sutil #46

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MAGAZINE DE AMOR, ARTE, CULTURA, TECNOLOGIA, MODA & ESTILO E TENDÊNCIAS JUNHO 2022

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A REALIDADE, A ROTINA, O CONVÍVIO LOCAL E O TÉDIO COMO AMPARO DA NARRATIVA E SUPORTE PARA A IDENTIFICAÇÃO DOS TEMAS ABORDADOS JUNTO AO LEITOR. “PURO ACASO” É MAIS UMA OBRA INSPIRADA NOS CLÁSSICOS DO SUSPENSE PSICOLÓGICO, QUE SUGEREM MAIS DO QUE ESCANCARAM, DEIXANDO PARA QUEM VIER A APRECIÁ-LA A MISSÃO DE DECIDIR AFINAL O QUE LHE CAUSA MAIS IMPACTO, TAL ESTILO OU O TERROR/HORROR. CIRCUNSCRITA A UM ÚNICO E AQUI VAGAMENTE DESCRITO QUARTEIRÃO, A HISTÓRIA GIRA EM TORNO DE UMA FAMÍLIA COMUM QUE AO ENTREGAR-SE CADA VEZ MAIS AO OCULTISMO E AO MAL ─ PERPETUADO PELO ENVOLVIMENTO DOS FILHOS QUANDO AINDA RECÉM-NASCIDOS ─, DESTRÓI A POSSIBILIDADE DE UMA VIDA COMUNITÁRIA SAUDÁVEL AO SEU REDOR. UMA TRAMA TÃO VULGAR QUE AO DESCREVÊ-LA A PERSONAGEM DEMONSTRA-NOS QUE QUANDO O TECIDO DA SANIDADE É ROMPIDO E A ORDEM ESPIRITUAL CONTINUAMENTE AVILTADA, UM VIZINHO QUALQUER PODERÁ PERCEBER E NADA MAIS SERÁ COMO ANTES…



SUTIL É UM MAGAZINE DIGITAL MENSAL E SEM FORMATO PRÉ-DEFINIDO SOBRE AMOR, ARTE, CULTURA, TECNOLOGIA, MODA & ESTILO E TENDÊNCIAS EDITADO PELA PURI PRODUÇÕES NÚMERO 46

SUTIL IS A DIGITAL MAGAZINE RELEASED MONTHLY WITHOUT ANY PRE-FORMAT DEFINED ABOUT LOVE, ART, CULTURE, TECHNOLOGY, FASHION & STYLE AND TRENDS PUBLISHED BY PURI PRODUCTIONS #46


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}editorial

VITÓRIA NA GUERRA Uma das propriedades do aprendizado, a assimilação é fundamental na demonstração prática das nossas formações, sejam elas familiares, formais ou adquiridas “nas pistas”. Tanto que, para reorganizar o conhecimento adquirido na faculdade, por exemplo, o esforço é bem maior do que o esperado, pois já andam na veia à demasiado tempo para ser tão facilmente segregado do próprio Eu e virarem tópicos. Tal recuperação tem aqui um motivo específico: entre crônica, opinião, comentário, artigo, perspectiva ou depoimento, existe uma forma de escrita chamada de “pensata” no jargão jornalístico que nos será útil… Definida como a tradução de uma visão pessoal imbuída de ideias novedosas, o estilo às vezes confundido como pretensão de autor ou enrolação textual por escassez de informações claras rege as publicações por transmitirem a identidade de um veículo ou autor, como na criação das manchetes e títulos. Qual é o por quê dessa apostilada? É que, na nossa concepção, as pensatas que publicamos sobre a guerra na #Ucrânia estavam corretas quanto aos objetivos obscuros do conflito, que era a pura e simples promoção da destruição em larga escala, uma indignação contra a falha de acontecimentos como a pandemia por não terem, enfim, acabado com o Mundo: a inflação chegou ─ também no #Brasil ─, comprometendo a prosperidade que se disseminava. A nossa torcida é que seja tão pontual e igualmente reversível quanto foi o início dessa guerra.


TRILHA-SONORA RECOMENDADA: CHELSEA WOLFE -“HISS SPUN” DAYMARE RECORDS 2017


“PORQUE O PLANETA PRECISA SER ‘ HABITAVEL. NAO RELEGANDO UM LUGAR AO MAL, MAS EXTIRPANDO O MAL DO LUGAR” [ [ - CITACAO DO AUTOR ‘


O

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1 ANO DE RESIDENCIA Considero duas hipóteses: dantes ela falava e ficara muda; ou é muda mas falou naquele dia. O fato é que após ouvi-la desde a minha casa durante meses rastejando, arrastando móveis e atirando objetos ao chão sem nenhuma razão que os justificassem ainda que posteriormente, naquela tarde, virara-se para quem supostamente é a sua mãe e extravasou. Disse algo em altíssimo volume, ecoando uma voz infantil adulterada pelo quarteirão. Lamentavelmente, não consigo recordar o que dissera, se é que naquele momento a compreendi. Foi algo nítido, porém sem um contexto familiar; repentina e imperativamente, mais direta e surpreendentemente sobre mim e o que eu fazia dentro da minha própria casa do que sobre si mesma ou sobre o espaço onde sobrevive. A mãe entretanto foi enfática “Nãããoooo!!!... A gente mata você!”, calando-a. Mais uma vez e, talvez, para sempre. Sem nem perceberem do que ela falava ao certo. Já a tinha ouvido balbuciar algo numa outra ocasião ─ o que me faz duvidar da possibilidade de ser um caso de afonia total ─, quando a vi pela primeira vez, por acaso, pela fresta de uma de nossas janelas que estava entreaberta. Estava próxima ao portão interno do andar de cima onde era a sua casa, e que a separava das demais e da escadaria na área comum que dava acesso à rua. Parecia uma menina normal. Olhava para cima como quem conversava com um adulto oculto por uma das bandas da janela ─ provavelmente, a tal mãe. A seguir a esse episódio ocorrido dias depois que mudei para aquele endereço, silêncio e privação,


porque tampouco ela saía de dentro de sua casa. Digo, nunca sai de casa. Mas aquela 'golfada' gutural que fora interrompida por sua própria mãe catalisou uma série de acontecimentos que pareceu ter sido esboçada antes como nuvens que se movem no céu desenhando figuras durante uma ventania: deflagrou-se uma guerra, imediatamente; e catástrofes, e mortes bizarras tomaram de assalto os noticiários na TV. Culminantemente. Familiares, mas distantes.


Pelo tempo que passou a criança deve estar entocada num dos cômodos da casa. Há dois ou três cães lá vigiando o terraço ao ar livre que separa o portão de acesso à escadaria da entrada para o interior do andar. Aparentemente aquela família é composta por um casal mais um outro filho, maior de idade. Quase diariamente, por volta das 8 horas e durante toda a manhã, a mulher e o rapaz iniciam uma rotina alvoroçada que consiste em entrar e sair de casa, descendo e subindo pelas escadas, indo até à calçada e voltando para dentro após galgarem os três andares que o imóvel possui sem nenhuma necessidade ou tarefa a cumprir, como ligar ou desligar algum ponto de iluminação ou bomba hidráulica, verificar a caixa de correios ou deitar sacos de lixo nas caçambas... Eles ocupam o 3o andar. A situação da menina parece ser gravíssima, muito além de sofrimento por maus tratos, devido à má educação dos pais e irmão ou por portar deficiências físicas. Minhas andanças me dão respaldo suficiente para suspeitar que é mais do que isso, mesmo sendo tudo isto uma abjeta e repugnante crueldade praticada contra uma criança. Em experiências pessoais anteriores noutros locais onde estive a viver, quando alguns pais igualmente mantinham os seus filhos constantemente dentro de casa alijando-os de frequentarem inclusive a escola, mantidos quase sempre malocados durante longos períodos e sob o rigor da lei do silêncio, o motivo era retumbante: vítimas de bruxaria. Neste caso, por causa de alguns flagrantes de conversas ou frases soltas ditas por eles em voz alta, e que invadiam repentinamente o interior da minha casa, parece que é uma das consequências de terem firmado um pacto satânico através dos próprios filhos, que os envolvia consentidamente ou que não era propriamente contra eles. Uma relação sinistra que inclui até abusos psicológicos e sexuais desde quando ainda eram recém-nascidos, e que


impedem desde cedo tanto os seus desenvolvimentos enquanto humanos quanto a recuperação ou reversão do domínio satânico sobre os filhos, numa manutenção diária e constante desse regime prisional das mentes e dos espíritos. Os efeitos de tais relações ou ritual para lá de criminoso tem causado danos colossais no âmbito espiritual ao redor e a partir daquela moradia, enquanto inversamente faz com que os tais praticantes enganosamente galguem patamares mais elevados naquela lógica maligna, arrastando também os cúmplices, seja por compactuarem com aquele inferno, por usufruírem indiretamente de suas práticas ou por mera inércia perante o conhecido. Na verdade, as minhas comprovações do quão pernicioso é o cotidiano daqueles vizinhos começaram ainda naquele episódio em que a menina finalmente falou após alguns dias de mudez sendo sumariamente calada pela mãe: inicialmente encarado como um acidente desconexo, um helicóptero da Polícia Militar que patrulhava a área caiu precisamente naquele mesmo horário em que a criança obedeceu àquela sentença abrupta e que se revelaria fatal, vitimando os 4 policiais que estavam a bordo.


Uma outra influência que reparei quanto aquele tipo de ritual familiar macabro é que as vítimas conseguem rastrear parasitariamente os arredores para 'caçar' o que pressentirem ter a capacidade de lhes devolver algum resquício de inocência ou congraçamento, principalmente durante os picos mais insanos de agonia. De certa forma, ao ter de suportar essa convivência com tal desordem cognitiva e sensitiva que provoca sucessivos distúrbios em toda a vizinhança por ser um novo morador e não se ter a mínima noção de quem habita as redondezas, só fui perceber que este comportamento da criança acaba por se configurar num diabólico sistema de alarme para proteção dos seus próprios algozes a medida em que o calendário avançava, pois perante qualquer iminente 'onda' de positividade ou que viesse a beneficiar algum vizinho espoletavalhes reações não como as típicas de vítimas, mas como as dos predadores. Raramente a menina é a primeira a atacar. Em seu espectro de sensibilidades que na maioria das vezes apenas pude compreender quando era eu a possuir as informações do que estava acontecendo de “positivo” na área já que quase sempre eram fenômenos invisíveis e inaudíveis, suas manifestações se dão quando entende que não haverá um outro recurso após a tal 'onda' ter subsistido a outras tentativas menos agressivas de negativização ou anulação. Daí por diante as atitudes dela costumam ser bastante violentas e desintegradoras; reais cataclismos que mudam até paradigmas. Às vezes chego até a duvidar que a menina exista. Para elaborar uma outra explicação para tudo que presencio vindo daquele local, as atividades paranormais e reativas que computo à ela seriam então praticadas pelos demais três membros da família. É que passados alguns meses e de tê-la visto uma única vez, e ligeiramente pela fresta enquanto passava em frente à janela, já os flagrei a todos completamente transformados, metamorficamente


falando... Em mais do que uma ou duas ocasiões cada um deles, em dias diferentes e espaçados entre si no ano, variando tanto em estaturas e peso quanto tons de pele, fosse no trajeto entre a casa e o portão de entrada ou em público e à vontade diante de incautos vizinhos. Em seus estados físicos e de aparências mais costumeiras, o pai parece ter os seus 55 anos de idade, medir entre 1,80 e 1,85 metros e ficar bem acima dos 100 kg. Pelo uniforme que traja ao sair de casa à pé é funcionário de uma empresa de transporte, mas obedece horários e escalas de folgas irregulares demais para tal vínculo laboral... Apesar da pele rosada e dos impressionantes olhos arredondados, a mãe deve ter a mesma idade que o marido; e uns 1,60 de altura e cerca de 60 quilos. É do lar. Diria que o filho é o mais instável. Nunca aparenta a mesma faixa etária ou tipo físico quando o topo na rua, desde que cheguei, mas deve ter uns 25 anos, 1,75 metros e 70 quilos. Também não sai quase como a irmã para supor que exerça alguma atividade empregatícia, acadêmica, escolar ou ocupacional fora de casa. Quanto à ela, recorrendo apenas à minha memória fotográfica da vez em que a avistei de relance pela janela, acredito que esteja entre os 10 e 12 anos de idade, que atingiu uns 1,40m de altura e, no máximo, uns 45 quilos...


Os dias sucediam as noites que sucediam os dias e nada de a criança reaparecer ou de se ouvir qualquer coisa semelhante à voz de uma menina vindo daquela casa. O comportamento notadamente mais corriqueiro que os reaproxima daquela manhã em que a vi ocorre quando tanto os tiranos quanto os seus fustigados, imiscuídos naquela relação cada vez mais bizarra, assumiam um papel social afetado, dissimulando indignação sob algum sentido de perigo por serem confrontados com os seus próprios delitos. E isto mesmo sem terem conhecimento algum de que estava iminente uma aproximação alheia, que dirá nos momentos de maior crispação com os vizinhos ou transeuntes motivados por reclamações ou ameaças de denúncias. As situações mais alarmantes que se presenciava ali causadas por essa artimanha colérica acontecia quando alguém insinuava formalizar queixas contra eles: os próprios envolvidos passavam imediatamente a agir como se eles fossem os queixosos, tentando disfarçar suas faltas ao imputar a responsabilidade pelas alegadas infrações cometidas ou chateações aos próprios reclamantes ou vítimas, chegando mesmo a acusá-los de terem cometido contra eles aquilo que ainda estariam por lhes apontar.


Eu revi a criança!... Aliás, vi a sua sombra pela janela ao esgueirar-se no cimo da escadaria que liga o portão que dá para a rua ao andar da sua casa para me observar, procurando escapar do meu campo de visão quando me virei. Era o mesmo lugar onde a vira da primeira vez, mas em contraluz com o Sol, o que permitiu-me entrever não mais do que a sua silhueta... Havia tido uma semana desgastante com aquela família. Resolvi estabelecer algum diálogo que rapidamente regrediu para discussões e descambou para brigas, que só não chegaram a virar agressões porque nalgum momento entendemos que ambos perderíamos. Antes disso tinha ido até à delegacia da região pedir orientações sobre como proceder já que o meu contrato de aluguel em vigor era tão recente e ia longe do término, mas também não conseguiria mais conviver passivamente naquele contexto. O agente da polícia que estava de plantão e que me atendeu havia recomendado iniciar essa conversa, porém, como ficou esclarecido que nenhuma aproximação seria amigável, sugeriu que usasse discretamente o smartfone como um gravador de áudios para que em caso de desatinos portasse provas para as apresentar quando regressasse. Graças ao aconselhamento do agente realmente pude registrar falas do pai da menina durante a tal confusão que comprovavam até inesperadas más intenções contra mim prévias ao bate-boca e que desconhecia antes de abordálo, como se eu já não tivesse percebido que impunha esse mesmo tique ameaçador em conversas triviais com a própria mãe.


Mal havia transcorrido a tarde após aquele barraco todo e ouvi o barulho de passos vindos da casa deles, quando inusitadamente coincidiu de os três estarem ausentes. Saíram um a um para se encontrarem todos na calçada da rua em frente ao próprio endereço. Logo a seguir escutei os ruídos: primeiro o de arranhaduras nas paredes ou piso. Isso pouco tempo depois de ter flagrado a menina pelo tal vulto na minha janela, pegando do seu ombro esquerdo até à sua cintura antes de sumir d a minha vista. Era a menina! Mesmo descobrindo através dos seus movimentos corporais e pelos sons que as suas unhas raspando e rasgando fendas nas paredes emitiam já não serem bem os da criança que eu vi falando com alguém assim que fui morar ali... Desde o lado de fora, na rua, e entre eles, a mãe dizia quase aos berros “Ah!... Ela é débil mental...”, como que combinando uma explicação tola qualquer para todo aquele vexame que protagonizaram comigo horas atrás caso acabassem por serem interpelados por alguém ou por alguma autoridade, pois nenhum dos três considerava que aquele nível de exposição fosse uma novidade para todo mundo, e sim, de que a razão era-lhes inevitável e algo cada vez mais inencobrível. Não retornaram para provocarem mais desentendimentos a seguir àquela reunião familiar à berma. Mas, a partir dali comecei a suspeitar também do asseio da criança. Perto de completar 12 meses da assinatura do contrato de aluguel não tinha mais nenhuma ilusão quanto à vontade e capacidade que aquela família teria para retroceder a patamares sociais conciliáveis.


Todavia, o desenrolar dos acontecimentos não significava que as coisas permaneceriam como estavam... Certo dia, alguns burburinhos como sempre nada discretos que ecoavam pelo quarteirão oriundos daquela casa denunciaram que eles praticavam zoofilia e coprofagia contra os cães. Horrorizado, supus que se tratava de mais um elemento do ritual mal disfarçado do qual se atolavam para reforçar ainda mais os efeitos de toda aquela bruxaria invocada, e comecei a me preparar para agir de maneira mais eficaz. Seria preciso não apenas afastar o grupo daquela comunidade como provar que o que estava em curso ali é criminalmente condenável, primordialmente contra a própria filha. De início pensei que tais delações ao relento serão comprováveis por exames como o de corpo de delito caso fossem atividades continuadas... Também me dera conta de que realmente nunca em todo aquele período havia visto alguém dentre eles entrarem em casa com alguma sacola de compras de alimentos ou algo parecido. Passei a imaginar mais vezes por dia como estaria aquela criança. Até que num sábado pela manhã vi um outro homem entrar lá acompanhado pelo morador e com jeito de que fariam juntos algum tipo de conserto ou obra. Dito e feito. Minutos depois de chegarem ouviu-se por toda a vizinhança conversas sobre onde precisavam fazer reparos. Ansiei que aquela seria uma oportunidade para que alguma testemunha surgisse já que o tal senhor veria a menina e o seu estado, mas, nada ocorreu. Horas depois ele retirou-se sem qualquer reação audível ou que transparecesse para a vizinhança que havia visto ali algo anormal. A incógnita não excluiu a hipótese de que o pedreiro não a tenha visto ou que a repentina discrição após entrarem foi mera cumplicidade. Aliás, o mais


provável é a criança ter sido acobertada antes nalgum outro cômodo da casa para receberem tal visita... Eu é que lamentei não ter podido angariar a inesperada testemunha que poderia revelar o que faziam contra aquela menina. Naquela mesma altura do ano e relendo um dos meus livros percebi que uma das personagens é um motorista de ônibus. Seria uma mera e quase banal coincidência se o tal sujeito da vizinhança não tivesse também deixado repentinamente de sair uniformizado de casa para ir à garagem da empresa rodoviária onde pretensamente trabalhava, o que pôs ainda mais em suspeição o vínculo empregatício que ostentava. Talvez ele nunca tenha trabalhado lá.



1 ANO DEPOIS O cotidiano a partir daquela pocilga desvendava-se cada vez mais aterrorizante. A alimentação da família prosseguia sendo uma questão sem respostas. Nunca são vistos subirem com sacos de supermercados, mercearias, feiras ou de qualquer outro comércio para o interior, nem são sentidos cheiros de comidas sendo preparadas lá, que dirá escutar sons de talheres, pratos ou panelas sendo manuseados. Soube que familiares do morador também residiam nas proximidades, mas tampouco saem de casa diariamente para que fosse esta a solução para fazerem suas refeições. Também não frequentam os bares, restaurantes e pensões das redondezas, e nem recebem entregas. Tudo isso se passava comigo até que após quase 1 ano e meio vivendo ali, a tal família ─ sob muito espalhafato ─, mudou-se para um outro lugar. Apesar de toda a movimentação a mudança foi bem rápida, a começar pela aparição de um veículo particular de quatro assentos disponibilizado para uso do chefe da casa com pelo menos uma semana de antecedência daquela que seria a data da retirada dos seus pertences do imóvel. Pareceu-me terem levado pouca mobília e equipamentos básicos depois de retirarem a toque de caixa uma escadaria de metal que possibilitava chegar até ao seu andar para ganharem o espaço suficiente para a passagem dos objetos maiores com ajuda de cordas. Porém, depois da correria e de deixarem o local aos berros e resmungando impropérios, o trecho da escadaria não foi recolocado, dificultando bastante o acesso à casa.


A mudança durou apenas aquela manhã e tarde. E, mesmo não tendo ficado à espreita, bastando ─ como sempre ─, estar dentro da minha própria casa para tomar ciência sobre o que ocorria na deles, não vi nem ouvi levarem os cães e nem a menina. É óbvio que os parentes mais próximos souberam da mudança. Havia comentado também no mesmo dia com a minha corretora sobre aquela novidade em curso mais do que desejada, pois tínhamos um encontro marcado para resolvermos justamente alguns assuntos pendentes do imóvel, quando me perguntou como que cumprindo as suas obrigações sobre as condições do que me alugava. Mais do que uma sensação intuitiva, a possibilidade de terem deixado a criança para trás trancada dentro da casa com os cães era demasiado perturbadora. Consegui segurar um tanto mais a angústia e o impulso de ir chamar por socorro e decidi aguardar mais algumas horas para perceber se ao menos um dos cachorros ladraria. Horas após horas, e alguns dias depois, não se ouviu nada oriundo daquela casa. Ia admitido que afinal todos tinham seguido para uma nova moradia, fossem quantos fossem os que ali moravam. Mas fiquei atento já que o casal ainda retornava e passava alguns minutos lá dentro, como se tivessem coisas por tratar e saindo novamente a seguir. A suspeita ia se esbatendo lentamente a medida em que a visitação tornava-se mais escassa, até que num início de uma noite silenciosa, escutei nitidamente um ruído vindo do seu interior.


Esperei. Fiquei quieto e deixei o interior da minha própria casa o mais silenciosa e sem iluminação possível para confirmar o que ouvira caso o som fosse repetido. Repetiu-se. Não havia mais nenhuma dúvida: efetivamente ainda havia alguém lá dentro. Liguei imediatamente para a polícia pelo número de emergência, cochichando bem baixinho, quase suspirando. A atendente recebeu a denúncia e, ao compreender toda a ocorrência relatada, passou a chamada algo assustada para um outro agente. O segundo atendente recapitulou comigo toda a história, mas antes de dar alguma orientação ou dizer que procedimentos adotariam, a ligação caiu.


Quase 4 meses depois do contato com a polícia as confirmações de que há alguém naquela casa se sucedem, desde pequenos passos em falso e desencontrados ao barulho de um objeto qualquer caindo ao chão. A intenção deve ser a de manter o silêncio total, mas após um prazo já tão extenso a meta deveria ser quase impossível, ainda mais se considerar que o mais provável é que quem está lá dentro é uma menina com aproximadamente 10 anos de idade. As visitas dos pais tornaram-se escassas. Na verdade há um bom tempo que só o ex-morador entra subindo por uma escada portátil de madeira usada para substituir provisoriamente a que foi arrancada, e nunca portando alimentos. Os intervalos entre cada uma delas já chegam a atingir duas semanas. Os ruídos provenientes da casa tida como vazia prosseguiram. Depois de quase 1 ano desde a mudança da família a escada portátil desapareceu de uma noite para o dia, numa madrugada de quinta para uma sexta-feira 13, e o portão que dá acesso à rua fora deixado escancarado. Não fazia sentido terem deixado a tal entrada livre sem a escada que permitia a subida para o 3o andar, mas sentido é o que menos tudo aquilo faz... Entretanto, achei que a qualquer momento a criança poderia sair de casa aproveitando a oportunidade de fuga, mas isto também não ocorreu. Até que dias depois do sumiço do acessório o ex-morador finalmente retornou acompanhado de um outro sujeito e fazendo o alarde costumeiro pelo meio da avenida. Porém, ao perceber a ausência dos degraus assustou-se bastante, perguntando alarmado aos vizinhos sobre a ausência do equipamento. Após reclamações e xingamentos alguém dentre os indagados que se aproximaram dele confessou ter pêgo a tal escada emprestada para fazer um


pequeno reparo doméstico, e o assunto ficou resolvido face ao alívio por saber que ninguém tinha ido ao 3o. andar. Reposicionaram a escada, subiram ambos para o terraço e cerca de 1 hora depois saíram, mas não sem antes de o estranho dizer para o ex-morador uma frase mais do que enigmática: “vou pôr é a sua mulherzinha aqui”, ao que recebeu um reativo e assombrado ”n-nãããõooo!” como resposta. O fato é que pouco tempo depois, ao anoitecer, a mãe da criança reapareceu abrindo o portão com tamanha força que o arrastou calçada à fora até abrir toda a passagem para atracar-se a seguir e intensamente com a escada móvel, subir, e lá ficar durante toda aquela noite. E era aquela a noite de réveillon.



30 ANO No primeiro amanhecer daquele ano um outro casal deixava a casa. Provavelmente devem ter entrado durante a madrugada. Parecia ser o filho com uma amiga. Logo depois o pai reapareceu novamente muito alterado, xingando parentes e vizinhos que em sua maioria nem sequer estavam presentes. Ninguém saiu de dentro de suas casas ou fez-se qualquer sinal de que o estavam ouvindo. Pela barulheira de vassouras começavam uma faxina interna geral, atirando destroços e pedaços de móveis velhos desmontados escadaria abaixo para que fossem deitados ao lixo. Passado mais algum tempo um outro rapaz entrou para ajudar, até que todos saíram de uma vez só. E, ao contrário da vizinhança, após a casa ter ficado presumidamente vazia e sem o estardalhaço que a horda provocava ouviu-se novamente um objeto cair ao chão desde o seu interior, que até juraria que fora feito propositadamente para confirmar que alguém havia permanecido. Há tempos um gato cirandava o quarteirão noite adentro miando como se estivesse num cio incontrolável e que o impelia a procurar acasalamento. Talvez por isso tive um sono menos tranquilo e contínuo uma vez que parecia mais próximo, e pude ver que a mulher regressava àquela casa ainda bem cedinho. Subiu a escadaria nitidamente menos alterada do que no dia anterior, dando-se a si mesma ordenações do tipo “calma! Calma!...”, enquanto prosseguia quase sonâmbula em direção ao terraço.


Ao chegar e para o meu espanto vieram latidos desde o interior, algo que não havia ocorrido desde quando a família mudara de endereço, quase há 1 ano atrás, ao que ela respondeu com chegas-pra-lá e tapinhas como se faz normalmente com os cães ao se entrar em casa. Não ficou mais que 1 hora lá e saiu novamente, mas, cerca de mais outra hora, voltou. Ela continuava com as arrumações. Assim como dantes, o marido teve que a vir buscar para que fossem para a nova residência. Do portão e sem subir para o andar desferiu meia-dúzia de esporros na mulher até que esta descesse e foram-se embora, falando ainda um para o outro da necessidade de maiores cuidados com o suposto animal que afinal havia lá, como aplicarem um produto qualquer contra pragas no ambiente. Mas o vai e vem daquele dia só terminaria mesmo ao meio-dia, porque a senhora retornou sozinha, quase silenciosamente, saindo minutos depois. Como se fosse possível, a situação ficou ainda mais intrigante e acima da estupefação diante daquele enredo tétrico por causa dos latidos de cachorro. A impressão que deu foi que a mulher levara naquela manhã um dentre aqueles seus pets para a tal casa, apesar de não ter escutado o cão quando ela subiu nem antes de entrar. Estranhei o fato e tornei a estar atento a qualquer latido ao longo do restante da tarde, mas, não ladrou. Até que perto de adormecer enquanto repassava toda essa história em pensamentos mais despreocupados me atentei que, se eles não haviam entrado


com o cão e se o animal só latiu quando a mulher entrou em casa , talvez ela tenha retrucado a filha, e não de um de seus cachorros supostamente levados para lá. Era um tanto especulativo mas ponderei que pudessem sim terem devolvido um dos seus cachorros para o terraço, quem sabe para disfarçar algum barulho depois de se darem conta de que a menina haveria de produzir ruídos. E assim foi: na tarde seguinte um desconhecido apareceu por lá. Obedeceu àqueles expedientes de 1 hora cumpridos pela mãe da criança, mas quando voltou no dia seguinte tardou quase o turno inteiro. Por isso pude constatar que, além de a figura ser a de uma outra senhora, afinal, havia mesmo um cachorro lá em cima, apesar de não ser um dos que já tinha visto quando ainda eram vizinhos. Era um outro cão, de porte médio e malhado. Contradizendo as minhas divagações e demais hipóteses que surgiram ao invés de o cão disfarçar a presença da menina acabou por denunciar ainda mais a situação ao servir de referência sonora diferenciada dentre os demais ruídos que provinham da casa. A rotina diária prosseguia. A mesma mulher subia para o andar do topo daquela construção mas, nesta vez, durante a noite. Não a que residia; a outra. Deixava o portão da entrada para o terreno aberto, pernoitava e saía por volta do meio da manhã seguinte, sem nenhum motivo aparente, e em horários não coincidentes.


Há mais de 1 semana que a senhora não aparece para visitar a casa malassombrada. Nem de dia, nem durante horário noturno. O mistério perdurava. Nalgumas noites – foram umas 3 ou 4 ─, ela levava pela mão uma criança, um menino entre os seus 6 e 8 anos de idade, bem falante, e que chegava maravilhado como se estivesse prestes a curtir um parque de diversões. Era meados de Dezembro, e de repente notei que se ouvia desde aquela casa o som repetitivo de algo rígido semelhante ao de uma moeda ou de uma bola de gude sendo quicada em diferentes pontos do andar. Fiquei aterrado porque despertei para o detalhe de que não vira o menino sair com a tal estranha naquela última vez. A senhora retornaria ao local ainda antes do Natal, mas nunca mais revi o menino. Coincidentemente ou não, logo apareceu mais um cão naquela casa. Até que na véspera das festas de fim de ano, a mulher estranha deixou definitivamente de ir até lá, e outros dois homens também desconhecidos é que subiram até ao terraço, em ambas as ocasiões à luz do dia, carregando por fim 2 cachorros em meio a um certo alvoroço como que chamando atenção para aquela movimentação. Novamente a intenção de explanar publicamente que a casa tinha sido finalmente esvaziada seria prontamente desfeita pelo próprio casal de exresidentes... Muito próximo da passagem de ano, os dois voltaram pelo meio da rua desde longe, na gritaria, ficando a mulher ao portão enquanto o homem chamava pelos familiares que moram nas redondezas ainda aos xingamentos debruçando-se na mureta da varanda e deixando a área sem serem correspondidos quando faltavam minutos para às 00:00.


40 ANO Janeiro já ia a meio quando o pai da criança tentou voltar ao recinto, mas foi impelido por um grito púbere e feminino numa frequência tão alta e sobrenatural quanto nítida que decidiu não galgar mais nenhum degrau, recuando. Isso decorreu no mesmo dia em que foi decretada uma trégua nos tumultos generalizados que inundaram as ruas de várias capitais e cidades pelo Mundo, e quando mais um helicóptero da polícia caiu nas proximidades causando a morte de mais 4 agentes. No mês seguinte um temporal que desabou sobre o bairro causou também alguns estragos na vizinhança, provocando mais uma visita de toda a família na manhã posterior para averiguarem o estado em que a casa se encontrava. Algumas telhas haviam sido arrancadas da cobertura do terraço pelo vendaval e, após darem uma olhada geral no imóvel foram embora, retornando, a seguir, sem o filho. Os noticiários continuavam tragédias que reforçavam a afinidade que as escassas manifestações daquela criatura tinha com níveis hecatômbicos de destruição e morte. Mesmo caminhando pelas ruas passando em frente a aparelhos de TV e bancas de jornais, os acidentes, as crises, as intempéries climáticas, as causa mortis, tudo parecia ter assumido um outro patamar e grandiloquência, enquanto a melhor atitude a se ter perante aquela abominação distanciava-se mais e mais junto com as tentativas inconclusivas anteriores.


Ao final daquele dia ao chegar à porta deparei-me com um colchão destroçado na calçada em frente ao portão de entrada da casa deles colocado próximo a um recolhedor de lixo, enquanto o interior estava como quase sempre com as luzes apagadas. Apesar de todos os sinais e da ausência não tardariam a voltar a habitar o maldito andar. Semanas depois as visitas da própria família tornaram-se constantes até retornarem de vez para o local, precisamente no feriado do Carnaval. Sem nenhuma cerimônia ou delongas a família recomeçou a importunar. Alternam entre si os motivos e os turnos das brigas, baixarias e das pausas, mas não conseguem abafar como lhes convém os barulhos vexatórios e inconvenientes causados pelo que terá sido a tal menina. Uma das algazarras mais constantes dos moradores passou a ser o chamar pelos seus cachorros antes tão discretos. Certamente todos os vizinhos aprenderam a reconhecer os animais pelos nomes de tantas eram as vezes por dia em que os ouvíamos. “Mel” era um deles ─ uma alcunha que depois de residir em 3 outros locais onde haviam outros “Mel” entendi que se tornou comum para batizar caninos. Contudo, nesse caso, “Mel” não é o nome de um dos cães que vivem naquela casa...


Por mais um descuido que lhes custava um anonimato pelo qual zelavam acima de qualquer outra razão imaginável, num entardecer nublado qualquer, depois de chamar pelo filho aos gritos desde um outro lado da casa e ser atendida, a mãe dirigiu-se distraidamente para “Mel” e ordenou-a que fosse se deitar com o irmão. “É o seu irmão... ir-mão...”, dizia. Afinal, “Mel” era a menina. Não demorei 2 semanas para obter a comprovação cabal daquela realidade nefasta. Era um sábado e a área estava bastante mais alvoroçada. Até uma igreja evangélica sito àquela artéria do bairro realizava um culto pela manhã ao invés de ao domingo como era o de praxe. Recentemente, “Mel” vinha dando eloquentes mostras de que estava em atividade, tanto que num outro dia quando tanto o pai quanto o filho se ausentaram, e sem que ninguém mais tivesse subido para o terraço, enquanto a mulher lamuriava acompanhando uma estação de rádio, alguém dava marteladas pelo chão e paredes, com golpes desencontrados e de forças variadas, e também contra algo de madeira. Mas, especificamente naquela manhã, não. Deviam estar todos em casa porque assim que a fuzuera da vizinhança abrandou escutei o som inconfundível de um tapa ou murro, seco como um estampido quando se acerta propositadamente um pedaço de carne congelado num açougue, seguindo-se um estrondoso “sai pra lá!”, que ficou sem qualquer resposta. O clima poderia ser pesado naquele instante. Estava tão convicto de que aquele golpe fora dado em algo de carne e osso mas completamente diferente de um ser humano fosse ele magro, obeso, flácido ou rijo, ou até mesmo de um dos animais domésticos, que quando o marido finalmente retrucou algo rompendo com o silêncio parecia ter-se passado uma eternidade:


─ O que que foi?!... ─ Foi ela! ─ disse a mãe. Tentou pegar no meu cabelo! ─ prosseguia. ─ E você vai e dá uma porrada nela?!... A conversa terminou assim. Depois disto, por semanas seguidas, o filho passou a se ausentar de casa durante dias, enquanto o casal voltou a discutir através de impropérios e berrações sem tréguas. Se o que levou aquele soco era a “Mel”, ela já nem sequer terá um aparência humana ou animal. A vida comum ali adensara-se de forma a inviabilizar a sanidade. Houve muitos outros desdobramentos e consequências pelo regresso daqueles moradores à casa do 3o. andar. Comigo ocorreu até um outro confronto num início de noite em que o tal vizinho ao me reconhecer caminhando pela rua desde dentro do seu carro quando eu tinha saído para comprar algo num comércio local abordou-me ameaçadoramente. “Não mexe comigo não, hein!... Nem com ninguém!...”, rosnou algo assim pela janela do lado do motorista, tropegamente, e insistindo para que eu apertasse a sua mão em suposto sinal de paz enquanto mantinha o motor do veículo trabalhando… Acabei sendo induzido pelos acontecimentos e disse-me dissês daquele grupo ao entendimento do fator fulcral que teria gerado todo aquele espectro maligno: eles assassinaram o próprio pai do morador. Da suspeita à hipótese foi mais difícil acreditar que aquilo pudesse ter sido executado por eles estando os envolvidos à solta do que recolher as informações, graças a todo aquele desvario mórbido. A mãe do morador e, portanto, sogra da mãe de “Mel” foi quem os recebeu alguns meses antes noutro endereço. A senhora é viúva de pouco tempo. Como lhe coube tornara-se uma pensionista, porém, como o marido faleceu durante a


construção daquelas casas onde ocupava o andar de baixo e, o restante, os do 2o. e 3o., comecei a perceber as ligações entre o que esbravejavam publicamente com ar de vantagem com a tal empreitada. O senhor teria sido friamente assassinado com um golpe de marreta dissimulado de acidente de trabalho ou mau súbito ao final das obras. E, com a senhora já constituída como beneficiária da Previdência Social, todos “celebravam” o triunfo do plano e a obtenção do objetivo, não fosse a menina ter se tornado num dos retratos, evidências e consequências espirituais do crime. Tais suposições ficionadas e fantasiosas andavam perto da verdade. No limite eram ainda demasiado subjetivas juridicamente, mas tinham respaldos experienciados, tanto pessoais quanto relatados em outras literaturas. Um exemplo é a zombaria que a família dispensava à viúva sustentada pela convicção de que a perda de sua dentição – ou de quase todos os dentes ─, havia sido causada pelas mesmíssimas obras. Piadas e indiretas que aturava dos parentes vizinhos. O bullying de péssimo gosto entregava o quão violento pode ser um atentado disfarçado de atividade de construção civil. Além disso, o crime terá sido perpetrado de forma premeditada para eliminar o ente indesejado e para obterem a recompensa financeira almejada, mas com a aparição de “Mel”e com outra contrapartida de custo tão alto para eles que é a administração de tal ônus, numa tentativa incessante de dissiparem provas, o assassinato em família passou a ser o seu dia a dia. Afinal, o que seria um revés ainda mais miserável sob tais óticas? Não matarem e continuarem a depender dos mandos, desmandos e recursos de um indesejado chefe de família? Loucos e sem escrúpulos como serial-killers!


Meio ano depois a tensão ficou insuportável. As discussões e comportamentos irascíveis daquela família voltavam a ser diários, mas a situação tornar-se-ia patologicamente ímpar... Pouco a pouco, a viúva ia também retornando para morar na casa debaixo. Por algum motivo isto inflava a balbúrdia em toda a vizinhança, que parecia ser movida por um impulso irresistível pelo domínio comunitário a partir da família, caracterizada por territorialidade. Algo que não correspondia ao convívio e partilha entre eles... Mas, como o ambiente criado insistia em pressionar ainda mais qualquer normalidade interferindo em nosso cotidiano até ao ponto de querermos deixar a área depois que o contrato findasse encarei a situação como sendo de vandalismo descontrolado, de obsessões e grosserias para prejudicar os outros indiscriminadamente. Porém, algo tornava as coisas ainda mais ardilosas e confirmava que haviam perpetrado o assassinato: enquanto estiveram a viver noutro endereço, a família convenceu a viúva de que poderiam regressar juntos para a casa malassombrada ─ o que de fato ocorreu ─, que o problema passaria a ser a casa do 2o. andar de propriedade de um parente que não residia mais ali e que sublocava a fração. Porém, o tanto que isto tem de compreensível se for visto pelo lado de que uma mesma família ─ apesar de me referir àquela ─, gostaria de se reunir num mesmo imóvel e que tal desejo tinha como empecilho a ocupação de uma das divisões por um inquilino de um parente, tem de sórdido pelo que estava sendo ali encoberto: planejavam cometer o mesmo crime contra a viúva para anteciparem a herança e ficarem com toda a casa, por direito e por ocupação. Segundo o plano que ficara exposto pelas sandices que diziam, assim que deixassem o 2o. andar iriam negociar com o tal parente a ocupação da fração, o que proporcionaria o posicionamento necessário sobre a


casa debaixo, em situação idêntica à que possibilitou matarem o pai durante a sua construção para desta vez o cometerem contra a viúva. Há algumas semanas atrás aconteceu um outro momento de extremo terror naquele lugar. A família andava totalmente transtornada e fragmentada sem nunca haver diálogos; eram sempre discussões, brigas, insultos mútuos e xingamentos as trocas entre os três. Até que num início de noite começou a vir de lá uma barulheira alta e nítida de coito, onde notava-se pancadas fortes de corpo contra corpo, gemidos e alguns gritos que não provinham de nenhum aparelho como TV ou celular. Era orgânico, real. Obviamente que à princípio imaginei que não passava de mais uma falta total de senso oriunda daquela casa, mas quando percebi pelas vozes que tornaram possível perceber que a mulher não estava envolvida no ato ─ pois resmungava algo de um outro cômodo sobre um afazer banal qualquer ─, me dei conta de que o que estava em andamento era entre o pai e o próprio filho, mais presumidamente com o filho em posição passiva devido à reação posterior do pai em gabar-se do feito com jeito pavoneante ao descer pelas escadarias. Por motivos profissionais andava mais tempo ausente da minha residência nas partes da tarde e da noite e pouco mais soube sobre aquela situação, mas nunca mais ouvira o rapaz falar. Permanecia mudo após aquela sodomização, assim como também a mulher. Tal silêncio só foi quebrado no dia em que o vi na mesma rua em que morávamos, bem mais adiante, quando eu estando de saída ele chegava em casa. Ignorei-o sem demonstrar sequer incômodo ou antipatia para evitar qualquer tipo de cumplicidade com o que nem sabia o quanto lhes foi arriscada, pois ao invés de constrangimento, logo após aquela tarde e já


próximo ao Dia das Bruxas, voltou-se a tornar evidente que estavam praticando um outro coito bruto, entretanto nesse, além de menos demorado emitiram grunhidos e barulhos mais discretos e sem paralelos conhecidos. Poderia supor que foram novamente entre os dois homens apesar das diferenças comparando-se com a outra vez. Nessa, quase não se repararia a ocorrência, se a seguir o próprio pai não tivesse denunciado o que acontecera ao fazer uma pergunta para o filho já desde um outro ponto da casa, como se o tivesse flagrando: “O quê?!” ─ aos berros ─, “Você chegou a ir na Mel?!?”. Pela idade presumida da menina, àquela altura o irmão poderia até a ter engravidado.


ULTIMO ANO De repente, como a toque de caixa, a própria família resolveu “fechar” o terraço levantando a mureta baixa e cobrindo-o com um teto. Tudo foi feito num único sábado de pouquíssima luminosidade. Uma esquadrilha de alumínio envidraçada havia sido deixada por alguém na calçada externa para ser colocada onde antes era apenas o parapeito da varanda. O burburinho que se ouvia desde lá estava mais dissimulado do que escancarado como o costume. Faziam querer parecer que o motivo da obra era a conclusão de uma antiga ideia não finalizada, como se a varanda fosse um mero improviso temporário e não uma parte do projeto da construção, mas com o avançar dos dias tal história também desabou: é que, talvez ─ e mais uma vez por causa da tal menina ─, pelo barulho de corpo entrevado se locomovendo no terraço ela começava a se deslocar para aquele espaço, transformando a área descoberta num alto risco, pois poderia ser avistada por algum vizinho ou até mesmo por tripulantes e passageiros dos veículos que costumam sobrevoar a região. Entretanto, apesar da janela ter vidros laqueados para impedir a visão desde fora para dentro do cômodo, a luz não foi bloqueada para vedar o recinto, tanto a diurna quanto a noturna, seja a do Sol e a do luar ou a dos postes de iluminação próximos da casa. A etapa de alvenaria seria insuficiente para esconder a vítima: uma semana depois o morador chegou em casa trazendo consigo um outro pedreiro que, ao subir, exclamou atemorizado “tá ruim de ver isso aí, hein!!!...”, ao que a mulher


respondeu sem pudores “é que a minha Internet é ruim!”. O tal pedreiro não tardou a descer, mas não consegui vê-lo, nem qyando já estava na entrada. Só no dia a seguir é que alguém foi até lá para fazer o serviço que aquela testemunha iria realizar, indo embora ao anoitecer dizendo em voz alta coisas desconexas mas que informavam que o trabalho havia sido concluído. Próximo às festas da Páscoa a casa voltou a entrar em obras. As atividades atravessaram toda a Semana Santa. Foi quando decidi resolver a situação. Quando a construção foi interrompida, numa noite menos anômala de meio de semana, flagrei pela minha janela o rapaz indo até ao local onde eu tinha acabado de depositar o meu lixo para ser recolhido na manhã seguinte pela coleta pública de rotina. Poderia ter ido também levar algum para deixar no mesmo lugar, mas ao vê-lo ainda estava a caminho e não portava nenhuma sacola ou entulho. Entretanto fiz um ruído qualquer para denunciar alguma presença. Sua mãe apareceu à janela nova do ex-terraço e, dirigindo-se imediatamente para ele, tentou desconversar sobre a única coisa que o filho poderia estar fazendo já ali: em meio aos sacos plásticos: revirando o lixo. Após todos os 36 meses de contrato de aluguel deixei o imóvel. A família prosseguia intercalando períodos de reclusão com escândalos e obras que, por ironia tragicômica, não resolviam um problema fundamental da própria construção que fora descoberto antes deu sair pelos vizinhos que atuavam em reformas: das cinco etapas conhecidas e recomendadas no levantamento de


paredes e lajes [ alvenaria vulgo tijolos, chapisco, emboço, reboco e pintura ], duas não haviam sido cumpridas naquela casa. Surgiam infiltrações e bolores constantemente em quase todos os cômodos, e, mesmo que a retocassem com massas e tintas impermeabilizantes mais do que uma vez por ano, a casa acabou por expor o miolo de suas paredes até aos vergalhões que, além de finos demais para suster aquela construção, já andavam demasiadamente carcomidos por ferrugem devido ao excesso de contato direto com água… Ou seja, a casa mal-assombrada corre sérios riscos de ruir. O mais curioso é que apesar deste contexto ser conhecido por eles continuavam com as obras não reestruturantes. Incluindo a mãe do morador que detém como propriedade a casa do térreo e, como o combinado, passava mais tempo lá mesmo não sendo a sua residência fixa. Portanto, e à princípio, se nada for feito de concreto quanto à estrutura daquele imóvel, literalmente, a casa vai cair.



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sutil: sabe que é, porque é.


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