser principal trajeto de centenas de pessoas, e que algumas delas podem possuir estas capacidades especiais, de enfrentar degraus ou desviar deles para poder passar. “Lidar com a deficiência é ver além da aparência física, é lidar com a sensibilidade humana é confrontar a possibilidade de nos tornarmos um”, finalizou Raugust pai.  23


Fotos: Osnei Réstio

Ruas e avenidas dão lugar ao tráfego de pessoas empenhadas na difusão da cultura e da cidadania

Apresentações de grupos de dança são realizadas durante o desfile

Trânsito da cultura e da cidadania Ricardo Gonçalves

goncalves.jornalismo@gmail.com

Q

uem passa pela Avenida Antônio Pinto Duarte em Americana, uma das principais e mais movimentadas vias de acesso da cidade, não imagina que, por alguns dias no ano, o tráfego de veículos dá lugar a outra finalidade - e não por isso menos movimentada: o trânsito de pessoas empenhadas na difusão da cultura e da cidadania. Engana-se quem pensa que isso acontece somente em Americana. Prática comum em cidades do interior,

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ruas e avenidas recebem milhares de foliões no Carnaval, festeiros em época de São João, patriotas em Sete de Setembro ou militantes de causas sociais. Em Americana, por exemplo, a avenida é utilizada para os desfiles cívicos e de Carnaval e, mais recentemente, para abrigar a Virada Cultural Paulista, realizada no último mês de junho. O local tem se tornado ponto de difusão de cultura ao abrigar pela primeira vez a final do Roteiro de Boteco, ação desenvolvida junto aos bares da cidade a fim de promover a economia, o turismo e a tradição dos petiscos de

3º Caminhada pela Vida reúne moradores que reivindicam por melhorias nos bairros

boteco, tão comuns a quem vive no interior. “Eu, quando criança, assistia ao desfile cívico na Rua Fernando de Camargo e com o passar dos anos a participação popular aumentou em todos os sentidos. Tanto que os eventos passaram a serem realizados em Avenidas, que comportam mais pessoas. É um sinal de avanço”, avalia o jornalista americanense Ricardo Camargo. Americana incentiva a prática de eventos de rua e tem se estruturado para receber cada vez mais público. A Carnalegria, festa popular que reuniu só neste ano - durante cinco dias – pelo PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


menos 47 mil pessoas que prestigiaram o desfile das escolas de samba e o show de encerramento. O desfile de Sete de Setembro recebeu cerca de seis mil munícipes. Número de pessoas que dificilmente seria comportado na Rua Fernando de Camargo, antigo ponto do desfile, no centro da cidade. Para abrigar tanta gente, de acordo com a Secretaria de Cultura e Turismo, a Avenida Antônio Pinto Duarte conta com uma estrutura de arquibancadas com capacidade para aproximadamente quatro mil pessoas sentadas. Outras ações importantes também PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

acontecem nas ruas de Americana. A ação intitulada de “Caminhada Pela Vida” reúne moradores da região oeste da cidade todos os anos com o intuito principal de exercer cidadania e reivindicar por melhorias nos bairros do município. Tradicionalmente no mês de maio, os organizadores do Sombra (Sociedade de Moradores do Jardim Brasília) e da Ambiladimo (Associação dos Moradores do Jardim Ipiranga, Vila Lourecilda, Vila Amorim, Vila Dainese, Jardim Miriam e Vila Omar) junto aos moradores saem às ruas para serem vistos, no sentido literal

da palavra. Além disso, os cidadãos contam com o apoio da Paróquia São Judas Tadeu para realizar caminhadas em prol dos bairros. Com a iniciativa, aproximadamente 300 pessoas caminham coletando reivindicações feitas pelos próprios moradores para encaminharem ao poder público. Segundo organizador da caminhada e presidente do Sombra, Braz Orivaldo Ciuldim, o ato de ir à rua faz com que os problemas e a reivindicações sejam ‘vistas’ pelos demais moradores e pelo poder público. “O objetivo de um evento como esse realizado na rua pela 25


população é a conscientização das pessoas sobre os problemas dos bairros”, explica. “A intenção é que as pessoas saiam às ruas e lutem pelos seus direitos como cidadãos, e que façam cobranças de ações do poder publico”, completa. Opinião endossada pela aposentada e moradora do Jardim Ipiranga, Dirce Martins: “É preciso que as pessoas tomem iniciativa de se manifestarem nas ruas para chamar atenção da população. Quem sabe assim, medidas sejam tomadas e garantam uma melhor qualidade de vida para todos”. O trânsito de Santa Bárbara d’Oeste, cidade vizinha de Americana, também dá lugar ao fluxo de pessoas. Ou melhor, de festeiros de São João. O mês de junho é marcado por quermesses e festas juninas em praticamente todas as paróquias da cidade. A festança vai mais além! Há bairros que reúnem moradores, interditam as ruas e fazem suas próprias festas juninas. É assim no bairro do Jardim Dulce, chamado de “Arraiá do Dulce”. “Todos os anos nos reunimos para celebrar o mês de junho. Enfeitamos a rua, fazemos a fogueira e confraternizamos. O arraiá cresceu tanto que há alguns anos tem até show”, conta a moradora Giovana Scarazzatti. As comemorações de São João reúnem

jovens, crianças, idosos e até moradores de outros bairros. “Moramos nos bairro há 18 anos e transferi essa tradição para os meus filhos”, relata a pedagoga Ângela Granzotto Scarazatti, mãe de Giovana. O som da fanfarra - Buzina, ronco do motor, às vezes freadas bruscas, a poluição sonora comum ao trânsito em qualquer cidade do país, pelo menos uma vez ao ano, dá lugar ao som agradável e sincronizado das fanfarras, como nos desfiles cívicos, por exemplo. É desfile de Sete de Setembro, passeatas, caminhadas, protestos ou até mesmo corridas organizadas como propostas de incentivo ao esporte, como acontece em muitas cidades. Em geral, nos atos cívicos, uma multidão, sim, multidão com centenas de pessoas invadem as ruas de cidades como Piracicaba, Limeira e Nova Odessa, por exemplo. Cerca de 30 mil veículos que trafegam normalmente por Nova Odessa são desbancados por quatro mil pessoas no “Desfile Cívico” que comemoram o aniversário da cidade no mês de maio. Para morador e secretário de Educação do município, Assis das Neves Grillo, “esses eventos de comemoração, tem como objetivo propagar, difundir e divulgar a fundação do município.

Desfile de Carros Antigos

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Fotos: Osnei Réstio

Ao lado, hasteamento dos pavilhões Nacional, Estadual e Municipal; acima, Tiro de Guerra durante Desfile Cívico

Além disso, é uma forma de manter acesa a história e exercer a cidadania”, conta salientando que tudo o que é comemorado em público, na rua, atrai a participação da população. “São datas que envolvem vários povos, culturas, religiões e etnias. Que representam a união e a cidadania”, pontua o fotógrafo, Osnei Réstio, que há 20 anos exerce a profissão e desde 1996 faz coberturas de eventos públicos na cidade. Em Limeira, por exemplo, todos os anos o desfile cívico reúne cinco mil pessoas pelas ruas da cidade. Segundo o tenente coronel Walmir Lunardi Pires Correia, secretário municipal de Segurança Pública, o civismo faz parte do dia a dia e deve sempre ser lembrado: “É importante resgatá-lo, pois às vezes esse dever fica nublado perante nossos olhos”, conta. Em Piracicaba o patriotismo vai mais além. O ato é realizado na Rua Boa Morte e no ano anterior reuniu mais de 15 mil pessoas. As comemorações em ruas e avenidas interditam o trânsito, mas não causam transtorno para a população. “O bloqueio das ruas não geram tanto transtorno para a população”, finaliza o secretário de Educação, Assis das Neves Grillo.  PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

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O segredo é encontrar um tempo para reflexão em meio ao caos urbano

Leitura é bom em qualquer lugar Carla Rossignolli

carlarossignolli@hotmail.com

A

o final de uma sexta-feira gelada, 18h45, em um ônibus lotado, Neide Neves está a caminho de casa depois de uma semana de trabalho. Nas suas mãos, o livro Veronika Decide Morrer. Em meio aos trancos e solavancos do ônibus, a moça de sorriso metalizado se deixa levar a Eslovaquia, cenário da trama auto reflexiva de Paulo Coelho. “É um jeito de fugir do estresse do dia a dia”, confessa a vendedora. Assim como Neide, muitas pessoas aproveitam os pontos de parada de ônibus, nos terminais, e onde mais sobra um tempo livre na correria que a vida urbana impõe, para a leitura, que cada vez mais invade as ruas das cidades. Marley e Eu foi o primeiro livro que eu li inteiro na vida, depois dele sempre carrego um na bolsa para quando paro por aqui”, conta Mariana Ribeiro, estudante do segundo ano do ensino médio. Ela é o

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Apesar do ônibus cheio, Neide Neves concentrada lê seu livro

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Fotos: Carla Rossignolli

Viviane Nunes também não desperdiça um minuto do tempo que espera o ônibus

perfil comum dos leitores da primeira biblioteca em um terminal de ônibus do interior de São Paulo, a Máquina do Saber, que fica em Piracicaba. Desde a inauguração em setembro de 2010, a biblioteca já realizou cerca de 21 mil empréstimos. Dos 2.400 usuários, 78% são mulheres e 57% estão cursando ou apenas cursaram o ensino médio. Usar o tempo que passamos em espaços públicos para realizar atividades que eram feitas dentro de casa é um hábito cada vez mais fácil de ser observado nas ruas. Sem que seja convidada, a vida do outro chega o tempo todo no ouvido alheio. Discussões ao telefone, aquela risada escandalosa, a moça que esconde os olhos molhados no óculos escuro. A maioria finge que não nota. São fiapos da intimidade que escapam por aí. O sociólogo Diego Mélo disserta sobre a questão. “Não é de hoje que as pessoas, em geral, misturam o público com o privado. Problemática histórica da sociologia e antropologia para estabelecer esses limites e a periculosidade dessa relação. Você pode identificar isso no comportamento dos nossos políticos que colocam acima dos interesses públicos, os seus objetivos privados, por exemplo”. Usufruir desses espaços é direito do cidadão, mas muitas vezes não existe essa consciência coletiva de posse de determinados lugares. Amanda Bairral conta que não se sente à vontade a ponto de ler na rua. “Sinto como se PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

todos estivessem reparando em mim, prefiro ficar alerta ao invés de ler ou ouvir música”. Já Natalia Escudeiro, estudante de direito, sempre leva um pocket na bolsa. “Passei da parada certa do ônibus; às vezes perdi o ônibus certo. Até corri o risco de ser atropelada, trombei em lixeiras e tropecei em muitas coisas nas calçada, buracos. Essa mania já me fez passar muita vergonha. Mas o legal ainda é se contorcer para ver o título que a pessoa do lado está lendo. Acho que o título diz muito sobre a pessoa”. No site http://booksonthesubway. tumblr.com/ existem fotos de pessoas lendo nos metrôs de Nova York, ilustrando que essa tendência é mundial. Mas o fato das pessoas sentirem que a rua é um apêndice de suas casas traz muitos benefícios para a sociedade. Esse conceito é importante para formar cidadãos conscientes de que vivem em um espaço, no caso a cidade, que deve ser cuidado e dividido com todos, sempre com muito respeito. Mélo complementa que a consciência de sociedade vem a melhorar porque “supostamente trataremos bem o que é nosso, sendo isso privado ou público”. Como exemplo lembra que não joga lixo no chão de sua casa. “Se a minha rua é reconhecida por mim como extensão da minha casa, então também não farei isso na minha rua e consequentemente terei a mesma noção de cidadania com a minha cidade, com o meu país.  29


Brincando com liberdade É Elaine Pereira

elainep06@hotmail.com

extremamente comum nos dias de hoje encontrar adultos que mantém viva lembranças nostálgicas de sua época, quando as horas de diversão eram passadas fora de casa. Materiais simples encontrados nas próprias ruas juntamente com a vontade de se divertir aguçavam a criatividade da criançada que os transformavam em peças essenciais para as horas de lazer. Um pedaço de tijolo para dar vida para a amarelinha. Pedaços de madeira e garrafas de plástico completava o jogo de tacos. Poucas pedrinhas para jogar cinco Marias. Algumas crianças e era possível brincar de elefantinho colorido, mãe da rua, cantigas de roda. Sem contar os brinquedos que tinham muito mais graça quando utilizados fora de casa, como é o caso das tradicionais bolas, petecas, piões, bicicletas. São inúmeras as opções que já fizeram muita gente feliz e até hoje são passadas de geração para geração. Atualmente, essa tradição está se perdendo por motivos distintos. A invasão das tecnologias, o crescimento urbano que suprime a tranquilidade das ruas, o aumento da violência e das tarefas destinadas às crianças são alguns dos inúmeros fatores que contribuem com o processo da perda desse costume. “Tradicionalmente, a rua é entendida como espaço do social, da construção de relações entre as pessoas, extrapolando o âmbito estritamente familiar. As brincadeiras de rua podem ser pensadas como um espaço de formação de redes de relações im30

A antiga tradição das brincadeiras até hoje encanta as crianças

Lucas se diverte horas soltando pipa

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Fotos: Elaine Pereira

O futebol e a bicicleta nas ruas ainda ocupa grande parte do lazer das crianças

portantes para a troca e aprendizado entre as crianças, dando lugar ao que chamamos de cultura lúdica ou cultura infantil”, diz a pedagoga e professora da UNIMEP, Claudia da Silva Santana. Victor Luciano Furtado, de apenas 10 anos, é morador do bairro Taquaral e diz que o que mais gosta de fazer é brincar fora de casa. Ele não esconde que se rende aos jogos de vídeo game, mas quando questionado sobre sua atividade preferida, responde: “Eu gosto mesmo é de ficar na rua jogando futebol com meus amigos”, conta. Sabrina dos Santos, também com 10 anos, não perde a oportunidade de sentir a liberdade na companhia das amigas. “Minha mãe não me deixa sair todos os dias, mas eu fico sempre pedindo, pedindo, até ela deixar. Se eu não pudesse mais ir para a rua eu ia ficar muito triste porque não gosto de brincar em casa”, diz. Ana Paula Silva, mãe de Sabrina, diz que não cede à vontade da filha todos os dias, mas garante que tem seus motivos. “Tento segurá-la um pouco, ou então fazer com que ela vá com a irmã, porque fico preocupada. Apesar de achar importante que as crianças tenham liberdade, também acho importante ter muito cuidado para que nada errado aconteça, já que lá fora não tenho como protegê-la”, explica. O medo e o cuidado que os pais têm quando os filhos estão nas ruas, não passam nem perto das crianças. Elas nem sequer sabem o que é isso. Enquanto o sol brilha, se sentem donas do pedaço. “Eu fico fora a tarde toda e não tenho medo de nada não. Às vezes eu brigo com alguns colegas, mas a gente se PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

resolve”, diz Lucas Adail, enquanto faz movimentos rápidos e repetitivos ao puxar a linha que prende sua pipa, com o objetivo de fazê-la subir um pouco mais. Durante o jogo de futebol, um chute atravessado acerta o amigo de forma errada. Enquanto alguns soltam pipas, outros vêm e cortam sua linha fazendo com que se perca no ar. No pega-pega nem todos estão de acordo com as regras. Esses são alguns exemplos que levam às mais variadas confusões. Mas na maioria dos casos, esses conflitos não vão além de breves discussões, pois a amizade sempre fala mais alto. Auto defesa - Segundo a diretora do Instituto Superior de Educação Singularidades, de São Paulo Gisela Wajskop, a oportunidade das crianças resolverem seus problemas sem a ajuda dos pais é importante. “O desenvolvimento social é um dos principais fatores positivos dessa questão. A vivência

dessas experiências juntamente com as regras das brincadeiras, os espaços, o fato de ouvirem mais o outro, tudo isso possibilita uma interação maior, exercita a resolução de problemas entre elas sem a ajuda dos adultos e ajudam-nas a serem mais solidárias ao se relacionar com as outras crianças”, diz. Apesar de nos bairros, principalmente aqueles situados na periferia urbana, ainda haver crianças brincando externamente, há um fator que justifica a preocupação de muitos pais. Nas dependências dos bairros Chapadão, Perdizes e alguns outros vizinhos, é comum encontrar a garotada dividindo espaço com os carros de polícia que circulam pelas redondezas frequentemente. “Seria ótimo se pudessem brincar sem estarem em situação de risco. Infelizmente, nos bairros mais humildes, as crianças permanecem pelas ruas mantendo íntimo contato com a polícia e, o que é muito pior, com o

Victor e as irmãs Sabrina (rosa) e Adriele se divertem com o jogo da verdade

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A tradicional amarelinha resiste ao tempo

tráfico de drogas”, diz a Promotora da Infância e Juventude de Piracicaba, Milene Telezzi Habice. Ela explica ver duas alternativas para retirar as crianças desta situação de perigo: implantar aulas em período integral ou criar projetos sociais efetivamente funcionais, que garantam atividades pedagógicas, lúdicas, de lazer e esporte em horário complementar ao período escolar. A promotora afirma ser inadequado os pais deixarem seus filhos brincar livremente pelas ruas sem a supervisão de adultos. Olhos atentos - Adrieli Silva de Lima é a irmã que sempre acompanha Sabrina em suas horas de rua. Além da responsabilidade de cuidar da caçula, ela acaba instintivamente olhando pelos outros menores que brincam juntos da irmã. “Geralmente eu sou a mais velha da turma, por isso eu sempre fico de olho para ver se não há confusões ou situações de perigo”, diz a adolescente que aproveita as horas para, sempre que possível, praticar sua atividade favorita: o futebol. Tábata Graziela da Silva é mãe da pequena Maria Alice Leite da Silva, de apenas um ano e meio. Ela diz que em sua infância ficava mais na rua do que na própria casa. Em meio às horas de esconde-esconde, pega-pega, passa anel, salada mista e outras brincadeiras 32

Fotos: Elaine Pereira

O futebol de rua com menino e meninas

que fizeram parte da infância de Tábata, não faltavam pés no chão, roupas sujas e cabelos despenteados. “Minha avó me deixava brincar tranquilamente fora de casa todos os dias”. Ao ser questionada sobre a liberdade que a filha Maria Alice terá, Tábata não tem a menor dúvida. “Ela brinca todos os dias na rua, mas isso porque estou junto. Ela ainda é muito pequena, mas mesmo quando estiver maior, se for preciso, vou segurá-la em casa. Sem dúvidas darei a ela bem menos liberdade de ficar na rua do

que eu tive”, conta a mãe que diz se assustar com o alto índice de pedofilia encontrado nos dias de hoje. Já David Carvalho Santos Júnior, de apenas 10 anos, tem toda a liberdade que precisa. Ele diz em meio a sorrisos o quanto gosta de brincar nas ruas. A alegria de estar entre os colegas fora de casa é perceptível em seu olhar. Sua mãe não pode acompanhá-lo, pois trabalha o dia todo, mas os amigos lhe fazem companhia. “Gosto de andar de bicicleta, de soltar pipa, mas o que eu mais gosto é de jogar bola”.  PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


Boa Morte

Sem os casarões que davam status social a seus moradores, a rua guarda histórias que envolvem folclore e religião

Rafaela Gazetta

rafaela_amigo_16@hotmail.com

Sabrina Franzol

sabrina_franzol@hotmail.com

R

ua da Matriz, Rua do Miguelzinho, Rua do Vigário e, finalmente, Rua Boa Morte. Os nomes foram muitos e as transformações também. Os antigos casarões deram lugar a pontos comerciais, os irregulares paralelepípedos desapareceram com a chegada da massa asfáltica e os pedestres, que outrora caminhavam tranquilamente pela via, passaram a competir com o frenético e conturbado movimento dos carros. 

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Embora tenha recebido muitos títulos, a falta de registros completos e a instabilidade política que a cidade vivenciou no século XIX dificultam dizer com exatidão o momento em que a rua mudava de nome. Segundo Fábio Bragança, historiador da Câmara de Vereadores de Piracicaba, antigamente, a nomenclatura de ruas e avenidas não era feita por força de lei. “Elas eram nomeadas por meio da tradição popular de nomear as coisas de acordo com sua utilidade ou atividade”, conta. A Rua Governador Pedro de Toledo já foi Rua do Comércio, por ser referência àqueles que desejavam consumir, característica preservada até hoje. A atual Campos Salles era Rua da Ponte, porque ligava a ponte que passava sobre o Rio Piracicaba ao centro da cidade. Outra via que teve seu nome modificado foi a Armando de Salles Oliveira, que, em tempos remotos, fora chamada de Rua Itapeva, em alusão ao córrego canalizado, atualmente, subterrâneo à avenida. Com a Rua Boa Morte não foi diferente. Ela recebeu o título de Rua da Matriz por estar localizada à lateral da Catedral de Santo Antonio, o maior símbolo da época na Vila Nova da

Há vinte anos, a comerciante Marinélia Sampaio, vende artefatos indianos na Rua Boa Morte: rua e seu nome se contrastam

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O Centro Cultural Martha Watts, um dos prédios mais antigos da cidade, fica na Boa Morte

Constituição, primeira denominação dada à Piracicaba, em 1821. Também foi chamada por Rua do Miguelzinho, pelo fato de o artista Miguel Arcanjo Benício de Assunção Dutra ter sido o criador da primitiva Igreja Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção, situada naquela via; e Rua do Vigário, porque foi neste local, em 1882, que o padre Francisco Galvão Paes Barros, vigário da paróquia de Santo Antônio, lançou a primeira pedra do Colégio Dom Bosco Assunção, instituição localizada na rua até hoje. A versão mais conhecida e tida como oficial quanto ao nome Boa Morte é que a rua abrigou, entre as décadas de 1850 e 1880, um cemitério, onde hoje está a Paróquia de Santo Antônio – Diocese Catedral de Piracicaba, a famosa Catedral de Santo Antônio. Este cemitério foi construído pela Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, grupo religioso criado em

1853 e liderado pelo artista Miguel Arcanjo. “O primeiro sepultamento foi o de uma senhora de 62 anos, em 2 de janeiro de 1856. Ela se chamava Maria Justina de Almeida e era natural de Bragança Paulista”, conta o professor e historiador Noedi Monteiro. De acordo com ele, ali foram sepultados, também, o major Melchior de Melo Castanho e o ex-regente trino permanente José da Costa Carvalho. “Os restos mortais sepultados no cemitério foram transferidos para o Cemitério Municipal, hoje, conhecido como Cemitério da Saudade, que foi fundado em 1872”, acrescenta Monteiro. Entretanto, com o desenvolvimento do município, surgiu a necessidade de tornar a nomeação de logradouros algo oficial. Por isso, essa responsabilidade ficou a cargo do poder público. “Dessa forma, o que antes era hábito popular passou a ser prática legislativa. Alguns nomes antigos foram mantidos, PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


Fotos: Rafaela Gazetta

A Catedral de Santo Antonio, ao fundo, é o marco principal da Rua Boa Morte

mas a maioria das ruas ganhou novos nomes”, comenta Bragança. Lembranças - A professora aposentada e atual promotora de turismo, a piracicabana Arlete Camargo mora no centro da cidade há mais de 50 anos, destes, 10 somente na Rua Boa Morte. Ela, que acompanhou as mudanças pelas quais a rua passou nas últimas décadas, destaca a derrubada dos antigos casarões para a construção de estabelecimentos comerciais. “A rua tornou-se praticamente comercial”, diz. Segundo Arlete, nos anos 1960, aqueles que moravam nas principais ruas da cidade - Rua XV de Novembro, Rua Moraes Barros, Rua Governador Pedro de Toledo e Rua Boa Morte - ocupavam posições privilegiadas na sociedade. “Morar em uma dessas ruas trazia importância e atribuição de status. Era a elite piracicabana”, acrescenta. PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

Por conta do nome, a Rua Boa Morte desperta, em muitos, a ideia de um lugar tétrico e vazio, mas não é desta maneira que os antigos moradores se recordam do local. “Na década de 1940, quando estava na escola, a saída dos alunos dos colégios Piracicabano e Dom Bosco Assunção era a maior algazarra. As meninas, por exemplo, de saias de prega, camisa e gravata desciam a Boa Morte rindo, conversando. Era cheia de vida. Hoje, o movimento que se vê é de carros, mas ainda assim a rua continua viva”, compara. Quem compartilha a mesma ideia é a baiana Marinélia Sampaio. Ela chegou a Piracicaba com 18 anos e começou a fazer artesanato para vendê-lo na Feira de Artesanato, que existe até hoje na Praça José Bonifácio. Para Marinélia, a rua e a sua atual nomenclatura se contrastam. “Aqui, tudo dá certo, eu sou um exemplo disso e, apesar do nome, a Boa Morte é

uma benção. Para se ter uma ideia, só aqui estão localizados a Catedral, o colégio Dom Bosco e a Igreja dos Frades”, disse ela que, em 1992, junto do marido, abriu uma loja de artigos indianos na Rua Boa Morte. “Estou há 20 anos neste local. Acredito que foi Deus quem me trouxe pra cá e não tenho pretensão em sair”, diz ela, que também tem a sua versão sobre a origem do nome Boa Morte. “Há muitos anos, morava em um edifício da rua, um senhor que, por ser avançado em idade, era auxiliado por uma jovem. Diariamente, ela o levava na cadeira de rodas para passear nas imediações da própria da Boa Morte. Certo dia, passeando como de costume, o senhor morreu e, sem que a jovem percebesse, continuou empurrando-o na cadeira. Pelo fato de esta ter sido uma morte sossegada, sem dor e sofrimento, a rua levou o nome que tem hoje”, conta.  35


Doença

também se pega

na rua Laura Tesseti

laura.tesseti@hotmail.com

A

ndar sempre é considerado um exercício impar para garantir a saúde humana, recomendado pelos médicos. Porém, nem sempre essa exposição pode ser positiva. Nas ruas estão vários tipos de vírus, germes e bactérias que representam riscos diversos pela transmissão de doenças, seja pelo ar ou por um simples gesto, como um abraço ou aperto de mão. Isso porque o próprio homem é o principal transmissor dessas enfermidades. “As principais enfermidades que podem ser contraídas na rua são as relacionadas ao próprio convívio no ambiente urbano e hábitos desenvolvidos nele”, explica a veterinária Camila Vitte Rocha. O vírus da gripe, uma das doenças mais comuns entre a população, é facilmente contraído. A enfermeira Rose Meire Santos explica que o contato próximo colabora para a proliferação. “Quando uma pessoa está gripada, quem convive com ela provavelmente contrairá o vírus, a gripe é facilmente transmitida, mas com cuidados básicos ela pode ser facilmente evitada”, explica. O gestor de negócios internacionais Diego Luiz Milani sofreu com uma mutação grave do vírus da gripe. Em outubro de 2011, durante um intercâmbio

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Basta um aperto de mão ou passar ao lado de alguém que espirra para contrair um vírus ou uma bactéria que possa afetar a saúde para a cidade de Puebla, no México, Diego contraiu o vírus H1N1, também chamado de influenza, popularmente conhecido como a gripe do porco. “Os sintomas no começo eram muito parecidos com uma gripe comum, mas a presença de vomito era constante, então resolvi procurar ajuda”, diz. Em dois dias, os resultados dos exames ficaram prontos e Diego foi diagnosticado com o vírus. “Fiquei assustado, pois foi quando o assunto

Semelhante Semelhante aa uma uma gripe, gripe, aa Influenza Influenza A, A, também também chamada chamada de de H1N1, H1N1, tornava tornava obrigatório obrigatório oo uso uso de de máscaras máscaras para para quem quem estivesse estivesse contaminado contaminado com com oo vírus vírus

estava em alta na mídia, tive que usar máscara, o que era muito comum por lá, mas não para mim. Demorei a contar para minha família no Brasil o que tinha acontecido”. Segundo Milani, a gripe aguda passou após sete dias. “Com certeza contraí na rua. Estudava, trabalhava e estava o tempo todo em contato com outras pessoas”, finaliza. Doenças relacionadas ao convívio de humanos com animais de rua ou os que vivem do lixo urbano, como ratos, baratas e escorpiões, também são comuns. É o caso da leptospirose, transmitida pela urina dos ratos e presente na água, sendo comum em regiões que sofrem com enchentes. Entre os sintomas da doença, estão febre alta, dores de cabeça e dor muscular. Se não tratada, pode levar a complicações hepáticas e neurológicas, podendo levar à morte, explica Camila Vitte Rocha. Existem também doenças causadas por micoses de pele, comuns em animais e seres humanos. “Chamamos de sarna sarcóptica, mais comum que se contraia por contato com os animais domésticos que costumam sair para PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


Gatos que apresentam um quadro de diarreia podem estar infectados pelo vírus da toxoplasmose. A doença, se transmitida para mulheres gestantes, pode ser letal ao feto

PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

como olhos, boca e nariz”, completa. A toxoplasmose, parasita de sangue transmitido por filhotes de gatos infectados com quadro de diarreias, não costuma ser grave para adultos, que não apresentam sintomas, mas pode ser fatal para mulheres grávidas se infectadas. A doença pode causar deformidades no bebê ou até mesmo levar ao aborto. Para Márcia Camargo, infectada pela doença, a toxoplasmose aconteceu durante a gestação de sua primeira filha e causou um espanto muito grande.

Fotos: Laura Tesseti

dar aquela voltinha e depois retornam à casa”, explica a veterinária, que lembra também de um problema que muitas pessoas não costumam dar atenção: as verminoses, cujas larvas podem causar doenças de pele, bicho geográfico e lesões em tecidos como o intestino. “Estas verminoses são encontradas em abundância nas inofensivas areias de parques e praças, onde crianças costumam brincar, entrando em contato com as mãos, pés e eventualmente mucosas

“Quando descobri que estava doente fiquei muito assustada e com muito medo de perder minha filha”, conta. Ela contraiu o vírus na rua, pois não tinha gato em casa. “Ouvi muitas histórias, algumas até que poderia ter contraído a doença de pássaros, mas os médicos me explicaram que os transmissores são gatos que normalmente moram na rua”. O tratamento, explicou, foi bastante severo, mas os médicos em todo momento tentavam fazer com que o bebê que esperava não sofresse com a doença. “Tomei remédios muito fortes e fiz repouso absoluto, tudo para preservar minha saúde e a da minha filha”, conta. Outra doença comum que pode ser contraída na rua é a intoxicação alimentar, decorrente de maus hábitos alimentares e das famosas comidas em carrinhos de rua, tão apreciadas com a correria da vida moderna, geralmente transmitidas por bactérias que contaminam os alimentos, seja por má manipulação ou conservação inadequada. Ana Caroline Bueno, estudante de engenharia civil, conta que já foi vítima de intoxicação alimentar que a deixou internada por vários dias. “Passei muito mal, e os médicos, após alguns exames, disseram que foi intoxicação de algo que eu comi, algum alimento mal conservado ou com problemas na hora do preparo”, conta. A estudante passou três dias hospitalizada devido à doença. “Agora, procuro sempre prestar muita atenção nos alimento que consumo, afinal estamos sujeitos a isso o tempo todo”, ressaltou. 

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Durante as tardes, Mayara Maísa Pojjato participa das oficinas de artesanato

Na

travessa

do amor

Cíntia Tavares

ciintiatavares@hotmail.com

A

lguém já lhe disse que o seu nome tem tudo a ver com a sua personalidade ou com as atitudes que tem? Acredite ou não, mas com as ruas isso também acontece. Ao menos no Jardim Vista Alegre, em Santa Bárbara d’Oeste. Lá as ruas, avenidas e travessas receberam nomes de sentimentos e emoções por meio do decreto do prefeito Isaías Hermínio Romano, de número 1715/83 de 26 de janeiro de 1983. Na Rua do Amor, número 685, a Amev (Associação dos Moradores do Eldorado, Vista Alegre e Adjacências) faz jus ao endereço que recebeu e de-

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Em Santa Barbara D’Oeste, o Jardim Vista Alegre tem as ruas com nomes de sentimentos

senvolve um trabalho de formação de cidadão com 95 crianças, 15 adultos e cerca de 20 idosos. A instituição foi fundada em 2004 por Benedito Samuel Barbosa, que idealizava a construção de um espaço onde as crianças receberiam atividades que auxiliem no desenvolvimento do caráter. Barbosa conta que um pouco antes, na década de 90, o movimento já existia reunindo crianças e adolescentes. “Chegamos a reunir uma médica de 100 crianças e adolescentes. O trabalho começou a crescer e logo a equipe aumentou”, ressalta. Foi nesta fase do projeto que a psicopedagoga Rita de Cássia Martins Souza se aliou ao trabalho, quando surgiu a parceria que iria promover o início das oficinas na associação. PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


“Incluímos um projeto meu que se chama Recanto da Criança e iniciamos as oficinas de preparo com os grupos que recebemos”, explica. Matheus Felipe da Silva tem 9 anos e é uma das crianças atendidas pela Amev. Para ele, as oportunidades oferecidas são ensinamentos que podem ser levados por toda a vida. De tudo, o que ele mais gosta é das aulas de esporte, de jogar futebol e brincar de circo. Mas, não pense que ele quer ser jogador de futebol e ou viajar com o circo. Ele quer mesmo é ser médico. “Quero ajudar as pessoas”. De segunda à sexta-feira, das 8h às 16h30, a Amev realiza as atividades com o público participante. Para as crianças e adolescentes de três a 16 anos são oferecidas as oficinas de dança, teclado, violão, esporte, artesanato, inclusão digital e informática. Uma parceria com a prefeitura do município possibilita ainda as aulas de karatê, circo, orientação psicológica, desenho artístico, alfabetização para adultos e grupo de idosos. Neste período, há ainda as capacitações profissionais, em cursos como assistente administrativo, vendas e informática. Rita reforça que o trabalho da Amev prioriza, inteiramente, o relacionamento humano, criando um ambiente familiar, baseado no diálogo, no ensino e no acolhimento. “Informar é formar. Sabemos que cada vez mais a carência está relacionada ao afeto e ao diálogo, e não tanto mais às questões financeiras”. Há algumas quadras dali, na Rua da Bondade, número 417, a Drogaria Vista Alegre, desenvolve há 20 anos o cuidado com a saúde. José Alécio Sousa Bezerra trabalha há 19 na farmácia. “Uma vez uma senhora teve um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e eu auxiliei nos primeiros socorros. Depois de algum tempo, ela voltou ao estabelecimento para agradecer pelo atendimento prestado”, conta. Este é apenas um dos casos em que Bezerra afirma perceber que a bondade vai além da cor, da religião ou dos valores individuais de cada ser humano. “Nosso intuito é ajudar qualquer pessoa. É gratificante ouvir alguém dizer: Você PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

Fotos: Cíntia Tavares

Localizada na rua do Amor, 685, a Amev atende no horário contrário ao do período escolar e oferece todo o tido de capacitação, desde oficinas lúdicas à profissionais

Outras ruas Andar pelo bairro Jardim Vista Alegre é sentir-se num espaço bem diferente, pelos nomes que as ruas levam: • • • • • • • • • • • • • • • •

Rua da Alegria Rua da Amizade Rua da Beleza Rua da Benignidade Rua da Bonança Rua da Vontade Rua das Bem Aventuranças Travessa da Camaradagem Travessa da Caridade Travessa da Comunhão Travessa da Felicidade Travessa da Harmonia Travessa da Justiça Travessa da Mansidão Travessa da Paz Travessa da Sabedoria

salvou a minha vida! A gente faz o bem sem olhar a quem”. Uma forma de atendimento que já não é realizada nos últimos anos ainda faz parte da dinâmica de trabalho desta equipe. Eles se descolam até a residência do cliente para o atendimento domiciliar. Ele destaca que este atendimento geralmente é feito com pessoas acamadas, ou que sofreram algum tipo de acidente ou cirurgia. “Medimos a pressão, aplicamos o medicamento. Um paciente em especial, que mora aqui nesta mesma rua, ficou surpreso quando cheguei na casa dele para o atendimento. Ele não conseguia se locomover e este tipo de cuidado, facilita o tratamento”, explica. Fora do bairro - É na Avenida da Amizade - uma das mais conhecidas em Santa Barbara D’Oeste, que grupos de amigos encontram um espaço para conversar, ter momentos de diversão ou até mesmo fazer novas amizades. O point que atrai estas pessoas é o Posto de Combustível e Padaria da Amizade. Mas o que quase ninguém sabe é que a empresa é resultado de uma amizade de longa data. Gabriela Luchiari, é filha de um dos proprietários e conta que o estabelecimento surgiu há cerca de 17 anos. Os fundadores? Dois melhores amigos de infância. “O primeiro passo foi selar a amizade com a inauguração do posto, em seguida o surgimento da padaria deu sequência a essa história”. 39


Quando você pensa em idosos, pensa em pijama e cobertor? Que nada: hoje, eles se divertem jogando caxeta. Luana Rodrigues

O

fato é que de uns anos para cá os padrões mudaram, as pessoas têm chegado à terceira idade cada vez mais fortes e saudáveis. Quem passou dos 60 anos nos dias de hoje, acostumou com uma vida agitada, repleta de atividades físicas. Não é à toa que há procura cada vez maior por lazer e diversão. Ainda assim, os passeios na pracinha só para se divertir em uma partida de caxeta é uma das atividades mais comuns entre eles, a maioria aposentado. Na segunda metade do século XV, os comerciantes italianos, espanhóis e holandeses realizavam parte das suas atividades nos portos ingleses. A partir daí, rapidamente, as cartas foram importadas e alcançaram extraordinária expansão, mesmo essa prática sendo considerada ilegal. Os jogos com cartas eram realizados inclusive pela realeza; e são as vestimentas usadas pelas classes mais elevadas da sociedade inglesa retratadas nas figuras do baralho da primeira metade do século XVI. Um livro de contabilidade de certa duquesa de Luxemburgo comprovava a compra de um baralho, com data de entrada de 14 de maio de 1379. As cartas da época eram feitas à mão, praticamente esculpidas em alto relevo em blocos de madeira, o que as tornavam caras. Por volta de 1400, ocorreu o advento da imprensa e as cartas 40

Na Praça, idosos se

divertem

Fotos: Luana Rodrigues

luuana.rodrigues@hotmail.com

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As praças das ruas viram encontro de senhores que se divertem com os mais variados tipos de jogos com cartas

começaram a ficar mais populares, e chegando a competir com as imagens religiosas. Na Europa do século XV, os naipes variavam. Podiam chegar a ser cinco. Na Alemanha, eram copas, sinos, folhas e bolotas e outros símbolos. Na Itália e na Espanha, cartas desse século eram dos naipes espadas, batons, copos e moedas. Diversão - Os jogos de baralho mais conhecidos são: truco, pôquer, caxeta e buraco. A caxeta, também conhecida como pife, é um jogo popular no Brasil e tem como objetivo bater primeiro, formando combinações válidas na mão e baixar na mesa antes dos adversários. PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

Quem está na terceira idade normalmente vê no baralho uma forma de lazer. É ocupação do tempo livre com a execução de atividades rotineiras, mas sem a obrigatoriedade. Jogos como dominó, xadrez, damas, baralho são perseverados no tempo e ganham adeptos que se encontram com frequência nas praças. Eles vão diariamente, sentam-se nas mesinhas de concreto e ficam horas e horas se divertindo. E isso o que acontece na Praça Rosa Granzotto Rosada (antiga Nações Unidas), na Boa Vista, em Limeira. Lá, estão aposentados dos mais diferentes ramos: mecânico automotivo, operários, plantação de laranjas. E nfim, não importa a profissão, todos se encontram para o tradicional jogo. Isoel Peixoto dos Santos, 76 anos, é aposentado. Ele frequenta a praça há mais de três anos para jogar caxeta, atividade que ocupa seu tempo livre, além de fortalecer as amizades. “Quando não estou na praça, ajudo minha esposa nos afazeres domésticos”, conta. Com o processo natural de envelhecimento surgem mudanças nos interesses, nas preferências relacionadas às atividades de lazer. “Jogar caxeta é uma delícia, não apostamos dinheiro, é nosso prazer estar com amigos”, conta Orlando Ferrari, de 81, jogador há mais de cinco anos. A amizade criada por eles na Praça é evidente aos olhos de quem passa por ali. A alegria é contagiante, brincadeiras saudáveis e muito respeito. É importante que os idosos tenham motivação em ocupar seu tempo livre conquistado após anos de trabalho, dedicação e contribuição.

Segundo a assistente social Cláudia Marques, a sociedade de forma geral, não está preparada para lidar com o envelhecimento, apta a receber uma criança, mas não um idoso. “Chegará um momento em que a população idosa será a maior camada da pirâmide. Infelizmente ainda existe muito preconceito com a terceira idade”, constata. A perda da autonomia, a limitação física e o abandono familiar são as principais queixas dos idosos, revela a assistente social. Existem alguns projetos voltados à terceira idade que fazem com que os idosos não se sintam abandonados, que trazem para eles outras opções de lazer. “O Centro de Convivência para Terceira Idade”, “Jogos para idosos” e a vacinação contra a gripe é bastante importante para que o idoso não se sinta excluído socialmente. Conquistas, criação dos filhos, aquisição da aposentadoria e ter prioridades no atendimento ajudam a ter uma vida menos agitada. Para eles, pertencer a essa faixa etária é muito importante, pois carrega na bagagem histórias de vida, diz a assistente social Cláudia Marques. Dirceu Moreira, por exemplo, aposentado, pai de quatro filhos e cinco netos, diz que ainda quer ver os bisnetos. Além da aposentadoria, existe o BFC - Beneficio de Prestação Continuada-, um beneficio da assistência social, integrante do Sistema Único de Assistência Social, pago pelo governo federal e assegurado por lei para os idosos. Para acessá-lo, não é necessário ter contribuído com a Previdência Social. É um benefício individual, não vitalício e intransferível, que assegura a transferência mensal de um salário mínimo ao idoso, com 65 anos ou mais, e à pessoa com deficiência, de qualquer idade, com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Em ambos os casos, devem comprovar não possuir meios de prover a própria manutenção, nem tê-la provida por sua família.  41


Diversão entre adolescen Jovens estão cada vez mais independen Raphael Justino

raphaeljust@hotmail.com

E

m tempos de modernidade, os jovens têm se adequado cada vez mais ao contexto em que vivem. Os chamados indivíduos da geração Z (de 6 a 17 anos) e Y (de 18 a 29) começam a ter liberdade de escolha, que às vezes, foge do controle dos pais ou responsáveis. Acabou a época em que os amigos saiam em direção à casa de amigos e lá ficavam ouvindo músicas e conversando, esse é um comportamento que está com os dias contados. A forma de expressar esse tipo de mudança comportamental, que evoluiu com o passar dos anos, encontra-se nas ruas, pois ela é o palco de inúmeras histórias, de pessoas que se reúnem em determinados espaços públicos e passam horas em pé, ou encostados nos carros, observando o movimento e conversando. Os personagens que integram esta reportagem são pessoas com os mais diferentes gostos, opiniões e hábitos, mas uma coisa é comum entre elas: vivenciar a fase adolescente, considerada inesquecível na vida de todos os homens e mulheres. De um lado, os pais, e do outro, os filhos. O local marcado para os encontros: Rua Piauí, na Vila Cláudia, bairro localizado em Limeira. Cada um com uma visão do mundo que vive, porém, uma relação tão próxima que seria leviano dizer que não são dependentes entre si, até porque as gerações que virão, terão como base ou ponto de partida o ambiente em que seus antepassados vivenciaram. Rafael Henrique Mometti, 19 anos, relata que o interesse em sair para as ruas aconteceu há três anos por meio de convite dos amigos. O jovem conta que, nessa época, era uma pessoa tímida e de poucos assuntos. “A partir do 42

Bar na Rua Piauí é o ponto de encontro de moças e rapazes

momento que comecei a trabalhar e ter meu próprio dinheiro, tive curiosidade de conhecer outros lugares”, afirma. De acordo com ele, o relacionamento com os pais é considerado bom. Sua mãe, a ourives Edna Aparecida Marra, 42, confirma a versão do garoto, aprovando as amizades do filho, reflexo da educação que ele absorveu quando criança. Sobre a diferença de épocas, ela informa que os hábitos dos jovens mudaram significativamente. “O primeiro ponto a ser observado é o consumo de drogas e bebidas alcoólicas. Infelizmente, hoje, vemos que isso tem sido algo comum entre alguns grupos de adolescentes. Quando tinha a idade deles, as diversões eram mais sadias”, relata.

Mometti confessa que sua mãe estipula horários para ele voltar para casa. O rapaz acredita que, mesmo sendo maior de idade, precisa respeitar os pais. Para o jovem, algumas pessoas da idade dele confundem liberdade com vandalismo. “Tem casos que os adolescentes confundem a liberdade dada pelos pais com algo que possam fazer o que quiserem. Percebi que até há pouco tempo, os comportamentos eram diferentes, mas parece que piora a cada dia”, desabafa. O adolescente afirma que está cansado dessa rotina e pretende mudar os locais onde frequenta como bares com música ao vivo e pontos de aglomeração de jovens nas ruas, como para PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


tes muda a cada geração tes para escolher seus locais de lazer Fotos: Raphael Justino

shopping e postos de combustíveis. Esse tipo de lazer acontece duas vezes na semana, geralmente durante o período das 21h à 1h, às quartas-feiras e aos sábados. Perdas - Fabiana Rossi, 17, perdeu o pai quando tinha apenas 6. Aos 12, a segunda perda, foi a mãe. A partir desse momento, a jovem foi morar com uma tia. Em 2009, a garota foi viver com sua irmã, a promotora de eventos Barbara Rossi, 19, que apesar da pouca idade, tem um filho de quatro anos, fruto de um casamento prematuro há cinco anos. Fabiana conta que sua irmã sempre procura saber com quem ela anda, onde vai e que horário volta. Ela diz que o interesse em sair em companhia dos colegas aconteceu em 2008, quando foi para uma festa, porém ela não tem boas recordações desse dia, porque presenciou consumo de drogas, bebidas alcoólicas e sexo. Sobre as amizades, a jovem relata que gosta de chegar nos lugares e se

Rapazes mostram sintonia na forma de demonstrarem a amizade PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012

enturmar com as pessoas. “Não gosto de ficar sozinha. Sempre que chego num barzinho ou num ponto de concentração de jovens, começo a puxar assunto e fazer novos amigos”. Para ela, as conversas entre o grupo que integra são as mais variadas possíveis, desde culinária e esporte, até os temas mais adultos, como comportamento sexual. As irmãs às vezes costumam sair juntas. Barbara comenta que tem um perfil parecido com o de Fabiana e isso contribui para um bom relacionamento entre elas. “Minha irmã nunca deu trabalho sobre a vontade de sair com os amigos. Nossas conversas são francas e abertas. A criação que tivemos de nossos pais, principalmente com a minha mãe, sempre foi de liberdade. Quando acredito que não convém que Fabiana saia, não permito e ela compreende bem esse meu cuidado, até porque sou sua responsável legal após ter recebido a guarda dela na Justiça”, explica. Boa cabeça - Emily Dias Castelani, 16, é descontraída, alegre e consciente dos riscos que a rua oferece. Apesar da idade, ela garante que sabe se divertir. O estilo musical que mais gosta é o rock, mas diz não ter preferência de pessoas. A jovem começou a frequentar as ruas quando tinha 14 anos. “Queria conhecer o mundo que, até então, achava que tinha algo de bom para oferecer. No sentido de lazer nas ruas, aprendi que não tem nada que me faça sentir atração e aprender algo de positivo. Mesmo assim, acredito que a experiência tem sido ótima porque não fico mais somente num ambiente familiar. Tenho que conviver com a realidade e a rua me ensina a não fazer determinados tipos de coisas como, por exemplo, me prostituir e usar drogas”, argumenta.  43


Algo que chama a atenção da adolescente é a forma como alguns jovens se comportam. Emily observa que diversas pessoas mostram dois tipos de personalidades, uma em casa e outra na rua com os colegas. A estudante relata que isso é estranho porque não condiz com a educação recebida pelos pais. Orgulho da filha - Por ser filha única, quando o senso comum aponta que a pessoa é mimada e cheia de manias, a mãe de Emily, a operadora de máquinas Maria do Carmo, 40, sente orgulho da filha. Ela comenta que, no início, houve resistência em permitir que a adolescente saísse, mas com o tempo, começou a sentir confiança na garota. “Minha filha tem amizades com pessoas dos mais variados gostos, estilos e opções sexuais, e nem por isso a julgo como uma pessoa de personalidade deficiente. Pelo contrário, hoje entendo que devemos ter respeito pelas pessoas e saber conviver com os diversos perfis”, explica. Maria do Carmo confia em Emily no que se refere a assuntos como drogas e álcool. A mãe relata que sempre conversa com a jovem para que fique ciente dos malefícios que esses produtos trazem. A filha comentou que sente necessidade de sair de casa como uma opção de distração. “É bom sair para conhecer outras pessoas. Os jovens em geral sentem essa necessidade. Sou uma pessoa que escolhe bem com quem me relaciono. Na maioria das vezes, a amizade fica somente na rua e não costumo levar as pessoas até minha residência”. Emily é romântica e diz que gosta de namoro como os de antigamente, daqueles que o rapaz pega nas mãos, conversa com os pais e pede autorização para o relacionamento. Dessa forma, ela acredita que o respeito se sobressai em relação aos outros tipos de comportamentos existentes numa relação amorosa. A mãe da jovem reconhece que os tempos mudaram. Ela informa que, na idade da filha, seus pais monitoravam as amizades de maneira bastante próxima. Os horários estipulados para retornar para casa eram até no máximo 22h. “Atualmente nossos filhos saem e retornam por volta das 4h ou até mais tarde. Sem contar quando não avisam 44

onde vão. Ainda bem que minha filha é amadurecida quanto a esse tipo de comportamento”, avalia. Estilo prório - Hélio Camussi, 18, conhece as ruas desde os 15. O rapaz acredita que os jovens de hoje não conseguem mais ficar dentro de casa. Bares e points são os locais preferidos dele. “Meus pais ficaram com receio quando falei que começaria a sair para me encontrar com meus amigos. Apesar disso, ambos não proibiram e deram apoio”, conta. Sobre bebidas alcoólicas, o garoto confessa que também bebe, mas, somente em festas fechadas. “Costumo não beber na rua. Se for para tomar alguma bebida alcoólica, que seja numa balada ou chácara. Imagine ficar bêbado na rua e dar trabalho para os outros, além de ter que ser levado para casa ou ao hospital”, salienta. O jovem comenta que seu objetivo ao sair de casa é paquerar as garotas e fazer novos amigos. Ele diz que dependendo da ocasião (ambiente) acaba

As irmãs Fabiana (costas) e Bárbara Rossi (esquerda) contam que costumam sair juntas em alguns eventos

Os jovens têm um jeito todo especial para fazer amizadescumprimento também é próprio PAINEL CIÊNCIA & CULTURA • Agosto/2012


Amigas (maiores de idade) aproveitam para tomar uma cerveja enquanto conversam sobre a vida

Fotos: Raphael Justino

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acontecendo as duas coisas. O pai de Hélio, o porteiro Carlos Augusto, 50, acha que as mudanças no comportamento dos jovens no decorrer das últimas décadas foram acentuadas. “Na minha época, a reunião de amigos eram nas casas ou em clubes. As brincadeiras dançantes eram muito divertidas e sinto saudades daquele tempo. Até a forma de fazer amigos era diferente, porque, na maioria das vezes, já éramos conhecidos por participar de encontros de jovens promovidos na igreja”, relembra o pai do adolescente. Para a cientista social Eloiza Balaroti, os jovens da atualidade estão numa posição de escolhas e, consequentemente, os resultados obtidos por eles estão ligados a seus comportamentos. Ela relata que isso ocorre de acordo com os ambientes frequentados e cita os exemplos de espaços públicos e privados. Balaroti explica que a casa é o sagrado, onde algumas regras são impostas por força de valores morais, costumes e tradições da família. Já, a rua pode ser considerada o lugar do “posso tudo”. Nesse momento, a personalidade de cada um é revelada entre os integrantes do grupo ou tribo. A profissional relata que cada cidade tem sua própria cultura. “Os rapazes e moças se comportam de acordo com os estilos de vida, aprendizados, conhecimentos culturais, entre outros. Dessa maneira, são criados os mais variados perfis de jovens”, comenta. A cientista conclui sua análise ao comparar a juventude de antigamente (anos 60, 70 e 80), por exemplo, com a da atualidade. “Naquelas épocas, principalmente entre os anos de 1960 e 1980, os jovens se reuniam em praças, onde as mulheres rodeavam o local e os homens observavam-nas. Era um tempo de romantismo. Com o passar dos anos, nesse chamado período moderno, o sexo feminino começa a utilizar o mesmo espaço do masculino. Os points nas ruas são um exemplo dessa igualdade entre os gêneros”, finaliza.  45


“Cavalo” ganha seus trocados ajudando no uso de parquímetros e convive em harmonia com fiscais da Zona Azul Digital

Os

flanelinhas

sumiram ?

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Com a chegada do parquímetro, atividade diminui em Piracicaba, e quem insiste tem de se adaptar para conquistar a simpatia da população Leonardo Belquiman belquiman@gmail.com

Leonardo Belquiman

A

instalação do parquímetro na região central de Piracicaba alterou a rotina das pessoas que transitam pelo local. Motoristas, pedestres e comerciantes ainda estão se habituando ao equipamento, que visa dinamizar o estacionamento por meio da cobrança de uma taxa para a permanência de carros nas vagas disponíveis. Com o uso desta tecnologia denominada Zona Azul Digital, a abordagem feita pelos ‘flanelinhas’ aos motoristas se tornou rara naquela região. Os motoristas relatam que estão satisfeitos com o serviço de parquímetro por se sentirem mais seguros com a ausência dos flanelinhas. “A gente nunca sabe se a pessoa está ali com má vontade, sob efeito de álcool ou drogas, ou se está ali apenas para ganhar um trocado”, explica a professora Estela Buarque. “Na dúvida eu sempre andava com umas moedinhas no carro”, completa Estela. “Moro na região central há pouco mais de um ano e, certa vez, minha mãe veio me visitar e foi abordada ao parar na frente de casa. Nos sentimos constrangidos, mas não demos o dinheiro”, conta Cássio Duarte, analista de sistemas. Porém, existe uma exceção à regra: quem frequenta o cruzamento das ruas Moraes Barros e Benjamin Constant, certamente já se deparou com uma figura diferente. Com seu jeito peculiar de se vestir, suas roupas fosforescentes e extravagantes e um bom humor ímpar, Sebastião Rafael é guardador de carros e se destaca em meio ao trânsito da área central. Ele tinha apenas 12 anos quando guardou o primeiro carro, na mesma esquina em que trabalha há 30 anos. É conhecido por ‘Cavalo’ pelos que acompanham seu dia a dia. Sueli Valverde Firmino é comerciante e o define como “um amorzinho”. Ela conta

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que, em um ano que está com a loja naquela região, nunca teve nenhum problema com Cavalo e nunca viu ninguém se queixar dele. “Às vezes, a gente está com pressa para resolver algum assunto aqui da loja e desce do carro correndo, sem se lembrar do ticket. Ele regulariza a situação do carro com seu próprio cartão e depois nos avisa”, explica. Cavalo conta que também fica de olho para ver se os fiscais do parquímetro estão por perto. “Se tem algum carro sem ‘folhinha’ eu já corro avisar quando conheço o motorista”, brinca, enquanto pega um ticket do chão, jogado por um carro. Mostrando o bilhete, revela: “Eu confiro pra ver se tem tempo sobrando e, quando para alguém que não vai demorar, dou o ticket para o motorista”. Isso garante que Cavalo ganhe suas gorjetas. Ele se define um agente de trânsito. “Eu tenho algo que posso chamar de ‘parceria’ com a Prefeitura. Eu não faço coisa errada, trabalho procurando o melhor para as pessoas e para mim”, desabafa. Ele confia que não terá problemas por ficar lá, mesmo após a instalação dos parquímetros. “Já fiz amizade até com os fiscais”, brinca o vigilante. “Além disso, acho que sou uma pessoa querida pelo pessoal que tem comércio aqui. Senão não estaria aqui ainda”, conclui sorrindo. Suely conta que se sente segura com a presença dele nos arredores de sua loja. “Geralmente fico quase uma hora sozinha aqui, depois que os funcionários da loja vão embora”, comenta. “Sempre aviso o Cavalo e ele fica de olho pra qualquer coisa estranha que aconteça, pois essa área é perigosa ao entardecer”, completa a comerciante. “Se um dia impedirem que o Cavalo trabalhe aqui, vou ficar muito chateada”, conta Suely. “Os clientes até sabem que aqui é um lugar seguro para parar, reconhecem que o Cavalo é uma pessoa que agrega valor ao trânsito deste cruzamento”, afirma.  47


artigo

A rua Alexandre Benedetti* arqbenedetti@gmail.com

N As casas eram voltadas para a rua, com seus alpendres e grandes janelas para se ver quem passava e observar o movimento e calçadas onde se recebia os amigos.

A rua se tornou perigosa, não se brinca mais nela. As casas se voltaram para dentro, o que antes tinha relação com a rua se isola nas “áreas de lazer”; as muretas se transformaram em muros altos ou grades altas, trancadas, com cerca elétrica e alarmes.

o princípio apenas um caminho, lugar de passagem, de comunicação entre lugares, de encontrar pessoas, local de convívio, espaço lúdico para as crianças onde se desenvolviam muitas brincadeiras e jogos. Por essa característica “social” atraía o comércio informal de doces, sorvetes, pipoca e alguns serviços (afiador de tesouras e facas, consertos de panelas, por exemplo). As casas eram voltadas para a rua, com seus alpendres e grandes janelas para se ver quem passava e observar o movimento e calçadas onde se recebia os amigos. A calçada nada mais era do que uma extensão do jardim da casa, separada por muros baixos, só para delimitar o privado do público, não tinha função de fechamento, de proteção, era só um limite entre o “meu” e o “nosso” Quem vivia na rua eram os cães e gatos abandonados, vira-latas simpáticos. Eram poucas as pessoas que moravam nas ruas, alguns muito pobres que perderam tudo, por causa de bebida principalmente; eram os chamados “bêbados”, que na sua maioria, não faziam mal a ninguém, pediam ajuda e dormiam nas praças. Alguns eram cheios de histórias que, quando estavam ligeiramente sóbrios, adoravam contar. Mas tudo muda, evolui diriam alguns: de terra batida passa para pavimentada, de pavimentada em pedra passa para revestimentos mais confortáveis como o asfalto e os blocos intertravados de concreto; atualmente, chegamos a um composto de asfalto e borracha reciclada de pneus, que ajudam a solucionar um grande problema que era o da borracha como lixo. E aquele comércio simples, dos tabuleiros e carrinhos se transformou em bancas onde se vende de tudo: de alimentos a CDs, de roupas a eletroeletrônicos, nacionais e importados, fazendo concorrência direta com os comerciantes estabelecidos e que pagam seus impostos. Os cães e gatos agora têm crianças abandonadas, jovens drogados e marginais como companhia. Pronto, a rua se tornou perigosa, não se brinca mais nela. As casas se voltaram para dentro, o que antes tinha relação com a rua se isola nas “áreas de lazer”; as muretas se transformaram em muros altos ou grades altas, trancadas, com cerca elétrica e alarmes. Por causa da falta de segurança pública surgiu um novo elemento nas calçadas: a guarita dos seguranças particulares, para que você possa chegar em sua casa com um mínimo de segurança, sendo assistido no entrar e no sair por um vigilante. A rua onde eu nasci e vivi toda a minha infância e adolescência, onde eu jogava bola e fazia muitas brincadeiras, hoje até para atravessá-la é muito difícil. Aumentou o número de veículos, diminuiu o respeito pelo pedestre; quando o trânsito para, surgem as motos, senhoras das ruas, por entre os carros, por sobre as calçadas. Eles têm que passar, têm pressa e não se importam com nada e com ninguém. O espaço das ruas é o mesmo; talvez um pouco mais largas, talvez um pouco mais confortáveis de se andar, mas mais perigosas, mais selvagens. * Alexandre Benedetti é arquiteto na cidade de Campinas.

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JORNALISMO

É NA UNIMEP  31 anos de ensino de qualidade  Conceito 4 no Enade/MEC  3 mil metros quadrados de laboratórios  4 estrelas no Guia do Estudante em 2011, 2010 e 2009  Curso Premiado na Semana Estado de Jornalismo e Expocom  Convênios, parcerias e estágios em empresas de comunicação da região  Programas de Intercâmbio Internacional  Produção em jornal impresso, revista, rádio, televisão e internet

Informações: (19) 3124.1676 Acesse nossos sites: unimep.br/jornalismo soureporter.com.br jornalunimep.blogspot.com

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