"O garoto do riquixá" TAG Curadoria - Fevereiro/2024

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FEV 2024 O garoto do riquixá



Ao leitor

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lguns livros são inesquecíveis porque nos mostram outra realidade; outros, porque explicam de modo claro e preciso a nossa. Este O garoto do riquixá é dos dois tipos. Publicado pela primeira vez em 1937, tendo como cenário a Pequim nos anos 1920–30, numa China pré-Revolução Comunista, o livro dá notícia de um cenário que não nos é familiar: uma China que se modernizava, muito fundamentada no trabalho para gerar dinheiro e no dinheiro que determinava o quanto a vida de alguém poderia ser digna. Mas se esse cenário não é tão usual, a rede de relações pautada pelo dinheiro é, e muito. Ao retratar uma sociedade capitalista, ainda que na especificidade chinesa, o que Lao She fala é de um modelo de sociedade que se constrói como uma máquina de moer gente, e no caminho destrói sonhos, premia os espertos e pune os ingênuos. Prestar atenção ao que nos conta Lao She num cenário que já vai completar 100 anos nos ajuda muito a entender nossa relação com o trabalho, com o modo como planejamos o futuro, como elegemos nossas prioridades e, mais que tudo, como construímos nossa sociedade. Se o tempo é implacável e nos atropela a todos, somos sempre seres humanos, e conhecer como agimos é o que nos fará andar para a frente.


FEV 2024

Experiência do mês Mimo

Para guardar suas chaves, suas joias, suas moedas e tudo mais de miudeza que vier, sempre lembrando a você que ler é gostoso demais.

Projeto gráfico

Para embalar um livro tão delicado, nos aprofundamos em gravuras de artistas chineses que já estão em domínio público e que mostram paisagens do campo, remetendo à origem do protagonista — mesmo imerso no burburinho da cidade, com sua velocidade, suas luzes e sua efervescência, ele nunca deixa de lembrar de sua vida no campo, mais calma, onde tudo parecia mais idílico.

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Para quem sabe que o livro sempre rende boas conversas

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Publisher Rafaela Pechansky Edição e textos Ana Lima Cecilio Colaboradoras Laura Viola e Sophia Maia Designer Bruno Miguell Mesquita Capa TAG Revisores Antônio Augusto e Liziane Kugland Impressão Ipsis


sumário

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Por que ler este livro Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais

O autor Um retrato caprichado da cabeça por trás da história

Entrevista com o curador Um pouco mais sobre a escolha do curador

Cenário De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler

Universo do livro Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

Da mesma estante Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês

Leia. Conheça. Descubra. Xinran: a história contada por olhos femininos

Vem por aí Para você ir preparando seu coração

Madame TAG responde Dor de amor? Dúvidas na vida? Nosso consultório lítero-sentimental responde com dicas de livros


4 Por que ler este livro

“Uma das obras mais importantes e populares da literatura chinesa do século XX, O garoto do riquixá é um olhar inabalavelmente honesto e sombriamente cômico sobre uma vida à margem da sociedade e uma acusação contundente da filosofia do individualismo.” Library Journal


Por que ler este livro 5

Por que ler este livro Romances históricos são sempre excelentes oportunidades de nos aprofundarmos num período da história, embarcarmos na curiosidade, conhecermos mais sobre o mundo. Mas também são essenciais para voltarmos os olhos para a nossa realidade e entendermos que tudo que é humano também nos diz respeito. Neste romance de formação emocionante, podemos encontrar a melancolia da nossa época e entender quais valores nos trouxeram até aqui.


6 O autor

Lao She: retratista sensível da sua época Testemunha das principais transformações sociais e políticas na China do século XX, deixou uma obra que capta a riqueza e as dores de uma nação gigantesca. Se os artistas são a antena da raça, como dizia o poeta norte-americano Ezra Pound, o escritor chinês Lao She (1899-1966) sentiu na pele a dor e a delícia de representar toda uma época conturbada política e socialmente. Nascido na capital da China, Pequim, órfão de pai desde muito novo, não teve uma educação exemplar durante a infância, em função da falta de recursos da família. Mas mais tarde conseguiu frequentar a Universidade de Pequim, onde se formou em 1918. A paixão pelos estudos o levou a ser professor em escolas tanto em Pequim como no interior, até ter uma primeira experiência no Ocidente, em Londres, entre 1924 e 1929, onde trabalhou como professor de mandarim, mas que teve frutos importantes em sua carreira de escritor: foi lá que se apaixonou pelos livros de Charles Dickens, e a estética realista, preocupada em retratar as doenças sociais de seu tempo, seria fundamental na construção do seu estilo e da sua temática. De volta à China em 1930, já mais maduro com a experiência no estrangeiro e esse olhar que as viagens nos dão, tornou-se rapidamente um dos intelectuais mais ativos, e sua voz foi decisiva nos momentos críticos por que a China passaria nos anos que antecederam e precederam a Revolução Comunista. Crítico à invasão japonesa à China em 1937, atento à crise econômica desencadeada depois disso, sempre foi voz presente no país.


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Apesar de sempre muito ligado ao contexto chinês, depois da Segunda Guerra, foi passar um período nos Estados Unidos, até retornar em definitivo ao seu país natal, já em 1949, antes, portanto, da Revolução Comunista de Mao Tsé-Tung. A partir daí, passaria a enfrentar dificuldades devido às políticas culturais da Revolução Comunista. Se seus livros eram considerados retratos de uma China capitalista, com todas as mazelas que ela enfrentava, ele foi alvo de perseguições e humilhações públicas. Durante um bom tempo, foi considerado uma espécie de herói nacional; quando passou a mirar seus olhos críticos ao que estava acontecendo ao redor, o governo imediatamente começou a tratá-lo como inimigo, ele passou a ser perseguido, e isso teve um impacto devastador em sua saúde mental. Tragicamente, em 1966, Lao She foi encontrado morto no lago Taiping, em Pequim. Embora as circunstâncias exatas de sua morte permaneçam controversas (há quem diga que foi um suicídio relacionado às perseguições políticas que sofreu, há quem acredite que foi devido às torturas que lhe foram infligidas), o fato é que ele morreu no auge da Revolução Cultural, logo depois de, acusado juntamente com outros companheiros de ser inimigo do regime, ter sido torturado pela Guarda Vermelha. Lao She é lembrado como um dos grandes escritores chineses do século XX, cuja vida reflete os desafios enfrentados por intelectuais em um período de mudanças dramáticas na China.


Entrevista com o curador 9

O curador do mês Pedro Pacífico Nascimento: São Paulo, 2 de dezembro de 1992. Profissão: Advogado.

© Renato Parada

O que faz hoje: É um dos maiores influenciadores literários do país. Uma curiosidade: Virou leitor depois de adulto.

Duas ou três coisas sobre ele: 1 AS REDES

2 ASSUMIR-SE

Começou a buscar nas Os livros deram a redes sociais dicas de Pedro descobertas leitura porque achava incríveis, mas talvez que estava lendo pouco a mais valiosa tenha no fim da sua graduação sido sobre si mesmo. em Direito. Animou-se Assumir a sexualidade a criar sua própria rede foi algo que ele fez e hoje é o maior influen- publicamente, de um ciador de livros do país, jeito muito corajoso e com quase meio milhão infundindo a coragem de seguidores. para outras pessoas.

3 LIVRO A experiência de leitor, da descoberta da sexualidade, da importância dos livros na sua vida está belamente descrita em Trinta segundos sem pensar no medo, seu primeiro livro.


© Renato Parada


Entrevista com o curador 11

Pedro Pacífico: gente que lê influencia gente que lê O grande poder de se tornar leitor traz a grande responsabilidade de fazer novos leitores “Um advogado que lê”. A definição é muito simplista, mas é um bom começo para chegar perto do maior influenciador literário do país. Pedro Pacífico não tem formação em literatura, não teve pais que o incentivaram a ler desde pequeno, não teve um grande mestre, não foi criado em meio a livros. E talvez dessas ausências tenha nascido seu grande mérito como influencer: o de tratar tudo do universo dos livros como novidade, como se visse pela primeira vez, sem vergonha de explicar o que leitores mais experientes tomariam como óbvio. Esse frescor foi atraindo seu quase meio milhão de seguidores, que vão descobrindo, junto com ele, nos seus perfis, resenhas e desafios, o imenso prazer do mundo da leitura. Para Pedro, a leitura é um caminho de descobertas sem fim. E se há muito de imponderável na escolha do que ler, como ele nos conta nesta entrevista exclusiva, ele também tem alguns nortes que o ajudam a ser o leitor que é: procurar variedade, intercalar tipos de leitura, estar sempre atento a outras culturas, olhar para todos os tipos de editoras. Nesse caminho que começou a trilhar enquanto trabalhava num grande escritório de advocacia, Pedro fez muitas descobertas. Passou a entender a importância de ter a leitura na rotina, aprendeu a falar em público e se expor mais, coisa de que tinha pavor, organizou suas redes sociais e fez ainda mais descobertas sobre si mesmo. Tantas, aliás, que o resultado desse processo virou o livro Trinta segundos sem pensar no medo, o primeiro escrito por ele, uma espécie de livro de memórias sobre sua relação com a leitura, seu jeito todo próprio de encarar o cânone e a imensa força que os livros deram a ele, por exemplo, para reconhecer e assumir a sua sexualidade. Livros nos revelam a nós mesmos, parece querer dizer Pedro — ou Bookster, como ele é mais conhecido. E esse conhecimento é sempre bem-vindo.


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O que você espera quando abre um Você é responsável não apenas por livro? O que o livro precisa ter para incentivar milhares de leitores a se ser considerado um bom livro? apegarem ao hábito, como também Me perguntam muito como eu escolho por ajudar nas escolhas da leitura. o que vou ler, se eu tenho regras, se O que você leva em conta ao indieu tenho uma lista pré-definida, mas, car um livro? ao contrário do que muita gente ima- Acho que a mesma ideia de quando gina, a minha escolha é até um pouco escolho uma leitura: trazer divercaótica, eu diria. Tirando projetos de sidade nas minhas indicações, ser que participo, os livros que leio seguem muito sincero sobre a minha expemuito um critério de vontade, um livro riência com o livro, mas ao mesmo que naquele momento despertou meu tempo mostrar tanto o que eu gostei interesse. É claro que tenho listas do como o que eu não gostei, tendo consque eu quero ler, mas vira e mexe essas ciência de que o fato de eu não ter listas acabam sendo furadas por lan- gostado muito não quer dizer que o çamentos ou por outros livros que eu outro não vai gostar. Tento mostrar descubro, seja por conta da temática, muito isso, que a opinião de cada um seja por ter algo diferente, e me dão varia muito, conforme o momento vontade de ler. Pra mim, um livro que que a gente lê, conforme a sua persome dê vontade de ler tem que ter uma nalidade, o seu gosto. Então eu tento história que me dê interesse ou que pro- despertar na pessoa a capacidade de meta algo de inovador. Eu busco muito ela conseguir entender a partir da leituras com diversidade de autores e minha resenha se ela vai gostar ou autoras, de nacionalidade, dos temas não, não pelo meu gosto, mas pelas tratados, autores nacionais, autores características do livro. Por isso me clássicos. E vou sempre alternando, preocupo muito em contar mais sobre intercalando essas leituras para não o autor, sobre o contexto daquela ficar repetitivo. Para ser um livro bom, obra, porque às vezes a gente parte o livro tem que ser uma leitura gostosa, do pressuposto de que todo mundo não ficar arrastado. Mas demorar para tem que saber de tudo, dos autores fazer uma leitura não significa que eu clássicos, mas não. Na verdade, quase não esteja gostando: é diferente um ninguém sabe. A gente vive numa livro demorar, tomar mais tempo, de ser bolha literária minúscula e que um livro arrastado. Eu gosto de livros não representa nada da sociedade. que me prendam, que me façam curtir Então a premissa do meu trabalho, o momento de leitura, mas também de quando eu falo nas redes, é falar do um livro que me desperte sentimentos mais básico possível para englobar o e emoções, que me faça questionar as maior número de pessoas e, por conminhas verdades, que me faça enfren- sequência, atingir o maior número de tar meus preconceitos. possíveis leitores.


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“Compartilhar vivências acaba sendo uma forma de diminuir a solidão em que muitas pessoas vivem com seus medos e suas dores. Compartilhar a leitura e a experiência de leitura é um jeito de amenizar solidões.”

O que fez de O garoto do riquixá uma leitura tão marcante a ponto de você indicar para a TAG? Primeiro que, quando vocês me convidaram pra escolher aqui, pra ser curador e pensar em um livro, eu tentei escolher alguma coisa que fugisse do comum, que trouxesse uma realidade muito diferente da nossa e que ao mesmo tempo fosse uma leitura prazerosa. E olhando algumas opções, eu acho que O garoto do riquixá caiu como uma luva, preenchendo esses requisitos. Primeiro, porque ele é um clássico da literatura chinesa do século passado, e a literatura chinesa ainda é pouco conhecida por nós. Em segundo lugar, porque ele traz uma realidade muito diferente da nossa, da minha ao menos, e acho que de muitos dos leitores que estão recebendo o livro. O protagonista é um jovem que vem de uma zona rural, vai para a cidade grande, Pequim, capital da China, na década de 1930, para tentar ganhar a vida, fugindo da miséria. E ele passa a trabalhar como um puxador de riquixá. Eu achei muito interessante a forma como ele vai sendo impactado pela cidade, pelas condições adversas, e, ao mesmo tempo, como o autor vai construindo, por meio de críticas sociais, essa decadência do protagonista. Ele não romantiza a situação, e mostra com muita verdade o trabalho duro, o lado das difíceis condições, mas também fala sobre a ambição, às vezes excessiva, sobre como o dinheiro acaba levando o protagonista a tomar decisões não racionais. Apesar de circunscrito a um período de tempo, ele é um livro ainda muito atual.


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Você gosta de romances históricos, como este que você indicou e os da Isabel Allende, por exemplo. O que te atrai neles? Eu gosto muito de romance histórico, muito. Todo ano, faço um desafio literário, o #desafiobookster, em que leio com meus seguidores um livro por mês, e todo ano eu escolho um tema, a partir do qual faço as indicações. O tema geral de 2023 foi justamente romances históricos: Primeira Guerra, Segunda Guerra, a Grande Depressão, pandemias, escravidão, colonização etc. E eu gosto muito porque é uma forma de aprender e absorver acontecimentos históricos a partir da ficção, com seus personagens e seu enredo atraente. Para mim, é conhecer o mundo com mais sabor, do melhor jeito. Depois de anos como leitor, você acaba de lançar um livro. Como é estar do outro lado e esperar que as leituras venham? O que você gostaria que as pessoas lessem no seu livro? Realmente foi uma experiência muito diferente, de certa forma até assustadora. Como leitor, eu leio autores e autoras que admiro muito, muito incríveis e com muito talento. E quando eu pensava em escrever, acabava me boicotando e tendo a certeza de que eu nunca chegaria aos pés desses autores. Mas aos poucos fui entendendo que eu não ia escrever algo para me comparar com outras pessoas, mas para encontrar a minha própria voz e compartilhar as histórias que eu queria compartilhar. Então isso me deu coragem, e no fim foi o que fiz: em Trinta segundos sem pensar no medo, que acaba sendo um livro de memórias,

a partir dos livros que li, a ideia foi, antes de qualquer pretensão literária, compartilhar como os livros transformaram a minha vida, me libertaram e, acima de tudo, era me colocar com muita verdade, pensando como foi a partir dos meus privilégios, de que eu tenho total consciência, que tento ajudar outras pessoas que não têm. Compartilhar vivências acaba sendo uma forma de diminuir a solidão em que muitas pessoas vivem com seus medos e suas dores. Compartilhar a leitura e a experiência de leitura é um jeito de amenizar solidões. A sensação de se enxergar em um livro, de ver o que você passa escrito por outra pessoa é reconfortante e encorajador. Essa foi a minha pretensão. O que eu quero que as pessoas leiam no meu livro é isto: que, a partir da leitura, você se transforme. Foi o que acabou também acontecendo comigo. Enquanto eu conhecia outras histórias, eu estava me conhecendo muito, muito mais do que imaginava. Isso é transformador. Como você acha que é um leitor ideal? Essa é uma pergunta que me fazem com frequência e eu gosto de responder. Eu acho que a primeira ideia que vem na cabeça de alguém quando a gente fala de um bom leitor, um leitor ideal é aquele que lê muito, aquele que devora livros. Mas, pra mim, um bom leitor é mais do que isso. Lógico que ler, ter a constância da leitura é algo importantíssimo e um requisito mínimo para ser um bom leitor, mas acho que não é suficiente. Na minha opinião, um bom leitor é aquele que começa antes mesmo de abrir um livro, que escolhe seus livros de forma consciente, pensando na diversidade, pensando


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na possibilidade de conhecer autores diferentes, de nacionalidades, origens diferentes, de realidades diferentes. Prestar atenção no que a gente escolhe é muito importante e acaba exercendo uma função relevante para o mercado editorial, mas também como forma de permitir que ideias diferentes das nossas consigam alcançar mais leitores. E o bom leitor, então, seria aquele que não só começa antes, mas vai além do termo de um livro. Acho que o bom leitor, quando fecha a última página, é aquele que leva o seu privilégio de ser um leitor adiante. Indicando livros, falando sobre livros com outras pessoas, mostrando que cada um pode ser um pequeno influenciador de leitura das pessoas à sua volta, sobretudo quando a gente considera um país que lê tão pouco, como o Brasil. Então é isso, um leitor é aquele que lê, mas que escolhe com consciência, que leva essa sua paixão pelos livros para o próximo.

MINHA ESTANTE O livro que estou lendo atualmente: Mata doce, da Luciany Aparecida. O livro que mudou minha vida: Impossível dizer! São muitos, em momentos muito diferentes. Mas para citar um: O filho de mil homens, do Valter Hugo Mãe. O livro que eu gostaria de ter escrito: Cem anos de solidão, do Gabriel García Márquez, ou As intermitências da morte, do Saramago. O último livro que me fez rir: Fim, da Fernanda Torres. O último livro que me fez chorar: Paula, da Isabel Allende. O livro que dou de presente: Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves.


16 Cenário

China, década de 1930: Num país em conflito, quem sofre são os homens

O garoto do riquixá é um romance de época. Suas personagens são vítimas do seu tempo, que sofrem profundamente os efeitos da economia e da sociedade, e, ainda que seja uma história universal sobre o sujeito submetido à crueldade da cidade grande e da exploração do trabalho, tem raízes profundas no contexto do país e da época em que se deu. Por isso, compreender um pouco a época amplifica ainda mais a dimensão trágica do livro e a importância da sua representação para a China, país que, quando se passa o romance, na década de 1930, enfrentava uma complexa teia de desafios políticos e sociais. Marcada por instabilidade, a nação lidava com conflitos entre nacionalistas e comunistas, agravados pela invasão japonesa.


Cenário 17

O PARTIDO NACIONALISTA O Kuomintang (KMT), também conhecido como Partido Nacionalista Chinês, foi extremamente significativo na história da China. Fundado em 1912 por Sun Yat-sen, teve um papel crucial na derrubada da dinastia Qing e no estabelecimento da República da China. O KMT buscou inicialmente modernizar a China, promovendo os “Três Princípios do Povo” de Sun Yat-sen: nacionalismo, democracia e bem-estar social. Chiang Kai-shek sucedeu Sun Yat-sen e liderou o partido a partir dos anos 1920. Mas a situação chinesa, agravada pelas exigências de um capitalismo primitivo que queria tirar tudo que fosse possível de uma população frágil, recém-industrializada e pouco especializada, levou a uma grande insatisfação popular e ao crescimento do Partido Comunista Chinês, liderado por Mao TséTung. Durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, KMT e comunistas uniram forças temporariamente contra a ocupação japonesa, mas as hostilidades recrudesceram após o conflito. Após a Guerra Civil Chinesa (1927–1949), o KMT se retirou para Taiwan, onde estabeleceu um governo. Durante décadas, governou Taiwan como um Estado separado da China continental. Nas últimas décadas, o KMT enfrentou desafios políticos e a diminuição de sua influência.


18 Cenário

A SEGUNDA GUERRA SINO-JAPONESA (1937–1945) Talvez o conflito mais significativo na Ásia durante a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Sino-Japonesa nasceu, como costumam ser as guerras, das disputas territoriais e das ambições expansionistas do Japão na China. O Japão invadiu em larga escala, rapidamente capturando várias cidades chinesas. Xangai foi um campo de batalha crucial, e o brutal Massacre de Nanquim, em 1937, chocou o mundo com relatos de atrocidades japonesas. Apesar das perdas iniciais, os chineses mantiveram uma resistência tenaz. O Exército Nacional Revolucionário, liderado pelo Kuomintang, e as forças comunistas, lideradas por Mao Tsé-Tung, lutaram contra os invasores japoneses. A Segunda Guerra Sino-Japonesa coincidiu com a Segunda Guerra Mundial, e a China recebeu apoio de várias potências aliadas, incluindo os Estados Unidos. A ajuda incluiu suprimentos e treinamento militar. Enquanto a Europa estava envolvida em conflito, a China e o Japão travavam uma guerra prolongada no teatro asiático. A Segunda Guerra Sino-Japonesa se integrou ao conflito global quando o Japão se juntou às potências do Eixo. A guerra na China continuou até a rendição do Japão, em 1945. O Japão retirou-se da China, e a Segunda Guerra Sino-Japonesa terminou oficialmente com a assinatura da rendição japonesa, em setembro de 1945.


Cenário 19

A CHINA E A GRANDE DEPRESSÃO A Grande Depressão global afetou a economia chinesa, agravando as condições sociais. A pobreza e a desigualdade eram endêmicas, contribuindo para o descontentamento popular. O campo, dominado por senhores feudais, enfrentava problemas agrários e tensões crescentes. É exatamente esse movimento que leva nosso herói à cidade, adaptando-se a uma realidade crua e a ter que fazer esforços gigantescos para ganhar a vida, convivendo com uma população que passava pelo mesmo processo. Nesse contexto, surgiram movimentos intelectuais e reformistas — movimentos dos quais Lao She fará parte. O pensamento político variava desde o nacionalismo até ideias socialistas. A cultura foi influenciada por essas mudanças, refletindo-se em obras literárias e artísticas que capturavam as angústias e aspirações da sociedade.


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Universo do livro Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

A história da formação de um jovem como no filme Oliver Twist

Retrato de uma cidade grande e cruel como em A hora da estrela

Um conceito central que é desmentido: Meritocracia

Mesmo lugar e época retratados em O último imperador


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Se fosse um romance alemão poderia ser Os sofrimentos do jovem Werther

Se fosse um filme chinês contemporâneo poderia ser Dias melhores

Se fosse passado no Brasil lembraria Capitães da areia

Um filme inglês que desperta a mesma indignação é Eu, Daniel Blake


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Da mesma estante Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês, para quem quiser continuar no assunto OUTROS QUE FALAM SOBRE O HOMEM NA CIDADE GRANDE

DAVID COPPERFIELD, Charles Dickens Autor fundamental para Lao She, foi modelo para ele na criação da saga de um jovem que se aventura nos riscos da cidade grande.

ILUSÕES PERDIDAS, Honoré de Balzac Um jovem ingênuo e sonhador enfrenta as máscaras, os jogos de poder, a fogueira das vaidades da sociedade.

PEITOS E OVOS, Mieko Kawakami Três mulheres vindas do interior tentam não se afogar no mar do capitalismo doentio, entre falta de dinheiro e sonhos consumistas.


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OUTROS QUE FALAM SOBRE O DURO MUNDO DO TRABALHO

OS FUNCIONÁRIOS, Olga Ravn Para além dos limites da ficção científica, uma reflexão sobre controle e exploração, sistemas de trabalho e relações sociais.

OS SUPRIDORES, José Falero Dois amigos tentam sobreviver a longas jornadas de trabalho e salário curto com humor e invenção. Um romance brasileiro imperdível.

OLHOS D’ÁGUA, Conceição Evaristo Quase um holofote voltado para mulheres comuns, em suas vidas de trabalho e dureza, mas com uma poesia que não estamos acostumados a enxergar.


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Andrew Lih

LEIA. CONHEÇA. DESCUBRA: Xinran

Se o clássico de Lao She faz um retrato impressionante conturbada história da China contemporânea, salta aos olhos que a história que ele conta seja masculina, com as mulheres ocupando um espaço periférico. Para equilibrar essa história, conheça um pouco de uma das mais importantes autoras chinesas.


Leia. Conheça. Descubra. 25

A história contada por olhos femininos Xinran nasceu em 1958, e só este fato é significativo de como ela acompanharia a história da China no século 20: foi também em 1958 que Mao Tse-Tung, então presidente do país, anunciou a política conhecida por Grande Salto para a Frente, um projeto de reforma agrária e industrialização urbana que acabaria por gerar uma imensa crise econômica. Sua infância toda se passou durante a Revolução Cultural Chinesa, e ela cresceu em meio às perseguições a opositores e a qualquer pessoa aleatoriamente considerada uma ameaça pelo governo. Seu pai foi preso, a família considerada “suspeita”, o que causou um isolamento de vizinhos, e a mãe, tendo que sustentar os filhos, lutou bravamente pelos repolhos cozidos que foram a base da alimentação da família – até que a própria mãe foi presa. Foi no ano da morte de Mao Tse-Tung, 1976, que Xinran começou a estudar jornalismo. Sempre atenta à “pequena história” – ou seja, a forma que a política e os grandes movimentos da sociedade afetavam a vida das pessoas – Xinran logo se tornou conhecida por um programa de rádio em que contava histórias de ouvintes, ouvindo conselhos e fazendo reclamações. O programa, com o poético nome de Palavras da Brisa Noturna, é praticamente um embrião de sua literatura humana e atenta à vida das pessoas comuns.

AS BOAS MULHERES DA CHINA Quando Xinran transformou a experiência do programa de rádio em livro, nasceu As boas mulheres da China. O livro reúne quinze relatos sobre que formam um panorama belíssimo e comovente sobre a posição da mulher chinesa, principalmente as que viveram a Revolução Cultural. São quinze realidades muito diferentes, mas que juntas dão conta de um amplo contexto histórico e social.


26 Leia. Conheça. Descubra.

A história contada por meio desses textos é admirável tanto no pessoal, por ser sobre perda de autonomia e reconstrução de identidade, como no social: elas são reflexos da passagem de uma país regido em grande parte pela influência da filosofia de Confúcio, para quem a mulher era um ser frágil, dependente de um homem provedor, fosse o pai ou o marido, para um contexto pós-Revolução Cultural, que, apesar de pregar a igualdade de gÊnero e a independência feminina, não foi efetiva em desvencilhar a situação da mulher de velhos preconceitos. A obra de Xinran, portanto, é toda voltada para testemunhar essa contradição, mas, antes de pregar isso de modo grandiloquente e sociológico, volta-se para a intimidade das relações, da casa, dos pequenos acontecimentos. Casamentos arranjados, inúmeras violências sexuais perpetradas e silenciadas pela Guarda Vermelha e outros tipos de brutalidade são contadas com humanidade e sede de justiça.

IR, CONTAR, VOLTAR O impressionante trabalho de trazer à tona a vida dessas mulheres não teria sido possível se Xinran tivesse permanecido durante toda a vida na China. Essas histórias de violência e solidariedade, de beleza nascida dentro da brutalidade, foram tecidas, criadas, incentivadas em Londres, onde Xinran passou grande parte da vida, para fugir da censura do governo Chinês. Mas, ainda que à distância, essas histórias – e a vida dessas mulheres – estão intrinsecamente ligadas ao imaginário da autora, que faz uma das literaturas contemporâneas mais interessantes. Como Svetlana Aleksiévitch, a autora bielorrussa que foi a primeira jornalista a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura exclusivamente pelo trabalho jornalístico, Xinran é uma espécie de antena da sua época, trazendo vozes anônimas que estão na base da sociedade para o centro das atenções. Isso é uma forma poderosa de fazer história.


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Vem por aí Dicas sobre o livro de março da TAG Curadoria: Um autor consagrado, com um texto brilhante, contando a história intensa e apaixonada de um casal que, ao se aproximar, faz um mergulho profundo na compreensão deles mesmos.


28 Consultório literosentimental

Madame TAG responde Querida Madame TAG, Depois de várias e várias tentativas frustradas de me encontrar no amor, acabei desiludida. Não posso ver post romântico, foto de casal nem história de amor na frente que acho tudo ridículo. Tem livro para devolver as esperanças no amor verdadeiro? Querida Desiludida, Não sou eu quem vai te convencer de que o amor é simples. Muito menos de que basta acreditar que ele acaba aparecendo. Amor — e a vida a dois — é uma coisa complicada mesmo. Mas os livros estão aí para provar que cada amor vem de um jeito, e que a gente precisa estar aberta e sem desconfiança, com vontade de viver uma história nova. É o que acontece em Poeta chileno, do Alejandro Zambra, ou em Notas sobre a impermanência, da carioca Paula Gicovate, ou ainda em Esperando Bojangles, de Olivier Bourdeaut, uma história de amor lindíssima contada pelo filho do casal protagonista. E muito mais: o realismo mágico de García Márquez em O amor nos tempos do cólera, a grande mestra em histórias de amor Jane Austen com seu Orgulho e preconceito, a vencedora do Prêmio Nobel de 2022 Annie Ernaux com seu Paixão simples. Você pode me perguntar, querida Desiludida, se eu quero espezinhar sua desilusão te indicando essas histórias de amor. Não, não. O que eu quero é apenas te mostrar, minha querida, que o amor se dá por caminhos tortuosos, e até uma história que não dá lá muito certo também é uma história de amor. Então, coragem, minha querida. Deixe que os livros te guiem, e procure a sua. O que eu posso te garantir é que, no mínimo, você se apaixonará pelos livros. Quer um conselho de Madame TAG? Escreva para madametag@taglivros.com.br.



“Sem romantizar as péssimas condições de vida, Lao She mostra com muita verdade a ambição, às vezes excessiva, pelo dinheiro – o que leva o protagonista a tomar decisões irracionais. Como se vê, apesar de ser um romance histórico, o livro fala muito sobre nossa época.” – PEDRO PACÍFICO


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