Ago2019 "Todos nós adorávamos Caubóis" - Curadoria

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Todos nรณs adorรกvamos caubรณis


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Redação Daniel Silveira Laura Viola Hübner Maurício Lobo Rafaela Pechansky produto@taglivros.com.br Revisão Antônio Augusto da Cunha Caroline Cardoso Gustavo Lembert da Cunha Nicolle Ortiz Impressão Impressos Portão Projeto Gráfico Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Kalany Ballardin Paula Hentges design@taglivros.com.br Capa Patricia Heuser patriciapuerari@gmail.com


Ao Leitor Quando descobriu que havia ganhado o prestigioso Prêmio

Jabuti, Carol Bensimon estava tomando um café com alguns amigos em Mendocino, na Califórnia. Faz quase um ano que a escritora fez da costa oeste norte-americana o seu lar, após se apaixonar pela região enquanto realizava pesquisas para escrever O clube dos jardineiros de fumaça, seu romance mais recente e que lhe rendeu o grande prêmio literário em 2018. Não é exagero definir Carol como uma das vozes da sua geração: Noemi Jaffe, a curadora do mês, com o seu olhar aguçado de crítica literária, afirmou que Carol consegue explorar os mínimos detalhes que compõem uma história. É dessa forma que as histórias de Carol ganham vida. Todos nós adorávamos caubóis é recomendado para qualquer pessoa que em algum momento da vida tenha sentido vontade de arrumar uma mochila e colocar o pé na estrada. Um reencontro entre duas amigas – jovens, bonitas, cosmopolitas – que retornam ao Brasil para partir rumo ao interior do Sul do país. A história é ambientada em 2013, o que, segundo a pesquisadora Ilana Heineberg, insere o universo que compreende as protagonistas na famosa “modernidade líquida”. Além disso, Ilana define Caubóis como uma road novel da geração Y. Acompanhamos a narradora, que nasceu na década de 1980, os seus relacionamentos flutuantes, as redes sociais, a mobilidade entre continentes. Duas jovens descobrindo os pampas gaúchos e transcendendo fronteiras. Ilana pondera, contudo, que o romance se recusa a sucumbir à velocidade e a à simultaneidade da conexão pós-moderna: Cora deixa o celular em casa, Julia usa um mapa de papel e não há GPS. “Entre ruínas e não-lugares”, como escreve Ilana, temos duas heroínas analógicas. Boa leitura!


Sumário

A indicação do mês

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Esta edição foi feita com carinho pela TAG para seus associados.

A curadora Noemi Jaffe O livro indicado Todos nós adorávamos caubóis Entrevista com Carol Bensimon


Ecos da leitura

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Mapa e caminhos da viagem Road trips A literatura brasileira de temática LGBTQIA+ Philos: os melhores documentários on demand

Espaço do associado

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Com a palavra, as anfitriãs + Unboxing

Leia depois de ler

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Viver, viajar, narrar

A próxima indicação

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O livro de setembro


JoaĚƒo Bandeira


A curadora

Noemi Jaffe Recomenda-se uma visita à página de Noemi Jaffe no Twitter, o que rende aprendizados e divertimentos. Ainda indica, em saborosas pistas de até 280 caracteres, a perspectiva irreverente e original que a paulista de 57 anos propõe sobre as palavras e a escrita. Jaffe promove em tudo o que faz uma fascinação inesgotável pelo universo das letras. “Tenho enorme interesse

por todas as palavras, pois todas elas têm uma história longa e cheia de mistérios. O problema é que o uso que fazemos delas cotidianamente faz com que sua beleza se perca, se banalize. Procuro recuperar um pouco do espanto que elas contêm.” Nossa curadora do mês de agosto é escritora, professora e crítica literária. Já publicou 11 livros entre obras didáticas, poesia, contos e um romance – embora seu grande prazer seja promover a anti-rotulagem, confundindo classificações com fascinantes obras híbridas. Doutora em literatura brasileira pela USP, Jaffe ministra cursos de escrita criativa e literatura desde 2007 e atualmente é coordenadora do espaço Escrevedeira, centro cultural na zona oeste de São Paulo criado em 2016 que oferece cursos, oficinas e debates relacionados à escrita e à literatura. Quando não está lecionando e projetando novos livros, escreve para a Folha de S. Paulo e para o Blog da Companhia. Nascida em 1962 na cidade de São Paulo, Jaffe é uma daquelas pessoas que percebeu ainda na infância que a escrita seria uma companheira para toda a vida (mesmo que tenha publicado pela primeira vez somente aos 43 anos, estreando com o livro de poesia Todas as coisas pequenas). Ela lembra, ainda hoje, do encantamento que sentiu ao perceber o jogo de encaixe e desencaixe de palavras de “Construção”, composição de Chico Buarque, aos oito anos de idade. Recorda de fazer os próprios poemas e

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tentar imitar não apenas a inven- Ainda há muitas outras grandes tiva fórmula lírica de Chico, mas as obras: A verdadeira história do alde vários outros poetas e escritores fabeto (2012), que ganhou o Prêmio que, aos poucos, descobria e passava Brasília de Literatura, obra instia amar. Esse método de realizar pe- gante e poética que apresenta, na quenos “roubos” criativos, além de forma de pequenos contos que brinfundamental no caminho de Noemi cam com personagens históricos e pela busca de uma voz original, é de- eventos fantásticos, uma genealofendido até hoje pela escritora como gia ficcional de cada letra do nosso etapa quase obrigatória no processo alfabeto e de algumas palavras da de tornar-se escritor – desde que língua portuguesa. Essa paixão pela este sempre esteja comprometido linguagem é uma constante na obra com o novo. Das referências e pai- de Jaffe, podendo ser encontrada xões que ajudaram a construir sua tanto como matéria-prima dos seus escrita –, tem-se Manuel Bandeira, livros como em bem planejados tanClarice Lispector, Italo Calvino, Vir- genciamentos, como é o caso do seu primeiro romance, ginia Woolf, Jorge Írisz: as orquídeas Luis Borges e mui“Estou convencido (2015), finalista do tos, muitos outros. de que Noemi Jaffe Prêmio São Paulo de Literatura. Já em é um tesouro da Entre os livros publicados até hoje língua e da literatura Não está mais aqui quem falou (2017), por Noemi Jaffe, em português.” obra mais recente, destaca-se O que há uma reunião de os cegos estão so– Valter Hugo Mãe 40 textos que exnhando? (2012), obra que aborda impressões, lem- ploram diferentes possibilidades branças e reflexões sobre os horro- textuais. Resulta dessa combinação res do Holocausto a partir das vi- um livro que poderia ser descrito sões de mãe, filha e avó, tendo como como “transgênero”, termo utilizado ponto de partida as experiências pelo escritor e colega Joca Reiners reais da mãe de Noemi, Lili Jaffe, Terron e que combina muito mais sobrevivente de um campo de con- com os interesses subversivos que a escritora vislumbra para a literatura. centração de Auschwitz. Na entrevista a seguir, Noemi fala sobre as suas impressões acerca da produção literária brasileira, critica o perigo da deturpação promovida pelas redes sociais e faz uma reflexão sobre o movimento da autoficção e a importância de borrar, enfim, as fronteiras entre a ficção e o real.

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Entrevista com

Noemi Jaffe “Carol Bensimon tem uma capacidade muito grande e singular de dar importância aos detalhes mínimos que compõem uma paisagem e um personagem. Isso faz com que eles soem muito vívidos e dinâmicos, num ritmo narrativo que acompanha suas ações.” TAG – Você tem uma voz bem ativa no Twitter. Como enxerga os papéis que as redes sociais assumem hoje na difusão das informações? Noemi Jaffe – Eu posto, principalmente, etimologias no Twitter. Vejo esse papel das redes com algum prazer e muito receio. Sigo algumas pessoas, jornais e instituições em quem confio muito, que me informam, instruem e alegram por razões diferentes. Muitos também me emocionam e inspiram. Mas a grande maioria, na minha opinião, faz da rede um espelho deturpado de si mesmo e da realidade; um canal de disseminação de paixões doentes e inócuas ou um depósito de fake news. Parece que a facilidade que as redes representam destampou um

buraco de recalques muito difícil de processar e reparar. Quais as perspectivas para a literatura contemporânea brasileira? Noemi – Em termos de produção, vejo boas perspectivas. Acho que nos últimos anos houve saltos na produção romanesca, mas principalmente na poesia, com excelentes poetas, especialmente mulheres, em todas as regiões do país. Vejo coisas boas acontecendo nas periferias, em editoras alternativas e na internet também, além dos cursos de escrita (livres e formais) que vêm aumentando e se diversificando no país. Mas em termos editoriais, todos sabemos da crise pela qual o Brasil está passando e, com o gover-

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no atual, interessado em destruir as universidades e a educação no país, vejo cada vez menos chances de que isso melhore. Você lançou o livro O que os cegos estão sonhando? em 2012, obra em que três gerações da sua família se debruçam sobre o Holocausto. Como foi escrever sobre o horror de Auschwitz sob um ponto de vista tão pessoal? Noemi – Foi, sem dúvida, uma das coisas mais importantes que já fiz na vida. Para mim e para minha mãe também. Ela sempre quis que sua história fosse contada, para que não morresse, e sinto que cumpri com isso de uma forma não apelativa e que pode ajudar a refletir sobre o assunto a partir de alguns pontos de vista diferentes. Não foi nada fácil, é claro, mas foi uma dificuldade que quis e precisei enfrentar para dar voz a algo que me constitui como pessoa, que me ofereceu desafios literários e que faz parte de uma história que nunca pode ser esquecida, ainda mais agora que estão querendo negar o passado. Você ministra cursos de escrita criativa. Muitos dos nossos associados relataram que gostariam de escrever, mas não sabem como começar. Quais os pontos básicos que você recomenda a seus alunos? Noemi – Acho que a melhor “dica” que posso dar a quem está come-

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çando é: releia, releia, releia e corte, corte, corte. Além disso, um escritor precisa estar sempre em estado de leitura: dos clássicos e dos contemporâneos, do seu país e dos outros. Ultimamente notamos que tem crescido o número de publicações da chamada autoficção. Por que acredita que está ocorrendo esse movimento? Noemi – Na minha opinião, somente o nome é recente. A prática é extremamente antiga e cheia de nuances. Muito do que se produziu nos últimos dois séculos em romances é autoficção. Ou será que Em busca do tempo perdido não pode ser considerado autoficção, por exemplo? Ou Mrs. Dalloway, ou mesmo Madame Bovary, quando Flaubert proclama que “Mme. Bovary c’est moi?”. Se ampliarmos o espectro dessa noção, a história da autoficção remonta a um passado remoto. Mas no sentido mais estrito, em que narrador e autor chegam a coincidir, como no caso de Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgård, penso que está relacionado a um “relaxamento" do rigor romanesco e de uma maior atenção ao trivial e às contingências. Não é mais compulsório estabelecer separações rígidas entre autor e narrador, é importante borrar as fronteiras e o real está tão espantosamente assustador (pleonasmo), que soa mais irreal do que a própria ficção.


Você comentou ter gostado também do último livro da Carol Bensimon, O clube dos jardineiros da fumaça, que lhe rendeu o Jabuti de melhor romance em 2018. Noemi – A Carol Bensimon tem uma capacidade muito grande e singular de dar importância aos detalhes mínimos que compõem uma paisagem e um personagem. Isso faz com que eles soem muito vívidos e dinâmicos, num ritmo narrativo que acompanha suas ações. Acho que isso está nos dois romances. Acho que até existe certo sentido de continuidade, em que o segundo apresenta um trabalho de pesquisa do real mais aparente do que o primeiro, já que a localização e o assunto são estrangeiros.

“Um escritor precisa estar sempre em estado de leitura: dos clássicos e dos contem­porâneos, do seu país e dos outros.” O que você gostaria de falar aos 30 mil associados que irão ler Todos nós adorávamos caubóis pela primeira vez? Noemi – Que eles lerão um romance de formação e em formação, em que a vida e a sexualidade de duas meninas jovens se perfaz numa viagem que é delas, mas também do leitor. Viagem geográfica, mas principalmente subjetiva.

ESTANTE LITERÁRIA O primeiro livro que li: O menino do dedo verde, de Maurice Druon O livro que estou lendo: Bússola, de Mathias Enard O livro que eu gostaria de ter escrito: Ao farol, de Virginia Woolf O último livro que me fez chorar: O rei se inclina e mata, de Herta Müller O último livro que me fez rir: Alguns humanos, de Gustavo Pacheco O livro que eu não consegui terminar: Fenomenologia do Espírito, de Hegel O livro que eu dou de presente: Primeiras estórias, de Guimarães Rosa O livro que mudou a minha vida: José e seus irmãos, de Thomas Mann

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O livro indicado

Todos nós adorávamos caubóis de Carol Bensimon

Quase dois anos depois de indicar ao clube o romance A

praça do diamante (1962), da catalã Mercè Rodoreda, a escritora Carol Bensimon retorna às páginas da TAG como autora do livro do mês. Com a escolha de Noemi Jaffe, ela se junta ao espanhol Javier Cercas e ao irlandês Roddy Doyle no seleto grupo que já ocupou as duas posições (curador e autor do mês) na história do clube – além de ter feito o caminho inverso dos outros dois, fica com ela o posto de primeira brasileira a figurar nessa lista especial. Tradutora, romancista e contista, Bensimon nasceu em Porto Alegre em 1982 e é destaque no cenário literário brasileiro há mais de uma década, sendo um dos principais nomes da nova geração de escritores contemporâneos. Em 2012, foi incluída no volume Os melhores jovens escritores brasileiros da revista Granta. Além de escrever e traduzir obras de ficção, contribuiu com contos e ensaios para periódicos como o Estado de S. Paulo, O Globo, Folha de S. Paulo, Superinteressante, Piauí e para a editora norte-americana McSweeney's, trabalhou em roteiros para audiovisual, foi colunista do Blog da Companhia e já colaborou em algumas edições da revista da TAG na seção Leia depois de ler. Em 2018, Bensimon conquistou o Prêmio Jabuti de melhor romance com sua publicação mais recente, O clube dos jardineiros de fumaça (2017), obra que cruza personagens históricos e ficcionais utilizando como pano de fundo o tema do cultivo e comércio de maconha na Califórnia, onde a planta recentemente

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foi legalizada. Além de ter descoberto em Mendocino a inspiração literária que deu origem a Jardineiros, Carol encontrou na calmaria do pequeno condado o seu lar, onde hoje reside. Em entrevista ao Mulheres que escrevem, Bensimon analisou a sua antiga necessidade de ser criadora: “Toda criança brinca com bonequinhos, Lego, caixa de sapato, embalagem de xampu, inventa mundos, cria historinhas. Eu acho que continuei fazendo isso depois de ‘passar da idade’. Continuei interessada em fazer ficção”. Estudando Publicidade e Propaganda, encontrou novo fôlego. “[No curso] tive contato com cinema, que é uma coisa que me interessa e me influencia. Talvez, se eu fizesse Letras, teria menos contato com a literatura contemporânea, por mais paradoxal que isso pareça. Eu gosto de colocar questões do mundo con-

temporâneo nos meus textos, então acho que na Comunicação tive mais contato com o mundo real do que teria nas Letras, até para criticar certas coisas”, relatou em uma entrevista para a revista Culturíssima. O próximo passo foi participar da oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil, por onde passaram diversos escritores de relevância no cenário nacional – nomes como Daniel Galera, Leticia Wierzchowski e Michel Laub (todos antigos curadores do clube, que indicaram aos associados os romances Os irmãos Sisters, Stoner e O sentido de um fim, respectivamente). No ano de 2004, começou a conquistar seus primeiros leitores com o blog Kevin Arnold para dois, no qual explorou uma escrita mais intimista e descontraída, relatando experiências e refletindo sobre arte e cultura. Sem abdicar dos seus processos livres de escrita, Bensimon deu início à carreira de redatora publicitária assim que obteve o diploma. Contudo, abandonou a profissão quando ganhou uma bolsa de estudos no mestrado em Escrita Criativa pela PUCRS. Passou a escrever textos para antologias e periódicos como a Bravo!, Zero Hora e Ficções (7 letras) e, concomitante ao final do mestrado, lançou seu primeiro livro, Pó de parede (2008), um conjunto de três novelas. Um segundo momento decisivo na carreira de Bensimon aconteceu quando percebeu que seu doutorado em Literatura Comparada, iniciado em 2008 em Paris, não era mais es-

Melissa Fornari

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timulante do que a escrita de ficção. Ao abrir mão do doutorado, Carol tomou a importante decisão de se dedicar à carreira de escritora e logo publicou o primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (2009), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria autor estreante e do Prêmio Jabuti de 2010. Todos nós adorávamos caubóis (2013) é resultado de três anos de dedicação, pesquisa e viagens por cidades do interior do Rio Grande do Sul – onde a história majoritariamente ocorre – para que seus cenários e atmosferas fossem minuciosamente retratados. Por ser um livro que se passa na estrada e explora a temática das road trips, intimamente conectada à cultura norte-americana, filmes clássicos como Thelma e Louise e Easy Rider serviram de inspiração tanto estrutural como estética. Todos nós adorávamos caubóis tem como protagonistas as jovens Cora e Julia. As duas se conhecem na faculdade de jornalismo, mas acabam perdendo o contato após Julia partir em direção a Montreal para continuar os estudos e Cora indo cursar moda em Paris. Uma conversa informal pela internet, no entanto, as coloca em contato novamente: é quando elas decidem pôr em prática uma viagem de carro pelo interior do Rio Grande do Sul. O romance é contado pela perspectiva de Cora, uma jovem intrinsicamente urbana: roupas influenciadas pela estética punk, cabelo descolorido e interesse em questões de

gênero e pelo feminismo. O mesmo não pode ser dito sobre Julia, uma garota do interior que teve a infância marcada pela educação religiosa, e, como a narradora sintetiza, “a menina que levantava a mão para perguntar a cinco minutos do final da aula”. Enquanto acompanhamos a história pelo olhar de Cora (cujas reflexões sinceras sobre as próprias falhas e formas de compreender o mundo a aproximam do leitor), Julia é apresentada incialmente como uma personagem observada a certa distância, misteriosa e ambígua. Ao contrário de paisagens sempre deslumbrantes, o que Cora descreve no decorrer da jornada são, em sua maioria, cenários decadentes e desolados, alguns paralisados pelo tempo e outros quase inabitados. Cidadezinhas que não são exatamente turísticas, mas que servem tanto de pretexto para uma retomada da convivência entre as duas como uma busca pela própria identidade e liberdade. Grande parte da beleza do relato de Cora (e, em última instância, da escrita de Bensimon) está, como disse Noemi Jaffe, em seus detalhes (à primeira vista irrelevantes) e nas miudezas cotidianas tanto do mundo exterior quanto dos próprios pensamentos. A seguir, trazemos uma conversa intimista com Carol, na qual ela fala sobre as suas relações com a literatura, com o Brasil e com as suas criaturas (já amadas por aqui), Cora e Júlia.

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Entrevista com

Carol Bensimon TAG – Em A praça do diamante, livro que você indicou para a TAG em dezembro de 2018, temos uma personagem muito forte, a Colometa. Desde as últimas décadas, percebemos um movimento de criar personagens mulheres com mais complexidade, como as do seu livro. Como a ausência e a crescente presença de personagens assim na literatura influenciou sua vida como leitora e escritora? Carol Bensimon – Até pouco tempo atrás, a própria sociedade não dava muito espaço para essa complexidade feminina aparecer na vida real, que dirá então na literatura. Na minha vida de leitora, é verdade que cruzei com muito mais personagens homens do que mulheres. É inevitável que isso aconteça porque sempre houve mais homens escrevendo, mas isso nunca me desen-

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corajou. Desde cedo quis escrever ficção. Fico feliz agora que cada vez mais mulheres estejam escrevendo, e que a consequência disso seja a construção de personagens femininas com mais nuances. É muito bom poder contribuir com essa mudança. A literatura que retrata a população LGBTQIA+ tem crescido bastante nesses últimos anos, tanto em obras contemporâneas quanto em mais antigas, resgatadas com novas edições e traduções. Como você enxerga esse movimento? Carol – Isso é muito recente, pelo menos no Brasil. Acho que aconteceu de forma mais intensa nos últimos três ou quatro anos, e é extremamente positivo para a diversidade da nossa literatura. Mas, quando Todos nós adorávamos caubóis


foi publicado, em 2013, o cenário era outro. De toda forma, quando escrevo um livro, não estou pensando em nada disso, quero dizer, em como a narrativa se encaixa no contexto atual, no que pode haver de político nela, etc. Acredito que a escrita de um romance deve partir de um desejo que vem de dentro, não de fora. Minha vontade era apenas retratar uma relação ambígua entre duas meninas, cheia de desencontros e hesitações, temperada com o frescor e a incerteza dos vinte e poucos anos. Como foi escrever Todos nós adorávamos caubóis? Quais foram as suas inspirações? Qual era a sua rotina de escrita? Carol – Foi intenso. Eu tinha voltado de um período de dois anos em Paris, onde fui fazer um doutorado que não terminei. Queria usar essa experiência de sair do país de alguma maneira, mas, ao mesmo tempo, também tinha vontade de explorar a paisagem do meu estado natal. Então fui fazer algumas viagens de carro como pesquisa para o futuro romance. Acho que, no livro, o que vemos é tanto uma conexão quanto uma desconexão das personagens em relação a essa paisagem e essa cultura. O entorno é, ao mesmo tempo, familiar e completamente estranho. E aquela jornada, para Cora, significa essencialmente uma chance de se reaproximar da Julia. Minhas inspirações da vida real foram essas: cenários carregados de

certa melancolia, uma cidadezinha parada no tempo nos pampas gaúchos e algumas relações confusas que vivi na época da faculdade. Não lembro o que estava lendo quando escrevi o livro, então não poderia dizer o que me inspirou em termos de literatura. Mas lembro que escutava muito Radio Dept., Wild Nothing e Craft Spells. Foram bandas que me ajudaram a construir a atmosfera do livro. Quanto à minha rotina de escrita, sou sempre muito disciplinada quando estou trabalhando em um romance. Acordo cedo, faço meu café da manhã, escrevo, paro para almoçar, e continuo escrevendo até o fim da tarde. Thelma & Louise é uma forte referência para seu romance. De que forma o cinema dialoga com o livro? Carol – Vi muitos road movies clássicos no início do projeto do livro, antes de propriamente sentar para escrever. E Thelma & Louise sempre foi um favorito desde a primeira vez que assisti ao filme, nos anos 90. É também um dos únicos do gênero que coloca duas mulheres no centro da trama. Sou bastante influenciada pelo cinema de modo geral. Acho que minha literatura é bem visual, sinto que estou criando imagens com palavras quando escrevo, e costumo pensar que o próprio processo de escrita, o próprio encadeamento das frases em um texto literário, pode ser muito parecido com o processo de montagem do cinema.

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“Acredito que Caubóis é um romance sobre fazer o que se quer, independente da opinião dos outros.” Pergunta inevitável: o quanto de Carol há em Cora e o quanto de Carol há em Julia? Carol – Essa é difícil! Eu não escrevo histórias autobiográficas. Até teria coisas bem dramáticas e imprevisíveis para contar se escrevesse, mas não me sentiria à vontade para fazer isso e, além do mais, gosto da liberdade que a ficção dá. Estou no livro de uma maneira mais indireta. Criei a história das duas personagens baseada em muitos recortes de experiências e sensações. Uma estudante de moda que encontrei umas três vezes em Paris, um passeio por um bairro específico, lembranças de pessoas que conheci na faculdade, uma estadia em um hotel de Bagé e outro em São Francisco de Paula em contextos completamente diferentes, enfim, há um mosaico aí, e as peças aos poucos vão se encaixando como na escrita de qualquer livro de ficção. Mas eu diria que há mais de Cora em mim do que de Julia simplesmente porque a Cora vem de um contexto urbano, como eu. Também porque tem mais certezas sobre sua sexualidade. Em uma recente troca com Caetano Galindo vocês tecem uma longa e pertinente discussão sobre ques-

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tões ligadas ao uso da língua. O quanto essa experiência de morar fora tem impactado no modo como você escreve e enxerga a literatura contemporânea brasileira? Carol – Acho que eram questões que eu já me colocava antes de mudar de país. Nunca me senti “herdeira” da tradição literária brasileira. Leio muitos dos meus contemporâneos, isso sim, mas pouca coisa das gerações anteriores. Então percebi que essa distância que eu sentia se explicava sobretudo pelo uso da linguagem. O que estávamos apontando nessa discussão, eu e o Caetano Galindo, é que, até pouco tempo atrás, a distância entre o português falado e o português “literário” era abissal. E isso me incomodava. Pego alguns livros antigos e eles me soam beletristas, artificiais. Meu projeto de literatura sempre foi o contrário disso. Sei que essa não é uma discussão nova, mas, em todo o caso, o nó não me parece resolvido. Segundo o Galindo, minha geração está tendo que inventar uma nova linguagem literária. Pode soar pretensioso dizer isso, mas, ei, foi o Galindo quem disse, não eu! Muitas pessoas falam em “encontrar seu lugar no mundo”. Você acredita


que Mendocino é o seu lugar? Como é viver (e escrever) na Califórnia? Carol – Hoje posso afirmar que é. Amanhã, quem sabe o que vai acontecer? Senti uma atração muito forte por esse lugar desde a primeira vez em que pisei aqui, e isso foi se intensificando. Quando terminei de escrever O clube dos jardineiros de fumaça, depois de duas temporadas em Mendocino, estava oficialmente apaixonada. Acho que eu não poderia voltar para a mesma vida que eu tinha em Porto Alegre depois disso, e me mudar de cidade parecia insuficiente, como se todas as cidades fossem um pouco parecidas, sabe? O que eu precisava mesmo era me afastar dessa lógica urbana. É um privilégio viver aqui, sem dúvida. A natureza é muito impressionante e me toca em algum ponto que até então eu desconhecia. O silêncio para escrever também é maravilhoso. Qual o seu recado para os 30 mil associados que irão ler seu romance pela primeira vez? Carol – Tenho muito carinho por esse livro. Espero que vocês sintam que estão viajando junto com a Cora e a Julia. Quando leitores me escrevem dizendo “você me deixou com muita vontade de viajar!”, acho que esse é o maior elogio que posso receber. É um livro com boas energias. Sei que sou suspeita para falar, mas, enfim, acredito que é um romance sobre fazer o que se quer, independentemente da opinião dos outros. A vida é curta.

ESTANTE LITERÁRIA O primeiro livro que li: O último mamífero do Martinelli, de Marcos Rey O livro que estou lendo: Lá não existe lá, de Tommy Orange O livro que eu gostaria de ter escrito: A Fugitiva, de Alice Munro O último livro que me fez chorar: Não me abandone jamais, de Kazuo Ishiguro O último livro que me fez rir: Less, de Andrew Sean Greer O livro que eu não consegui terminar: Ulisses, de James Joyce O livro que eu dou de presente: Uma casa do fim do mundo, de Michael Cunningham O livro que mudou a minha vida: O Som e a fúria, de William Faulkner, e Três tristes tigres, de Guillermo Cabrera Infante

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Caçapava do Sul 7

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Bagé 9

mapa e caminhos

da viagem

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Ecos da leitura

Minas do Camaquã


Cambará do Sul

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2 3

6

São Marcos 5

São Francisco de Paula 1

O

A

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Porto Alegre

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Soledade

São Antônio Jorge da Prado Mulada

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Ecos da leitura

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Antônio Prado A primeira parada de Cora e Julia se autointitula “a cidade mais italiana do Brasil” e passou a ser habitada por colonos em 1886. Conhecida por ter um dos maiores patrimônios históricos da arquitetura colonial do Brasil, a paisagem de Antônio Prado divide-se atualmente entre construções tombadas e residências modernizadas:

“[...] tão logo a situação econômica permitia, as famílias de Antônio Prado, supostamente orgulhosas das suas origens, colocavam tudo abaixo e corriam para a loja mais próxima de materiais de construção, selecionando os piores tipos de revestimentos sob a crença de que eles eram muito mais modernos e práticos.” Não é possível falar de colonização, no entanto, sem mencionar o genocídio indígena decorrente da entrada europeia no Brasil. Como a maior parte das terras da serra gaúcha, Antonio Prado foi habitada pelos índios caingangues que foram posteriormente desalojados com enorme derramamento de sangue pelo governo imperial brasileiro, que seguia uma política de embranquecimento do território nacional.

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Ecos da leitura

São Jorge da M

São Jorge da Mulada é uma pequena Entre inúmeras belezas naturais, co de suas atrações mais curiosas é o obelisco e um monumento com está por introduzir a bateria na música passou despercebido pela debochad

“O que parecia mais novo, t do se comparam duas estátu aos ombros e os dedos no te oposto. Quanto ao mais velh pose meio cômica, com um sofresse de dor na região lom


Cambará do Sul Composta do maior conjunto de cânions da América do Sul, Cambará é um dos principais pontos turísticos do Sul do país, tem seu nome originado do tupi-guarani e significa "folha de casca rugosa". O local fica a 1400 metros de altitude e, no inverno, a temperatura alcança números negativos. Sobre a paisagem, Cora descreve: “os cânions eram realmente impressionantes, como mesas, como fendas, como engolidos pela terra e lutando para ficar”.

“Talvez eu deva me concentrar na rua principal. Nós rodávamos por ela, e eu tinha certeza de que Julia fazia o mesmo que eu, isto é, traçava comparações [...], havia algo de inóspito e um tanto opressivo no ar. Se, nas outras, meninas de braços dados iam comer um crepe ou espiar a arara promocional de uma loja de roupas, em Cambará do Sul os habitantes se moviam como que entorpecidos, cansados de si mesmos, as cabeças baixas, e sós. Quase todos eram do sexo masculino. Homens que andam assim são homens sem emprego, eu pensava.”

Mulada

a vila de Criúva, distrito de Caxias do Sul. omo matas nativas, rios e cachoeiras, uma o memorial aos irmãos Bertussi, onde um átuas homenageia os músicos conhecidos a tradicional gaúcha. O local também não da Cora:

tanto quanto se pode supor quanuas de bronze, tinha a gaita presa eclado e nos botõezinhos do lado ho, ele fora imortalizado em uma ma das mãos na cintura (como se mbar).”

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Minas do Camaquã

“Ao contrário do que eu havia pensado, a cidade não estava completamente deserta, muito menos caindo aos pedaços, ainda que o número de pessoas ficasse muito abaixo do de propriedades, o que me fazia acreditar que seus donos moravam efetivamente em outros lugares, deslocando-se até ali apenas quando tinham tempo para isso, e sobretudo quando a ideia do isolamento tomava-lhes de tal forma a cabeça que daí era preciso encher o carro de tralhas e entregar-se com urgência a ela.”

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Localizada entre Bagé e Caçapava do Sul, a 300 km de Porto Alegre, a hoje apelidada “cidade fantasma” Minas do Camaquã era uma vila de mineração que vivia da exploração de cobre desde o século XIX. Até o final dos anos 90 tudo corria bem, fortunas foram geradas ao ponto de a cidade ostentar clube com sauna, hospital com bloco cirúrgico, ginásio poliesportivo e um cinema de madeira com ares de faroeste americano. Até que o metal acabou e, com ela, os investimentos da Companhia Brasileira do Cobre (CBC) e boa parte da presença humana – hoje, o a população não chega a 1000 habitantes.

Soledade

A última das cidades visitadas ( Sua principal fonte de renda há m Cora não poupa a fama da cidade

“Ela era de Soledade, a C sam se autoproclamar ca é obrigatoriamente um m em Soledade quem não vi zo rosa uma arte das mai


Bagé Originalmente habitada por índios charruas, Bagé pertence à área dos pampas gaúchos e foi colonizada por portugueses e espanhóis.

“As casas antigas eram simpáticas, cravadas direto na rua, sem pátio ou jardim, uma colada à outra, dando uma estranha noção de continuidade que se desfazia somente pela diferença de cores. Portas estreitas, às vezes algum ornamento, uma sacada no caso de a família carregar uma história mais próspera, e depois verdadeiros palacetes com sotaque francês, vitrais, colunas afetadas, Bagé um dia tinha sido uma cidade cheia do dinheiro.”

(e terra natal da personagem Julia), Soledade tem pouco mais de 30 mil habitantes. mais de 50 anos é o comércio internacional de pedras preciosas. A irônica e urbana e, assim como faz troça do resto do interior do estado:

Capital das Pedras Preciosas – todas as cidades do interior preciapital de alguma coisa, e é claro que a razão da sua singularidade motivo de orgulho para seus habitantes, de modo que não havia isse em um porta-copos de ametista ou em um obelisco de quartis sensíveis e belas.”

Ecos da leitura

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Road Trips A temática de viagem na arte sempre teve uma grande afinidade com a literatura e o cinema. É interessante notar que a narrativa literária ocidental inicia na Idade Antiga, tendo como particularidade justamente as aventuras de viagem nas clássicas epopeias. Aos poucos, foram sendo modificadas as bases narrativas e o romance, a forma literária moderna, recebeu as heranças épicas da epopeia, embora tenha se afastado da ideia relacionada às histórias de peregrinação. Na segunda metade do século XX, as narrativas de viagem retornaram com nova aparência aos meios literário e cinematográfico. De característica jovial, as tradicionais road trips trouxeram em sua base as noções de experiências de liberdade e aventura, convidando o leitor a botar o pé na estrada e se transformar.

ciNema Sem Destino (1969) Dirigido por Dennis Hopper, Easy Rider, título original do longa, é talvez o mais famoso road movie do cinema norte-americano. Nesse marco do cinema de contracultura, o próprio diretor, no papel de Billy, contracena com Peter Fonda em uma viagem de motocicleta pelas estradas estadunidenses no intuito de participarem da celebração carnavalesca Mardi Gras. O filme ainda traz a participação de Jack Nicholson e uma trilha recheada de clássicos de Steppenwolf, The Band, Jimi Hendrix e The Byrds.

Thelma & Louise (1991) Vencedor do Oscar de melhor roteiro e uma das principais referências de Carol Bensimon para escrever seu romance, esse filme de Ridley Scott tem como protagonistas uma garçonete e uma dona de casa, que, entediadas com a vida que levam, resolvem fazer uma viagem pelo meio-oeste americano. No entanto, o que era para ser um final de semana nas montanhas vira caso policial. Terra Estrangeira (1996) Em meio ao caos econômico brasileiro na era Collor, Paco resolve partir para Portugal, levando consigo um misterioso pacote que acabará o


envolvendo em um perigoso esquema de contrabando. Esse premiado filme foi dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas. Pequena Miss Sunshine (2006) Nessa comédia de Jonathan Dayton e Valerie Faris, uma família embarca em uma kombi para percorrer 128

quilômetros do Novo México até a Califórnia. A ideia é levar a pré-adolescente Olive para um concurso de beleza. Tensões familiares, ausência de dinheiro, problemas mecânicos na kombi e outros obstáculos fazem parte dessa tumultuada e fértil jornada.

LiteraTuRa On the road – Pé na estrada (1960) O emblemático romance de Jack Kerouac influenciou a vida de diversos jovens pelo mundo, sintetizando o movimento beatnik. Sal Paradise e Dean Moriarty cruzam os EUA atrás de experiências libertadoras. Os detetives selvagens (1998) O romance do escritor chileno Roberto Bolaño engloba cerca de vinte anos de viagens investigativas de Artur Belano e Ulisses Lima. Membros de uma juventude rebelde e intelectual, os jovens partem do México atrás de um misterioso escritor chamado Cesárea Tinajero. Although of course you end up becoming yourself (2010) Ainda sem tradução, essa obra do jornalista e escritor David Lipsky relata os momentos em que David Foster Wallace entra na turnê de lançamento do seu livro, Graça Infinita. Registros de diálogos a respeito de diversos temas culturais podem ser apreendidos a partir da perspectiva do premiado escritor nova-iorquino. Opisanie swiata (2013) Opalka, um polonês perto da terceira idade, recebe uma carta com a notícia da existência de um filho no Brasil. A partir daí, a narrativa se torna um diário de viagem, com Opalka registrando em seu caderninho uma série de episódios que ocorrem no navio e a vida dos passageiros que conhece no percurso. Ecos da leitura

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A literatura brasileira de temática LGBTQIA+

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literatura, assim como outras manifestações artísticas, apresentou historicamente uma certa resistência para se abrir para a diversidade sexual e de gênero. Essa carência de representatividade está ligada tanto à autoria das obras quanto às temáticas. Ainda que possamos encontrar textos envolvendo histórias de relacionamentos amorosos entre pessoas do mesmo sexo desde a Idade Antiga, o desvelamento desses assuntos teve início apenas na segunda metade do século XIX. A partir dessa época, iniciou-se um crescente aumento de estudos que trouxeram novas luzes a leituras, por exemplo, de obras como a clássica epopeia Ilíada, de Homero. Nela, a tradicional amizade entre Aquiles e Pátroclo é revisada, transformando-se em uma relação amorosa capaz de despertar a des-

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Ecos da leitura

comunal ira do herói épico após a morte do seu amado. Diversos acontecimentos históricos foram importantes para que, aos poucos, o mercado editorial cedesse espaço para obras de temática ou autoria representativas da comunidade LGBTQIA+ (sigla que vem sendo reformulada no intuito de abarcar mais identidades). Nos EUA, a partir da década de 1960, amparados por uma forte onda de contracultura, iniciou-se uma série de reivindicações emancipatórias de movimentos formados por pessoas que não se identificavam com as tradições culturais relacionadas às suas sexualidades ou gênero. A rebelião ocorrida em 28 de junho de 1969 contra a repressão policial em um bar gay chamado Stonewall Inn, em Nova York, é um desses marcos


de resistência identitária. A partir das lembranças dessa importante data, que completou 50 anos em 2019 (sendo comemorada com festividades nos Estados Unidos), instituiu-se o dia mundial do Orgulho Gay. Dessa forma, ao mesmo tempo em que se reivindicavam direitos, as formas simbólicas de organização do mundo LGBTQIA+ começaram a ser criadas. Entre elas, a literatura. Ainda assim, ao longo de muito tempo, no Brasil, tudo aquilo que não se encaixava na heteronormatividade das suas ciências era representado através de óticas depreciativas. É o caso da literatura naturalista brasileira, que trouxe à luz personagens lésbicas e gays como portadores de uma espécie de desvio biológico. Em O Cortiço (1890), Aluísio Azevedo cria aquela que vai ser considerada a primeira cena erótica entre personagens do mesmo sexo na literatura. Na obra, a personagem Léonie, uma prostituta famosa, assedia e estupra a jovem Pombinha. Na mesma época, em O Bom Crioulo (1895), o escritor Adolfo Caminha cria Amaro, conhecido como o primeiro protagonista gay da literatura brasileira. No entanto, esse mesmo personagem será associado à imagem de ladrão, assassino e pedófilo. Nas décadas de 1960 e 1970 o Brasil conhece vozes de resistência na literatura, que se autorrepresentaram, abrindo, assim, caminhos para a inserção de temáticas homoafe-

tivas. Entre esses nomes estão Ana Cristina César, autora de A Teus Pés (1982), e Caio Fernando Abreu, autor de O Ovo Apunhalado (1975), que viveu momentos de tensão, exílio e prisão durante o regime militar. Na época de abertura política na década de 1980, a literatura nacional viu a figura de João Gilberto Noll surgir com força. Em romances como A Fúria do Corpo (1981), Noll mostra que não encontra problemas quando o assunto é criar relações homoeróticas. Hoje, o mercado editorial e os grupos de premiações literárias, atentos às pautas identitárias, têm se mostrado mais acolhedores com a literatura criada por escritores e escritoras como Carol Bensimon, Natália Polesso, vencedora do Jabuti na categoria Contos com Amora (2016), Victor Heringer, autor de O Amor dos Homens Avulsos (2016), Tobias Carvalho, vencedor do prémio SESC com o livro As Coisas (2016), Atena Beauvoir, autora de Contos Transantropológicos (2017) e Angélica Freitas, vencedora do prêmio APCA com Um útero é do tamanho de um punho (2012). A relativa valorização de obras de temática LGBTQIA+ no Brasil passou por uma longa jornada de embates discursivos. Em um meio padronizado em termos de identidade e gênero, cabe a todos nós, envolvidos direta ou indiretamente com literatura, valorizarmos a diversidade literária para que essas pequenas conquistas se multipliquem cada vez mais.

Ecos da leitura

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Philos: os melhores documentários on demand O que a biografia de Frida Kahlo e o legado da escola de Bauhaus têm em comum? Ambos fazem parte da coleção de mais de 600 documentários do Philos (www.philos.tv), plataforma de documentários premiados e lançamentos sobre literatura, arte, música, história, ativismo, saúde, personalidades, sociedade, sustentabilidade e mídia. Para curiosos e ávidos por histórias, o Philos oferece uma curadoria que privilegia diversidade e qualidade, assim como a nossa. Livros e documentários nos permitem conhecer épocas que não vivemos e viajar por lugares onde nunca estivemos, nos conectando com grandes personagens e acontecimentos que inspiram. Por isso, assinamos em conjunto com o Philos a capa para o passaporte que você recebeu na caixinha deste mês. Ficou interessado? Os primeiros 30 dias são grátis com o código TAGLIVROS. A assinatura pode ser feita pelo site www.philos.tv: o streaming libera acesso irrestrito à coleção de mais de 600 docs. Assista em qualquer lugar: site, app, Chromecast e TV*. Para os amantes de livros, são vários os títulos disponíveis cujas temáticas conversam com a literatura. Confira a lista dos favoritos da TAG:

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Ferrante Fever Autora da aclamada tetralogia napolitana, tornando-se um fenômeno intitulado Ferrante Fever, a italiana conseguiu se manter anônima. Esse documentário explora a produção literária de Elena Ferrante, ao mesmo tempo em que busca desvendar a sua verdadeira identidade. Shakespeare: o legado Essa dica é para os que leram o mimo enviado pela TAG em julho, Sonho de uma noite de verão: um documentário que explora a trajetória do dramaturgo mais influente da história, que revolucionou o teatro e mudou para sempre a história da literatura.

Harry Potter: uma história mágica Narrado pela própria escritora, J.K. Rowling, esse documentário leva o espectador ao universo de Hogwarts: livros de magia, pergaminhos iluminados, frascos de sangue de dragão e o segredo do Elixir da Vida. Imperdível para os fãs da série. Perspectivas: o mistério de Agatha Christie com David Suchet Narrado por Suchet, esse documentário conduz o espectador a uma viagem pela Grã-Bretanha para revisitar a trajetória de Agatha Chris­ tie, a mais bem-sucedida escritora da literatura popular mundial em número total de livros vendidos.

Poesia em Movimento

Livro Vivo

Na série original e exclusiva do Philos em 6 episódios, convidados especiais são entrevista­ dos pela compositora Adriana Cal­ canhotto e falam sobre poesia sob diferentes perspectivas. Com participação de Arnaldo Antunes, Antonio Cícero e Alice Sant’Anna, curadora da TAG em novembro de 2018.

Essa série original e exclusiva do Phi­los faz uma viagem pela história de diversos livros e conta com as participações de autores como Heloísa Buarque de Holanda, Beatriz Resende, Ricardo Abramovay, Lilia Schwarcz e Mirian Goldenberg.

J.R.R. Tolkien: criador de mundos Esse documentário explora a capacidade criativa de Tolkien, considerado o maior autor fantástico de todos os tempos, o que resultou na criação prolífica de universos de bruxos e elfos.

*Assinatura através do www.philos.tv oferece 7 dias grátis e custa R$9,90 nos 12 primeiros meses. Após esse o período, R$14,90 por mês. Vendas também através das operadoras: Net e Vivo.

Ecos da leitura

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Com a palavra, as anfitriãs Um dos momentos mais celebrados pelos associados da TAG são os encontros. Iniciados de maneira orgânica pelos próprios associados em 2016, hoje eles ocorrem em quase todos os estados brasileiros, não apenas levando a discussão literária para cada canto do país, como também criando uma extensa rede de amigos e proporcionando grandes histórias – até casais já se formaram! Convidamos três anfitriãs para contar um pouquinho mais sobre essa experiência:

“O que começou com uma pequena reunião de pessoas apaixonadas por livros se transformou em uma grande experiência literária. Nos nossos encontros, conversamos sobre os livros que amamos, livros que odiamos, indicamos e recebemos dicas de leitura, fazemos compras coletivas pra não precisar pagar o frete (risos); nos divertimos com jogos literários (muitos deles enviados carinhosamente pela TAG) e, além de tudo isso, fizemos novos e grandes amigos, com os quais compartilhamos a paixão pelos livros e a honra de ter a TAG como catalisadora desse movimento que nos uniu e que tem feito nosso mundo melhor.” Vanúbia de Jesus Silva – Anfitriã do encontro de Salvador, BA “O primeiro encontro aconteceu em agosto de 2016, literalmente com meia dúzia de "gatas pingadas", éramos apenas 6 mulheres participantes. Às vésperas de comemorarmos 3 anos de reuniões, sem nunca termos tido nenhuma interrupção nos encontros, somos entre 30 e 40 pessoas todos os meses. Já fizemos vários cursos juntos, fomos em turma para a Flip, combinamos outras agendas culturais como shows e exposições de arte ou nos vemos só para tomar café, vinho e dar risada mesmo. Acho que, para a maioria, os encontros são a oportunidade de ampliar a leitura em profundidade e análise crítica, mas principalmente de perceber que ler não é necessariamente uma atividade solitária. Para nós sempre foi, antes de tudo, fazer novos e ótimos amigos apaixonados por literatura.” Renata Sanches – Anfitriã do encontro de Brasília, DF

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Espaço do associado


A experiência de fazer parte de um clube de livros vai muito além de receber a caixinha. Tem a ver com descoberta, com motivação e incentivo, com compartilhar, somar e aprender. Poder encontrar as pessoas que também passam por essa experiência é incrível, é um presente lindo. Desde o início quis saber quem eram as demais pessoas que faziam parte do clube aqui na minha cidade. Com o incentivo da TAG mantemos os encontros mensais sempre que possível. A troca que temos é fantástica. Karin Marquetti – Anfitriã do encontro de Passo Fundo, RS

Também quer participar dos encontros? Confira as datas da sua região e perguntas para aprofundar o debate da obra no link: http://bit.ly/encontrostagcuradoria Caso ainda não tenha encontros na sua cidade, seja você mesmo o anfitrião! É só baixar o aplicativo da TAG procurando por “TAG Livros” na App Store ou na Play Store. Abra o aplicativo e selecione o segundo ícone no rodapé da página.

UNBOXING Mimo:

Livro:

Pensando no espírito aventureiro das protagonistas do livro de agosto, elaboramos esse kit viagem, composto de um identificador de mala e um porta-passaporte (que se adapta perfeitamente a outros documentos, como carteira de trabalho). A estampa de aviõezinhos alude à ideia de liberdade, presente em Caubóis.

O projeto gráfico do mês foi elaborado pela equipe de design da TAG em parceria com a designer Patricia Heuser, que mostra um cotidiano recortado e colado em sua produção artística. Para o miolo do livro (que é verde!), foram utilizadas fotografias de Rodrigo Baleia, tiradas nas cidades do Rio Grande do Sul, por onde Cora e Júlia passaram ao longo da narrativa.

Espaço do associado

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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em Literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.

Viver, viajar, narrar !

r Spoile Estamos habituados a organizar o tempo em passado, presente e futuro, mas sabemos que é só num desses planos que se vive: o presente, em seu fluxo incessante. Romances precisam construir, palavra por palavra, a sensação da passagem do tempo, fazendo conviver, no agora do texto, épocas variadas. O desafio é fazer esse quebra-cabeça soar natural, o complexo parecer simples. É exatamente o caso de Todos nós adorávamos caubóis. Olhando para o primeiro capítulo com o tempo em mente, entendemos como Carol Bensimon resolveu essa equação. Antes, vale lembrar que é Cora quem, além de viver a história

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Leia depois de ler

(sentir, pensar, lembrar, querer), nos conta a história. É do ponto de vista dela, portanto, que são selecionados e organizados os fatos. Cora conduz, além do carro, a narrativa. Quando o texto começa, Cora e Julia estão na estrada, já deixaram Porto Alegre. É o início da viagem: um presente que deixa em aberto um futuro (o que vai acontecer?) e um passado (por que está acontecendo?). Logo no segundo parágrafo, há um recuo que cobre três anos, período em que o carro de Cora permaneceu na garagem – e ela, em Paris. Outro parágrafo, e retornamos para aquela mesma garagem, quatro dias antes


do começo da viagem. Mais do que o carro, Cora revê fragmentos do passado: a rua da adolescência, os sonhos e hábitos esquecidos, a depressão e o isolamento da mãe. O capítulo segue com um avanço para o dia de início da viagem: Cora busca Julia no hotel, num reencontro com mais arestas e reticências do que abraços efusivos e empolgação, logo interrompido pelo gaúcho de bombachas – espécie de espectro que surge para assombrar as viajantes. E então elas partem, numa retomada do parágrafo de abertura, agora narrado com mais detalhes, pensamentos, conversas e trilha sonora. Um novo recuo nos leva à infância de Cora. Na lembrança, que é também prenúncio dos dramas futuros, as viagens em família, quando era uma satisfeita filha única de um casamento ainda em vigor. A parada para comer, no passado, nos devolve ao presente, com Julia e Cora num bar de beira de estrada. Em seguida, um recuo para o passado em comum, quando aquela viagem era uma vontade sem compromisso, alimentada pela euforia da relação. Não por acaso, é a cena que fecha o capítulo. Nesse sutil ir e vir temporal, que se mantém por todo o livro, estrutura-

-se uma história memorável: a de duas pessoas que fazem a viagem que tanto sonharam, mas que, ao fazê-la, precisam enfrentar as frustrações do que não houve, os traumas do que já foi, as angústias do que é e, principalmente, o desconhecido do que será.

É das próprias questões e motivações de Cora e Julia, portanto, que a história encontra sua forma e se constitui organicamente como narrativa. Assim, dando ordem ao caos dos afetos, da memória e da identidade, as estradas de Todos nós adorávamos caubóis não nos levam apenas a lugares remotos do Rio Grande do Sul, mas ao que há de mais vivo, profundo e universal na experiência humana. E é exatamente assim que funciona um clássico.

Diego Grando é poeta e professor de literatura na PUCRS.

Leia depois de ler

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A curadora de setembro

Rupi Kaur

“A autora desse livro é uma das principais vozes que ecoa a experiência das mulheres imigrantes.” Considerada um fenômeno no meio literário, não é exagero dizer que Rupi Kaur mudou o modo como uma geração inteira lê e consome poesia. Aos 26 anos, ela já figurou na lista dos jovens mais poderosos do mundo da Forbes e foi traduzida para mais de 30 idiomas. A poeta indiana (naturalizada canadense) é autora de Outros jeitos de usar a boca (2014) e O que o Sol faz com as flores, que vendeu um milhão de cópias nos primeiros três meses de publicação no ano de 2017. Os livros ganharam fãs no Instagram ao tratar de temas como amor, depressão, perda e relacionamentos abusivos. Além de escrever, Rupi também ilustra os desenhos delicados que acompanham cada poema. O livro escolhido por Rupi reúne nove contos de personagens que se encontram no “meio do caminho” de um fio condutor identitário: em parte, norte-americanos ou ingleses; em parte, indianos. A obra ganhou o Pulitzer em 2000, foi escolhida pela New Yorker como a melhor estreia do ano e foi selecionada para a lista dos dez livros favoritos de Oprah Winfrey. A autora, também de origem indiana, costuma tratar de temas contemporâneos sob o viés da experiência da imigração. Neste livro, cada personagem projeta a sua própria história a partir de nuances e detalhes psicológicos, fazendo com que os contos sejam universais e únicos ao mesmo tempo.

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A próxima indicação


As coleções exclusivas mais amadas deste ano! Adicione à sua caixinha de setembro as coleções Clássicos da Literatura TAG Inéditos ou Curadoria sem frete adicional até 08/09/19* * à venda na loja virtual a partir de setembro


“Viajar é fatal para o preconceito, a intolerância e a pobreza de espírito.” – Mark Twain


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