Fev2020 "Estação Atocha" - Curadoria

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prefácio Estação Atocha


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Ao Leitor “Que tenho a fazer no bosque, se estou pensando em algo fora do bosque?” No ensaio intitulado Andar a pé (1860), o filósofo Henry David Thoreau (1817–1862) faz a defesa de algo que pode ser explicado como uma caminhada atenta. Quantas vezes não nos surpreendemos ao caminhar um quilômetro em certa direção apenas para descobrir que nada registramos da paisagem? O protagonista de Estação Atocha, livro que você recebe neste fevereiro, é um caminhante, mas não como Thoreau. O que torna a narrativa um sucesso é justamente a desatenção do jovem poeta Adam Gordon aos arredores. Mais interessado no que acontece em sua cabeça, Adam é uma personagem daquelas que amamos odiar: incapaz de viver seu privilégio — uma bolsa de estudos na Espanha na qual dinheiro não é uma preocupação –, vive imerso em narcisismo. Obcecado por como os outros lhe veem, passeia por Madri sem conseguir ser parte da cidade e de seus acontecimentos, mais preocupado em como lhe enxerga esta ou aquela mulher. Atento ou desatento, você verá que o caminhar de Adam também é personagem da história. No prefácio, você conhecerá a curadora do mês — Marília Garcia é uma das vozes mais originais da nova poesia brasileira e conversou com a TAG a respeito de prosa, poesia e Estação Atocha. Você saberá um pouco mais sobre o livro que veio em sua caixinha e, passos adiante, lerá a respeito do Projeto Despertar, nossa iniciativa para levar o hábito da leitura a crianças em situação de vulnerabilidade social. Ao abrir o livro do mês, esperamos que você registre, na caminhada de Adam, mais até do que ele consegue enxergar. Sebo nas canelas e boa leitura!


fevereiro/2020

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Revisão Antônio Augusto da Cunha Gustavo Lembert da Cunha Liziane Kugland

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Como manusear a nova revista

Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.

Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!


Sumário prefácio

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Entrevista com Marília Garcia

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A estante da autora

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O livro indicado: Estação Atocha

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Unboxing

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Para despertar o amor pelos livros


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Entrevista: Marília Garcia

“Sempre achei difícil definir o poema” A curadora de fevereiro é uma entusiasta da palavra como poucas. Editora, tradutora e escritora, Marília Garcia circula com graça pela palavra e pelo pensar da palavra. Primeira mulher brasileira a vencer o Prêmio Oceanos de Literatura com Câmera lenta (2018), ela falou um pouco de si, de seu trabalho e da indicação de Estação Atocha para a TAG. Leia trechos da entrevista:

TAG — Queria começar pedindo que você contasse como foi a sua descoberta da leitura. Marília Garcia — Lembro especialmente de dois momentos. Primeiro foi na escola, quando uma professora me emprestou um livro do Ítalo Calvino, O barão nas árvores. Foi bastante impactante essa leitura, pois tive a consciência de estar entrando num mundo totalmente desconhecido. Sensação parecida (na mesma época) ao descobrir a coleção de clássicos da Abril que meus pais tinham em casa. O outro momento foi na faculdade de Letras, quando a leitura passou a vir acompanhada pelas leituras críticas e comentários sobre os textos lidos.

Fotografias: Renato Parada Texto: Fernanda Grabauska

Você é tradutora e também explora tanto prosa quanto poesia como autora. Como você faz para transitar por tantos idiomas e tantas sensibilidades diferentes? Que paralelo você faz de sua experiência com a trajetória do protagonista de Estação Atocha e a de seu autor, escritor que também transita entre poesia e romance? Acho que essa circulação entre gêneros e idiomas vem de uma curiosidade: sempre adorei ler – narrativa,

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poesia, não ficção – mas também adoro artes visuais, cinema e música, e acho que muitas vezes um poema fala sobre alguma coisa que pode ser complementada por um romance e por um filme e as sensibilidades se tocam, se afastam, as questões podem ser parecidas e dialogar. Também me interesso bastante por escritores e artistas que buscam pensar os suportes e se deixam contaminar por outros gêneros ou outros ofícios, como no caso do Ben Lerner (e o protagonista Adam citado por você), com a escrita de romance e de poemas, mas também no Brasil tantos escritores que escreveram, por exemplo, poesia e ensaio/narrativa (Haroldo de Campos), poesia e crônica (Drummond), ou a Ana Cristina Cesar, que abriu seus poemas para gêneros como a carta, o diário, a narrativa, o desenho – ou artistas que trabalham com a palavra de várias formas. No caso da tradução, ela nos ajuda a ver caminhos e possibilidades de escrita quando tentamos trazer outras vozes para o português e dizer coisas que não foram pensadas inicialmente na nossa língua. 8

Por sinal, o que o livro significa para a Marília leitora? Quais foram seus pensamentos na hora de indicar Estação Atocha para a TAG Curadoria? Fiquei com vontade de indicar o Estação Atocha para a TAG pois achei que seria interessante, já que escrevo poesia, indicar um romance escrito por um poeta e que trabalha com algumas questões ligadas à poesia. Gosto muito dos momentos em que ele descreve sua relação com a língua: ele é um americano morando na Espanha, mas que não fala direito a língua e está tentando viver e se relacionar em espanhol. Então, em vários momentos (que são hilários), ele conta o que foi que entendeu do que a outra pessoa disse, mas ele não entende muito bem, então começa a enumerar as possibilidades do que o outro pode ter dito – e até mesmo com as frases mais simples, como “eu trabalho numa galeria”, Adam não sabe dizer se o seu conhecido disse que é dono da galeria ou funcionário da galeria ou se apenas passa as tardes na galeria. Acho que, ao descrever essas cenas (que são várias no livro), ele também está falando sobre poesia e sobre as possibilidades de sentido da linguagem.


Apresentando Árvore de Diana, de Alejandra Pizarnik, você destaca o medo da poeta de “não saber nomear o que não existe” e aponta sua “necessidade de achar palavras para fazê-lo”. Achei essa frase interessante e aplicável não só ao processo criativo, como também a conversar a respeito de poesia. Isso se aplica a você como pessoa que precisa falar de escrita? Como? Gosto da pergunta e acho que podemos expandir essa ideia para a própria vida (não só para a nossa conversa sobre escrita): a gente sempre precisa nomear as coisas, muitas vezes coisas que ainda não existem como experiência para nós mesmos. Assim, é a linguagem que ajuda a torná-las reais. É claro que existem muitos nomes e palavras na língua para descrever as experiências, nossa herança cultural trata disso, mas muitas vezes vivemos alguma coisa e temos uma sensação de que aquilo não se encaixa exatamente nas palavras disponíveis. Apenas ao nomear a experiência ela vai poder existir. Acho que isso pode ser visto em exemplos simples, como uma cena que vemos na rua, um desejo súbito que não sabemos o que é, ou numa conversa íntima – até a experiência de ter um filho. Acho que muitas vezes é a linguagem que inventa nossa vida, a linguagem de que precisamos no dia-a-dia e também a literatura e a arte que nos ajudam a entender ou dar algum sentido à vida. Lembrei de um livro que saiu por aqui há pouco tempo, chamado Lost in translation, que reúne palavras intraduzíveis de várias línguas: por exemplo, uma palavra em japonês para descrever a luz do sol filtrada pelas folhas das árvores. Experiência que passa a existir quando a gente nomeia, mas que até então deveria ser uma experiência vivida apenas em japonês.

Falando em buscar nomes, você pode falar um pouco da palavra “desastre” para nós? Da sua relação com ela e da relação dela com o Câmera lenta, seu último livro? Desastre vem de “des-astro”, ou seja, seria o “mau” “astro”, como se o desastre estivesse escrito nos astros,

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alguma coisa fora de controle que provoca uma catástrofe. Uma das questões que coloco no Câmera lenta é como lidar com o imponderável da vida, com as coisas que não controlamos, com os acasos – e, por outro lado, como prestar atenção nas coisas simples, do dia-a-dia (e não apenas nos desastres)? O livro está cheio de sinais e significantes que apontam para a possibilidade de algo que não controlamos, mas sugerem que, se prestarmos atenção, talvez seja possível nomear a experiência.

Você se debruça muito sobre o fazer da poesia como tema. Lembro também que Adam, lendo um poema de John Ashbery, diz que ele “descreve como é ler um poema de John Ashbery”. A Ana Martins Marques, em uma entrevista ao Suplemento Pernambuco, também já disse que a sua “é uma poesia que pensa e que se pensa, e que atravessa várias paisagens”. Como é isso de escrever um poema para dissecar um poema? 10

Muitas vezes gosto de poemas que fazem isso: que pensam o próprio poema, que pensam o que é escrever, o que é criar. E também que colocam em jogo as definições, se refazendo. E sempre achei muito difícil definir o que é o poema ou como se faz o poema. Acho que foi um pouco por isso tudo que comecei a escrever tentando incorporar essas reflexões, se não para dissecar o poema, ao menos para pensar um pouco no lugar dele, o que ele faz, por que eu escrevo etc. No livro do Ben Lerner ele também coloca em jogo a ideia do que é um poema: tem uma passagem de que gosto muito, quando Adam diz que gostava da poesia quando lia uns versos citados no meio de textos em prosa, com aquelas barras indicando as quebras de versos, que ele gostava da ideia do que “poderia ser um poema” (muitas vezes o próprio poema se mostrava muito fechado para ele). Gosto dessa ideia de ler algo mais sugerido do que afirmado. Borges dizia que quando algo está sugerido, existe uma espécie de hospitalidade no nosso pensamento para acolher aquilo.


A estante da autora O primeiro livro que li: O equilibrista, de Fernanda Lopes de Almeida (livro infantil) (este questionário me lembrou de uma crônica linda da Clarice Lispector chamada “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”, dizendo que para cada momento há um primeiro livro... De todo modo, neste momento, esses aqui seriam os livros do meu questionário).

O livro que estou lendo: É a vida, de Mohamed El Khatib O livro que eu gostaria de ter escrito: Cascas, de Georges Didi-Huberman O último livro que me fez chorar: A ridícula ideia de nunca mais te ver, de Rosa Montero O último livro que me fez rir: JLG, de Franklin Alves Dassie O livro que eu não consegui terminar: Muitos! Bons ou maus, às vezes não é o momento certo para ler, às vezes seguimos um mau livro até o fim por curiosidade ou inércia. O livro que eu dou de presente: As pequenas virtudes, de Natalia Ginzburg O livro que mudou a minha vida: Noite do oráculo, de Paul Auster

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O livro indicado

Estação Atocha de Ben Lerner 13

O norte-americano Ben Lerner, 41 anos, é um sucesso de crítica ainda pouco conhecido no Brasil. Premiado por textos de gêneros diversos (ele é poeta, romancista, ensaísta e crítico de arte), Lerner se fez notar por uma obra que é crônica mordaz, crítica e consciente da realidade americana contemporânea. Sua lista de êxitos profissionais e acadêmicos inclui passagens com bolsas pelas fundações Fulbright, Guggenheim e MacArthur, além de contribuições para periódicos de relevância internacional. Lerner cresceu no seio de uma família judaica e progressista em Topeka, capital do conservador estado do Kansas. Uma combinação de realidades que, segundo ele, o conduziu até o universo da poesia. Suas três primeiras obras, voltadas para o gênero, foram exaltadas pela crítica e receberam diversos prêmios pelo mundo, apesar da tiragem diminuta. Desde 2011, porém, o escritor voltou-se para a produção de romances e ampliou seu número de leitores. Dos três publicados até hoje, Estação Atocha é um dos mais aclamados.


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Fotografia: John D. & Catherine T. MacArthur Foundation

Adam Gordon, seu narrador-protagonista, é um jovem poeta americano em passagem por Madri com uma bolsa de estudos para concluir um projeto de pesquisa. Seu projeto envolve finalizar um longo poema sobre a Guerra Civil Espanhola, mas, como esse trabalho será realizado (e, mais do que tudo, por que está sendo realizado) ele ainda não sabe – e pouco parece se importar. A verdade é que Gordon, um narrador tão sincero em seus desvios morais quanto cínico em suas ações, não está exatamente comprometido com o trabalho. Ele evita encontros acadêmicos para se refugiar em festas promovidas por belos e jovens intelectuais e para se relacionar com mulheres espanholas. No tempo restante, acompanha a ocupação americana no Iraque pela internet e lê. Enquanto tenta decodificar sua condição de artista, suas relações amorosas e seu lugar como estrangeiro na capital espanhola, ele se automedica com antidepressivos, ansiolíticos e generosas doses de haxixe, cafeína, álcool e nicotina. Em resumo, o que se nota de Adam é que ele faz a opção consciente de perder-se em questionamentos egocêntricos sobre como ele e seu trabalho são vistos pelas pessoas a seu redor. E que, assim, a sua história em Madri é a de um indivíduo desconectado da cidade que habita – jamais uma em que narrador e cidade se relacionam. A ausência de um enredo no sentido mais tradicional é pretexto para as principais ações do romance, passadas no mundo interior caótico do protagonista. Cada episódio da vida de Adam Gordon em Madri é acompanhado de reflexões e ponderações, em uma prosa que por vezes se aproxima do ensaio, sobre os mais diversos temas, embora suas obsessões mais óbvias sejam três: a linguagem, a superficialidade das relações sociais e as potencialidades da arte – “o que quer que isso signifique”.


Em Estação Atocha, Adam encarna a crítica do autor aos jovens norte-americanos, em especial àqueles pertencentes aos âmbitos acadêmico e artístico. Além disso, ao criar um narrador que observa seus arredores sem jamais reivindicar pertencimento a eles, Lerner faz, pelos pensamentos de Adam, a defesa de uma vida mais poética. Mas deixa seu leitor, ao fechar o livro, perguntando-se – como o faz seu protagonista – qual é exatamente a utilidade disso.

A estação como personagem Além de poemas do próprio Lerner atribuídos aos personagens, Estação Atocha é recheado de referências de artes visuais, música, literatura, fazendo com que se torne difícil avançar a leitura sem cair na internet para explorar a lista de citações, que vão desde a poesia de

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John Ashbery aos detalhes do quadro A deposição da cruz, de Rogier van der Weyden, exposto no Museu do Prado em Madri, local visitado diariamente pelo protagonista.

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O título, além de ser uma homenagem ao poema homônimo de Ashbery, ídolo literário do narrador Adam Gordon, reafirma o protagonismo do espaço onde as ações ocorrem: a verdadeira estação foi palco do ataque terrorista mais destrutivo da Europa até hoje – cuja autoria jamais foi esclarecida –, ocorrido em 11 de março de 2004, matando 193 pessoas e deixando 2050 feridas. A narrativa do romance se passa no mesmo período e é pano de fundo da história, assim como são as eleições presidenciais ocorridas apenas três dias após a tragédia.


e outr

poemas

Federico García Lorca

Bodas e de sangu

Dom Quixote

Guerra e paz Liev Tolstói

Guerra e paz

Bodas de sangue

Adam Gordon, assim como os associados da TAG, tem uma relação especial com os livros. O mimo de fevereiro é uma reprodução daquela que seria a estante do protagonista em Estação Atocha, com obras de autores que lhe marcaram a vida. Os minilivros são magnéticos — nossa dica é que você os use para trazer a literatura à decoração da sua casa.

rato Aut ret lho num espe convexo

Dom Quixote

mimo

Miguel de Cervantes

John Ashbery

Aut retrato num espelho convexo

Unboxing

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projeto gráfico “o sujeito dirigiu-se calmamente para a sala 56, parou na frente do Jardim das Delícias Terrenas, contemplou-o por um longo momento e então desabou por completo.” (p. 10)

ben lerner

ISBN 978-85-67861-38-8

9 788567

861388

ESTAÇÃO ATOCHA

poeta norte-americano que, graças a uma prestigiosa bolsa de estudos, muda-se para Madri com o objetivo de completar um projeto de pesquisa. Adam é um jovem brilhante, porém muito instável, narcisista e frequentemente tomado por um sentimento de alienação de si mesmo. Viciado em cafeína, usuário eventual de haxixe, comicamente inseguro com as mulheres e com forte tendência a se automedicar, Adam se vê mergulhado em uma busca constante por autenticidade, girando em torno dos limites da linguagem.

ben lerner

Adam gordom é um jovem

A relação entre a arte e a vida é um tema importante no livro de Ben Lerner, e um recurso temático presente também em outras obras do autor. Logo no começo do romance, Adam caminha pelo Museu do Prado e reflete, não sem certa ironia, a respeito da experiência artística de um transeunte que, aparentemente muito tocado pelos quadros, começa a chorar de emoção. Uma das obras citadas é O Jardim das delícias terrenas (1504), de Hieronymus Bosch, que pode ser visto na capa e nas guardas da edição da TAG para Estação Atocha.


Projeto social

Para despertar o amor pelos livros

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Que cada mochila carregue um livro. Que a pergunta “o que você está lendo?” seja tão comum quanto “e o trabalho, como vai?”. A missão da TAG, você sabe, é transformar o Brasil em um país de leitores. Mas como se forma um leitor? Você já leu nesta revista os percursos criativos de diversos autores: a escrita se manifesta das mais diferentes formas, mas uma variável está presente em todas as trajetórias – o contato com a literatura desde a infância. É para aflorar a leitura em crianças que de outro modo não teriam livros ao alcance das mãos que a TAG lançou, em 2017, o projeto Despertar. Em sua terceira edição, as instituições contempladas foram indicadas pelos assinantes da TAG. Após mais de 600 indicações e mil voluntários inscritos, cinco locais foram escolhidos (veja a lista no final desta reportagem). Em novembro, o projeto chegou às cidades de Curitiba (PR), São Paulo (SP), Aparecida de Goiânia (GO), Salvador (BA) e Ananideua (PA). “O Despertar não cabe só às crianças. Dele se beneficiam todas as pessoas que de alguma forma são tocadas por ele: voluntários, pais, funcionários da escola/instituição, professores. Forma-se uma rede de afetos literários”, diz uma das embaixadoras do projeto, Ana Maria Lange Gomes, de Curitiba. De fato, embora o cerne do Despertar seja uma ação de leitura guiada para crianças em situação de vulnerabilidade social, uma rede de contato humano é estabelecida pela iniciativa. As crianças recebem caixinhas da TAG com livro e materiais de apoio – durante todo o mês, os voluntários, capitaneados por um embaixador em cada cidade, têm encontros semanais com os pequenos para ler e brincar. Ao final da leitura, há um evento para discussão da obra, com música, teatro e


brincadeiras para divertir a todos e criar uma memória positiva da experiência. As instituições também recebem uma estante cheia de livros para continuar a nutrir o amor pela leitura que a ação pretende inspirar. Gustavo Lembert, sócio-diretor da TAG, ressalta que um dos principais propósitos da ação é o de “acender a pequena centelha de curiosidade que origina leitores vorazes e cidadãos mais conscientes”. Foi por isso que a obra escolhida para as crianças foi Boca da noite – livro de Cristino Wapichana que conta as aventuras dos irmãos Dum e Kupai, que desbravam sua aldeia para descobrir o que acontece com o sol depois que ele se põe. As ilustrações vibrantes, que lembram a arte indígena, não só desenvolvem a leitura como apresentam a cultura Wapichana aos leitores. A Leiturinha, maior clube de livros infantis do Brasil, colaborou com a curadoria de atividades para os voluntários e com a doação dos livros. A associada Rosineide Fernandes Barra contou à TAG sobre sua experiência comandando a iniciativa em Ananindeua, região metropolitana de Belém do Pará. “Algumas das crianças, com dificuldade de ingressar na escola, não sabiam ler e escrever; a elas demos atenção especial. Nesses casos, as ilustrações coloridas do livro e a contação foram essenciais para o envolvimento no imaginário das aventuras dos índios Dum e Kupai. Incentivamos a preservação ambiental frisando que a nossa parte, mesmo que mínima, é de extrema importância para o mundo”, contou. Além da formação de leitores, o Despertar deixou um legado ainda maior no coração da Rosineide: “Diante das inúmeras dificuldades que essas crianças enfrentam diariamente, mostrar que os seus sonhos podem sim ser possíveis e imaginados por meio dos diversos mundos que o livro possibilita visitar nos marcou de uma maneira única”. Se você acha que o projeto acabou depois da última atividade, saiba que está longe disso. A rede vai além dos embaixadores e dos voluntários: somos mais de 50 mil associados em todo o Brasil! Imagine tudo o que podemos fazer: se cada um de nós doar um livro, ou dedicar um pouco de tempo a ler para uma criança, quem sabe quantos leitores poderemos despertar?

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Como funciona?

1 Escolhemos as instituições que receberão o projeto com a ajuda dos associados da TAG

2 Conectamos voluntários com as instituições escolhidas

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Preparamos e enviamos kits com um livro e outros materiais

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Realizamos leituras acompanhadas da obra e um evento final para discussão

5 Montamos uma estante com livros para receber doações e continuar despertando a leitura

Fotografias: Caio Romano, Marlon Amorim, Yoná Virges, Bárbara Wendel e Regiane Thahira


As instituições contempladas CURITIBA, Paraná Clube de Leitura Olhares — Padrinho literário da Escola Municipal Heráclito Fontoura Sobral Pinto Embaixadora Ana Maria Lange Gomes "Reanimar-se, encontrar um novo sopro de entusiasmo na vida, recuperar o sentido de uma escolha profissional e de vida; tomar consciência da importância da literatura no processo social, na formação individual, das potencialidades dessa arte, da oportunidade dos afetos... sobretudo no encontro final, fui lembrada de todas essas experiências." SALVADOR, Bahia Grupo de apoio à criança com câncer Embaixadora Sônia Amorim "A experiência nos revigorou no sentido humano, pois possibilitou a convivência com um grupo de crianças e adolescentes que, apesar de limitações físicas e cognitivas, realizaram as tarefas com interesse e alegria. " ANANINDEUA, Pará Jogo do Amanhã Embaixadora Rosineide Fernandes Barra "Representar o Projeto Despertar em Belém/PA foi, sem dúvida, uma das experiências mais desafiadoras e ao mesmo tempo cheia de descobertas e amor que pude viver até aqui." APARECIDA DE GOIÂNIA, Goiás Terra Livre Embaixadora Bárbara Wendel “Todo o trabalho e as dificuldades encontradas ao longo do caminho são recompensados quando vemos os rostinhos daquelas crianças sorrindo por estarem vivenciando algo novo. Isso, com absoluta certeza, faz tudo valer a pena. Assim como a literatura possui um papel extremamente importante em nossas vidas, acreditamos que conseguimos, mesmo que só um pouquinho, despertar essa sementinha nas crianças da ONG Terra Livre.” SÃO PAULO, São Paulo Pró-Saber Embaixadora Jéssica Camerieri “Antes de começar o projeto, minha maior motivação era marcar a vida das crianças e fazer alguma diferença – no fim, que surpresa a minha quando percebi o quanto elas me marcaram e fizeram a diferença na minha vida”.

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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.

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posfácio Estação Atocha


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Ao Leitor Se fôssemos simplistas, seria possível dizer que no mundo há dois tipos de pessoas: as que terminaram Estação Atocha odiando Adam e as que terminaram o livro amando odiar Adam. Que bom que não somos simplistas, leitor – e, neste posfácio, você pode prolongar sua experiência até chegar a um juízo de valor sólido a respeito do contraditório protagonista do livro de fevereiro. Entrevistamos Ben Lerner para discutir os limites da autoprojeção na literatura. Ele mesmo um antigo bolsista em universidade estrangeira, Lerner nos contou sobre como sua experiência como escritor e como pessoa moldou o caráter do protagonista de sua obra, primeiro romance publicado por ele depois de uma carreira na poesia. E como a literatura se relaciona com outras artes? Embora sempre absorto em seu delírio narcísico, é verdade que Adam explora muito do mundo das artes em sua estada na Espanha. Das obras que comovem um passante no Museu do Prado à arquitetura da Alhambra, em Granada, Estação Atocha é um livro que dialoga com as artes visuais, com a música e com a própria literatura a partir da reflexão sobre o fazer criativo. Neste posfácio, você vai conhecer um pouco da relação entre artes visuais e literatura através dos séculos. Também no intuito de ajudá-lo a compreender nosso protagonista, o crítico André Araújo faz uma apreciação detalhada de Adam, colocando-o lado a lado com outras personagens controversas que encontramos em romances vida afora. Boa leitura!


“Non omnis moriar — uma aflição prematura. Mas será que vivo por inteiro e será que isso basta? Nunca bastou e muito menos agora. Escolho excluindo porque não há outro jeito, mas o que rejeito é mais numeroso, mais denso, mais insistente do que nunca. À custa de incontáveis perdas — um poeminha, um [suspiro” Wisława Szymborska, “Um grande número” in: Poemas. Ed. Companhia das Letras, 2011

Ilustração do mês: Igor Frederico é ilustrador, quadrinista e filósofo. Nascido em Planaltina (DF), desenha desde criança. Começou com papel e tinta e atualmente se dedica à arte digital. Seu trabalho passeia entre a iconografia da cultura pop — cinema, tevê, literatura, música — e criações para seus projetos pessoais, como as tirinhas Memórias de um Outro. Para a ilustração da TAG, ele se inspirou na seguinte passagem de Estação Atocha: "A fase inicial do meu projeto de pesquisa envolvia acordar nos dias de semana num apartamento de sótão que mal tinha móveis – o primeiro que vira ao chegar em Madri – ou deixar que o barulho proveniente da Plaza de Santa Ana me acordasse, sem conseguir incorporá-lo completamente aos meus sonhos, depois colocar a cafeteira enferrujada no fogo e enrolar um baseado enquanto esperava o café. Assim que o café ficava pronto, abria a claraboia, que era grande o suficiente para eu conseguir me enfiar nela depois de ter subido na cama, e ia beber o café e fumar no telhado que dava para a praça onde os turistas, armados com guias de viagem, sentavam às mesinhas metálicas e o tocador de acordeão praticava seu ofício. Ao longe, o palácio e os longos rastros das nuvens."


Sumário posfácio

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Entrevista com Ben Lerner

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Isto não é um cachimbo

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A experiência da experiência

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Viagem literária pelo Brasil

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Martha Batalha: a curadora de março


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Entrevista: Ben Lerner

“Há um idealismo sob a ironia de Adam” Poeta, romancista e escritor que pensa sobre o fazer poético. Ben Lerner transferiu um tanto de si para o Adam Gordon que você conheceu em Estação Atocha. Nesta entrevista à TAG, Lerner fala um pouco da relação dele com a personagem e sobre como se considera, antes de tudo, poeta, além de revelar aos curiosos qual foi a sua "experiência artística profunda" maior.

TAG — Conte-nos um pouco sobre sua formação como escritor – como você alcançou sucesso tanto como poeta quanto como romancista?

Traduzido por: Fernanda Grabauska Fotografias: John D. & Catherine T. MacArthur Foundation

Ben Lerner — A poesia sempre foi o centro para mim e todos os meus três romances são, de certa forma, veículos para se pensar a poesia – e para dramatizar encontros com poemas. É certo que minha formação (ou malformação!) é mais de poeta do que de prosista no sentido de que meus heróis e professores eram primariamente poetas – aprendi a escrever sob as pressões da poesia, onde cada partícula de linguagem tem significado. Uma das coisas que amo em romances é como eles podem absorver outros gêneros, como podem assimilar poemas, imagens, canções, o que seja. Romances podem ser trabalhos elaborados de curadoria, por esse ângulo. Romances se tornaram laboratórios para mim, nos quais podia testar ideias sobre poemas e outros tipos de arte.

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Muito se fala sobre como a vida de Adam é similar à sua. Quanto de você há nele, afinal? Tenho muito em comum com essa personagem de Adam Gordon. O jovem Adam Gordon é como uma versão das minhas ansiedades sobre arte e autenticidade. E eu vivi na Espanha na mesma época em que ele viveu na Espanha. Nós vivemos, inclusive, no mesmo apartamento. Mas eu estava lá escrevendo meu segundo livro de poemas e vivendo com a mulher que viria a ser minha esposa. Certamente as experiências de desorientação de Adam na Espanha são biográficas. Mas seus relacionamentos particulares e suas mentiras são todas inventadas.

A cidade de Madri é personagem muito presente na história. Por que escolhê-la como cenário e como foi seu procedimento de pesquisa sobre ela?

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Como vivi em Madri naquela época, já conhecia aquelas vizinhanças e alguma textura da experiência de Adam. Mas o livro também se interessa em capturar um tipo de deslocamento – como Adam lê a respeito das explosões em Atocha no website do New York Times antes de perceber o que está acontecendo ao redor dele, por exemplo. O livro pretende capturar um lugar de forma vívida, mas também quer capturar o deslocamento de forma vívida.

Lemos muito a respeito das leituras de Adam – García Lorca, Ashbery etc. Elas refletem seu gosto pessoal? Quais autores inspiram você e... algum favorito latino-americano? Com certeza Ashbery é um escritor central para mim e para Adam Gordon. Esse romance não existiria sem Ashbery. Muitos livros que amo estão presentes ou são citados indiretamente no romance, mas é claro que meus gostos e compromissos estão sempre mudando (e, espero, se aprofundando). Penso que, lentamente, entendi o quão importante Virginia Woolf é para


minha compreensão de romance. Alguns dos primeiros romances que amei são de Machado de Assis. Sebald certamente reviveu meu entendimento daquilo que o romance pode fazer. Acabo de ler um romance tremendo de Fernanda Melchor, para escolher um exemplo latino-americano apenas.

Como você construiu as personagens de Isabel e Teresa? Ao narrar no presente e em primeira pessoa, o leitor sabe a mesma coisa que o narrador, razão pela qual queríamos saber de você. Uma vez que Adam é tão autoconsciente – desesperado para manipular como os outros o percebem – nunca podemos enxergar as personagens completamente para além de seu jogo de projeções. Ele interpreta Isabel e Teresa de forma crucialmente errada: ele pensa que Isabel está profundamente apaixonada por ele, mas fica desarvorado quando ela não está; ele tem problemas em calibrar a natureza do interesse de Teresa nele e em sua escrita. Mas, depois, encontramos flashes muito

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“O jovem Adam Gordon é como uma versão das minhas ansiedades sobre arte e autenticidade.” diretos da experiência delas, mesmo que filtrados pelo espanhol precário de Adam: digo quando Teresa fala da morte do pai, ou no início do livro, quando Isabel fala do irmão dela. É esse jogo de imprecisão e vividez que eu procurava: a fumaça e os espelhos das mentiras de Adam e esses flashes de particularidade.

Sua mãe é uma importante psicóloga feminista e autora best-seller de livros sobre relacionamentos. Qual a influência dela sobre seus relacionamentos? 8

A influência dela é inestimável tanto por ser escritora quanto por ser uma das minhas leitoras mais importantes, mas também porque sua maneira de enxergar relacionamentos influencia meu pensamento do romance como forma – para entender como ele pode retratar padrões familiares, por exemplo. Isso fica mais claro em meu romance mais recente, The Topeka school.

A linguagem e a comunicação são assuntos muito explorados em Estação Atocha, mas pode-se dizer que o maior triunfo do livro é resumir o idioma e o sentimento de pertencimento como barreiras para a experiência do (jovem e rico) Adam na Espanha. O que você pensava a respeito dele em 2011 e o quanto isso mudou quase 10 anos depois? Adam Gordon pensa em si como uma fraude, e alguns leitores concordam. Mas acho que ele é tão cruamente honesto a respeito de sua própria fraudulência que chega a certo grau de autenticidade. Há um idealismo


sob a ironia dele. Meus romances desde Estação Atocha foram uma tentativa de mostrar uma evolução da ironia autoabsorta do primeiro livro para um sentido maior de possibilidade social. E esse projeto coexistiu com uma pulsão de emergência social cada vez maior, dada a guinada em direção à regressão fascista ocorrida nos últimos dez anos.

Seu livro mais recente, The Topeka school, foi elogiado pela crítica e considerado por muitos seu melhor trabalho até o momento. Quando você decidiu continuar escrevendo a respeito de Adam Gordon? The Topeka school é tanto o último tomo de uma trilogia quanto um prelúdio – acontece tanto antes de Estação Atocha (por retratar sua infância, seus pais) quanto depois (por ser escrito no presente por um Adam mais velho, agora pai). De certo modo, o novo romance é o inconsciente dos dois outros livros – mostrando algo do histórico familiar e das experiências que levaram Adam à poesia e à ansiedade sobre o relacionamento entre linguagem e autenticidade. Eu gostei da ideia de colocar Adam Gordon – que flutuava pela Espanha – em um contexto intergeracional maior. E também para indicar como ele pode ter evoluído da alienação a uma integração maior em certos assuntos.

Qual foi sua "profunda experiência artística" maior? Provavelmente encontrar John Ashbery pela primeira vez. Adam e eu compartilhamos isso como uma profunda e formativa experiência artística. Mas há outras.

O que você gostaria de dizer para os mais de 28 mil leitores no Brasil que receberão seu livro? Obrigado por ler meu livro estranho. Fazer arte é como mandar uma mensagem na garrafa. Você nunca tem certeza de que alguém vai recebê-la. É animador imaginá-la sendo encontrada por tantas pessoas no Brasil...

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Isto não é um cachimbo “Estaria ele passando por uma profunda experiência artística?”

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Texto: Laura Viola Hübner

É a pergunta que Adam se faz logo no começo do livro, quando encontra um homem que, ao postar-se diante das obras de arte no Museu do Prado, põe-se a chorar de modo não muito discreto. O pranto do desconhecido desperta no protagonista uma reflexão sobre o potencial catártico das artes no sentido amplo do conceito. Ao cultivar sua condição de impostor, Adam compara o fazer artístico do domínio visual com o verbal. A relação entre a literatura e as artes visuais não é interesse recente dos pensadores. Simônides de Ceos (556—468 a.C.) já traçava paralelos entre as duas áreas ao afirmar que “pintura é poesia muda. Poesia é pintura que fala”. Na Roma Antiga, Horácio (65—8 a.C.) também as compara em sua Ars poetica, defendendo uma superioridade da primeira sobre a segunda. Durante a Idade Média, o caráter religioso das artes visuais estreita ainda mais a relação com a literatura, dado o objetivo claro de retratar narrativas com fins didáticos para um público, em sua maioria, analfabeto. É no Renascimento que a discussão acerca do papel e dos limites dos fazeres artísticos se intensifica. Técnica, proporção e forma se tornam elementos centrais nas artes visuais em contraposição à narrativa medieval. Leonardo da Vinci chega a reformular a máxima de


Simônides de Ceos, afirmando que “A pintura é uma poesia muda e a poesia, uma pintura cega”, sendo a pintura, para o italiano, uma arte maior por reproduzir a realidade, ao passo que a poesia só a descreve. Essa querela filosófica sai de apenas reflexão sobre as artes para se materializar em objeto durante as expressões artísticas modernistas, borrando limites ao mesmo tempo em que evidencia contrastes. Na literatura, a poesia concreta é um exemplo desse movimento. A disposição das palavras é indispensável para a leitura da obra. O mesmo ocorre no sentido inverso, das artes plásticas para a literatura. A traição das imagens, icônico quadro de René Magritte, brinca com essa dialética. Afinal: isto é ou não é um cachimbo? Imagem e discurso entram em conflito, criando um paradoxo: temos como acessar o real ou apenas a sua representação? O quadro que tanto emociona o frequentador do museu observado por Adam é O Jardim das delícias terrenas (1504), do holandês Hieronymus Bosch (1450—1516). A obra, reproduzida em partes na capa da edição de Estação Atocha, propõe-se a contar a história do mundo desde sua criação a partir de três quadros. Apesar de a superioridade de uma arte em relação a outra ser uma discussão ultrapassada hoje em dia, o diálogo entre as linguagens ainda é tema de interesse, como bem mostra Estação Atocha. O significado do encontro do apático Adam com o emocionado sujeito na galeria, e o dos dois com a arte, é algo que cabe ao leitor interpretar. Se no começo da obra o protagonista adota uma postura cética sobre o potencial da arte, logo depois ele afirma que, sem a existência dela, tomaria uma cartela inteira de comprimidos. Ambivalência pouca é bobagem – muito embora devamos considerar que, se Magritte ensinou alguma coisa, é que muito se descobre por meio de paradoxos.

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A experiência da experiência

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Texto: André Araujo

Em 11 de março de 2004, três dias antes das eleições gerais espanholas, Madri foi alvo do mais violento ataque terrorista de sua história. O atentado teve como centro a Estação Atocha que dá título ao livro de Ben Lerner – de onde o narrador e protagonista Adam Gordon enxerga o cenário de destruição. Mas, assim que entende a situação, ele dá as costas e caminha contra as milhares de pessoas que se aproximam da estação. Volta para casa, liga o computador e acompanha os eventos pela internet. A cena descreve um dos principais temas do romance de Ben Lerner: a incapacidade de Adam de viver uma experiência autêntica. Ou melhor, sua resistência em participar da realidade em que se encontra. Adam não consegue deixar de ser um observador de segunda ordem, um homem desconectado de si e de seu entorno. Ele é um poeta dos Estados Unidos que está em Madri para compor um poema sobre o legado literário da Guerra Civil Espanhola. A questão é que Adam mal sabe falar espanhol, desconhece a história do país e da sua poesia e nem mesmo tem certeza de que quer ser um poeta. Não admira que Adam sinta-se uma fraude: a qualquer momento sua máscara pode cair. A percepção de si mesmo como farsante é um dos pontos centrais do romance. Não importa que digam que o espanhol dele é bom, que seus poemas são bons, que ele de fato está tendo experiências: o que Adam sente é uma desconexão profunda – ao ser testemunha ocular da história, fica inerte e busca notícias em inglês. Ao contrário daqueles ao seu redor, não consegue se deixar levar: é agudamente autoconsciente dos papéis que representa e quer desempenhá-los da melhor maneira. Entre amigos, ele é conhecido (para sua angústia) como El Poeta. Apesar de estar em Madri pelo talento literário, Adam não consegue se ver como poeta. Passa


Apesar de tratar de temas pesados e densos como esses, o romance de Ben Lerner não deixa de ser uma comédia sobre o teatro que é a existência, sobre os papéis que desempenhamos sem perceber. os dias vagando pela cidade, fumando maconha, manipulando alguns poemas de García Lorca e frequentando o Museu do Prado. Ambiciona escrever seu grande poema, mas o que vive de fato, do ponto de vista de seu monólogo interno, é não estar vivendo de fato, é ser apenas um observador. Adam se vê fora da realidade, pois não consegue reconhecer uma experiência sem a mediação de seu discurso interno, das expectativas que criou acerca do que é viver ou ser um poeta. A primeira cena do romance é exemplar nesse sentido: Adam está sentado diante de uma obra de arte quando um homem que também a observa começa a chorar. Adam tem certeza de que assiste a uma “profunda experiência artística”, reação que todo artista espera de seu público. Mas se sente incapaz de uma reação similar. O que Adam entende como a sua particularidade em relação à arte é a sua desconexão com o discurso de que ela pode transformar a vida de alguém. Como ele diz, “a sensação mais próxima de uma profunda experiência artística que eu tivera talvez tenha sido a vivência dessa desconexão, uma profunda experiência da ausência de profundidade”.

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Ilustração: Igor Frederico

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Parece uma afirmação contraditória para quem quer ser poeta. Mas o problema de Adam é que nada é autêntico o suficiente: ler poesia, pensar sobre arte, escrever sua própria voz parecem ser apenas tentativas de ser um poeta autêntico. O desejo de autenticidade absoluta é sua frustração, e seu dispositivo de análise é ser sincero acerca da percepção de inautenticidade. Por isso o tom confessional do romance, essa constante depreciação de si mesmo na fracassada busca de ser algo verdadeiro. Talvez a desconexão de Adam tenha razão de ser acentuada. Ele está em um país estrangeiro, cuja língua pouco entende. Seu descolamento e seu deslocamento não são apenas mentais, mas também físicos, geográficos. Por não entender o que se passa em sua volta, precisa inventar uma compreensão, preencher as lacunas com sua imaginação. Assim, os personagens que povoam a mente de Adam, seus amigos, seus colegas poetas e seus interesses amorosos são mais criações ficcionais narcísicas do que percepções objetivas. Vemos isso quando Isabel, logo no início do romance, está contando uma história triste. Adam, que não entende nada da história, age como sempre: com um sorriso e acenos de cabeça. Isso causa uma situação de desconforto que acaba em briga. Quando Isabel o


chama para um canto e repete a história, Adam presta atenção, mas não depreende exatamente o que ela diz: “Baseando-me no discurso dela, compus várias histórias plausíveis, todas de improviso, de modo que o meu não era tanto um não entender, mas um entender por acordes, através de uma pluralidade de mundos possíveis”. Adam precisa fazer literatura do discurso de Isabel para entendê-lo, precisa remontar a linguagem e preencher lacunas. Ele acaba “inventando” uma Isabel possível e é isso que ele não consegue admitir para si, embora seja o que todos fazemos, o tempo todo. O seu desconforto é o de se inventar, apesar de fazê-lo constantemente: ao não responder e-mails para parecer ocupado, ao fingir que entende os colegas e até mesmo fingir que é poeta. Mas qual a linha que separa fingimento e realidade? Talvez essa seja a guinada do livro – a descoberta de Adam de que a verdadeira experiência não é mais que uma forma de “experiência da experiência”. Convidado para participar de uma mesa redonda sobre novas vozes da poesia espanhola, Adam sente que será desmascarado. Ele confessa sua angústia para Teresa, que responde: “Adam, você é um poeta maravilhoso, um verdadeiro poeta. (...) Quando vai parar de fingir que está só fingindo ser poeta?” O medo de ser desmascarado se concretiza pela via oposta. Não é que ele finja ser poeta; ele finge fingir ser um. Tudo o que Adam achava sincero em sua inadequação se revela um escudo contra a realidade. Sua lógica é: se estou fingindo, não preciso ser responsável pelo que faço, por minha poesia, por minha vida. Como, finalmente, reconhece: “Eles queriam a contribuição de um jovem poeta americano que escrevia e fazia leituras públicas de poesia no exterior. E não era justamente isso que eu era, e não apenas o que fingia ser? Talvez só a minha desonestidade é que fosse desonesta”. Estação Atocha acaba sendo um romance sobre o processo de tornar-se romancista. A busca de Adam pela “profunda experiência artística” prova-se não mais que uma busca infrutífera pelo “eco de uma possibilidade poética”. Ao ser sincero quanto à inautenticidade, Adam descobre que o autêntico não é mais que um discurso, um modelo autoimposto. Que, no fundo, tudo não passa de invenção – e essa é a maior verdade da literatura.

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Viagem literária pelo Brasil As férias de verão podem estar se aproximando do fim, mas o ano traz uma série de oportunidades de viagem para quem ama literatura. A TAG separou para você algumas das feiras literárias que acontecem ao longo de 2020 em vários pontos do país. Veja nosso itinerário e programe-se!

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PORTO ALEGRE (RS)

ARAXÁ (MG) 9ª Fliaraxá

13ª FestiPoa Literária A festa da literatura em Porto Alegre, casa da TAG, dura uma semana inteira. Em 2019, o evento homenageou Sueli Carneiro, filósofa, escritora e ativista antirracismo. A FestiPoa conta com shows musicais, apresentações de teatro, saraus, debates e oficinas que se espalham por toda a capital gaúcha.

Com o tema Arte, leitura e tecnologia, a Fliaraxá homenageia, de 1 a 5 de julho, a brasileira Conceição Evaristo e o curador de janeiro da TAG Curadoria, o angolano José Eduardo Agualusa. Os patronos do festival, que acontece de primeiro a 5 de julho, serão os dois centenários de 2020: Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.


PARATY (RJ) 18ª Flip Desde 2003, a Festa Literária Internacional de Paraty propõe discutir literatura e arte em um espaço afastado dos grandes centros urbanos. Em 2020, a Festa homenageia a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911–1979), uma escolha que dividiu o público e a comunidade literária. Assim como em 2019, a TAG vai fazer parte da festa. Na programação paralela, nossa casa vai se encher de conversas sobre aquilo que nos move: experiências literárias e tudo o que gira ao redor delas. A festa ocorre de 29 de julho a 2 de agosto.

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BELÉM (PA)

CACHOEIRA (BA)

10ª Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes “No momento em que a Amazônia está no centro das atenções mundiais por conta de uma forte crise climática e ambiental, é fundamental que os amazônidas tenham as suas vozes escutadas.” Essa é a premissa do evento de Belém do Pará, que chega à sua décima edição em 2020, sempre com a missão de discutir a literatura e a riquíssima tradição de oralidade brasileira.

Flica Autointitulada a “festa literária mais charmosa do Brasil”, a Flica é um evento gratuito que une discussões literárias a muita festa. O sucesso da junção, segundo a organização, contradiz o estereótipo sisudo do escritor: "vai ver eles gostam mais de festa do que se suspeitava”.

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A curadora de março

Martha Batalha

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Fotografia: Jorge Luna

A curadora de março derrama doçura em suas páginas – mas o produto final fica longe do intragável. Sucesso com seu romance de estreia, A vida invisível de Eurídice Gusmão, Martha revela-se uma escritora de delicadeza ímpar. Tanto que seus personagens, transpostos para o cinema, disputaram uma indicação para o Oscar 2020. A vida invisível, dirigido por Karim Aïnouz, traz Fernanda Montenegro e grande elenco para, nas telas, mostrar a vida de Eurídice, dona de casa esperta (até demais) que sofre com as limitações impostas pelo casamento e pela sociedade em 1950. A indicação de Martha é um outro livro de olhares únicos. Lançado originalmente em 1955, essa coleção de contos chama a atenção para a questão do racismo e das microviolências do cotidiano a partir de histórias que abordam a dicotomia entre o bem e o mal, entre “nós e eles”, no sentido de mostrar tanto que não há bem absoluto quanto que a humanidade é uma só — seres unidos pela inevitabilidade de falhar em algum momento do caminho.


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