SETEMBRO DE 2017 Quase memรณria
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Ao Leitor A memória é um dos recursos mais imprecisos de que dispomos. Nenhuma experiência é lembrada com todos os detalhes, assim como nenhuma história é narrada duas vezes da mesma forma. Embaralhamos as ordens e os fatos, acrescentamos frases e retiramos personagens, invertemos a lógica dos diálogos e projetamos mágoas e desejos; em suma, romanceamos muita coisa. Um dos mais notáveis exemplos do exercício memorialístico convertido em narrativa na literatura brasileira é a indicação do jornalista e escritor Ruy Castro,
hoje celebrado pelas biografias de personagens populares como Carmen Miranda e Nelson Rodrigues. Quase memória, obra que reconsagrou o escritor Carlos Heitor Cony depois de mais de vinte anos sem publicar romances, é a celebração dos mais honestos sentimentos que as lembranças evocam. Biografia? Autobiografia? Romance? Crônica? Quase. Para esta edição, convidamos o próprio Ruy Castro para fazer a apresentação da obra, que conta também com dedicatória do autor, exclusiva para nossos associados.
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O curador: Ruy Castro O livro indicado: Quase memĂłria
Cony, um membro da ABL Lima Barreto, um dos pilares de Cony
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Chimamanda Ngozi Adichie
O curador: Ruy Castro
Jornalista com passagens pelos principais veículos de comunicação do Brasil desde os anos sessenta, Ruy Castro consagrou-se no universo literário como biógrafo, pelos livros sobre grandes personalidades, publicados nas últimas três décadas. Sua obra, também composta por romances e crônicas, acumula quatro prêmios Jabuti e já foi traduzida em países como Estados Unidos, Japão, Espanha, Itália, Polônia e Turquia.
no imaginário do brasileiro. Ao escrever, afirma transformar sua rotina e não perder a motivação mesmo diante dos piores obstáculos – como quando pesquisou sobre a cantora luso-brasileira Carmen Miranda, durante cinco anos em período integral e, posteriormente, escreveu Carmen – uma biografia (2005), enquanto fazia tratamento para um câncer na língua.
No campo jornalístico, Castro sempre priorizou a cultura. No literário, tem entre seus temas prediletos o Rio de Janeiro, a bossa nova e personalidades históricas arraigadas
- Jornal do Brasil
“O anjo biográfico.” Em Caratinga, a pequena cidade no interior de Minas Gerais onde nasceu, em 1948, Ruy passou a
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juventude jogando futebol, indo ao cinema e comprando todos os gibis que pôde encontrar. Em casa, ouvia boleros, valsas e big-bands nos discos em setenta e oito rotações de seus pais. Aprendeu a ler aos quatro anos, sentado no colo de sua mãe, que lia Nelson Rodrigues, e aventurando-se nas reportagens do Correio da Manhã, jornal assinado pelo pai. Desfrutou longas temporadas viajando pelo Rio de Janeiro, quando se apaixonou pela Lapa, por Copacabana, pelo Flamengo e pela efervescência cultural carioca. Em 1964, aos dezesseis anos, mudou-se em definitivo para o Rio de Janeiro.
revistas Diners, Livro de cabeceira da mulher e Livro de cabeceira do homem. Nesse momento de maiores oportunidades profissionais e de convivência com Paulo Francis, Ruy Castro conheceu influentes jornalistas, intelectuais e artistas da época, entre eles, Millôr Fernandes, Glauber Rocha, Marina Colasanti e Otto Maria Carpeaux. Com o passar dos anos, Castro transitou por diversos periódicos, como O Pasquim, Jornal do Brasil, Manchete, Isto É, Status e Folha de S. Paulo, do qual atualmente é colunista. Embora relativamente tardias quando comparadas ao ofício jornalístico, suas primeiras incursões literárias ratificaram sua vocação. Um ano depois de lançar a coletânea de citações O melhor do mau humor (1989), o escritor utilizou-se da herança jornalística para tecer a narrativa da segunda publicação: Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova (1990), que reconstitui a
Leonardo Aversa
Fora a ilusão de ser meia-esquerda do Flamengo, o jovem Ruy Castro não via outro destino para ele que não o de jornalista. Aos dezenove, começou a carreira no Correio da Manhã, sem remuneração e longe dos temas culturais. Meses mais tarde, foi surpreendido pelo colega de redação Paulo Francis com um convite para compor a equipe das
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vida boêmia e cultural do Rio de Janeiro durante o auge da bossa nova, relembrando casos e personagens desse importante momento da história brasileira, como João Gilberto, Elis Regina, Tom Jobim, Nara Leão e Vinícius de Moraes. O próximo passo seria adentrar de vez no gênero literário pelo qual hoje Ruy é celebrado – o biográfico. Dois anos de dedicação integral a pesquisas, entrevistas e verificação com diferentes – e frequentemente contraditórias – fontes culminaram na publicação de O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues (1992). Assim como a produção literária do biografado, a obra repercutiu de forma controversa e desagradou aos familiares de Rodrigues. Da mesma forma, a publicação de Estrela solitária – um brasileiro chamado Garrincha (1995) rendeu polêmicas: as filhas do ídolo do Botafogo entraram com um processo contra Castro, por suposto conteúdo ofensivo à memória do jogador. O livro chegou a ser proibido em 1996, liberado no ano seguinte, mas arrastou um processo judicial até 2007, quando as filhas foram finalmente indenizadas.
Cybelle Young
espionagem repleta de comicidade. Castro ainda traduziu os clássicos Frankenstein (1994) e Alice no País das Maravilhas (1992). Outras obras de destaque são Ela é carioca - uma enciclopédia de Ipanema (1999), A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção (2015) e Morrer de prazer – crônicas da vida por um fio (2013). Nesta, o autor adota um tom mais pessoal e reflexivo, que não chega a se parecer com uma autobiografia, mas carrega temas íntimos e dialoga com sua indicação para a TAG: Quase memória, de Carlos Heitor Cony.
“Eu fui a primeira pessoa que leu o original desse romance. Antecipando o que aconteceria com milhares de leitores, eu me encantei imediatamente e encaminhei a publicação.”
Bilac vê estrelas (2000) demarcou a estreia do autor nos romances. Espaços e figuras reais – o Rio de Janeiro do início do século XX, personagens históricos como Olavo Bilac e José do Patrocínio – são o pano de fundo para essa ficção de
– Ruy Castro
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Quase memória
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Carlos Heitor Cony
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Quase memória Carlos Heitor Cony
04/07/2017 07:31:13
Esta edição foi feita pela TAG, com carinho, para seus associados.
27/06/2017 08:32:49
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O livro indicado: Quase memória
Na escrita de Carlos Heitor Cony, membro da Academia Brasileira de Letras desde 2000, há vestígios dos brasileiros Machado de Assis, Lima Barreto e Manuel Antônio de Almeida. Dos franceses Jean Paul Sartre, Émile Zola e François Rabelais. Do irlandês Jonathan Swift. Todos eles o presentearam, como afirmou, com “a régua e o compasso” para arquitetar uma literatura original. Cony, entretanto, teve o que lhe é cotidiano como influência mais duradoura. Essa, tanto no universo das letras como em outros diversos, está personalizada principalmente na figura de seu pai, Ernesto Cony, homem de comportamento e hábitos singulares.
Carlos Heitor nasceu em 1926, na cidade do Rio de Janeiro, filho de Julieta de Moraes Cony, dona de casa, e Ernesto Cony Filho, jornalista. Morou com a família no bairro Lins de Vasconcelos até Ernesto perder o emprego no periódico O Paiz e a família mudar-se para Niterói. Imaginava-se que o menino Carlos Heitor fosse mudo até que ele completasse cinco anos, quando, num passeio pela praia de Icaraí, observou o voo rasante de um biplano e, assustado, pronunciou suas primeiras palavras. Posteriormente, foi descoberto um problema de dicção em Carlos Heitor, causado por um freio na língua
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(que só viria a ser tratado anos mais tarde, em cirurgia realizada por Pedro Ernesto Almeida, ex-prefeito do Rio de Janeiro e amigo de seu pai). Para evitar constrangimentos, Ernesto ensinou o filho a ler e a escrever em casa. Escrevendo, o menino encontrou uma nova paixão e uma forma de expressão que não serviria de zombaria para outras crianças. Com onze anos, descobriu um sentimento de identificação, até então inédito, em Memórias de um sargento de milícias (1854), que casualmente encontrava-se no chão entre outros livros do pai. Poucos meses depois, ingressou no Seminário Arquidiocesano de São José e lá estudou latim, história, português, grego, francês, música e matemática até 1945, quando, aos dezenove anos, decidiu abandonar a vida religiosa e seguir o caminho de Ernesto. Logo ele estaria cobrindo as férias do pai no Jornal do Brasil, popular periódico da cidade. Segundo o autor, Ernesto, que nunca fora um empregado sério, explorava-o, fazendo-o trabalhar por e para ele. Somente em 1952 sua carteira de trabalho foi assinada, quando ele começou a atuar na rádio, escrevendo programas musicais dedicados, principalmente, a orquestras e óperas. Em 1955, escreveu seu primeiro romance, O ventre, influenciado pelo ceticismo de Machado de Assis e
memórias da ditadura.org
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pelo existencialismo do filósofo e autor Jean Paul Sartre. Sob pseudônimo, o autor inscreveu a obra no Prêmio Manuel Antônio de Almeida, respeitado concurso literário. Só não conquistou o prêmio porque o livro, apesar de assumido pela comissão julgadora como o melhor do concurso, foi considerado negativista e de linguagem rude. Bastaram-lhe nove dias de indignação para escrever seu segundo romance, A verdade de cada dia, buscando alcançar a data de inscrição para o concurso do ano seguinte, que teria como um dos membros da nova comissão o poeta Carlos Drummond de Andrade. Dessa vez, ele recebeu o prêmio – assim como no ano posterior, com o romance Tijolo de segurança.
“Não tenho disciplina mental para ser de esquerda nem firmeza monolítica para ser de direita. Tampouco me sinto confortável na imobilidade tática, muitas vezes oportunista, do centro.”
As décadas de sessenta e setenta foram tão emblemáticas para o Brasil como para Cony, que nelas teve seus momentos mais prolíficos, publicando seis romances, três coletâneas de crônicas, uma de contos e diversas adaptações de clássicos da literatura internacional, como Ali Babá e os quarenta ladrões (1972) e Simbad, o marujo (1972). Em meio ao período de efervescência criativa, ele também promoveu críticas ao golpe militar – depois de 1964, foi preso diversas vezes. Cony também se tornou alvo da esquerda, após a publicação de Pessach: a travessia (1967), que aborda o dilema de um intelectual que é convidado a aderir à guerrilha e à luta armada.
– Carlos Heitor Cony, trecho do discurso de posse na ABL (2000). Em 1974, publicou Pilatos, considerado pelo autor seu melhor livro e o mais atemporal. Escatológica, obscena, cética, a obra narra a trajetória de um homem que carrega consigo o próprio pênis decepado em um vidro de compota enquanto erra pelo submundo do Rio de Janeiro, encontrando pelo caminho personagens insólitos e bizarros. “Pilatos foi escrito na minha maturidade, eu tinha quarenta e dois anos, estava numa fase muito boa e escrevi o livro, que considero uma espécie de fala do trono. Dei uma banana para a literatura. E para a
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moral, para os bons costumes, para a condição humana. Lavei as mãos”, afirmou Cony em uma entrevista. Após a publicação, satisfeito e realizado com o livro, declarou que não escreveria mais romances.
vrarias, em prateleiras reservadas aos romances e, às honrarias e aos prêmios literários – a obra recebeu dois Jabuti, nas categorias Livro do Ano e Melhor Romance, em 1996. Quase memória se inicia da mesma maneira que o sonho de Cony, com o relato do narrador-personagem, a quem é entregue um embrulho na recepção de um hotel. Acostumado a receber materiais de diferentes pessoas – geralmente textos para análise, uma tarefa que costuma aborrecer o narrador –, ele percebe no pacote fechado evidências da autoria paterna: o laço do barbante que o envolve, a caligrafia, os detalhes na forma da escrita, até o cheiro do embrulho é inconfundível. O narrador-personagem estava habituado a ser surpreendido por aparições repentinas do pai, mas algo dessa vez não fazia sentido, pois ele falecera há dez anos.
Foram vinte e três anos nos quais esteve envolvido com produção jornalística – escrevendo livros-reportagem e atuando em diferentes periódicos –, adaptações, pequenos livros de conteúdo infantojuvenil, roteiros para televisão e cinema e até pintura de quadros a óleo. Durante esse período, em 1985, Carlos Heitor perdeu Ernesto, aos noventa e um anos. Uma combinação fortuita de acontecimentos o estimulou, em meados de 1995, à criação do que viria a se tornar um (quase) romance: um sonho no qual recebia um embrulho assinado por seu pai; um notebook que ganhou da filha, deixando o ato de escrever mais prático; e a doença da sua cachorra Mila, de treze anos, que sofria e não o deixava dormir – as noites acabaram sendo aproveitadas para um exercício de escrita, a princípio um material a ser publicado como crônica, baseado no sonho.
A partir da situação inesperada, a mente do narrador-personagem é permeada por reminiscências de sua infância e juventude, no Rio de Janeiro da primeira metade do século XX. Uma sucessão de lembranças – nem sempre agradáveis –, tanto suas quanto de seu pai é desencadeada. Pequenas histórias que revelam mágoas, mas também orgulho e saudade. O leitor vai, aos poucos, conhecendo detalhes de Ernesto, que, para Carlos Heitor, sempre fora um otimista exagerado, especialista das inutilidades, pai teimoso e obs-
Logo, as lembranças de Ernesto ressurgiram para Cony como uma fonte inesgotável de histórias, e a crônica virou livro. No mesmo ano, Quase memória foi publicado, marcando a volta do escritor às li-
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tinado; um homem desprovido de algumas sensibilidades a ponto de fazer o filho passar vergonha com frequência. Ao mesmo tempo, um pai de inabalável entusiasmo pela vida, cujas ideias supostamente visionárias culminariam em grandes amizades e proporcionaram histórias inesquecíveis.
há razão para posicionar ou mesmo enclausurar esse livro em algum gênero. Deixe-o como quase crônica, quase reportagem, quase ficção. Assim ele está completo. Após o sucesso instantâneo de Quase memória, Carlos Heitor Cony voltou a produzir em grande escala. Desde 1995, ele publicou sete romances, coletâneas de crônicas, adaptações, entre outras obras – Quase memória, que já recebeu uma adaptação cinematográfica, segue sendo a mais lembrada por público e crítica. Hoje, aos noventa e um anos, escreve semanalmente para a Folha de S. Paulo e é comentarista do programa “Liberdade de expressão”, na rádio CBN. De vez em quando, dá palestras e entrevistas, mas não é muito afeito a homenagens e formalidades. Costuma afirmar que, desde Pilatos, não tem mais nada para dizer. Teria, no máximo, algumas histórias para contar – como se vê em Quase memória, não parece ser mau negócio.
Entre longínquas e fragmentadas lembranças, incidem, ainda, elementos ficcionais, que descaracterizam a obra como apenas uma biografia de Ernesto – ou, ainda, uma autobiografia de Cony. Logo na primeira parte do livro, intitulada “Teoria geral do quase”, encontramos a informação: “Os personagens reais e irreais se misturam, improvavelmente, e, para piorar, alguns deles com os próprios nomes do registro civil. Uns e outros são fictícios”. O autor não está preocupado em avaliar o que é deliberadamente inventado ou suposto. Ele se diverte no limiar entre a ficção e a não ficção, provocando seu leitor a imaginar, mas nunca a descobrir. Não
MATERIAIS COMPLEMENTARES bit.ly/memoriaecony
bit.ly/entrevistacony
Publicação de Rachel Illescas Bueno sobre Cony e sua obra
Entrevista com Cony no programa Roda Viva
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ECOS da leitura
CONY, um membro da ABL
No dia 23 de março de 2000, Carlos Heitor Cony foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, instituição cujo objetivo é o cultivo da língua e da literatura nacionais. Cony é o quinto ocupante da Cadeira número 3, sucedendo Herberto Sales; foi recebido, em 31 de maio de 2000, pelo acadêmico Arnaldo Niskier e, no mesmo dia, fez seu discurso de posse. Embora tenha hesitado em aceitar o convite para concorrer à cadeira, tecendo por diversas vezes críticas à Academia – algumas bem-humoradas –, o discurso de Cony é mais uma oportunidade para apreciação das palavras de um homem que a elas sempre se dedicou. Ao lado, está transcrita a parte final do seu discurso, disponível na íntegra no site oficial da ABL: bit.ly/discursocony.
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Senhores Acadêmicos: Tentei cumprir, da maneira que me foi possível, o dever de casa. Após antigas e bem fundadas hesitações, bati à vossa porta e fui acolhido com pronta generosidade. Nada vos trago além da minha vivência na literatura e na imprensa. Fui educado em seminário, com mestres que não esqueço e dos quais guardo não apenas saudade, mas amizade e memória. Embora nunca tivesse me candidatado a esta Academia, sempre tive com os acadêmicos uma relação especial. Herdei de Otto Lara Resende a coluna diária na Folha de S. Paulo. De Austregésilo de Athayde herdei aquele espaço que durante tantos anos ele enobreceu no Jornal do Commercio. E nesta noite, cercado de parentes e amigos que tanto prezo, sucedo a Herberto Sales na Cadeira nº3. Contudo, a herança mais cara ao meu coração foi a de uma boina basca que eu comprei no El Corte Inglés, de Madri, para Raimundo Magalhães Júnior, meu amigo e vizinho de mesa durante vinte anos na redação e no restaurante de Manchete. Ele usava a boina quando o ar refrigerado estava muito forte. Reclamava de Adolpho Bloch quando o ar estava ligado, e reclamava mais ainda quando o ar não estava ligado.
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Sempre que se abria uma vaga na Academia ele me sondava, perguntando se aquela não seria a minha vez. Teve um poderoso aliado nesta pressão. Num momento difícil, quando todas as portas se fechavam para mim, Adolpho me ofereceu a sua casa e o seu carinho. Tenho a certeza de que Magalhães e Adolpho devem estar reclamando de tanto eu ter demorado a fazer a vontade deles. Deles recebi amizade e estímulo, só menores diante do amor e carinho que devo à minha mulher Beatriz, aos meus filhos Regina, Verônica e André. Dou razão aos que estranham minha atividade de jornalista, sendo comum o equívoco sobre minha posição ideológica. Fiz questão de marcar esta posse para o dia de hoje, final do mês dedicado a Maria – a jovem judia que aceitou participar, com a sua condição humana, no assombroso mistério de fé, no episódio que dividiria a história universal em antes e depois. Continuo agnóstico, mas devoto dos meus santos tutelares. Considero-me em processo, doloroso mas sincero, de retorno à fé naquele Deus que o rei e profeta Davi dizia ter alegrado a sua juventude. Não tenho disciplina mental para ser de esquerda, nem firmeza monolítica para ser de direita. Tampouco me sinto confortável na imobilidade tática, muitas vezes oportunista, do centro. Encontro em Eça de Queirós, em suas Notas contemporâneas, as palavras que poderiam me definir ideologicamente: “A presença angustiosa das misérias humanas, tanto velho sem lar, tanta criança sem pão, a incapacidade da Monarquia e da República, da Ditadura e da Democracia para realizar a única obra urgente do mundo, a casa para todos, o pão para todos, lentamente me tem tornado um vago anarquista, um anarquista entristecido, humilde e inofensivo.”
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Menino do Lins de Vasconcelos, sou filho de um jornalista obscuro que transformei num personagem que todas as noites prometia a si mesmo: “Amanhã farei grandes coisas!” Nunca fez coisas grandes, mas acreditava que viver era uma grande coisa. Não lhe herdei a pureza nem a sabedoria. Este pai natural foi substituído por um pai espiritual, que colocou no pensamento do cão de Quincas Borba, o próprio cão sendo também Quincas Borba, a frase com que iniciei este discurso e o encerro: a vida não é necessariamente boa nem má. Sendo este o pensamento de um cão cujo dono era um louco, não restou a Machado de Assis, em cuja Casa estamos hoje reunidos, senão a desculpa de que tudo no homem não passa de uma “poeira de ideias”. Muito obrigado.
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Lima Barreto, um dos pilares de Cony
Carlos Heitor Cony costuma qualificar sua obra como produto de diversas influências da literatura brasileira e mundial. É natural inferir que os maiores impactos seriam dos seus conterrâneos, principalmente pelo fato de três dos maiores escritores brasileiros terem nascido no Rio: Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Este, inclusive, já foi considerado por Cony melhor romancista que Machado – apesar de Machado, para ele, ainda ser o mais completo escritor brasileiro.
em 1881 e empregou em sua obra denúncias às injustiças sociais e ao preconceito racial, dos quais foi vítima. Enfrentou, também, dificuldades por produzir uma literatura desprendida dos gostos e padrões de sua época. Apesar da situação econômica precária de seus pais, teve acesso a uma educação de qualidade, direcionada à elite da época, em virtude da ligação do pai com um político do Império, o Visconde do Ouro Preto, padrinho de Lima Barreto. O menino, no entanto, perdeu a mãe aos seis anos, circunstância
O ano de 2017 marca noventa e cinco anos da morte de Lima Barreto e coincide com a homenagem da Flip deste ano e com o lançamento de sua biografia (Lima Barreto – triste visionário, de Lilia Schwarcz). Apesar da forte influência exercida no movimento modernista do Brasil e do resgate de sua obra ocorrido a partir dos anos 50, é um escritor que costuma ser “muito citado, pouco lido”. Neto de escravos, mestiço, Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu
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que trouxe dificuldades para a família, obrigando-o a trabalhar desde jovem.
foco os ideais e as decepções de Quaresma, brasileiro e nacionalista fanático que, a cada nova tentativa de levar seu país ao progresso e à prosperidade, é ainda mais desacreditado e ridicularizado – do que se pode fazer paralelo à trajetória de Lima Barreto, legítimo outsider da literatura brasileira.
Com a ajuda de seu padrinho, Lima Barreto cursou Engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, mas não pôde se formar, pois o pai enlouqueceu, e ele teve de se responsabilizar pelo sustento de seus três irmãos. Logo dividiu-se entre dois ofícios: um burocrático, no Ministério da Guerra, e outro como jornalista, em diferentes periódicos do Rio. Em pouco tempo, estaria no Correio da Manhã, publicando artigos e crônicas. Com alguns amigos, fundou a revista Floreal, de apenas quatro números – é nela que começou a publicação do folhetim Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), que, traçando um panorama histórico e social do início do século XX, narra o percurso de um homem que não consegue inserir-se na sociedade por conta do preconceito racial.
Tendo experienciado uma vida de constante desprestígio, crítica e preconceito, o escritor enfrentou crises de depressão, entregando-se ao álcool e sendo internado por duas vezes no Hospício Nacional. Faleceu aos quarenta e um anos, vítima de um colapso cardíaco, já caído no esquecimento e na miséria, em 1922. Além do resgate que sua obra receberia décadas mais tarde, outros livros foram publicados postumamente, como o recente Sátiras e outras subversões (2016), compilação de textos originalmente publicados em periódicos e atribuídos, na época, a pseudônimos do autor.
O mais célebre romance de Lima Barreto é Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), publicado como folhetim no Jornal do Comércio entre agosto e outubro de 1911 e considerado pela crítica literária o principal expoente do Pré-Modernismo no Brasil. A obra tem como
Principais romances:
Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá
Principais contos: O homem que sabia javanês e A nova Califórnia
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ÁLBUM DE FOTOS Ao ler sobre as histórias contadas pelo narrador-personagem a partir do recebimento inesperado de um embrulho, somos pegos imaginando os personagens desta obra – que são, em grande parte, reais. Pensando em complementar a experiência de leitura, montamos neste Eco uma espécie de álbum de fotos, para ajudar o leitor a melhor ambientar-se às situações contadas em Quase memória.
Cony menino.
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Cony no CPOR,
Ernesto,
em 1948.
pai de Cony, em 1939.
Dr. Pedro Ernesto Batista,
Julieta,
mãe de Cony, em 1951.
ex-prefeito do Rio de Janeiro e médico que operou o freio da língua de Cony.
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Espaço do Leitor Julho foi um mês muito especial para o clube: além do nosso aniversário de três anos, enviamos para os associados o primeiro livro exclusivo da TAG, organizado por Helena Terra e Luiz Ruffato. Nele, desafiamos dez autores contemporâneos a escolherem um conto clássico e a reescreverem-no, compondo assim a coletânea Uns e outros – contos espelhados. Assim como as releituras deveriam dialogar com seus espelhos, incentivamos os associados a fazer o mesmo com nosso mimo, uma caixinha de ímãs com o poema de Ana Martins Marques, e outras palavras do universo dos leitores. Veja aqui algumas dessas criações:
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A indicação de
Vladimir Weinstein
“Eu amo este livro por sua vivaz inteligência e por um certo tipo de compreensão honesta, viva e íntima da classe trabalhadora na Nigéria colonial.”
Chimamanda Ngozi Adichie é uma das escritoras de maior evidência da atualidade. Ela alcançou popularidade no mundo inteiro com romances e contos, mas também vem ganhando notoriedade pelas palestras sobre representatividade e feminismo. Sua indicação para o mês de outubro descreve a trajetória de uma mulher da etnia igbo na Nigéria da primeira metade do século XX. Os percalços enfrentados pela protagonista refletem a violenta opressão patriarcal e colonial que reduz as mulheres às expectativas e obrigações da maternidade. Uma história de luta, sofrimento e resistência, concebida por uma das primeiras autoras a narrar as experiências da mulher africana – em especial, da nigeriana – para o resto do mundo. Um romance que chega pela primeira vez ao Brasil nesta edição encomendada pela TAG exclusivamente para seus associados.
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– Chimamanda Ngozi Adichie
CONHEÇA A COLEÇÃO
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“O livro é a extensão da memória e da imaginação.” – Jorge Luis Borges