sutil #08 - 2000/2005

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su número oito

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MAGAZINE DIGITAL DE AMOR.ARTE.CULTURA. TECNOLOGIA.MODA. TENDÊNCIAS.ETC.

não faça o que eu fiz. / a história da produtora pose & effect é um filme / uma auto-biografia sobre os bastidores e as curiosidades da etiqueta dedicada à divulgação e intercâmbio da música moderna dos países lusófonos / 2000-2005

PURI PRODUÇÕES

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pose & effect’s world wild web. em sentido horário / BNegão & os Seletores de Frequência no lendário Marquee Club de Londres, em 2005, logo após os atentados às estações de metrô e ônibus na cidade / Anouk Piquet e o Turbo Trio no Dunya Festival, em Rotterdam, 2006 / cartaz “don’t mosh” num dos palcos do Roskilde Festival, em 2005, ainda com os Seletores de Frequência

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sutil

É UM MAGAZINE DIGITAL NÃO-PERIÓDICO, SEM FORMATO OU SUPORTE DEFINIDOS, DEDICADO À ARTE, CULTURA, TECNOLO


flyer Horizont Party / Seu Zé e Mike Patton no Porto / cartaz oficial da turnê do Planet Hemp, 2003 / m.i.k.a. e Camisas na Sound Factory, Amsterdam / Bob Figurante / ao fundo, graffitti em Barcelona

OGIA, MODA E TENDÊNCIAS, EDITADO E PUBLICADO PELA PURI PRODUÇÕES. NÚMERO OITO. JUNHO DE 2013. VERSÃO EM PORTUGUÊS.

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“Ouvi dizer que o nosso amor acabou / pois eu não tive a noção do seu fim (...)”. Trip-Hop. Claro que sim, tão nãumã?! Era 2000 e a tríade Massive Attack-Tricky-Portishead fazia a minha cabeça quando cheguei à cidade do Porto, em Portugal, para atuar no Jornal de Notícias. O taxista manteve a rádio na mesma sintonia desde o aeroporto e, próximo ao hotel onde passaria o primeiro mês num janeiro bastante chuvoso e friorento, saiu este verso dos autofalantes. Voz semi-bêbada, num tom galego sustenido. “Era o Manel”, pude eu dizer meses mais tarde. Não era comigo que o Ornatos Violeta nunca tivesse atuado no programa do Faustão, mas pensar que só me vinha à memória o Roberto Leal se precisasse de um artista lusitano não me acalentava o desconforto da umidade local no inverno. Afinal, que Atlântico cultural era aquele para estarmos tão distantes? Pois foi entre 2000 e 2009 preponderantemente que a Pose & Effect dedicou-se a este oceano sem cair num equívoco ainda maior que seria cercar toda a produção musical lusófona do resto do mundo. Reconhecimento, inserção e expansão. Angola na Bélgica, e por que não?, se Angola já lá está? Guiné-Bissau, Moçambique e Angola e Brasil e Portugal que diriam meus avós, hein Tim Maia? -, representados por agentes de diversas áreas numa lógica de que cada homem é uma empresa, aprendendo, crescendo e se superando para conseguir, ao menos, sonhar. “(...) ouvi dizer que o Mundo acaba amanhã / Eu tinha tantos planos para depois (...)”. Ó Manel, oube lá! Passa-me mais é esse charro. m.i.k.a.

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projeto gráfico, capa e diagramação m.i.k.a.

distribuição digital sutil [magazine digital]

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Todos os direitos reservados 2013 Puri Produções 1ª edição, 2013.

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pose & effect’s world wild web / platéia no Ollin Kan Festival, Ciudad do México, em 2007.

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Hoje vais conhecer o Máfia”. Dito isto, e assim, em um tom seu agravadamente gutural, que o Seu Zé avisou para onde iríamos naquela noite. Soou-me estranho, apesar de naquela altura estar a conhecer muito boa gente apresentada por ele. Mas logo aliviou: “Chamo-lhe Marito, mas a malta chama-lhe dj Bob Figurante”. Seu Zé é José Manuel Simões, colega de redação no jornal em que fui trabalhar no Porto, em Portugal, e que aos poucos ia-se tornando amigo e guia na cidade. Havia passado uns anos no Rio de Janeiro e era a única pessoa que conheci até hoje que esteve em todas as capitais do Brasil. E pelas estradas. Atuava na área de Cultura com foco em reportagens sobre música, fotografava, lecionava na Escola Superior de Jornalismo e era apaixonado pelo Brasil. Mas voltaremos ao Seu Zé mais logo... Enquanto fazíamos a pé o quilômetro e meio de distância entre a redação e a residência do tal Bob Figurante, divagava sobre seus três nomes e tentava imaginar onde iria parar. Afinal, Bob Figurante não é aquele personagem da série “Os Simpsons” que pilota o ônibus escolar? 10


“Então Seu Zé? Tás fixe?” - recepcionou-nos Marito. Sim, era próximo. Um rasta de estatura média-alta, branco, piercings, brincos e roupa esportiva. Mas um dos nomes já estava explicado: “Marito” vinha de Mário, seu primeiro nome. Mário Lopes. “Este é o Seu André, brasileiro, que veio de Barcelona para trabalhar conosco no jornal”. o “Seu” é deles, digo. Pronome de tratamento. “Olá, tá tudo?” - cumprimentou. “Opa, tudo bem.” - retruquei. “Entrem. Bóra lá dentro que tou com um people aí de Leça” - apressou-se ele para que entrássemos para um dos quartos do apartamento. Era um piso francamente espaçoso, na cobertura de um prédio de meia idade cravado na parte alta da Baixa do Porto, numa zona conhecida como Cedofeita. O trajeto até ao quarto não era longo mas a impressão que tive foi de que estávamos entrando numa área de intenso nevoeiro, muito característico 11


do clima português, apesar de estarmos indoor. O cheiro não deixava enganar: “ganza”. Nem o som. Contei umas sete cabeças por entre as nuvens até arranjar um espaço para sentar e curtir também aquele Reggae. Jogava-se Uno na roda e rodavam também uns charutos de mão em mão. Leça é uma cidade do Grande Porto que fica à Norte pelo litoral. A galera que estava ali tinha vindo portanto de mais longe e de propósito para visitar o Marito. Romano - um dos visitantes -, tinha acabado de dar baixa do Exército e falava em formarem finalmente uma banda, e o anfitrião estava abertamente empolgado com aquele momento. Parecia que os conhecia há muito e que era uma espécie de referência para todos os presentes. Uma olhadela ao redor e não era difícil perceber o por quê: Bob Figurante era, afinal, o cara do Reggae em Portugal. Pesquisador, produtor, dj mas, fundamentalmente, amante do gênero. Sua vida é o Reggae. Ou ao menos o que pode ser a vida de um reggaeman numa urbe. Em casa, muito roots nas caixas, mas pelos discos, cds, cartazes e flyers espalhados pelo recinto lia-se dub, jungle, 2step, dubstep e outros derivados. 12


Seu Zé tinha acertado mais uma vez. Aliás, tanto que, anos mais tarde, olhei para a Adriana de perfil em casa e me dei conta de que eles têm fisionomias muito parecidas.

pose & effect’s world wild web. / cartaz do 3º Festival Transatlântico, dedicado ao intercâmbio Brasil-Portugal, no Porto, em 2005.

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aí sem entender seus outros dois nomes, mas com alguns flyers para suas próximas festas. “Máfia” era demasiado pesado para o gente fina que tinha conhecido naquela noite e “Bob Figurante” não era o melhor nickname para um dj de Reggae - apesar de alguma parescência com o personagem do desenho animado e de haver outros nomes muito piores. Mas só a princípio não era o melhor... Mais tarde me diria que a inspiração era o personagem dos Simpsons, mas acho que a abrangência o ultrapassa. Bob no Reggae é o Marley. E apresentar-se como Figurante no Reggae só pode ser voto confesso de humildade. Não lembro nem quando nem qual foi a primeira reggae party do Bob Figurante em que fui, pois foram muitas. E em situações que até se tornariam repetitivas. Houveram as em que estava sozinho em sua mesa e meia dúzia de gatos pingados - contando com os do staff do bar -, viajavam nas ondas de Jah; também ocorreram as em pequenos e médios clubes aglomerados de gente de vários lugares; e nos grandes eventos onde multidões bailavam movidos pelo ritmo jamaicano. Toda semana. Nalgumas semanas, quase todos os dias. “Onde é que vais tar hoje, Marito?”, perguntei-lhe muitas vezes por 16


telefone quando queria curtir um reggae à noite depois de sair do jornal. Por isso, muito raramente nos víamos em outra situação. A não ser em sua casa. Convivemos bastante para quem tinha horários tão desencontrados, mas também estivemos bastante juntos assim. Conversa, música, conversa, filme, conversa, projetos, conversa... o Marito é um sujeito bastante social mesmo sendo igualmente individualista. Tive com ele minhas maiores experiências lisérgicas dentro do meu restrito histórico neste campo. E vejo isto positivamente, claro, pois tinha de manter-me auto-controlado para estar disposto para os meus compromissos, e o próprio Bob tem lá as suas “âncoras”. O celular, por exemplo. Estava sempre a mandar e receber sms. De divulgação, principalmente, mas isto o dia inteiro, o que evitava decolagens para maiores distâncias. Dizia e mostrava inclusive os dedos das mãos que, segundo ele, sofriam de hipertrofia por utilizar o aparelho desde os seus primórdios nesta função, e realmente digitava suas mensagens nas teclas do aparelho como se estivesse utilizando um computador. Alguns bongos inesquecíveis. Ou um pólen amarelado em barra 17


que esfarelava só com o toque dos dedos. “Seu André, esse aqui é uma cena!”, dizia quando descobria nova qualidade. Haxixe. Marito fuma diariamente mais cigarros de haxixe do que muitos inveterados fumantes de tabaco que há por aí. Haxixe, ressalto. É bom que se diga que em Portugal, assim como em muitos países europeus, o consumo de cannabis sativa e de seus subprodutos é mais comum e cotidiano do que em

pose & effect’s world wild web. / sinalização interna do hotel na Cidade do México, 2006 / Turbo Trio, staff da Brazooka-Paris e acompanhantes após show em Bruxelas, em 2008.

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todas as Américas, não me pergunte o por quê. A cultura do haxixe lá é uma influência da cultura marroquina, de onde vem, inclusive, a produção. O consumo é discriminalizado e tem fortíssimas raízes históricas, apesar de não poder ser comparada ao do país mouro. O cigarro de haxixe, ou “charro”, é mesmo quase consumido como o cigarro de tabaco por quem o aprecia - o tabaco, aliás, é usado na mistura para enrrolá-lo. Bob já viveu fora do país, outra coincidência que favorecia o nosso entrosamento. Acho até que esteve em mais do que um durante um tempo, mas recordo-me da Noruega. Moçambicano, mas filho de portugueses, fala de sua África apaixonado e distante. Organizava encontros flash mobile quando eu nem sabia o que era isso, mas às vezes dava uns “ggrlrlr...”, tipo quando o celular está no vibracall, e invariavelmente era em simultâneo, como quem prevesse algum aviso de emergência. “Seu André vou ter que agitar uma cena aqui mas se quiser pode tar à vontade” - dizia e se afastava com o telefone ou corria para o computador. Algumas vezes era só uma gatinha querendo um chaninho. 19


pose & effect’s world wild web. / em sentido horário: muppie da etapa portuguesa da “Vâmo Fazê Barulho”, em 2003 / flyer do show do Planet Hemp em Londres / capa da revista londrina Leros / Marcelo e Luiz, co-produtores da turnê dos “hempas” na capital britânica / flyer dos shows em Portugal / ao fundo,varanda de um casario na Ribeira do Porto

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Você conhece o Bruno?” - perguntei ao Bob quando o vi após ter conhecido o Bruno, também via Seu Zé.

“O Bruno do Yoga?” - repostou logo, confirmando que perguntar a alguém no Porto se conhece outro alguém é pedir para ter uma resposta afirmativa, porque todo mundo “se conhece” lá. “Sim, esse mesmo!” “Conheço (...)” - e lá veio a explicação do onde e do por quê. O Bruno em questão era o “do Yoga” sim, já que outros Brunos surgirão nesta história. E o “do Yoga” tinha sido apresentado pelo Seu Zé na casa dele. Pelo que entendi - e depois confirmou-se -, Bruno tinha mudado para um apartamento nas cercanias do endereço do Seu Zé, em Gaia, margem sul do Rio Douro, há pouco tempo, depois de um longo período dividindo moradia com outras pessoas, pois era da Serra da Estrela, região centro do país e famosa por nevar e pelos queijos de cabra. 24


Naquela noite dei-lhe carona até em casa e dada a quantidade de gente que contactava diariamente não imaginava sequer revê-lo. Mas voltamos a nos encontrar num pico próximo da redação que, enquanto durou, frequentei muitas vezes, e dali para frente tornou-se um hábito de habitués revermo-nos no Valentino’s. Também chegava quase sempre desacompanhado vindo de um trabalho de modelagem ou centro de treinamento, mas conhecia até os responsáveis pelo bar. Vegetariano, pedia uma quiche e abusava pedindo uma cola e sacando um cigarro de vez em quando. Yogin vega ex-gótico. Se interessava em acupuntura tanto quanto pelo Dead Can Dance e isso dava muito assunto. Seu mestre era um brasileiro que não vivia mais em Portugal, e enquanto ministrava aulas em algumas academias planejava ter seu próprio espaço, até para poder empreender suas idéias que considerava mais abrangentes do que suas horas/aulas permitiam. “Então... que acha de trazermos ele para co-produzir algumas festas com a gente?” - perguntei quase assim ao Bob, voltando aqui à conversa. Lembro que foi reticente, mas não era nada pessoal. Poderia falar de quase qualquer um que o Marito ia meter três 25


pontinhos. É o jeito dele. Argumentei que podíamos juntar esse lance do vegetarianismo e do yoga coreografado que o Bruno desenvolvia com sua partner Catarina - chamado Shiva Shakti -, com as imagens que o Seu Zé captava na Índia e realizar um evento. Bob andava a fazer umas noites num lugar recém-reinaugurado

pose & effect’s world wild web. / Barcelona em dois tempos: ao lado, BNegão & os Seletores de Frequência no festival Brasil NoAr, Sala La Paloma, em 2004 / à direita, show na Sala Apolo, em 2006, com a participação dos catalães da Macaco

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próximo ao Valentino’s chamado Circa Bar, mas a fidelidade à casa, com algumas alternâncias ao Tendinha na mesma área porque que tinha um segundo nível para bilhar, desviava-me a intenção de conferir. Ele sugeriu irmos até lá para ver o local e conhecer também o Midan. Bem... do Midan até à festa muitos melões rolaram...

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Ó Seu André? Onde é que andam tu e o Seu Zé porque, como é o costume, ele não me atende o raio do telefone?!” - esse do outro lado do telefone é o Seu Miguel, jornalista e colega de redação também. Assim descrito parece imperativo mas isso era invariavelmente perguntado aos risos. “Tá aqui ao lado com umas italianas” - respondi-lhe assim desta vez e isto muito antes do Midan, da festa etc. “(risos) Que italianas ó Seu André?!” “Não sei, Seu Miguel! Saí do jornal e vim encontrar com ele na Praça da Batalha após o show que veio cobrir e já estava ele no meio de umas atletas italianas que vão amanhã para Lisboa disputar uma prova de ciclismo e fomos todos parar na Casa do Adão, mas agora estamos indo para o Franklim”. Confusão. Eu sei. É difícil explicar mas vamos lá - foi por essas e outras que o Seu Zé, quando estivemos em Barcelona também com o Miguel, ganhou dos meus amigos o apelido de “Professor Colisáuã”: 30


Seu Miguel era colega nosso da área de cultura como o Seu Zé, talvez na época mais afeto aos temas ligados a cinema, e aparecia ocasionalmente quando saíamos. Tinha uma fascinação engraçada com o asterisco e acho que o caractere representa muito bem graficamente a sua personalidade. Curtiria ter ido ao restaurante do Seu Adão novamente, mas havia perdido essa por causa do horário. A Casa do Adão era um lugar especial e estratégico para o Seu Zé. Fica do seu lado da margem do Rio Douro, à Sul, mesmo junto das caves de vinho do Porto e do mítico HardClub, por onde passavam várias bandas quando atuavam em Portugal e das quais deveria cobrir. Foi lá que levou algumas delas para conhecerem uma típica cantina e comida portuguesa durante ou após uma entrevista. O Seu Adão é um homem de meia idade com feições que lembram o meu avô paterno e o pai do Seu Zé ao mesmo tempo, e atende aos clientes enquanto esposa e filha cozinham, comunicando-se por uma janela por onde também escorregam as travessas. Falam entre si a uma distância de 2 metros como se estivessem a 50 e com grandes alterações de humor, mas se a discordância não for extraordinária, come-se fartamente ótimos filés de polvo grelhados e vinho verde da casa fresco por uns 31


tostões se compararmos com os gourmets. Mike Patton que o diga. Já o Franklim... cara... O Franklim merece um livro, mas não serei eu a escrevêlo por reconhecida incapacidade e ausência de memória e informações. Sócio de um dos bares mais característicos e frequentados da Ribeira do Porto, era lá que parávamos quando descíamos para a zona mais antiga da cidade, e o Seu Zé vinha retornando com o cortejo desde o Seu Adão tentando convencer-nos à ir até ao bar para virar uns copos de ginja ou jurupiga antes de dormir - como se isto fosse possível. A justificativa muitas vezes era o próprio Franklim: uma figura que paira entre a de um gaulês dos gibis do Asterix ao de um rústico marinheiro cigano, rabo-de-cavalo escorreito e fartíssimo bigode, e transmite a fortaleza de ser capaz de pescar bacalhau à tapa apesar do corpanzil esguio. Mas tudo isto para quê? Por causa do Camisas. O Camisas seria um homem-chave na história da Pose & Effect a partir daquela noite. 32


As italianas evitaram o convite do Seu Zé e foram descansar para suas provas, mas aguardávamos o Seu Miguel. O polvo já havia descido há horas largas e lá veio o Franklim deslizando uma porção de pata negra com uma barra de haxixe espetada num dos palitos. E ginjas. Seu Miguel chegava, dava um aceno antes de se aproximar e ficava agarrado ao telefone ainda um tempo antes de asteristicar o ambiente. Gostava de ficar numa mesa perto da porta para ver o movimento na rua, e naquela noite não quebrávamos a regra até quando passou um grupo de alunos do Seu Zé. “Esse aqui é o Seu André, brasileiro...” - apresentava o Seu Zé, cordialmente. “E este é o Carlos, meu aluno na escola”. Era o Camisas. Não foi muito mais do que isso porque o Seu Zé tinha tique de vereação e por onde andava cumprimentava e acenava para todo mundo, o que, dentre alunos e ex-alunos, fazia multiplicar os rostos e os nomes a guardar. Mas o Camisas, no caso, pouco mais de uma semana depois estava estagiando no mesmo jornal em que nós três trabalhávamos. 33


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pose & effect’s world wild web. / bar em Vigo, Galícia, em 2005, com sinais da passagem da Pose & Effect

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Porto pós-2001 Capital Europeia da Cultura

fervilhado e a gente atrás de melões. Faz parte. Produção é isso, ainda mais quando é para o próprio evento. Era a primeira festa da Pose & Effect que participava e o Bruno “do Yoga” incorporou suco de melão com gengibre às bebidas da garrafeira do Circa Bar para oferecer a cada um dos convidados. Alguém arranjara um cartão-cliente de um atacadão e, num sábado pela manhã, dia do evento, fomos todos comprar as frutas. Era a Horizon Oriental Party I acontecendo, e tudo ia bem, obrigado. Entendemo-nos com o Midan, um guineense recém-formado numa universidade da cidade, conhecido por suas festas regadas a afro-music e “gajas” e que estava enveredando pela vida noturna reinventando um espaço simpático mas que não dava certo com nenhum empresário talvez pela área de concorrência acirrada e pela rua que ficava movimentada apenas durante o dia. Mas o Circa Bar ia aos poucos fazendo seus pontinhos com uma programação diária, interior de iluminação aconchegante, com mesinhas e puffs baixos, sofás pelas laterais, balcão, palco e mezzanino. Estava interresado no cosmopolitismo que propomos 38


com a Horizon, pois achava que tinha o perfil da casa e dos amigos e clientes que queria lá. “Tamos a ver com o Bob como vai ser essa cena do Reggae aqui, man, porque também não quero só freakalhada senão o caixa não fecha e afasta as gajas, sabes como é...”, receava. Coisa de empresário. Midan não se estressava muito com o público das noites de Reggae. Estava satisfeito e até ponderava transferi-las para os fim-de-semana. Tinha era um bom foco no que queria com o Circa e falávamos em boa sintonia. O Bruno decolara. Agitava o Shiva Shakti com a Catarina e o Pedro que tocava tablas para estreá-lo e providenciava uma cópia de um filme que andávamos a ver para projetá-lo, junto como as fotos que o Seu Zé trouxe da Índia. Sugeriu o tal suco de melão com gengibre que, deliciosamente, tornou-se “o” problema da festa para a produção, mas só agradou. É que, para além de estarmos carregando melões no dia da festa, tínhamos que preparar a bebida na hora, o que sobrecarregou ainda mais o próprio Bruno. O Bob discotecava puxando a noite para as influências orientais do Reggae, esbarrando no ragga indiano e em alguns sons árabes. O Camisas, bem.. 39


O Camisas - voltando -, tinha ido estagiar no jornal em horário noturno e às vezes encontrava com a gente num pico qualquer quando saía da redação. Aos poucos fomos nos aproximando e, como tinha feito uns freelas em assistência de produção durante a faculdade, ficou abertamente desejoso de participar das conversas que surgiam em torno da Pose & Effect nas rodinhas que formávamos no Valentino’s e no Circa. Havia reticências. O mesmo local de trabalho, para começar. Mas era estagiário e tinha todo o dia e toda a tarde livres, enquanto eu tinha quase todo o tempo preenchido com a redação, reuniões, viagens etc. Era provi-dencial. Não só a sua motivação como a disponibilidade e, na Horizon I, dava sua primeira contribuição experimental, distribuindo flyers, colando cartazes e carregando melões conosco. Foi a primeira casa cheia do Circa Bar. Freak sim, ya man; trè chic também. Conseguíramos: entre o ambiente “alternativo-cabeção” do Valentino’s e a onda eletro que assolava o classudo Triplex na zona nobre da cidade com o dj Kitten e o Gajas Ao Volante, e entre tantos outros espaços noturnos portuenses, fazíamos: a nova Pose & Effect; o perfil que o Midan almejava para a casa; e não sei quantos sucos de melão com gengibre. 40


pose & effect’s world wild web. / tenda da “festa do fone” no Roskilde Festival, Dinamarca, 2005

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pose & effect’s world wild web. / intercâmbio e oficina do projeto Roots & Routes durante o Dunya Festival, em Rotterdam 2006: com Basa e Tejo na produção e pick-ups e o surinamês Zillion no mic - mais tarde integraria o grupo Wallbangaz

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urante aquele inverno de 2003 ficamos fechados

para negociações internas. Com o Marito, decidíamos trazer alguma banda brasileira para juntar com outra residente em Portugal e concretizar a intenção inicial da nossa co-produtora. Bruno arrebanhava uma pequena legião em suas andanças rascunhando uma parada pluridisciplinar chamada PazPazes, que enquadrava o yoga e o vegetarianismo em todas as linhas do pensamento e experiência da humanidade, enquanto o Camisas tentava se enquadrar e propunha “inverter”, como dizem os espanhóis. Estávamos todos embuídos da boas vibrações da Horizon Oriental Party I, mas fazer outra coisa qualquer juntos não era assim tão óbvio. O Midan deixou-nos as portas abertas, mas havia também outras possibilidades. O Gon, por exemplo. Amigo do Bob e vocalista de um grupo “cult” chamado Zen, conhecemo-nos quando regressava à cidade depois de passar uns tempos em Manchester e, após recuperar-se de um acidente de jet-ski, tinha ido parar no quadro de produtores do HardClub, um dos maiores do país e onde atuavam atrações nacionais e internacionais de primeira linha. A capacidade lá era 5 vezes maior que a do 46


Circa Bar, o que tornava o risco maior, porém o clube era mais conhecido e divulgado. Dentre as sacadas mais megalomaníacas aos ensaios caseiros das ideias a publicitar íamos convivendo e filtrando até chegarmos a consensos. Até que já se aproximava o meio do ano e anunciaram as atrações de um festival chamado Vilar de Mouros, interior Norte de Portugal, onde constavam também Planet Hemp e Sepultura. Surpresa. “Eles já cá tocaram praí em 98...” relativizou Bob sobre o Planet Hemp, mas empolgou-se com o retorno. Gostei da notícia porque reveria a banda em palco depois de tantos anos, mas nem imaginava o que estava por vir... Liguei para o Lobato da Na Moral e marquei uma entrevista com o D2 para o jornal. O Sepultura, mesmo com o Dereck substituindo o Max nos vocais, prosseguia tendo tantos fãs lá quanto no Brasil, mas em três anos em Portugal não conhecia ninguém além do Bob que falasse nos “hempas”. Beleza. Chegada a data do show meti o pé na estrada com o Camisas 47


rumo à Vilar de Mouros. Já vinha de outros festivais e não repetia o vacilo do primeiro que fui na região, em 2000, quando caí na esparrela de ir de bermuda e t-shirt na onda “festival de verão” e quase tomei uma overdose de café com leite para espantar a friaca quando o sol se pôs. Não. Levava casaquinho e acessórios. Mas como ia direto do jornal para lá, entramos na área do palco quando o Planet já executava os primeiros acordes abrindo a noite. Aí sim, a surpresa: apesar de ser o show de abertura e o público ainda estar se formando, muita gente cantava junto com a banda cada um dos temas que ia sendo apresentado. Brasileiros, ponderei. Mas aos poucos e pelas conversas

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percebia que não, eram mesmo fãs portugueses do Planet Hemp. Beleza. “Camisas, esse show foi uma cena, não foi não?”, pergunteilhe, pois podia estar influenciado por minha proximidade com o grupo e a impressão anterior de que não era muito conhecido em Portugal. Camisas estava igualmente surpreso. Curtimos os shows que se seguiram e voltamos para o Porto com uma convicção: se há uma banda brasileira que deveríamos contratar em Portugal essa banda era, afinal, o Planet Hemp. O problema era a “inversão”.

pose & effect’s world wild web. / BNegão comemorando após show no Porto, em 2005, com o rio Douro ao fundo

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pose & effect’s world wild web. / enquanto isso..., da esquerda para a direita: Manel em foto de divulgação do livro-álbum “Foge, Foge, Bandido”; Bruno “do Yoga” espantando o frio no bilhar do Tendinha com um alongamento; m.i.ka., Seu Miguel e Seu Zé em viagem para o festival Sónar; dj Marcos; e Bruno “da batera” e Filipe (de amarelo), finalizando um bacalhau

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Marito, o show do Planet Hemp foi uma cena”,

contei ao Bob no dia seguinte ao festival, com o respaldo do Camisas. A casa estava cheia. A do Bob, digo. Um videogame ligado, uns objetos de decoração psicodélicos para uma festa na sala, roda de Uno... Sacou o cd “Bailão Classe A” do Funk Fuckers de um de seus estojos e já havia mostrado “Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Pára”, do Planet. “Vou ligar para produtora para ver qual é”, disse-lhe eu, algo precavido pelas questões financeiras. Não consegui falar de imediato sobre custos mas abri os contatos com a Na Moral para a contratação naquela mesma noite, e iniciamos as conversações. Desde 2000 meu irmão vivia e estudava em Londres e já havia estado lá umas duas ou três vezes. Trabalhava com o figuraça Luiz, irmão de um amigo do Rio que morava na capital há uns 20 anos, e mantinha um restaurante nos fundos de uma loja de conveniência na Oxford Street que era o ponto-deencontro dos brasileiros na cidade e principal difusor da nossa cultura, não só pelas especialidades gastronômicas - feijoada, pão de queijo, guaraná... -, como também pela realização de festas e eventos. Durante muitos anos, se 54


algum emigrante quisesse cair no samba, no forró ou rever uma banda de preferência, tinha de ir à uma festa do Luiz. E era para inglês ver também, pois muitos shows de gente grande da música brasileira que aconteceu em Londres foi produzido por ele, e algumas festas ocorriam em locais de renome, como o clube Salsa. Mas voltaremos ao Luiz mais logo... Liguei para Londres. Marcelo, sócio no restaurante, andava a fazer noites brazucas em casas noturnas periodicamente e a produzir alguns shows e ficou empolgado com a possibilidade de fazer também uma data com o Planet Hemp. Essa co-produção, de início, seria muito importante na viabilização da contração do grupo pois, independentemente dos custos que viriam da produtora, o de passagens aéreas era previsível e pesaria no orçamento. Bob combinou uma reunião no HardClub com o Gon. Os itens iam se encaixando mas a planilha de custos assustava. “Eu não posso, Seu André”, confessou Marito. “Eu também não Marito, mas vamos concluir o plano e ver o que rola”, prossegui, mesmo sabendo que talvez fosse obrigado a engavetar o projeto. 55


pose & effect’s world wild web. / a mala. durante as festas e turnês era usada para levar documentos, contratos, crachás, convites, ingressos, set lists e os montantes em espécie

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O Bruno decolara. O Camisas queria “inverter”. Os contatos e as contas continuaram e, depois de tentarmos viabilizar o esquema desenhado em Londres em outras cidade da Europa (como Zurique e Barcelona), fechamos um plano que incluía também uma data em Lisboa num clube chamado Paradise Garage. Decidimos avançar: a “Vâmo Fazê Barulho European Tour 2003Londres-Porto-Lisboa”, estava programada para novembro daquele ano. A galera de Londres descolou o The Forum para receber a banda com o Bob nas carrapetas, enquanto em casa a gente aprontava o tal intercâmbio Brasil-Portugal com a rapaziada do Yellow W Van vindo de Lisboa para abrir o show no HardClub, e os djs Cruzfader e 27Pablo para complementar o set com o Bob no Paradise Garage. Parecia tudo corriqueiro até que, numa noite, saindo da redação e a caminho de casa, parei o carro num semáforo e, ao olhar pela janela, vi um cartaz gigantesco sobre o show do Planet Hemp no Porto e em Lisboa colado num muro e pensei: “não somos nós que estamos fazendo aquilo?”.

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pose & effect’s world wild web. / metrô de Paris captado durante a passagem dos Seletores de Frequência em 2005

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Alô Marcelo, estamos saindo do Porto agora.

Como estão as coisas por aí?”. Embarque para Londres, tudo ok. Marcelo tinha tratado dos “visas” e a venda antecipada dos ingressos tinha corrido bem. Ele e a equipe estavam prontos para buscar a banda no aeroporto de Heathrow e levá-la para um hotel luxuoso na zona central da cidade e próximo do restaurante onde o feijão com guaraná cobriria o vazio da meia pensão. Eu, Bob e Camisas ficaríamos num pequeno hotel em Fulham, muito típico na Inglaterra, de frente estreita e escadaria interna com tapetes vermelhos e cortinados xadrez. Não era o ideal por causa das malas de cds do Bob, mas as acomodações e as cercanias compensavam. O Chelsea Football Club ainda não tinha sido arrebatado por Abramovich e dado o salto recente que se viu na tabela internacional, mas o bairro residencial nos permitia respirar ares abaixo dos da megalópolis que se respira na Oxford Street. Com o comércio local diversificado, as áreas arborizadas e o trânsito fluente, o rolé pela manhã seria restaurador. Chegamos ao “Feijão do Luiz” e parte da trupe já tinha 62


dispersado. Uns buscaram megastores de discos e instrumentos; outros, simplesmente foram circular. Escurecia e nós e os remacescentes fomos parar num pub e descer uns pints para descontrair. Fui para a pista mais tarde onde rolava hip hop e o D2 esticou uma ponta, mas ainda estava encontrando o ponto entre o relaxamento necessário na véspera de um show e a responsabilidade pela produção. Era o único que conhecia e contactava com todos os protagonistas da empreitada e, na verdade, era a nossa primeira realização com aquela dimensão. Pose & Effect na Grã-Bretanha. Com o feijão garantido.

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ão deu outra: a escadaria do hotel não ajudou

quanto às malas de discos do Bob. Artilharia pesada em quilogramas, mas era só Reggae. Camisas não gostou muito do exercício, mas o impacto da entrada no The Forum para a passagem de som despressurizou o clima. Um baita clube de rock onde cabiam umas 2000 pessoas voltadas para um palco enorme surpreendeu-nos a todos, ainda mais sabendo de véspera que metade da casa estaria ocupada. Um skate rolando, montagem dos equipamentos em andamento, fomos averiguar espaços internos como o camarim, a bilheteria e a portaria. Beleza. Mas, cadê o David na mesa de som? “Tá vindo de carro de Paris com uns amigos mas já deve estar chegando”. Beleza. “Nnnnnhhhhhhhéééeéééééeéééééé!!!” - ouviu-se desde a rua lateral adentrando o recinto. O que era aquilo?! Era o David. Minto. Era uma serra elétrica ligada em contacto com um grampo de rodas de metal, verifiquei. Hã?! Sim, o David tinha chegado, parado o carro na calçada em frente à porta lateral do clube e, enquanto retirava algumas bagagens da mala, a polícia multou o veículo e grampeou uma das rodas. Quando viu o empecilho catou a ferramenta que estava disponível numa sala dentro do clube 66


e se atracou com ela no grampo. “E aí David, beleza?” indaguei evitando as faíscas já que seus amigos faziam a função de vigiar se a patrula estava retornando. Outro carro estacionou. Um carango esquisito com rabo de peixe, mas que recuperado daria um grau. Era o Luiz do feijão. Seu sorriso de meia cara estava sorriso de cara e meia. Abriu a mala do rabo de peixe e sacou um tijolo. “Haxixe!”, explicou. Olhei para o David com a serra elétrica e uma expressão de Speed Racer em reta final de corrida, para os seus amigos em pé com as mãos nos bolsos das calças a assistir a operação, para o Luiz e seu paralelepípedo de haxixe com a mala do rabo de peixe ainda aberta e a seguir para a rua e pensei que o show iria acabar ali. Bastava o policial completar a ronda que fazia no local. Não lembro como mas pus todo mundo para circular. David, o Marroquino, para a mesa de som; o Luiz arrancou com seu carango para outras funções; e os amigos com as mãos nos bolsos prosseguiram com as mãos nos bolsos presenciando o check-sound. Beleza. Lembrei do asterisco do Seu Miguel. O show já tinha começado. 67


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pose & effect’s world wild web. / outras das várias bandas e djs que atuaram ou participaram de alguma das nossas festas, shows ou gigs em turnês / da esquerda para a direita e em sentido anti-horário: / 27Pablo / Big Fat Mamma / Prince Wadada / Dealema / Frecuencia Spectru / dj Masko / dj Cruzfader / Macaco / Yellow W Van / Maracatu Estrela do Norte / NSista / dj Zuki / e Ojos de Brujo / ao fundo, interior da sala La Paloma, em Barcelona

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nquanto o Marito disparava seus reggae sounds

desde o palco, o The Forum era preenchido sem grandes esforços. Casa lotada, meio ambiente em bom estado de preservação. Foi dos melhores shows do Planet Hemp que já vi - infelizmente parece não haver registros. Se em Vilar de Mouros algumas vozes faziam côro ao ar livre quando D2 e BNegão atacavam com o mic, em Londres o clube explodiu. Fafas - uma bailarina amiga do Camisas que andava por lá -, pulava com a multidão e acrescia ao inusitado que era todo aquele movimento. “Será que os amigos do David ainda estavam com as mãos nos bolsos das calças?”, imaginei sem caráter crítico, pois era bem possível que sim. Marcelo estava aflito quando o último som expirou nas caixas e a platéia escoava pelas saídas. Achava que a contabilidade final da bilheteria tinha sido mal feita e que lhe levavam grana. Realmente a impressão era de que o clube tinha transbordado, mas não era certo que os números apresentados pela gerência tinham sido manipulados. Um custo escroto para ele de qualquer maneira porque tinha feito um bom trabalho e estava nitidamente desgastado, enquanto todos nós ainda assimilávamos o que tinha acontecido. 72


As caras amarrotadas no dia seguinte no aeroporto não eram de se estranhar, mas tínhamos que encarar as longas filas de check-in, imigração e embarque rumo ao Porto. Bagagens para cacete para despachar e muita agitação ainda por vir, e lá perderíamos o Luiz, Marcelo & cia. Os amigos do David com as mãos nos bolsos das calças também. O plano era aterrizar diretamente no HardClub para passagem de som, portanto, qualquer déficit de descanso da jornada anterior a repor só mesmo durante aquela 2h30 de vôo. “Coffee? Tea?” - perguntavam as atendentes a bordo para uns poucos resistentes despertos. A etapa caseira seria uma incógnita. Havíamos vendido poucos bilhetes antecipados, mas era mais habitual os frequentadores do clube chegarem junto na hora do que em Londres - exceto quando o show em cartaz era muito concorrido. Um asterisco no futuro que nos aguardava. O clube se impõe. Todo em pedra como a maior parte das construções antigas do Porto, à beira rio, com um sistema de galerias no interior que lembram um pouco o Circo Voador antes da reforma, pousar lá foi melhor que irmos para 73


os quartos do hotel. Vista arejada, bilhar, sonzinho, umas cervas e o trabalho fluiu até quando precisávamos liberar a área para arrumações, preparação do nosso staff e comer algo antes da abertura das portas ao público. Bob mais uma vez dava o start na seção e a Yellow W Van parecia que iria tocar pela primeira vez na vida. Tal empolgação subiu com eles ao palco e deu para recordar o início do próprio Planet. Tanto que se espalharam pela casa para conferir o que estavam ouvindo e alguns deles somaram para uma jam no encore. Já se podia contar umas 700 pessoas no clube, mas pareciam trazer fermento. Space cake à moda do Porto saindo do forno, ó pá! O HardClub marcou seu endereço no meu mapa pessoal com shows antológicos durante o tempo em que morei em Portugal. Lee Perry, Madrugada, Twinimen... o do Planet Hemp não foi diferente, com a mais valia de ter sido uma produção nossa e com o histórico que a produtora tinha até ali. Foi outro showzaço. E a turnê deveria ter acabado. Sim, em Lisboa a parada desandou. Saímos do Porto alegres distribuídos em alguns carros e, para começar, nos desen74


contramos e nos perdemos dentro da cidade antes de achar o acesso correto que dava no Paradise Garage, o que já adiantou algum stress. Era domingo e em Lisboa a dúvida sobre a comparecência do público era ainda maior que no Porto apesar de iniciativas como uma entrevista para um canal de TV e divulgação num site e num fã clube. Um cara meteu a mão na câmera fotográfica do D2 quando saíamos do clube depois da passagem de som e saiu correndo, mas seguido por uma carreira largou-a ao chão antes de ser apanhado. Cruzfader e 27Pablo detonaram sets impressionantes para uma platéia mirrada, porém animada. A banda estava mais cansada e acabou por ser uma noite meia-boca: prejuízo financeiro, estafa e uma energia estranha que teimava em não desapegar. No camarim, fotos, entrevista para uma revista especializada em hip hop, e segurança à porta apressando a retirada para o fechamento da casa. Na pousada o check-out previsto era às 6 da matina, mas sem possibilidade de prolongamento, o que obrigou a deslocação de emergência de alguns que precisavam descansar mais um pouco para outro hotel. Missão cumprida e comprida. E muito dever-de-casa para ser feito na volta ao Porto. 75


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amisas estava inconsolável. O rombo tinha

sido demasiado para suportar. Comigo não era tão diferente, mas o resultado extra $$ perspectivava melhor o desequilíbrio na conta bancária. A data em Lisboa tinha sido mesmo um erro face ao risco, e deu buraco. Com as de Londres e Porto pagas e até com um qualquer de lucro, partimos para a capital portuguesa muito na base do tudo ou nada já que ainda haviam alguns gastos a cobrir e dependeríamos completamente da arrecadação do show. Deu menos de meia casa. Perdemos o lucro obtido anteriormente e ainda queimamos umas verdinhas imprevistas. Ainda em Londres, BNegão tinha passado um cd para as minhas mãos quase como quem entrega um panfleto no frenesim das calçadas da cidade. “Seletores de Frequência”. Estava lacrado. Agradeci e guardei a bolacha na mochila. Em casa, desembrulhava o bagulho para escorregar o cd no player enquanto despregava o encarte para ler enquanto ouvisse as músicas. “A Palavra”. Pedrinho, Kalunga... putz, conheço essa galera toda do Rio, mas o álbum nem parece ser do BNegão. Ou melhor: é o BNegão, mas irreconhecível se comparado com o que eu havia escutado dele até ali, no Planet 80


Hemp, claro, mas desde os tempos do Juliette, quando nos conhecemos. O álbum tinha outra roupagem, timbragem e proposta estética e discursiva, muito afim do que eu e o Bob curtíamos no Porto. Dub, ragga, funk, algum rock e rap... tudo costurado por uma banda oriunda de várias vertentes do rock no Rio de Janeiro. “Bob, você já ouviu o cd do BNegão?” - consultei-o uns dias após o retorno à casa quando fazíamos um repasso no que tinha rolado na turnê. Marito também havia ganho uma cópia e confessava que tinha se identificado mais com aquele disco do que com o que o próprio Bernardo fazia no Planet Hemp. Tinha mais a ver. O trabalho dos Seletores estava mais para a intermediária da Pose & Effect e da Reggae Playground do que o “punch” punk-hardcore dos hempas, e a banda deveria estar mais disponível para um início gradativo e em condições equiparadas ao que poderíamos propor depois daquele tombo. No Brasil, o álbum tinha sido lançado através de uma revista editada pelo Lobão em parceria com uma editora, num novo conceito de selo, pois era vendido em bancas de jornal e livrarias. 81


Mas qualquer ação com bandas brasileiras pressupunha “inversão”. E isto estava ainda mais complicado do que na fase em que fazíamos as contas sobre a turnê do Planet.

pose & effect’s world wild web. / Marcelinho Da Lua em dj set no 3º Festival Transatlântico, no Porto, em 2005

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O Bruno decolara. O Bob não podia investir e o Camisas estava inconsolável e não poderia. Também levei um baque, mas estava custando igualmente deixar de lado o know-how, os contatos e o retorno positivo de público que tínhamos angariado no Porto. Quando ainda planejava a tour estive em Barcelona no estúdio em que tinha trabalhado e conheci a Marise num intervalo no café em frente. Marise, uma mineira amiga do Marcelo, de Londres, que a indicou como hipótese de co-produzir o show do Planet Hemp na Catalunia, andava por lá produzindo algumas coisas, mas apesar do seu interesse inicial, o lance não vingou. Mantivemos alguma proximidade por e-mail para outras possibilidades e esta se avizinhava tanto por sua incorporação na equipe do festival Brasil NoAr quanto pela minha intenção em continuar a montar turnês. “Você consegue trazer o D2?” - ligaria Marise mais tarde quando procuravam viabilizar a edição 2004 do festival. D2 tinha regressado ao Brasil após a turnê na Europa e lançado o “À Procura da Batida Perfeita”, com um esquema que envolveria DVD, videoclipes, agenda de shows carregada e muita mídia. Estava instigante trazer a sua apresentação 83


inédita no Velho Continente, mas aí eu é que ficaria inconsolável porque o investimento era alto. “Cara, para mim não dá, mas... você já ouviu o disco do BNegão?” - respondi-lhe por aí dias depois. Marise degradou o seu interesse com a pergunta, mas quis ouvir as faixas. Ouviu, curtiu e partilhou com o restante da equipe, mas abriu uma possibilidade financeira mais restrita, pois precisavam de um nome mais conhecido para atrair público para o evento e isto era compreensível. Eu mesmo ainda ponderava o assunto. Estava numa indecisão desconfortável, mesmo tendo outra saída óbvia que era dedicar-nos a produções de baixo custo até podermos alçar outros vôos caso desejássemos. Marcelo também estava inconsolável em Londres e não poderíamos contar com ele, mas na bagagem trazia também uma revista editada por brasileiros chamada Jungle Drums, que era distribuída gratuitamente por lá e, folheando-a, soube que também agitavam umas festas. Era literalmente um plano “B”. “B” de sequência; “B” de Bernardo - que é como muita gente o chama; “B” de lado B da black music como o próprio BNegão adjetivou seu trabalho; 84


“B” de “não é o D2”, como receberia muitas vezes como resposta de algum contratante... O custo seria, basicamente, o das passagens aéreas entre o Brasil e a Europa, sem cachês fixos nem aluguéis de casas de shows, onde a banda seria apresentada como um projeto novo e os demais gastos com hospedagem e alimentação arcados pelas co-produtoras. A idéia era muito semelhante à da turnê do Planet, com o diferencial de que todos os valores arrecadados com cachês ou porcentagens de bilheteria seriam utilizados para cobertura do investimento, e a partir daí o lucro resultante seria dividido. Haveria riscos mais previsíveis e alcançáveis e os objetivos seriam mais coletivos. Barcelona em março de 2004... Outro rascunho; outros cálculos. O montante a investir era bem menor, mas o passo neste quesito era só meu: fazer ou não fazer? eis a questão que não saía da minha cabeça naquela época. Era dezembro e chegava outro inverno enquanto a Pose & Effect vivia esse dilema. Em Janeiro, Rio. “Fechamos para férias. Reabriremos em fevereiro”. 85


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ir ao Rio no início de 2004 acabou por ser

também para férias. Seu Zé havia marcado casamento com uma nativa da reserva indígena dos Potiguaras, na fronteira litorânea entre os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte, e estávamos mais que intimados a comparecer - o que já era um compromisso. O “nós” neste caso era abrangente: para além da família, estavam conosco o Camisas e mais dois amigos seus, sendo que um deles também era ex-aluno do noivo. Também começava um período em que as férias não eram apenas para descanso. Na atividade de produtor iniciante, sempre rolava algo do ramo para fazer, previsto ou imprevisto, e naquele janeiro o Seletores de Frequência mostrava o seu “Enxugando Gelo” no palco da Melt, no Leblon, e Marcelinho da Lua punha para fora seu disco de estréia no Espaço Sérgio Porto puxado pela faixa-título “Tranquilo”, e fomos conferir. A começar pela casa, quase tudo o que rolou na Melt parecia ter mais a ver com o que acontecia conosco no Porto. BNegão, mesmo já sendo veterano em shows e estúdios, estava um 88


garoto com a nova banda naquele clima “me and my friends”, da recepção ao roadie. O som ficou aquém do cd, mas isso seria acertado pelos próprios Seletores brevemente com a incorporação do Flávio e permitiu visualizar o grupo em situações técnicas menos favoráveis. Bernardo sabia do contato e intenção do pessoal do Brasil NoAr, mas a parada estava em stand-by. As férias proporcionaram assistí-los naquele que era um dos primeiros shows do projeto - se não me engano foi o segundo show -, e ficamos de definir o assunto quando regressásse a Portugal. Afinal, o Seu Zé estava noivo e até chegarmos à reserva indígena ainda tínhamos que descansar e fazer muitos kms por terra, ar e mar. E havia a “inversão”. Já o Da Lua tinha na bagagem o seu trabalho como dj/produtor do Bossacucanova e se apresentava com um time cascudo na bolacha (Bi Ribeiro do Paralamas do Sucesso, Black Alien...), e uma banda de apoio que não ficava aquém ao vivo e revelava gente como o vocalista Angelo B. Black Alien, inclusive, atravessava uma nova fase com o seu parceiro Speed com o single “Follow Me”, elevando o funk carioca até aos ouvidos britânicos numa produção do Tejo, do Instituto, e 89


sua participação em “Tranquilo” ajudava a reposicionar o mc no status que angariara nos anos 90. Em casa a conversação prosseguia e Marise parecia mais empolgada com a possibilidade de firmamos contrato. Para motivar, um escritório catalão de management e booking de bandas e djs que mantinha alguma relação com os responsáveis pelo Brasil NoAr andavam à procura de outros nomes brasileiros para representar e, quando tomaram conhecimento do trabalho do BNegão se interessaram e me contataram. A La Fabrica de Colores estava expandido suas ações depois do êxito nacional com as bandas Ojos de Brujo e Macaco, e fora a proximidade com a label, sinalizavam com a exposição do Seletores no mercado europeu atráves de uma feira internacional chamada Womex. A feira é uma organização de grande valia e engrenagem no mercado fonográfico e de shows na Europa, e dava a entender um pouco mais sobre como alguns artistas galgavam o patamar de internacionais para além do que lhes era imputado ao talento. Especializada em música e voltada para selos e empresários exporem seus castings almejando a contratação das majors e agentes de grandes eventos, a Womex, com sede 90


em Berlim, ocorria anualmente em alguma cidade européia e me inteirava e negociava com a produtora de Barcelona a nossa participação. A edição de 2004 aconteceria na Alemanha mesmo, numa cidade chamada Essen, que fica perto da Holanda, e o período de inscrição estava encerrando. As expectativas ampliavam. O festival em Barcelona abria vaga para sermos o nome principal de uma das três noites e antecipava alguma colheita através da La Fabrica de Colores. Sem contar com os demais protagonistas da Pose & Effect quanto ao investimento rascunhava um planejamento que pagasse a participação no Brasil NoAr em março e viabilizasse o retorno em outubro do mesmo ano para a Womex, tendo uns seis meses para conseguir o budget necessário e montar uma turnê aproveitando a presença do grupo. Não seria fácil. Ficaria numa posição de manager da banda na Europa com o Bob e o Camisas de apoio quanto ao Seletores de Frequência e isto não estava no script. Mas a participação no festival ficava sob a intenção de atuar com orçamento reduzido e a feira poderia catalizar uma boa estrutura para o grupo. Alguns nomes como o Instituto e o Otto já funcionavam com a La Fabrica de Colores e esta, 91


trocando e-mails e tefonemas, crescia na vontade de trabalhar com a banda, o que forçava a duas decisões: irmos ao Brasil NoAr; e inscrever o BNegão no Womex. A história com o Womex, para gente, era outra. Ficaríamos comprometidos com os custos do negócio em outubro (passagens aéreas, hospedagem, alimentação...), e, de alguma forma, indo através da La Fabrica de Colores, ligados a eles em quaisquer movimentos posteriores à feira. Poderia não ser um problema, mas não havia nem tempo nem convivência anterior que permitisse postergar a situação. E com a previsão de o Camisas ficar inconsolável ainda durante algum tempo e o Bob abdicando confessadamente da posição de sócio-investidor, dedicávamo-nos às noites de Reggae e videogame quando nos reuníamos para ajudarem na administração deste dossiê.

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pose & effect’s world wild web. / cartaz do Roskilde Festival com o line-up completo da edição de 2005 / na página anterior, o show dos Seletores de Frequência

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O

mundo andava agitado. Da pousada no Rio pres-

enciei a derrubada da estátua do Saddam Hussein em Bagdad e na volta à Europa explodiram um prédio em Madrid onde funcionava uma rede de lojas de departamentos um dia antes deu passar por lá a serviço e ficar hospedado num hotel no mesmo quarteirão. Os ecos do 11 de setembro ainda reverberavam dentro e fora da redação e influenciavam nossas projeções. Uns tempos atrás, e na época em que estudava alimentação, eu e o Bruno havíamos rascunhado umas idéias para uma festa vega chamada “Automático” para propormos ao Midan, e fui recuperar o esboço. O conceito era reproduzir a guerra de tomates que ocorre anualmente nas ruas de uma localidade na Espanha, adicionando discotecagem e mais qualquer coisa, mas tínhamos guardado o projeto para quando tivéssemos condições de investir em revestimento interno. Entretanto, a linha musical voltada para os países lusófonos agradava e, com a incorporação do Bob, criávamos o primeiro evento que assumia as três alcunhas (Pose & Effect, PazPazes e Reggae Playground): o festival de música moderna da língua portuguesa Lusophonia. 96


O Porto preparava-se para marcar o mês de março como o mês em que os EUA e aliados invadiram o Iraque em consonância com outras cidades européias, e Bruno estava empenhado no tema. Produzia algumas iniciativas com o PazPazes e se juntava a outras em andamento para gerar um calendário de atividades sob a sua etiqueta na data prevista, enquanto Bob e eu trabalhávamos no festival. Marito sacou o angolano Prince Wadada - reggaeman residente em Lisboa que estava por lançar o convincente álbum “Natty Congo” -, e destrunfei o Black Alien apesar de ainda não ter recuperado do escorregão no Paradise Garage, mas empolgou pela contratação da música “Follow Me” para uma campanha internacional de uma marca de automóveis depois da remixagem do badalado dj Fat Boy Slim. Fechamos então um multirão que viabilizava o festival: após uma meditação coletiva nos parques do Palácio de Cristal, o PazPazes conduziria uma caminhada pela paz cruzando a cidade e o rio Douro até chegar ao HardClub, onde a programação do evento os aguardaria para iniciar às 22h e durar até ao amanhecer. Beleza. 97


Desde 94, quando conheci o Gustavo Black Alien no Circo Voador, ia esporadicamente até Niterói para visitá-lo. Algumas vezes para entrevistá-lo, noutras para pôr a conversa em dia. Desta vez ligaria para convidá-lo para atuar e andava ladeado pelo dj Pachú. Marito repescava o Cruzfader e pus a rapaziada do reggae de Leça no alinhamento atráves do dj Masko. O cartaz estava formado e 20 de março de 2004 devidamente assinalado para sintonizar o festival. Agendamos também um warming-up num lugar chamado espaço Maus Hábitos - que mais adiante se tornaria muito presente em nossas produções -, coisa de três dias antes do evento, com o Pachú e o Bob nas pick-ups para preparar o ambiente. Umas talagadas de moscatel ia ajudando a aquecer naquele inverno e já nem lembrávamos que havíamos suspendido o tomate da dieta do Lusophonia.

pose & effect’s world wild web. / outra imagem da tenda da “festa do fone” no Roskilde Festival de 2005

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Y

oga, soundsystems, entoação coletiva de did-

geridoo, meditação, exibição de filmes, buffets vegas, tai-chi... O planeta assistia ao noticiário sobre a guerra no Iraque, os atentados em Nova Iorque e em Madrid, os conflitos no Oriente Médio e a gente também. Decorria no Porto um fim-de-semana que, à nossa maneira, eram caminhos acessíveis para sociedades mais saudáveis e produtivas. O Circa e a escola em que o Bruno lecionava acolhiam algumas das atividades que se diceminaram por restaurantes, lojas e locais públicos, e o festival estava na reta final da programação de sábado. Com as portas abertas, iam chegando dois ou três de cada vez e a expectativa aumentava, pois haveria uma multidão aportando no clube em breve ou as manifestações pela cidade estavam retendo a galera. Bob fazia as honras da casa e ficamos à espera. Vi a Vanessa da Mata na pista mas continuava apreensivo. 50 pessoas. Dava para contar pouco antes da meia-noite. “Cadê o Bruno?” tinha se transformado no pensamento de escape daquele aperto. 100 pessoas. Para 1200 faltavam 1100, mas esperávamos pelo menos umas 500. Masko na mesa. Fazia o trajeto entre a entrada do Hard102


Club e o camarim ininterruptamente e comecei a ligar para o Bruno. “Vamos a caminho!” - aliviou ele, pois temia que estivesse meditando apesar do atraso. Seguramos o set do Cruzfader para aguardar o pessoal chegar e fui confraternizar um pouco antes de recebê-los. Não seria sequer uma questão numérica se não estivesse a cuidar de custos, mas a aposta no HardClub parecia desproporcional naquele momento. Os acontecimentos tinham alto grau de repercussão e várias produções estavam em andamento. Mas o PazPazes vinha a caminho e pelo barulho do outro lado da linha quando consegui falar com o Bruno parecia que vinha uma cabeçada. E veio. Não propriamente como imaginava, mas veio. O HardClub já estava mais composto quando Bruno chegara no camarim. Com ar satisfeito, mas algo abatido, ia no segundo dia de programação e tinha ainda aquela madrugada e todo o domingo pela frente. Dizia que as coisas na cidade tinham sido maravilhosas dentre iniciativas mais concorridas que outras, mas que conseguia emplacar suas propostas. “Cadê o pessoal?” - perguntei-lhe às tantas com alguma ansiedade. Passou a contar que tinham vindo uns amigos e que estavam na platéia dançando. Acho que eram uns cinco, não lembro bem... 103


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Á

guas de março na Catalunia é vinho e cham-

pagne e o Barrio Gótico e as Ramblas estavam para nossa trupe como para os outros turistas em trânsito. O bom pracismo da equipe do festival não tirara o realismo dos Seletores quanto ao seu ineditismo enquanto projeto, apesar do surrealismo da data no exterior logo a seguir ao lançamento do disco, enquanto o meu à vontade na cidade adquirido no período em vivi lá e por retornos constantes por motivos profissionais -, ainda não superava a antenagem nas funções. Um rolé pelos arredores da pomposa sala La Paloma, checksound e a camisa - não o Camisas -, começou a pesar... Banda principal da noite de sábado de um evento em que no domingo contaria com o Domenico+2 (sendo o “+2” Moreno Veloso e Kassin), e que havia aquecido bastante na abertura na sexta-feira com o XRS e o Embolex com o Gazpar do Z’Áfrika Brazil nos vocais, solicitava um esvaziamento cuidadoso de expectativas. Ficamos no camarim enquanto aguardávamos a hora da subida no palco em meio ao entra-e-sai da Marise, Gandhi e 106


Robério (responsáveis pelo certame). Gandhi poderia disputar facilmente quem conseguiria o maior sorriso com o Luiz do feijão quando parou do nosso lado e anunciou: “cara... acabei de vir de lá de fora e a fila...”. Gelo. Olhei para o BNegão e aguardei a resposta com a mesma gravidade que vi estampada no rosto dele, pois algo desafinado nublava nossos semblantes. “... a fila...”, concluiria Gandhi, “... está dando a volta no quarteirão e pela quantidade de gente que já entrou acho que não vai caber todo mundo”. Cada profissão tem as suas peculiaridades e, de fato, na de produtor, músico e afins, há poucas notícias que possam ser melhores do que aquela. Quando BNegão & os Seletores de Frequência pegaram seus instrumentos no palco a platéia já estava ganha e a noite se tornaria inesquecível, pois cerca de 1200 pessoas encheram a La Paloma para bailar, colaborando na viabilização da 4ª edição do Brasil NoAr e iniciando uma relação duradoura da banda com os catalães. De primero, o gelo derreteu em Barcelona.

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Bob, o show em Barcelona foi uma cena!” -

comemorei com o Marito. Bob e eu tínhamos aprontado uma data no Porto com os Seletores para depois do Brasil NoAr antes da banda pegar o vôo de volta para o Rio, e íamos a caminho. A parada não seria fraca, não. Uma pensão próxima da residência do Bob que descobrimos ser nos mesmos moldes da que ficamos em Fulham, na Inglaterra, e que se tornaria a hospedagem predileta da produtora para receber os convidados, abrigaria os Seletores e, para a apresentação, um espaço que também seria utilizado mais que uma vez. A Maus Hábitos não fazia jus ao nome, não senhor, e tinha tantas características personalizadas que acabava por ser rara. Descartáramos o Circa por mera questão de condições de palco, e o Manuel foi muito receptivo ao show quando nos conhecemos - Manuel o dono da galeria Maus Hábitos, digo, porque outros Manuéis aparecem nessa história. A localização era excelente: de frente para o Coliseu, a maior casa de espetáculos da cidade e situada no centro, era preciso ultrapassar o estranhamento de haver um lava110


jato no térreo, subir pelo elevador do tipo blindado até ao último andar do prédio, tocar a campanhia sob uma discretíssima plaqueta com o nome do lugar e, ao abrirem a pesada porta, entrar normalmente como se se tratasse de um espaço público. Dava-se de cara com um cômodo amplo com mesas e balcão de bar e com um longo corredor de paredes em vidro até ao fundo que permitiam ver as salas de exposições e lounge open-air, até chegar à sala de shows. Manuel, simpático e conversador, estava invariavelmente presente, mas mantinha uma certa postura espontânea de quem andava por ali apenas para expor suas obras, o que retirava dos frequentadores a sensação de não estarem em suas próprias casas. Topamos fazer o show como experiência. Queríamos repetir a dose se a tacada desse resultado e cravamos o ingresso a módicos euro e meio na quinta-feira após o festival e com o Marito discotecando. Daria para a pensão. A Maus Hábitos cultivava a fluência dos clientes e separava o público que queria ir à sala de shows do que circularia pelas exposições e bar, e para a gente a continuidade seria lucro. Resultou. Duzentas pessoas deram o seu aval para a banda e na área principal mais umas 100 juntaram para o convívio 111


curtindo o set do dj, enquanto eu e o Manuel acenávamos um para o outro como sinal de aprovação. Manuel o dono da galeria Maus Hábitos, sublinho. Porque outros Manuéis aparecem nessa história, inclusive o Seu Zé, que muitos conhecem como Seu Manel. Descendo pelo elevador blindado, quando saíamos no térreo ao lado do lava-jato, fomos recebidos por uma van. “Não aluguei nenhum veículo”, lembrei. E efetivamente o carro não era para a gente. Era um asterisco de saideira. “¡Hola, xarás! BNegão, Planet Hemp...” - saiu um cara do automóvel verde após abrir a porta lateral e deixando escapar uma densa cortina de fumaça, algum odor de lula fresca e os rostos sorridentes dos passageiros. Era o Xoan. Xoan era transportador de peixes numa empresa familiar em Vigo, na Galícia, e havia estado no show do Planet Hemp no HardClub, mas perdera o do BNegão por atrasos na viagem até ao Porto. Chegava naquele exato instante em que saíamos do prédio da Maus Hábitos cheios de bolsas e equipamentos, mas insistia que caíssemos na farra com a sua turma. Não rolou. 112


Ainda aproveitaríamos os dias antes da viagem do grupo para o Rio de Janeiro para gravar o video de “O Primeiro Passo” com o coletivo Zeclascenas - que participava do PazPazes -, e se ofereceu para produzir o primeiro clipe dos Seletores, numa praia na margem sul da foz do Douro, e a aparição, apesar de divertida, provocou reticências gerais. Trocamos contatos e nos despedimos, mas algo dizia que aquela caravana reapareceria num show nosso.

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pose & effect’s world wild web. / uma das mesas de operações disponibilizadas para os Seletores durante as turnês

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ão demorou muito. Logo receberia um contato

do Xoan querendo saber quando faríamos outra data em Portugal com o Planet Hemp, com o Seletores de Frequência ou com algum outro elemento ligado ao grupo. Queria fazer a ponte com a Galícia, conhecia bastante da nova música feita no Brasil e, para além da turma regueira que revelara ao abrir a porta da van em frente a Maus Hábitos e da admiração pelos hempas, conhecia alguns canais na região espanhola - que dista cerca de hora e meia do Porto pela estrada -, e que viabilizaria a esticada. Realmente veio a calhar. Passávamos aquele período entre março a outubro de 2004 em intensa atividade na Pose & Effect e me ative totalmente à produção da turnê do BNegão. Bob empreendia apostas mais ousadas com a Reggae Playground, incluindo bandas como a One Love Family, de Coimbra, e o people de Leça que, enfim, haviam formado a banda Souls of Fire e junto com o Marito tinham descolado umas festas noturnas de reggae num bar na areia de uma praia. Também fortalecia sua conexão com a cena drum n’bass e de hip hop local, apostando no seu set de jungle em points como o barco-bar Porto Rio, onde participou de lances como 118


a atuação a bordo do Bad Company e de um live P.A. com o próprio Bernardo e a galera do Dealema. Bruno decolara com o PazPazes juntamente com a Catarina e com o Daniel e, além de integrarem também o Shiva Shakti, ministravam aulas de yoga e cursos de alimentação vegetariana. Estávamos assim trilhando caminhos próprios, que seguiam próximos em objetivos e afinidade, mas apesar da interação, cada vez mais com a cara de cada um. Nesta fase a rede de contatos ampliava constantemente. E localmente não era diferente. Seu Zé e Seu Miguel sempre enturmavam mais um qualquer, mas uma série de acontecimentos do gênero feminino foram nos distanciando a convivência - minha família, o Seu Zé havia casado e o Seu Miguel iniciava um outro namoro. Foi então que surgiu outra personalidade destacada no histórico da produtora: Marcos. Marcos é um dos irmãos do Manel, o vocalista da banda que ouvi pelo rádio do táxi assim que cheguei ao Porto. Ele não gosta desta introdução, mas é fato e nada pejorativo, ain119


da mais tendo que referenciar tantos nomes nesta biografia. Já nos conhecíamos pois também é jornalista e atuava num outro título do mesmo grupo de comunicação que o nosso e que tinha redação no mesmo edifício. Não lembro quando falamos, mas Marcos era figura tão dada à vereação quanto o Seu Zé, e disputaria uma vaga com ele tranquilamente caso o quesito fosse popularidade, portanto, pode ter sido num dia qualquer. “Fela” - como nos trataríamos mutuamente -, fazia reportagens sobre música mas restringira recentemente seu interesse pessoal em black music, principalmente no funk, mesmo renovando constantemente o conhecimento da produção fonográfica em geral. Andava empenhado em sua coleção de discos do gênero e contava com um amigo dj para trocar informações e iniciar sua incursão nas pick-ups, além de fazer parte da equipe de futebol da empresa e comparecer assiduamente nas peladas semanais. Ocorreu que fomos nos aproximando e logo outro clique acontecia espontaneamente com a produtora em meio às partidas de videogame, de seções de funk e de shows, tanto com o seu irmão Manel, quanto com uma outra leva de bandas da cidade que tinham a ver com a Pose & Effect. 120


A conta de e-mail não parava. Avançáva com a parceria com a La Fabrica de Colores de Barcelona para emplacar o BNegão na Europa pela Womex em outubro, mas preparavam uma data na sala Apolo, tão renomada no circuito quanto a La Paloma. A galera da revista Jungle Drums, de Londres, faria aniversário no mesmo mês da feira e ficaram motivados com a hipótese de receberem a banda para as festividades a acontecer num squad dedicado a instalações artísticas. Somando-se ao Porto e à Galícia através do Xoan já falávamos em 5 datas por 4 países e, pela experiência anterior com o Planet, era preciso planejar o melhor possível aquela jornada.

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Embarque imediato”. Anunciava o voo Porto-

Cologne na área dos portões de embarque do Sá Carneiro, no Porto, naquela amanhã outonal e cinzenta de outubro na Europa. Os Seletores de Frequência cruzavam o Atlântico e nos encontraríamos no aeroporto alemão para prosseguirmos a viagem até Essen, mas chegaria primeiro para cuidar do transporte local e recepcioná-los. Muzak, Pedrão e Pedrinho desceriam na conexão em Berlim para uma apresentação do projeto solo do guitarrista num evento produzido por uma amiga produtora aproveitando a ocasião e o lançamento de “Bossa Nômade”, e subiriam para lá no dia do showcase no Womex.

Saquei uma van num glichê de uma locadora rent a car no próprio aeroporto e iria conduzir o bonde. O trânsito e as estradas da Alemanha têm boa fama e estava ansioso por experimentar guiar em alta-velocidade sob permissão das leis de tráfego e com condutores mais precavidos ao redor. Chovia leve e a claridade do sol estava ofuscada pela nebulosidade, mas faria bem o trecho até Essen mesmo não estando ainda habituado a conduzir aquele tipo de veículo. 124


Cologne é a capital do Reggae do país germânico, mas a curiosidade não passou do saguão do aeroporto. Mesmo assim esta informação extra consolava a espera e algum sono dissidente da maratona da pré-produção da turnê. Foram meses muito trabalhosos, de gestão de pessoal, de meios e centenas de contatos, e a banda ainda nem tinha chegado do Brasil para a data inicial. Quando chegamos a Essen e sentimos logo a mudança de temperatura. Cruzávamos uma zona de blocos de prédios - que mais tarde descobriríamos serem muito típicos por lá -, para encontrar o hotel que havíamos reservado e, ao pararmos em frente ao número indicado e depois dos passageiros baixarem com as malas, um senhor calvo, de camiseta cavada e baixa estatura saiu da recepção do albergue rompendo bruscamente o silêncio e gesticulando comigo quando dava marcha-ré. Embrenhei e freiei a van imediatamente. Não percebia uma vogal do que dizia mas percebi que estava agitado. Olhei para os lados a ver se tinha encostado em outro automóvel ou se identificava alguma sinalização. Nada. O senhor gesticulava percebendo que não entendia o que ele dizia até que finalmente nos entendemos: estava indicando a vaga onde poderia parar o carro. 125


pose & effect’s world wild web. / um dos corredores do hostel onde os Seletores de Frequência ficaram hospedarados em suas passagens por Londres

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Beleza. Entretanto, essa situação deflagrou um problema a ter em consideração dali em diante: não sabia nem ler e nem falar em alemão. E o inglês não era coisa muito fluente entre nós também não. Em Essen fala-se alemão. Pois é... O senhor era extremamente cuidadoso, nos hospedou ainda na base dos gestos e os demais hóspedes que veríamos pareciam trabalhadores industriais em deslocação para fins de empregabilidade. Olhava para as placas de trânsito e não dava para ler nem o nome das ruas, cidades e bairros, que dirá pronunciálos. Tínhamos combinado irmos buscar os três “berlinenses” na estação de trem da cidade e apenas pelo mapa sem poder perguntar nada para alguém seria complicado. Beleza. Um bandejão no refeitório do albergue e dormir que amanhã é dia.

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entei. Saí com a van rumo à estação de trem

mas... é difícil ler em alemão, assim, de cara. Dei umas voltas procurando não perder o trajeto de retorno até ao albergue enquanto buscava o caminho para a estação de Essen. Tinha a esperança de que fosse aparecer uma placa com um “trenzinho” ou com o ícone de uma estrada-deferro que pudesse dar um alô, mas não pintou. Voltei para ver se entre as opções do táxi ou da produção da feira a gente resgatava os caras. Adentrei o hotel e quando vi o senhor na recepção lembrei que o problema era o mesmo. Me sentia desconfortável em ter de apontar para um táxi para solicitar um e também não havia nenhum por perto para o fazer. Pensei logo no inverso, contatando um dos três para pedir que, ao chegarem na estação em Essen, pegassem um táxi que certamente estaria disponível numa área indicada e fossem para o endereço em que estávamos. Não lembro com toda a certeza se foi aquela a opção adotada, talvez devido a um problema maior que se sobrepôs quando tratávamos do transporte: haviam perdido a bagagem. 130


Estavam em Berlim sem lenço e só com os documentos e a roupa do corpo, que já ia com validade a vencer. Com auxílio da amiga do Muzak desenrascavam a mudança de vestes num bazar de preços bem acessíveis, mas tinham-se extraviado alguns equipamentos. Parecia brincadeira que depois de toda a viagem até Essen ter corrido nos conformes, ir do hotel até o local do evento estivesse se tornando uma operação de salvamento. Correu bem. Conseguíramos nos reunir e ir para a feira e as malas seriam encaminhadas para o albergue assim que fossem localizadas pela companhia aérea. Lá, faríamos o último concerto da noite de sábado, que contava com mais dois projetos - um oriundo da Índia e outro dos EUA. A La Fabrica de Colores distribuía e tocava algum material no seu stand que incluía também o BNegão, e muita gente circulava pelos corredores daquela edição do Womex atrás dos artistas que estavam em cartaz e apreciando o que os expositores ofereciam. O espaço era muito característico e completava o retrato da cidade, e tinha a ver com o albergue onde estávamos hospedados. Uma big zona industrial desativada com galpões 131


amplos por onde a feira se espalhava e dinamizava a região com grupos vindo de vários pontos do mapa mundi. A simpatia era artigo farto, o que ajudou até na última hora antes do show quando soube que a bagagem da galera tinha aportado no albergue e precisei correr até lá para levantar os tais equipamentos que fariam falta na apresentação, pois a produção disponibilizou um de seus ônibus e o motorista falava o inglês suficiente para irmos estabelecendo contato. Perguntava sobre como é viver em Essen depois de me identificar como brasileiro natural do Rio de Janeiro, e dizia que a feira trazia um astral muito bom para a cidade, inclusive para ele, que havia perdido recentemente o melhor amigo. O showcase reproduzia o ambiente de muitos festivais que veríamos futuramente, onde as atrações atuam em horários coincidentes e o público em frente aos palcos oscilam ou permanecem por motivos diversos. Os Seletores entraram com todas as condições solicitadas, com as vibes dos shows anteriores e uma cuidada iluminação de bônus. BNegão utilizava dois microfones e os temas de “Enxugando Gelo” compunham uma sequência de tonalidade reverencial presente no álbum, mas que atingia outra dimensão interrompida eventualmente 132


pelos temas mais diretos. Alguns agentes portando crachás pendurados ao pescoço trocavam impressões entre si e via-se que de alguma forma o show ia ganhando as suas atenções. E, mesmo depois de recebermos alguns cumprimentos e cartões de visita, não saberíamos, ainda, o quanto.

pose & effect’s world wild web. / página do site do Womex anunciando os artistas que fariam showcases na edição de 2004, em Essen, Alemanha.

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eixávamos Essen na van de volta a Cologne

com um sentimento de “só isso?” e de “isso tudo?” misturados, pois os resultados da Womex seriam colhidos mais tarde. A turnê estava começando e a parada em Londres era bastante diferente da feira. Os 180 km/h marcados no painel dariam para cumprir as 2 horas de antecedência em relação a hora de partida do vôo e mantivemo-nos bem-humorados com a equipe, enfim, reunida. A imigração na metrópole inglesa tem as suas próprias regras, mas estávamos munidos de carta laboral expedida pela produção da Jungle Drums que aguardava do lado de lá com os vistos necessários. Chegamos, portanto, descansados ao balcão do serviço, e enquanto a banda esperava nos acentos em frente me dirigi até ao atendente com os passaportes e o documento para liberação de todos. A carta estava em inglês e de acordo com as recomendações que o pessoal da revista havia recebido no próprio serviço de imigração, mas tivemos uma surpresa: “it’s a toilette paper, my friend” - disse o atendente devolvendo-me a carta após averiguar o documento. “Tô mal no Inglês”, pensei. Ouvira o cara dizer que a declaração de contratação para o show que a produtora havia providen136


ciado tinha tanto valor quanto um “toilette paper”. Chamei o Pedrinho, mais safo na língua inglesa. Talvez traduzisse melhor a conversação. “Pô m.i.k.a., ele falou que esse papel aí é um ‘toilette paper’” - confirmou. “E ele me chamou de ‘my friend’”, complementei. O restante da banda conversava alegremente nos bancos em frente e lamentei ter de anunciar o ocorrido. Queria contatar com alguém da produção mas o oficial estava irredutível. Passou o documento para um colega conferir as informações que transmitíamos numa sala em anexo, mas avisava que, naquele caso, era bem possível sermos deportados. Lamentei mais ainda. Partilhamos a história com a equipe e precisava ainda pedir a alguém para ir até ao recinto onde os barrados aguardam o retorno para o país de origem acompanhados por um oficial enquanto ficaria à disposição do atendimento para confirmação dos dados. Dois de nós fomos até uma área semelhante à uma cadeia de delegacia, onde algumas pessoas que haviam ido para a Inglaterra sem as condições legais exigidas esperavam a volta para casa. O clima pesou. Bebíamos água e mantínhamos a calma espe137


rando que a Jungle Drums não tivesse cometido nenhum vacilo. “Toilette paper” tinha sido puxado... se a possibilidade da consequência negativa que o desenrolar da história poderia ter não incomodasse tanto estaríamos rindo. E a medida que o tempo passava ficava mais difícil contermo-nos. “Toilette paper”... Começamos a especular o que iria acontecer se cada um fosse para uma cela e o cenário ficava tão dramático que começamos a brincar um pouco para desanuviar. A guarda toda parecia surpreendida, até que veio lá de dentro o papel com a liberação. O “my friend”, como passamos a chamar o atendente ao lembrarmos o caso, deu as boas-vindas e o pessoal da revista aguardava a gente na saída. Gianne e Juliano haviam estado no show do Planet Hemp e tinham alguma proximidade com o Luiz do Feijão. Saídos daquele sufoco, marchamos para o lugar onde ficaríamos daquela e de outras vezes em Londres: um hostel num prédio não muito perto do centro da cidade nem tampouco do squad onde rolava a programação do aniversário da revista, mas quase ao lado de uma estação de metrô, o que lá é muito prático. Ali tudo era novidade. A hospedaria tinha uma capacidade assustadora e a quantidade de gente que transitava pela 138


recepção no térreo anunciava o movimento. Pub, cyber-café, lavanderia, sala de telefones... Ficamos em dois quartos com dois beliches e uma pia cada, que serviam basicamente para dormir e pousar as malas. Check-in feito, partimos para revisitar o Luiz e o Marcelo e preparar o arranque para uma zona destacada da cidade onde ficava o squad. O subúrbio londrino trazia à memória a Essen que deixáramos há coisa de meio dia para trás. No squad, performances e projeções multimídia e um bloco de maracatu precederiam o show, seguidos de alguns djs que fariam a festa continuar. Algumas barraquinhas também eram montadas para vender guloseimas, batidas, caipirinhas ou algum produto e artesanato, promovendo um jeito bem comunitário de festejo. O público do tal MmAB (Mostra Multimídia de Arte Brasileira) que aportava na construção ocupada no horário previsto era de novo maioritariamente de brasileiros, mas muitos eram de outras nacionalidades. A animação e estilo da noite fazia parecer que era um São João fora de época e o Seletores de Frequência pôs a quadrilha para dançar e tornou aquele “parabéns para você” da revista uma efeméride muito especial. Quentão. 139


pose & effect’s world wild web. / palco Orange do Roskilde Festival em dois tempos na edição de 2005.

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or mais agradável que seja a estadia em Londres,

as distâncias fadigam um bocado. A cidade é das mais extensas do mundo e a orientação só não é impossível para os estrangeiros por causa da malha de linhas do “underground”. Portanto, mais uma vez dávamos no aeroporto com alguma energia física a repor, mas Barcelona nos aguardava e seria a nossa segunda e mais próxima experiência com a La Fabrica de Colores. Desta vez, precisava regressar ao jornal e o Camisas assumiria a produção da banda cuidando do staff na capital catalã, e voltaríamos a nos reencontrar na gig seguinte, no Porto. O tempo de duração dos vôos Londres-Porto e Londres-Barcelona são as mesmas 2h30 e a diferença das nossas chegadas nos nossos destinos deram-se apenas pela diferença nos horários de partida, mas foram muito parecidas. Em casa, logo receberia uma chamada telefônica do Camisas. “Opa!” imaginava, “já chegaram”. “Não tem ninguém aqui na praça Catalunha” - disse-me o Camisas. Haviam chegado sim e tomado um ônibus destinado a passageiros que desembarcam na cidade rumo ao centro 144


histórico, mas não havia ninguém da La Fabrica de Colores presente no ponto final naquele domingo. Deviam estar atrasados. Recomendei aguardarem um pouco e tinham o contato telefônico e digital da produtora para qualquer emergência. “Ninguém atende o telefone” - retornaria pouco depois o Camisas. A situação era de estranheza. Estivemos com a La Fabrica de Colores há poucos dias e não só representaram o Seletores na Womex em seu stand como passáramos meses em negociações para angariar o grupo para o seu cast e fazer uma data da turnê em Barcelona. Por telefone e sem conseguir falar com eles também, pedi para o Camisas providenciar hospedagem por ali e ver como resolveríamos o embaraço no dia seguinte, já que o show na sala Apolo ainda seria dali há três dias. Camisas precisaria sacar “la tarjeta” de calças curtas, mas a confusão ainda ia no começo. Marise deu uma força indicando onde poderiam ficar e circular fazendo a banda se 145


sentir mais em casa, porém a produtora não dava as caras naqueles três longos dias e a tensão ia aumentando. Decidimos comparecer no local do show mesmo com todo aquele fuzuê, pois antecipar a ida da banda para o Porto não nos pouparia da mesma trabalheira, e em Barcelona estavam bem acompanhados. Por incrível que pudesse parecer, mesmo após as situações inusitadas que aconteceram anteriormente, a produtora se manter incontatável até à hora do show era um baque. Mais: quando o Seletores chegaram na sala Apolo para a passagem de som, não havia P.A., backline... Camisas ficava à beira do pânico cada vez que pensava que a ida até Barcelona pudesse se tornar apenas turismo com gastos pagos com o seu cartão de crédito e a banda... sei lá o que... Mas eis que com algum atraso recebo finalmente uma notícia positiva do Camisas. A produção estava na casa de shows e o equipamento já estava sendo montando, mas a conversa com a La Fabrica de Colores estava esquisita demais e então passou a chamada para ver se nos entendíamos. Não exagerava. Entre explicações desconexas e cobranças descabidas, eu e o responsável pela produtora tentávamos acordar algo 146


enquanto o grupo realizava o check-sound, até que ouví algo do tipo “yo no tengo nada que ver con la produción de BNegáuõ”. Não aliviava saber que meu castelhano ia melhor que o meu inglês. Algo tão grave quanto o episódio do “my friend” estava em andamento e a banda corria o risco de ainda fazer uma apresentação gratuita naquele contexto. Arranquei imediatamente para Barcelona. Considerava o desenrolar de todo o relacionamento com a La Fabrica de Colores até aquele momento e nada do que estava rolando por lá fazia algum sentido. O evento previsto naquela quartafeira na sala Apolo era uma festa semanal chamada “Cannibal Soundsystem” que enchia em todas as edições e contava com um show de abertura que, neste caso, seria o do BNegão. Praticamente me materializei na sala Apolo naquela noite tal a correria, mas, afinal, a história desacordada foi outra. Os Seletores fariam o show, a produtora pagaria os custos e a vida seguiria. Um degradeé inesperado e inexplicado para quem almejava desde gravadora a turnês mundiais com o grupo depois de produzir aquela apresentação caseira mas, apesar do desgaste, o show rolou e, no final, quando saímos do camarim para a pista de dança com o problema solucionado, a festa bombava. 147


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m casa repetiríamos a dose. Bob nas vitrolas

da galeria Maus Hábitos do anfitrião Manuel com BNegão & os Seletores de Frequência tocando na sala dos fundos, mas com o acréscimo da contribuição do mc Maze e do dj Guze, ambos do grupo de rap Dealema. A pensão também era a mesma da visita anterior e com o Marito na vizinhança iria para o jornal sem pensar na tour. Quem quisesse repouso ficaria em seus aposentos, podendo optar pela companhia do Bob ou por um rolé nas cercanias aprazíveis da Cedofeita. Beleza. O show seria no dia seguinte, uma sexta-feira, e toda a véspera decorreria num ambiente de QG que a banda ia conquistando no Porto. O número de pessoas previstas em comparação com as restantes datas da turnê era, assim, relativizado. Teríamos no máximo 350 pagantes, mas a proximidade com os portuenses e a despressurização compensavam. E foi o máximo. Manuel e eu mais uma vez acenávamos mutuamente um para o outro em sinal de aprovação e o espaço ficou apinhado. Bob provia a sonorização rastafári com ânimo renovado e o Camisas relaxava curtindo com amigos e convivas. 150


Beleza. No sábado o cronograma previa a ida para a Galícia a bordo da van verde do Xoan, e Bob integraria a trupe para tocar naquela gig de encerramento da tour 2004. O destino era Pontevedra, uma cidade acima de Vigo, mais precisamente um pequeno bar chamado Aturuxo, e eu ficaria no Porto trabalhando no jornal e aguardando o retorno do grupo para embarcá-lo no vôo de regresso para o Rio de Janeiro. Segundo consta a etapa foi proveitosa e cativaram os galegos num espelho do que acontecia em Portugal, pois não só a Pose & Effect voltaria a produzir na região em parceria com o Xoan como os próprios Seletores conquistaram fãs para outros concertos. Houveram uns disse-me-disse quanto ao cheiro a peixe do transporte, mas acho que era incontornável e também uma peculiaridade que somava a uma gíria desta primeira turnê da banda na Europa: “é a magia”. Uma expressão tão habitual diante de fatos inusitados quanto a pergunta revivalista que os músicos faziam nos cafés do Porto: “tem croissant?” 151


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(...) só não quero aqui cenas só de freaka-

lhada senão o caixa não fecha e espantamos as gajas, sabes como é...” - voltava a recomendar o Midan, num papo no Circa Bar ainda em novembro e no rescaldo da turnê dos Seletores. Estávamos turbinados e com meios a mão para incluir uma festa na programação da quinzena e poderíamos juntar a galera e comemorar o ano findo numa edição da Horizon Party. Marcos já tinha também uma noite no bar direcionada aos adeptos do funk e soul que não destoaria numa mesma festa com o Bob, e a casa se estruturara melhor para promover concertos. Naquela época recebíamos algum material de divulgação de novas propostas musicais e convidamos a banda Big Fat Mamma para tocar. Sônia emplacava o seu soundsystem eletro-rock Gajas Ao Volante e topou fazer body-painting durante a festa, mas as noitadas e a vida diurna de modelo não deixavam muitas brechas. Um performer chamado Zuki - conhecido do Bruno e remanescente do Valentino’s -, procurava espaços para se apresentar tanto como dj quanto como clown e incluímos seu nome na parada. Assim como a dupla El Joe & Nutante que atuaram na edição I, mas prefe154


rimos não repetir o set. Ana era parceira desde o Lusophonia e da edição anterior da Horizon com seu restaurante vegetariano, e meteu sua cadeira de massagista na conversa para reservarmos um cantinho do Circa para oferecer shiatsu aos festeiros. Já era a “Horizont II - Happy Party” e nem parecia que na primeira tínhamos nos enrolado com o carregamento de melões. Não era para menos. Havíamos substituído os sucos da fruta por vinhos do porto branco graças ao apoio de uma cave e a tarimba de todos os envolvidos em produção era outra. Do Midan ao Camisas, passando pelo Bob, Bruno, Marcos e demais integrantes do cartaz, as ambições mais ou menos idealistas tornavam-se realidade e 2004 partia naquele retorno ao ponto inicial numa comemoração tão sincera quanto coerente e espontaneamente eclética. Uma imagem? O Simão dos “irmãos Praça” dançando até o sol despontar no lado de fora do bar.

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pose & effect’s world wild web. / show do BNegão & os Seletores de Frequência no parque do Palácio de Cristal, no Porto, em 2005.

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ara a Pose & Effect, 2005 não seria um ano. Seria o ano da Pose & Effect. E esta eleição obedece a critérios como consolidação, mesmo tendo sido revelado mais tarde que a semeadura seria mais sazonal que a durabilidade da colheita.

De início tínhamos a boa nova de que a França inauguraria o Ano do Brasil e o ápice das festividades seria no verão europeu. BNegão rolou o contato direto na embaixada francesa locada no Brasil que solicitava informações sobre os Seletores de Frequência e abriam-se as conversações para a nossa participação, o que já seria um ponto-de-partida para pensarmos numa turnê em 2005. Com o Marcos e o Manel agendamos uma reunião com o Lobão no Rio de Janeiro para conversarmos sobre a possibilidade de lançarmos a revista Outra Coisa em Portugal, e dinamizando o intercâmbio proposta pela produtora também através da distribuição de discos. Até que recebi uma resposta tão inesperada quanto eloquente originária da exposição na Womex: o dinamarquês Roskilde 160


Festival queria contratar-nos para a edição daquele ano. O nome não soava estranho, mas não recordava ter falado com alguém de lá durante a feira alemã nem do festival em si, mas poderia tanto ser uma das pessoas que nos abordaram depois do show quanto algum agente que esteve no stand da La Fabrica de Colores. Uma pesquisa ligeira e foi fácil descobrir que se tratava de um dos maiores da Europa em audiência, em quantidade de palcos e de artistas, e partilhei logo a novidade com a banda. Era um presente de Natal atrasado. Ou antecipado se computarmos o convite a 2005. A equipe do evento não faria préprodução da banda reservando vôos e hotel, mas adiantava 50% do valor ofertado para custos antecipados e recomendaria alguma hospedagem caso precisássemos. Esta política corroborava o nosso funcionamento interno e o adiantamento cravava a decisão de que faríamos uma turnê naquele ano, trabalhando para uma data em Paris, mas prevendo algo em Portugal, Espanha, Inglaterra e onde mais conseguíssemos um novo canal. No Porto, a notícia foi igualmente surpreendente mas tomaria completamente o meu primeiro semestre na produtora. Falá161


vamos sobre o que poderíamos fazer localmente com a banda e o Marcos sugeriu trocarmos uma idéia com o Júlio, seu vizinho no apartamento de baixo e que às vezes aparecia no piso de cima para tratarem de coisas relacionadas com seus gatos de estimação. Júlio era um dos agitadores culturais de um organismo municipal chamado CulturPorto que, dentre todas as atividades que empreendia durante o ano, produzia uma série de shows ao ar livre no parque do Palácio de Cristal chamada “Noites do Palácio”. Em 2005, contariam, por exemplo, com o Tom Zé e a Roberta Sá na alta estação e, dada a previsão que tínhamos e o histórico do grupo até ali, poderíamos propor uma apresentação do Seletores. Era um bom começo. Marcelo estava mais consolado em Londres e gostou de ter novamente a oportunidade de fazer um show por lá quando telefonei e começou a mexer os seus pauzinhos. A Marise andava ocupada com produções próprias e sua incursão como dj em Barcelona, mas a turma do Brasil NoAr ponderaria co-produzir uma data da turnê em Barcelona. Naquela altura acho que chegamos a tentar algo em Amsterdam através da Anouk - uma produtora holandesa amiga do Bernardo que havia vivido uns tempos no Rio -, mas ainda não seria daquela vez que faríamos paragem nos países baixos. 162


“Camisas, este ano vai ser uma cena” - disse-lhe certo dia atribuindo de novo a função de assistente da turnê. E foi.

pose & effect’s world wild web. / Praça e Igreja da Batalha, Porto.

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ntrei no aeroporto de Copenhagen naquele i-

nício de noite de julho com o Camisas antes do Seletores de Frequência baixar no reino da Dinamarca. Nada de filas de controle de imigração, glichês de companhias aéreas ou de qualquer outro serviço. Cruzávamos um piso que mais se assemelhava ao de um shopping center até encontrarmos a área de desembarque do vôo vindo do Rio de Janeiro, mas uma tabuleta sobre um balcão chamou a atenção: “coffee”. Merecíamos. Havia virado várias horas para preparar a turnê e ainda não sabíamos o quanto demoraria até que todos chegássemos ao hotel, pois ainda faríamos um trecho por terra até Roskilde. Já tinha ouvido falar que o custo de vida nos países nórdicos é altíssimo, mesmo se comparado com o da Inglaterra, apesar de operar em euros. O café era um balúrdio. Para segurar um pouco o sono mandamos brasa. “Dois cafés, por favor” - solicitei no balcão. Vieram dois cafés. Dois bules de café, corrijo. Dava para ficar ligado metade de um dia com todos aqueles mililitros, 166


mas não tinha como devolver. Entendemos melhor o preço descrito na tabuleta e enquanto bebíamos aguardávamos a banda para, também, partilharem toda aquela cafeína. O vôo deles faria uma transferência em Paris para prosseguirem para Copenhagen, mas deu galho. “O Pedrinho perdeu o bilhete do vôo para cá lá em Paris...” - contou um dos elementos do grupo logo na chegada. Mais uma vez ficava complicado reunir a banda para iniciar uma turnê. Pedro havia ficado em Paris aguardando um telefonema nosso pois perdera a passagem no trajeto entre o avião e o portão de embarque da conexão. Ligamos. Providenciamos a expedição de outro bilhete mas seria preciso esperar nos bancos do próprio Charles de Gaule até ao amanhecer. Entretanto, as malas de todos os outros passageiros da trupe saíram na esteira e pudemos seguir para Roskilde nas duas vans que a produção do festival disponibilizara para nos levar. Camisas fora em uma, eu, noutra. Beleza. Com a van ocupada, fiz sinal de positivo para o nosso assistente, perguntei se estava todo mundo acomodado e se poderíamos ar167


rancar. Beleza. Demoramos cerca de uma hora até ao destino e o residencial prometia uma boa estadia com seus entornos semi-rurais silenciosos e três quartos espaçosos para acomodação. O “quem-dorme-com-quem?” já tinha rolado quando, ao dar um confere, constatava a ausência do Kalunga. “Cadê o Kalunga?” - perguntei ao assistente. Dúvida. Alguém diz tê-lo visto pela última vez num telefone público ainda

pose & effect’s world wild web. / residencial e centro da cidade de Roskilde, Dinamarca, em 2005

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no aeroporto em Copenhagen, e na van em que estive ele não esteve. Camisas respondera que achara que ele tinha vindo na nossa van. Uma olhada no pátio do hotel no mesmo local em que paramos e nada do baixista. Kalunga havia ficado para trás, provavelmente no telefone público no aeroporto em Copenhagen. Era tarde e não havia outra coisa a fazer: ligar para a produção do festival a ver se fariam uma das vans retornar para buscá-lo. Tinha o número do escritório dedicado ao atendimento das bandas e às tantas fomos atendidos. “Alô?...” - não entendia quase nada do que ouvia e não dava para saber se estava sendo compreendido. Imaginei que pudesse estar mesmo mal no Inglês ou - o menos provável -, que o sotaque dinamarquês do receptor não ajudava. Finalmente ultrapassamos a barreira linguística e uma das vans voltaria para o aeroporto sob as nossas desculpas pelo incômodo. “Oi gente!” - anunciava Kalunga na sua chegada ao hotel quase pela manhã. Era o penúltimo, tudo bem. E nem deu para sentir a diferença horária porque, em julho, na Dinamarca, o sol só se põe durante umas três horinhas. 169


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O

efeito da claridade quase full-time surtia

algum efeito quando partimos para a área do festival. Havia pressa, pois um cartaz com Snoopy Dogg, Brian Wilson, Foo Fighters, Green Day, Audioslave e Black Sabbath tinha atrativo para todos da banda. que só tocaria no dia seguinte. Vimos alguns shows e fomos nos ambientando com o complexo do evento, num terreno enorme reservado para camping, além dos palcos, áreas de alimentação, rampa de skate, lounges e entretenimentos. O mapa distribuído junto com o material do festival era imprescindível para transitar, mas só a experiência de fazer os trajetos faria desenbocar em situações como a “rua da cerveja”, onde stands vendiam a bebida e ao mesmo tempo a galera “apertada” corria para os mictórios. Tocaríamos num palco dedicado à world music que não estava muito atrás em agitação se comparado com os que rolavam Bloc Party ou Roots Manuva. Cabiam umas 3000 pessoas debaixo da lona e quando cheguei a contagem não estava muito longe disso. 172


“Amanhã vai ser uma cena” - refleti depois de conhecer a estrutura destinada às bandas e o festival em si. Já tinha me perguntado pelo Kalunga, mas desta vez ele só tinha ido dar uma volta de skate e apareceu como os restantes quando se encerrava o dia 1 em Roskilde com outra noite de sol.

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O

vai-e-vem constante dos transeuntes em frente ao palco world music baralhava as expectativas. Uma orquestra holandesa e outra colombiana botaram fogo na platéia, mas é o tipo de festival onde ou a banda agarra o público no início ou a debandada é geral porque outras quatro ou cinco atuações decorriam paralelamente. Vazio não ficaria, beleza... E até havia uns adeptos cativados pela programação do recinto aguardando a próxima parada. Dei um pulo na mesa de som para ver se estava tudo ok e corri para o backstage atravessando uma massa mais condensada antes do show começar. Os Seletores entraram aparentemente relaxados para o que seria o seu concerto mais emblemático no exterior: audiência de nacionalidade diversificada, país distante em muitos sentidos e um show incrivelmente disputado. Sem muita cerimônia nem demora a galera aderiu àquele lesco-lesco lapado em reggae, samba, hip hop e outros mas-mas-mas que estamos tão habituados e, quando a banda tocou “V.V”, desde a lateral do palco, via uma onda de gente em frenesim. Bailão classe A. 176


Em Portugal e na Espanha experenciáramos um feedback deste nível, mas na Dinamarca nunca havíamos sequer estado lá. Voou até uma camiseta para cima do palco! Se ali cabiam mesmo as tais 3 mil pessoas pelas minhas estimativas, compareceram 3 mil pessoas. O set list deslizara pelo P.A. até a última nota como se fossem a banda principal da noite. Talvez todas as anteriores tivessem sentido o mesmo mas, para gente, naquele momento, Roskilde era... Nossa! Quanta gente curtiu o show! Na área reservada para a banda, comemoração. A larica estava exigente mas entre risos, sorrisos e sanduíches conseguimos juntar todos para umas fotos - coisa rara durante as turnês. O céu brilhava insistentemente na madrugada ao regressarmos para o hotel. Fuso horário e relógio biológico já tinham se tornado memória.

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Cadê o Kalunga?” - perguntáva quase como ane-

dota, mas era preciso. Estávamos de volta à Barcelona e o Robério da equipe do Brasil NoAr organizava a gig no La Paloma e seguíamos para o típico bairro Ramblas Raval, conhecido pela movida e mestiçagem dos residentes, e onde ficaríamos daquela vez. Fincávamos poiso perto da sala onde atuaríamos e também das artérias principais de acesso ao centro histórico. A eletricidade que traziámos de Roskilde combinava com o reboliço na zona, e fomos albergados num andar de um prédio antigo onde funcionava uma escola de capoeira, dentre outras atividades. BNegão havia sacado outro projeto quando chegou no Brasil após a primeira tour e partira para a França para encontrar com os djs Tejo e Basa para uma apresentação do Turbo Trio no Festival des Eurockéennes de Belfort. Mais tarde pegaria um trem para nos encontrarmos na capital catalã, enquanto nos instalávamos no que batizamos carinhosamente de “cafofo” com a rapaziada simpática da capoeira do Quirze. Deu certo. Estávamos todos no mesmo local antes da apresentação apesar de o Bernardo ter chegado um pouco amassado da viagem e uma obra na parte externa do edifício ter 180


feito a gente ir para uma pensão próxima dali para melhorar a qualidade do repouso. Topávamos com amigos como a Marise e a galera da Macaco nas Ramblas e Plaza Real entre uns kebabs e uns cyber-cafés para manter o giro operacional até adentrarmos na sala que havia nos recebido quando da primeira vez na cidade. Um grupo chamado Frecuencia Spectru tinha sido convidado para fazer a abertura e durante a sua passagem de som pudemos ver a La Paloma de forma mais atenta. Semelhante a Apolo, a sala continha certos detalhes, como o teto e seu lustre ou a entrada que remetia às antigas salas de cinema do Rio. O show daquela vez seria mais intimista apenas devido aos dois anteriores em que as casas encheram, mas foi um bom concerto. Os Seletores ganhavam uma afinação maior e o entrosamento repassava para a platéia conquistada facilmente, não sendo exagero estarem fazendo um com nome pró-prio em Barcelona. B. estava nitidamente desgastado fisicamente pois para ele já era a terceira apresentação e havia rodado mais. Minha coluna também dava uns sinais de que o ritmo estava frenético, mas o quarto da pensão nos aguardava para mais duas diárias antes de seguirmos para Londres. 181


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pose & effect’s world wild web. / rua londrina interditada devido aos atentados ocorridos na cidade em 2005.

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T

elefone. Era a manhã seguinte e alguém despertava quando as cortinas do nosso quarto ainda estavam por abrir. Deve ser um dos seletores no cafofo. “Alô,

André?

Tem

alguma

TV

onde

você

está?”

Nervosamente, mas nem tanto quanto poderia ser o seu tom naquele momento, Marcelo ligava de Londres. Recomendava que ligasse a TV do quarto antes de voltarmos a falar. Não foi preciso fazer nenhum zapping. No mesmo canal em que o aparelho estava sintonizado Londres aparecia em pânico. Havia um quê de deja vú naquele instante pois tinha passado por situação parecida quando as twin towers foram alvejadas em Nova Iorque: a capital britânica estava sob alerta máximo após cinco atentados terroristas visando estações de metrô e um ônibus. Bernardo também despertara. Antes de qualquer especulação sócio-geopolítico mundial precisávamos saber o que aconteceria conosco. Estávamos em Barcelona e o plano a seguir era Londres e, depois, Porto. Mas tanto poderíamos manter 186


o traçado da turnê quanto fugir de uma guerra, mas precisávamos saber como estava a situação na Inglaterra. “Alô, Marcelo?!” O produtor estava bem e sua equipe também. Pelo retorno, a cidade estava em polvorosa mas estavam dispostos a realizar o show. Felizmente ou não, o lendário Marquee Club nos aguardava e após verificar o que os gerentes das casas de espetáculos da cidade estavam fazendo, resolveram manter a gig de pé, mas dependiam da decisão da banda. Depois de um reunião no cafofo decidimos ir para Londres conforme o combinado. Pedimos para o Marcelo ter atenção redobrada quanto ao serviço de imigração no aeroporto para evitar o problema anterior e começamos a nos preparar na medida do que é possível -, para conviver com a extraordinária realidade londrina que nos esperava, acompanhando alguma informação transmitida por telejornais, Internet e chats e telefonemas com amigos e conhecidos. Sabíamos, à partida, que uma das estações de metrô atingidas era a que ficava próxima do hostel. 187


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S

em dúvida, foi o vôo mais inquieto dentre todos os que fiz durante as turnês. Durante as 2h30 só pensávamos no “my friend” e no que poderia rolar no balcão de atendimento do serviço de imigração naquele clima de terror. Tendo Nova Iorque como referência de estado de alerta máximo, tínhamos alguns pensamentos de consolação como o fato de o Brasil não ser considerado um país inimigo, ou termos mais uma vez a autorização legal para atuar. Tomamos alguma bebida alcoólica durante o tempo no ar e planejávamos o que poderia ser feito caso ficássemos retidos. Estranhamente - e ineditamente -, desembarcamos em Londres com um trânsito com poucas retenções entre o portão de chegada e o de saída. Uma atendente sorridente devolvia os passaportes com um “you’re welcome” e, enquanto ainda reprocessávamos as imaginações anteriores, já estávamos nos carros da produção diretamente rumo ao clube. Luiz, Marcelo & Cia, galera da Jungle Drums... Cerca de quatro automóveis foram nos buscar em Heathrow para cruzarmos uma capital irreconhecível, com cidadãos circulando obrigatoriamente pela superfície tendo uma das maiores redes de 190


pose & effect’s world wild web. / vista noturna do Parc La Vilette, em Paris, durante 191 o Ano do Brasil na França em 2005.


metrô da Europa, e uma enxurrada de carros entupindo várias vias rodoviárias. Era o Marquee. O mesmo em que Jimi Hendrix tocou quando chegou ao Reino Unido tentando virar a carreira. Um clube que dentre tantos palcos da agitada noite londrina escreveu seu nome na história da música e em algumas horas iríamos dar o nosso contributo para dissipar o sentimento conturbado que se vivia ali. Não haveria tanta gente quanto no show no squad em 2004, mas a confirmação da apresentação já era uma surpresa. Parecia que os Seletores de Frequência teriam que fazer jus ao nome numa solicitação do acaso. A banda de um conterrâneo com integrantes ingleses chamada Device abriria os trabalhos antecipada pelo solo do Gabriel Muzak, guitarrista dos Seletores. Gianne que na edição de aniversário andava ocupada demais para curtir o show se soltava na pista levando junto o pessoal ao redor. Marcelo esticava os braços com uma máquina digital para registrar o momento. Era o Marquee Club, era Londres, eram dias ímpares como todos os dias são ímpares mas talvez eles soubessem mais que nós o quanto era ímpar aquele dia em Londres. 192


A nuance cerimonial do BSF ganhava novamente relevo como na apresentação na Alemanha, alterando a frequência de show para a de uma reunião pública. Uma missão. E quando esta sensação é vivida coletivamente como naquela noite a razão de ser das coisas torna-se evidente. Há os que tocam. E os que tocam, tocam. Alívio. Confraternização.

E beliches. pose & effect’s world wild web. / Cabaret Sauvage e entorno, local onde os Seletores tocaram em Paris em 2005.

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O

Feijão do Luiz ficara mais distante. Com a estação de metrô próxima do hostel bombardeada, o jeito foi caminhar até a Oxford Street, endereço do restaurante que apoiava o evento. Íamos acompanhados por pedestres e guardas que indicavam as direções a transitar evitando as ruas interditadas por terem sido alvejadas ou por estarem sob suspeita de abrigar atividades terroristas. Tínhamos algumas coisas marcadas, como outra apresentação do BNegão com o Turbo Trio naquela semana numa casa chamada Guanabara, mas o Camisas é que estaria novamente à frente da equipe nos dias off que viriam, pois eu retornaria antes para o Porto. Entretanto, andávamos em direção da área nevrálgica de Londres a ver o que era possível fazer na cidade depois do almoço. A segurança pública recomendava a população circular a pé, mas não sabíamos como agir quanto aos ambientes fechados até cancelarem um show num espaço que paráramos para ver o que rolava por causa de uma fila. Aproveitava para recolher livretos e flyers de programação de outros clubes e pubs para futuros contatos quando passávamos à porta de algum. 196


Depois de batermos muita perna e voltarmos a nos encontrar no hostel encerrei a etapa inglesa da turnê para regressar à redação. Não ocorrera mais incidentes e atentados, mas partiria para Portugal com preocupação redobrada. Se tudo corresse bem, em breve tocaríamos no Palácio de Cristal e no Parc La Villete, em Paris, fechando a tour 2005. “Alô, Camisas?”. pose & effect’s world wild web. / Seletores de Frequência no Centre Cultural Indianilla, Ciudad de México, em 2007.

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I

greja da Batalha, Porto. Onde antes havia

encontrado o Seu Zé e as atletas italianas, reunia os Seletores de Frequência fazendo um ponto-de-situação da turnê e preparando o encerramento em Paris com o Camisas, que viajaria com a banda. As Noites do Palácio costumavam encher aos sábados, mas antes faríamos uma apresentação do álbum Enxugando Gelo na Fnac próxima do hotel. Xoan aparecera para rever o grupo mesmo sem termos viabilizado uma data na Galícia, e aos poucos entrávamos no clima portuense. Senhoras, senhores, crianças, famílias, freaks, estudantes... O parque ficava bem composto e variado para assistir ao show ao ar livre e com entrada gratuita na parte alta da cidade, mas debruçada sobre o rio Douro que escorre lá embaixo proporcionando um dos melhores mirantes da cidade, cercado de muito verde e do pavilhão desportivo. E, apesar de ter sido a terceira apresentação do grupo no Porto, aquele era o primeiro num espaço com grande capacidade, e passávamos no teste com um público dividido entre fãs, frequentadores assíduos do evento, curiosos e transeuntes que se aproximavam descompromissadamente e ficavam 200


agarrados por algum dos temas dos Seletores em português abrasileirado. A aparente distância entre o palco e a platéia seria logo corrigida pela produção e amigos com uma esticada para uma festa de aniversário de uma amiga em comum com o Fela num pátio de uma vila pertinho dali. E, mesmo com alguns elementos da banda tendo preferido merecidamente a cama do quarto no hotel, acabou por se tornar também uma festa dos Seletores. De despedida e de regozijo.

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pose & effect’s world wild web. / jam session no Ollin Kan Festival 2007, na Ciudad do México. No palco, várias nações representadas além do Brasil: Irã, França, Mali, Índia, Taiwan e a tribo indígena norte-americana dos Navajo.

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Ano do Brasil na França andava badalado e lá iam Camisas, Bernardo, Pedrinho, Pedrão, Muzak, Kalunga e Tiago para atuarem no Parc La Villete, mais precisamente no Cabaret Sauvage. Foi o meu hiato naquela tour, pois já havia me reintegrado à redação desde o retorno de Londres tendo, antes, “desempenado” as costas numa consulta de acupuntura com o mestre Bal Krishna, no centro que dirige no Porto e que acolhera o PazPazes. O assistente ficava mais à vontade em Francês do que em Inglês, e por aí não teríamos engulho. A experiência já permitia uma delegação de funções de forma mais arejada, e com tudo caminhando bem pelas notícias que ia recebendo de Paris, a turnê de 2005 do BNegão ia chegando ao fim. A programação era extensa e o Cabaret estava destinado aos projetos de hip hop e de funk carioca - carimbado “na gringa” como “brazilian eletro” -, que vivia o seu hype, e... Oui. Os Seletores marcariam outro ponto acompanhados por dj Marlboro e Z’Áfrika Brazil no cartaz, dentre outros, e Paris talvez se tornasse outra capital a revisitar nas próximas rodadas. Au revoir. 206


pose & effect’s world wild web. / cartaz do Festival Cultura Quente 2006, em Pontevedra, Galícia.

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Marito, a turnê do BNegão foi uma cena” - partilhava com o Bob naquele regresso à rotina. O marasmo custava a ser devolvido ao nosso dia-a-dia, pois o que a memória jamaicana permite recordar é que menos de um mês depois estávamos no festival Paredes de Coura recepcionando tanto os festivaleiros numa tenda reggae quanto os decibéis de Pixies, Queens of the Stone Age... Aliás, a Reggae Playground não parava. A simbiose do Bob com a cena drum n’bass ganhava corpo e proximidade com uma produtora chamada Positiva, que fazia as gigs lusas dos brasileiros Marky e Patife e parcerias com os britânicos da Drum n’Bass Arena. Daí surgiria a nova investida da Pose & Effect, ainda em 2005: o retorno do Black Alien. O lance era simples: apesar de o Lusophonia ter tido uma audiência abaixo da desejada houve muita repercussão do evento e o nome do MC foi bem divulgado. Um festival que tinha uma proposta semelhante - restrita à música urbana do Brasil e de Portugal -, iria para sua terceira edição em novembro, e a Positiva sugerira que eu e o Bob propuséssemos artistas. 210


Marito avançou a banda Sativa, que tem alguma levada dub e onde atuava o dj Masko, também presente no Lusophonia. Gustavo havia assinado pela Deckdisc quando voltou para o Brasil e lançado o disco “Babylon By Gus Volume 1 - O Ano do Macaco” que, além dos elogios, contava com uma formação compatível com o 3º Transatlântico, com ele e dois djs na formação - Alexandre Basa do Turbo Trio, Instituto e produtor do álbum e dj Castro do Quinto Andar e da Filial. Também pintava a chance de convidar o Marcelinho da Lua em formato dj set, pois estaria no mês do evento em Portugal para um show do seu Bossacucanova e já tínhamos feito um ensaio num bar na praia da Foz. “Alô, Xoan?” - chamava pelo galego tentando virar o negócio. Xoan metia o pé com sua van verde numa estrada na França levando um carregamento de peixes para não-lembromais-onde, mas ficou motivado. E, assim, podendo contar com uma data em Vigo, fechamos com a Positiva o agenciamento do Black Alien e do Da Lua, enquanto o Afonso - manager da produtora -, representaria ambos junto ao Transatlântico, que teria, além destes, a banda Blasted Mechanism, dj Nuno Forte, Dinis, dj Vibe, Back to the Future; e os brazucas Anderson Noise e Julio Torres. 211


O certame tinha alinhamento de clubes underground mas visibilidade de evento de interesse geral, com apoio institucional da prefeitura, de canais de tv e de rádio, grifes de street wear, marca de cerveja e o escambau, para proporcionar duas áreas de palco, desfile de moda e exposição de graffitti no gigantesco prédio do Museu da Alfândega do Porto. Tudo num único dia, exatamente a 30 de novembro. Beleza. Na sequência, viajaríamos para a Galícia onde o Xoan estaria mais perto de casa ao descolar um clube chamado La Fabrica de Chocolate. E, com a excursão com menos elementos para apenas duas datas e trajetos curtos a fazer em um carro, topamos a parada sem muitos “poréns”.

Porém...

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pose & effect’s world wild web. / Black Alien com os djs Basa e Castro numa reggae night no clube La Fabrica de Chocolate, Galícia.

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U

m fim de outono ameno agraciáva-nos naquele

novembro e tudo corria bem. Gustavo, Basa e Castro foram instalados nas cercanias empresariais da Praça da Galiza e da Rotunda da Boavista enquanto o Da Lua vinha de seu compromisso com a banda. Dividiriam a área 1 do Transatlântico com a galera do reggae do Sativa, os “positivas” Nuno Forte e Dinis e antecederiam a renomada banda nacional Blasted Mechanism. As localizações do hotel e do museu colaboravam na minha participação de cicerone naquela fase, pois ficavam no perímetro entre o jornal e onde morava na época. Até a hora da chegada no recinto, um bom tempo para o descanso, check-sound e, logo à entrada, percebia-se os motivos. O Alfândega ostentava a sua fachada iluminada por canhões desde o passeio, outdoors do festival e um corredor de seguranças trajados a rigor para revistar os habitués e conduzí-los ao interior após cruzarem os detectores de metais. Pelo aparato parecia que receberiam o próprio prefeito naquele evento inspirado na música eletrônica e não eram poucas as pessoas que aderiam. Talvez aquele ambiente de noite de premiação tenha surpreendido a todos nós, mas 216


Gustavo particularmente não parecia muito à vontade no camarim, até o reencontro com o bonde da Sativa, que precederia a sua atuação e a do Da Lua. O palco da área 1 era gigantesco. Da mesa, Da Lua daria seguimento nas vibes da banda selecionada pelo Bob, mesclando também os ritmos brasileiros e caribenhos do seu primeiro disco com a crueza Dn’B de Nuno Forte e Dinis, que haviam iniciado as atividades. E pegou. Na área 2 a pedida era a onda disco/house/techno, atraindo a galera que curte os gêneros dança até o dj se despedir, portanto, uma conquista nada fácil, dando a deixa para Black Alien mostrar ao que vinha. O show lembrava o que ocorrera com os Seletores no Womex, onde se assistia mais ao artista convidado do que se saltava ou se cantava letra a letra mas, como no episódio alemão, sem demérito para Gustavo. Enquanto Basa e Castro trabalhavam desde uma plataforma acima do nível do palco em que o MC se postara, Black Alien credenciava-se com o seu “Babylon By Gus...” alternando momentos spoken word, rap, ragga com experimentações vocais e deixando “Follow Me” de lado. Uma apresentação híbrica que permitia a adesão tanto 217


pose & effect’s world wild web. / em cima, m.i.k.a. e Da Lua com amigos no Porto em 2007, quando o dj atuou no clube Industria, já pela produtora 1ª Linha. Ao lado, logo original da Pose & Effect by Bob Figurante.

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do carinha de boné do hip hop e dos frequentadores das festas da Positiva quanto das do Bob, mas interroguei sobre a abrangência de dimensões de palco já que vários projetos de excelente qualidade também precisam de espaços mais intimistas para funcionar melhor, e aquele estava perfeito para o Blasted Mechanism. Uma passagem rápida pela área 2 onde a dance music chamava os quadris na chincha para dar um grau porque, 1º de dezembro, estaria novamente na função de piloto, rumo à Galícia.

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U

ma parada num drive-thru na saída do Porto

para Espanha e alguém brincou sacando o trocadilho “Perícia na Galícia”. Providencial. Xoan ligava apressando para a entrevista que havia marcado num canal de tv em Vigo com hora marcada na emissora, e se não chegássemos a tempo perderia aquele gancho de divulgação para o show. Marcelinho preferira ficar até a data do retorno para o Rio, mas como não estaria na cidade o Afonso o levaria até ao aeroporto e o Bob enquanto isso faria as honras da casa. Algum Jazz que Gustavo tinha adquirido numa loja e outros sons que mostrava para o grupo rolando e, quando a viagem estava prestes a terminar, perto da fronteira entre o norte de Portugal com a Espanha, um carro atravessava a pista a poucos metros do nosso, saindo da via paralela e de sentido contrário por uma fresta na divisória de concreto, indo parar numa trilha na berma do outro lado da estrada. Ao ver o automóvel naquela manobra em que chamar de arriscada é elogio, conseguira reduzir a velocidade, levemente e por reflexo, mas o suficiente para não ter capotado, derrapado ou colidido com o carro. Porém, dentro, voara cds, papéis, os 222


óculos do Gustavo, copos de refrigentes vazios e o que mais estava solto sobre o painel e os colos dos passageiros. Foi o maior “não acidente” automobilístico da minha vida. Buscamos o Xoan em casa para irmos para a entrevista no canal de tv abrandando ao máximo as sensações da estrada para o único compromisso do dia em Vigo. Porém, a noite era uma criança e, ao sairmos da emissora para um café de uma amiga do nosso anfitrião, Da Lua ligava desde o Porto com falta de transporte para o aeroporto, pois o Afonso não aparecera. Não conseguia contatá-lo também e o telefone do Bob jogava direto para a caixa postal. Depois de várias chamadas a situação seria ultrapassada com a Positiva, e o Da Lua finalmente embarcaria, enquanto a gente emborcaria para o show do dia seguinte.

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pose & effect’s world wild web. / Pedrinho Garcia e painel de graffitti em exposição na225 área do Roskilde Festival.


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B

ob Figurante viera para somar-se à festa com os passageiros de dreadlocks que estavam na van verde do Xoan quando nos conhecemos na porta do prédio da Maus Hábitos. Eram, afinal, o Kinki Reggae Club, marcando o cartão na La Fabrica de Chocolate com o Xoan antes do Black Alien entrar. Se no Porto vínhamos de duas propostas urbano-alternativas, em Vigo a parada era uma reggae night e mais a incorporação do MC carioca, numa experiência tanto para os sócios quanto para os produtores para ver se aquele papo de que a música brasileira que o Xoan andava ouvindo despertava mesmo algum público por lá. No café na noite anterior tinha ido bem, pois entre uns birinaites e uns flyers alguns galegos faziam questão de confirmar as suas presenças e citar Planet Hemp, BNegão ou o próprio Black Alien como justificativa. Do “departamento café” não deve ter faltando muita gente comparecer porque o clube foi logo preenchido após a abertura da porta principal, em pleno domingo, e quando entramos em direção ao camarim a balada rolava solta. O suficiente para os três subirem ao palco quase como se houvesse 228


uma pausa combinada para algum pronunciamento de interesse coletivo. O galego falado é a língua oriunda da Espanha que está mais próxima da língua portuguesa, o que assegurava o entendimento do discurso de Black Alien. Uns acompanhavam a falação; outros, continuaram a bailar; e ainda havia aqueles que balbuciavam trechos das letras junto com o vocalista mesmo antes de tocarem a pedida “Follow Me” sob ums côro naquele sotaque: “Quén qui cáguentôu! Quén qui cáguentôu!”. O La Fabrica de Chocolate gostou. “Perícia na Galícia”.

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[ continua na edição sobre o período 2006-2009 ]

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PURI PRODUÇÕES AVENIDA ANTÔNIO CARLOS MAGALHÃES 846 EDIFÍCIO MAXCENTER, SALA 338 - ITAIGARA, SALVADOR - BA ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA:

AVENIDA SERNAMBETIBA 3200, CASA 36 BARRA DA TIJUCA, RIO DE JANEIRO - RJ 22630-010

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