Janeiro de 2015 O Intruso
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Arthur Dambros arthur@taglivros.com.br Gustavo Lembert da Cunha gustavo@taglivros.com.br Tomás Susin dos Santos tomas@taglivros.com.br
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ILUSTRAÇÃO DA CAPA Laura D. Miguel lauradep@gmail.com
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AO LEITOR Para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre. Carlos Drummond de Andrade Receita de Ano Novo (1997)
A TAG deseja a todos os seus associados um feliz ano novo! Será um prazer estar ao lado de vocês para a temporada 2015 da TAG, que já está de cara nova: revistas, caixas, embalagens. E, para inaugurar esse ano junto conosco, a especialíssima participação de Patch Adams como curador de janeiro, que recomendou à TAG a obra de William Faulkner. Mas não só ele: Neruda, Whitman e outros poetas que marcaram sua vida também estarão presentes nessa edição da nossa revista. Um bom início de ano! Equipe TAG
A INDICAÇÃO DO MÊS
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O indicante: Patch Adams O livro: O Intruso
ECOS DA LEITURA
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Curiosidades Filmografia Sugerida O Captain! My Captain! O Mês dos Intrusos
A INDICAÇÃO DE FEVEREIRO
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Paul Bloom
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Indicação do Mês
A INDICAÇÃO DO MÊS
Indicação do Mês
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O INDICANTE: PATCH ADAMS - Aqui temos um caso de diabetes infantil, com má circulação sanguínea e neuropatia. Como vocês podem ver, a paciente apresenta úlceras diabéticas com edemas linfáticos e traços de gangrena. Perguntas? – questiona o professor, em frente a uma turma de Medicina. - Há osteomelite? – pergunta um aluno. - Aparentemente não, mas é possível. – responde o professor. - Tratamento? – questiona outro aluno. - Estabilizar o açúcar no sangue, usar antibióticos e, talvez, amputar. Mais alguma pergunta sobre o caso? – fala o professor, enquanto a paciente encara apavorada. - Qual é o nome dela? (espanto de todos com a irrelevância da pergunta) Eu só queria saber o nome da paciente. – justifica-se Patch Adams. - Margaery. – Responde o professor, após verificar o nome na ficha do paciente. - Oi, Margaery! – fala Patch Adams. - Oi! – responde Margaery, sorrindo. (Cena do filme Patch Adams – O Amor é contagioso)
Essa é a maneira de agir e pensar de Hunter Doherty Adams, conhecido mundialmente pelo seu apelido: Patch. Eternizado no filme que carregou seu nome, em que foi representado brilhantemente por Robin Williams, Patch Adams tornou-se conhecido como o médico-palhaço, o grandalhão sensível que acreditava no sorriso como o melhor remédio. Entretanto, Patch é muito mais do que isso. Nascido em Washington, D.C., em 1945, Patch residiu em diversas cidades e países diferentes durante sua infância, acompanhando as mudanças impostas pelo cargo militar de seu pai. Tinha em sua mãe uma grande amiga e confidente, enquanto o pai, traumatizado pelas guerras de que participara, entregava-se à bebida quando estava em casa, e mantinha-se distante dos problemas e aflições do garoto. Desde muito cedo, Patch destacou-se pelo seu intelecto apurado. Com um grande
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Indicação do Mês
amor por matemática e ciências, rebelava-se contra os básicos ensinamentos do colégio, e buscava sua própria maneira de aprender. Enquanto vivia na Alemanha, participou de diversas feiras científicas, sagrando-se vencedor por duas vezes da Feira Europeia de Ciências. Certa feita, quando tinha dezesseis anos, seu pai adoeceu e pediu a Patch que tirasse um tempo de folga do trabalho e ficasse em casa fazendo-lhe companhia. Foi a primeira vez em toda sua vida que sentiu que estavam, finalmente, criando um laço afetivo mais forte. Antes, quando tentava iniciar uma conversa sobre o tempo que o pai passou lutando na Segunda Guerra Mundial e na Guerra da Coreia, o ex-soldado apenas sentava e chorava. Nesse período, porém, contou ao filho tudo que havia lhe traumatizado, como ainda se sentia culpado pela morte do melhor amigo, que segurou uma granada enquanto o mandava correr. Seu maior arrependimento, entretanto, envolvia a família: sabia que não tinha sido um bom pai, e isso o consumia. Uma semana depois, foi levado às pressas ao hospital e lá faleceu, sofrendo uma parada cardíaca assim que a ambulância o deixou no hospital. Os médicos constataram que ele voltara da guerra com pressão alta e um problema no coração que nunca tinha sido detectado. Patch nunca se perdoou por não estar junto de seu pai no momento de sua morte. Após sete anos vivendo na Alemanha, Patch, sua mãe e seu irmão, tiveram de se mudar para um subúrbio no norte da Virginia, onde sua mãe havia nascido. Iniciou-se o período mais turbulento de sua vida. Sem saber em quem depositar a culpa ou como superar o trauma, passou a lutar contra tudo de que discordava. Em meio à segregação racial fortíssima nos Estados Unidos, Patch começou a participar de marchas contra o preconceito, e logo passou a ser chamado no colégio de “amante de negros”. Considerava a religião uma hipocrisia, e passou a criticar e ironizar quaisquer crenças, defendendo apenas a racionalidade. Em meio a esse caos interno, sua namorada acabou com o relacionamento e o tio, de quem era muito próximo, suicidou-se. Patch perdeu a esperança na vida,
Indicação do Mês
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decidiu largar o colégio, e passou a pensar seriamente no suicídio. Ingeriu vinte aspirinas pensando que isso seria suficiente para acabar com sua vida. Compreendendo que a situação estava insustentável, pediu à sua mãe que o internasse em uma clínica de reabilitação.
O homem precisa de um pouco de loucura, senão ele nunca ousa cortar a corda e ser livre. -Nikos Kazantzakis, autor de Zorba, o grego
Foi nas duas semanas que passou nessa clínica que Patch conseguiu reerguer-se e encontrar um sentido para sua vida. Não por ajuda dos médicos, mas pelas pessoas que lá estavam internadas, especialmente Rudy, seu colega de quarto. Quando a família de Patch vinha visitá-lo, ele percebia quão feliz se sentia. Porém, Rudy, que tivera três mulheres e havia trabalhado em quinze empregos diferentes, nunca recebia visitas. Essa foi a primeira vez que Patch sentiu empatia por alguém. Conversando com Rudy, conhecendo suas aflições, Patch compreendeu a importância do amor, de cercar-se de pessoas que você ama. Neste momento, ele percebeu que durante muito tempo tinha se blindado para o amor que as pessoas lhe destinavam, e que o vazio interno era proveniente da solidão provocada por essa blindagem. Mais do que isso, entretanto, Rudy representava o “Fantasma do Natal Futuro”1, aquilo em que Patch se transformaria caso seguisse vivendo do mesmo modo. Patch saiu da clínica de reabilitação por decisão própria, contrariando a indicação dos médicos. Passou a levar uma vida completamente diferente da que antes vivia, tornando-se, nas suas próprias palavras, um “estudante da vida”. Colocando o sentir antes do pensar, deixou de criticar tudo aquilo que não era racional, e dedicou seu tempo para tentar compreender as pessoas, a felicidade e a amizade. Recorreu aos séculos de sabedoria contidos em livros, transformando Nikos Kazantzakis, 1 Referência ao clássico Conto de Natal, de Charles Dickens, também indicado por Patch Adams à TAG.
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Indicação do Mês
Franz Kafka, Jean-Paul Sartre, Thomas Mann, William Faulkner em seus companheiros inseparáveis.
O mundo das artes ajudou-me a compreender a minha nova fascinação com a humanidade. -Patch Adams
Sua melhor bibliografia provinha, porém, das relações interpessoais. Buscava famílias felizes e pedia para estudá-las, tentando entender o que as unia. Com uma lista telefônica em mãos, ligava para pessoas desconhecidas apenas com o objetivo de aprimorar suas técnicas de conversa e tentar mantê-las o máximo de tempo na linha, divertindo-as. Passava boa parte dos seus dias em elevadores, tentando conhecer as pessoas e fazê-las se conhecerem no curto espaço de tempo disponível. Em algumas vezes, conta, conseguia até que cantassem uma música ou contassem uma piada. Patch considerava-se um cientista, e o laboratório onde efetuava suas pesquisas era o da humanidade. Depois de sua experiência na clínica, sentia que deveria trabalhar de alguma maneira a serviço das pessoas. Decidiu, portanto, estudar medicina e utilizar seus aprendizados sobre as relações humanas no tratamento dos pacientes. Enquanto não ingressava na universidade, Patch começou a trabalhar no depósito de arquivos da Marinha, e logo conseguiu transformar essa atividade vista como maçante em algo memorável. Com Louis, o outro funcionário do depósito, decidiu tornar cada dia um “acontecimento”: traziam os arquivos vestidos de gorilas, respondiam às perguntas cantando, usavam capacetes de aviadores enquanto passavam com seu carrinho de arquivos ao som de “va-rummm”. Assim, descobriu que possuía um dom para a comédia, e que conseguia tornar qualquer atividade mais prazerosa. Na faculdade, desde o primeiro contato com a medicina revoltou-se com o sistema de saúde: médicos elevados a um patamar sobre-humano, devendo saber todas as respostas, sem concessões à humildade;
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pacientes tratados como se fossem números; médicos que investiam nas empresas produtoras dos medicamentos que prescreviam aos pacientes. Patch passou a fazer aquilo em que acreditava, embora fosse criticado e, às vezes, odiado pelos professores e por alguns colegas. Ingressava no quarto dos pacientes com o objetivo de alegrá-los, contando piadas aos que estavam carrancudos, massageando os pés dos que aparentavam cansaço, fantasiado de Papai Noel quando visitava a ala infantil, o que logo lhe rendeu o apelido de “Dr. Ho-Ho”. Não concordava que um hospital deveria ter um clima sério, e fazia de tudo para modificar isso. No último ano de faculdade, conheceu Linda, uma jovem que partilhava de suas opiniões sobre a medicina e que estava disposta a lutar pelos mesmos ideais. São casados até hoje. A cada dia que passava, aumentavam as discrepâncias entre o que acreditava ser certo e o que via no comportamento dos médicos. Decidiu, então, com a ajuda de Linda, criar um local que seria voltado para o paciente, e não para a doença. Um espaço enorme, de mais de trinta hectares, com biblioteca própria, mais de trezentos dormitórios, infraestrutura para artistas e artesãos trabalharem, hortas para que o local fosse autossuficiente. No fundo, Patch sonhava construir um hospital que usaria risadas como uma forma de tratamento, amor como sua moeda e confiança e aceitação como os tijolos de sua construção. E foi assim que surgiu o Instituto Gesundheit – “saúde”, em alemão. Nos seus quarenta anos de história, dezenas de milhares de pessoas já passaram pelo Instituto. Seus membros não são apenas médicos, mas educadores voltados para a saúde. Não é restrito apenas aos seus pacientes, pois buscam ensinar outras instituições a atenderem seus pacientes da mesma forma – já participaram de palestras e workshops em mais de 65 países, levando a alegria e diversão a clínicas, escolas e orfanatos maculados pela violência e injustiça.
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Patch Adams é alguém que tem a coragem de viver seus sonhos. -Matthew Budd, professor de Medicina em Harvard
Por apresentar a coragem de viver seus sonhos, e esses não serem compatíveis com o esperado de um médico comum, Patch foi chamado de louco, tendo sido até ameaçado pelo reitor da universidade de não poder se formar, por apresentar uma conduta “excessivamente feliz”. Considerá-lo apenas um brincalhão, porém, é julgá-lo por sua caricatura, ignorando a profundidade de suas ações. Revolucionar o sistema de saúde de um país certamente não é o objetivo de um louco qualquer, e seus esforços não se resumem a tornar os pacientes mais felizes enquanto estão doentes, e sim curá-los através de um tratamento que realmente leve em conta o que eles necessitam como pessoas, com foco não apenas no combate à doença. O INTRUSO, DE WILLIAM FAULKNER, é o livro indicado por Patch Adams à TAG. Essa escolha, porém, não lhe foi fácil. Detentor de uma biblioteca pessoal que abriga mais de 40 mil obras, Patch selecionou aquelas que, nas suas palavras, “ajudaram-no a superar suas crises, fizeram-no ser quem ele é.” Além de O Intruso, Patch escolheu algumas que expressam seu amor à poesia, como Folhas de Relva, de Walt Whitman, e toda a obra de Pablo Neruda. Em homenagem a Patch, selecionamos alguns poemas para permear a revista deste mês.
Sempre que ouço um livro ser mencionado três vezes, eu o compro para ler. -Patch Adams
Indicação do Mês
O TEU RISO (PABLO NERUDA)
TIRA-ME O PÃO, SE QUISERES, TIRA-ME O AR, MAS NÃO ME TIRES O TEU RISO.
NÃO ME TIRES A ROSA, A FLOR DE ESPIGA QUE DESFIAS, A ÁGUA QUE DE SÚBITO JORRA NA TUA ALEGRIA, A REPENTINA ONDA DE PRATA QUE EM TI NASCE. A MINHA LUTA É DURA E REGRESSO POR VEZES COM OS OLHOS CANSADOS DE TEREM VISTO A TERRA QUE NÃO MUDA, MAS QUANDO O TEU RISO ENTRA SOBE AO CÉU À MINHA PROCURA E ABRE-ME TODAS AS PORTAS DA VIDA.
EXCERTO DE POEMAS DE AMOR DE PABLO NERUDA
A DANÇA (PABLO NERUDA)
TE AMO SEM SABER COMO, NEM QUANDO, NEM ONDE, TE AMO ASSIM DIRETAMENTE SEM PROBLEMAS NEM ORGULHO. ASSIM TE AMO PORQUE NÃO SEI AMAR DE OUTRA MANEIRA, SENÃO ASSIM DESTE MODO QUE NÃO SOU NEM ÉS, TÃO PERTO QUE TUA MÃO SOBRE O MEU PEITO É MINHA, TÃO PERTO QUE SE FECHAM TEUS OLHOS COM MEU SONHO. POEMA QUE PATCH DECLAMA NO FILME.
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Indicação do Mês
William Faulkner
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O LIVRO: O INTRUSO Em 25 de setembro de 1897, quando a cidade de New Albany, Mississipi, ainda carregava vestígios da derrota do Sul na Guerra de Secessão, em que seu povo lutara contra a abolição da escravidão, nasceu um dos mais célebres escritores americanos: William Faulkner. As imposições antiescravistas vindas do Norte ainda geravam diversas revoltas no Sul, onde boa parte da população buscava ratificar a superioridade dos brancos em relação aos negros. Faulkner explorou muito desse contexto social em suas obras, sendo as mais conhecidas O Som e a Fúria, Absalão, Absalão! e Luz em Agosto. Agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1949, dois National Book Awards e dois prêmios Pulitzer, William Faulkner figura regularmente nas listas de maiores escritores americanos de todos os tempos. Apesar de aclamado pelos críticos, o autor não foi bem remunerado nos primeiros anos de sua carreira. Conta-se que, quando acabou de escrever Luz em Agosto, mal conseguia pagar a sua própria conta de luz. Tendo de recorrer a alternativas a fim de manter-se em situação mais confortável, trabalhou como roteirista para os estúdios da Fox, Warner e Metro, entre 1932 e 1955, apesar de declarar que não lhe era uma atividade especialmente agradável. Por volta de 1958, a Fox tentou trazê-lo de volta, mas já se encontrava em melhores condições e recusou os convites. Em 6 de julho de 1962, logo após ter lançado Os Invictos, Faulkner foi vítima de complicações cardíacas, falecendo aos sessenta e quatro anos.
Entre a dor e o nada, escolho a dor. -William Faulkner
Faulkner destaca-se por seu modo não convencional de escrita, empregando com maestria a técnica do fluxo de consciência em diversos de seus romances. Apesar de resultar em uma leitura mais
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Indicação do Mês
difícil, que exige maior atenção por conta de suas frases muito longas e quase sem pontuação, a genialidade do autor é expressa quando apercebemo-nos de que estamos seguindo toda a linha de raciocínio de um personagem, alternando assuntos e tempos narrados por diversas vezes. Um fato muito elogiado no americano é a capacidade de imprimir diferentes estilos em suas obras, dependendo do modo de leitura que considera que a história requer. Lance Mortal, publicado em 1949, é constituído por diversos contos de mistério e investigação, com longos diálogos, convencionalmente pontuados, que absorvem a atenção do leitor. Os Invictos, que lhe rendeu um prêmio Pulitzer postumamente, conta a divertida história de um garoto que foge de casa para desbravar o Sul dos Estados Unidos. Nesse caso, Faulkner empregou um tom mais leve, bem diferente do que encontramos em seus romances que exploram as injustiças raciais.
Um homem que remove uma montanha começa carregando pedras pequenas. -Trecho retirado do livro
Quando Faulkner tinha dez anos, um homem negro foi preso em sua cidade, sob a acusação de esfaquear uma mulher branca. O garoto morava próximo da prisão, e acompanhou de perto enquanto duas mil pessoas brancas se reuniram para tentar tirar o homem do cárcere e matá-lo. Apesar dos esforços empreendidos por um xerife, um padre e um juiz para conter a multidão, um advogado inflamou os nervos dos revoltosos ao proclamar que deveriam “linchar o homem em nome da justiça”2 ; seu pedido foi atendido. Essa memória acompanhou Faulkner pelo resto de sua vida, influenciando na elaboração de diversos de seus livros, como O Intruso, lançado em 1948, indicado por Patch Adams à TAG.
2 Joel Williamson, William Faulkner and Southern History (Oxford University Press, 1993)
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Situando-se no imaginário condado de Yoknapatawpha, cenário da maior parte das obras do autor, o livro inicia com o jovem Chick Mallister observando o negro Lucas Beauchamp ser levado para o presídio, acusado de ter assassinado Vinson Gowrie, um homem branco. Anos antes, Chick havia sofrido uma queda em um riacho próximo à residência de Lucas, que o tinha salvado e o levado para sua casa para que pudesse alimentar-se. Sem saber como agradecer, o garoto tenta pagar Lucas pela ajuda, numa clara demonstração de como a superioridade dos brancos perante os negros estava enraizada em sua consciência. Lucas, porém, era conhecido por não aceitar as condições de inferioridade impostas pelo seu contexto, e pega o dinheiro oferecido por Chick e o joga ao chão, transferindo a humilhação para o garoto. Desde então, Chick tortura-se pelo que aconteceu, e vê na prisão de Lucas uma chance de se redimir. Acompanhado de Gavin Stevens, seu tio, decide visitá-lo no presídio. Mais uma vez, a ousadia de Lucas é observada quando se recusa a pedir ajuda a Gavin, advogado. Quando esse sai, porém, Lucas solicita que Chick vá à cova, alegando que o buraco da bala no corpo do morto não condiz com o que teria sido causado pela sua arma. O tempo, porém, não é favorável para que possa ser provada sua inocência, pois uma grande quantidade de pessoas já estava rondando o presídio, e em toda a cidade ouvia-se que a família de Vinson desejava vingança.
De tarde eles vão enterrar o Vinson e seria uma falta de respeito com ele tacar fogo num negro na mesma hora do enterro. -William Faulkner Faulkner logra inserir na narrativa elementos característicos de uma trama envolvente, como suspense e desdobramentos surpreendentes, ao mesmo tempo em que transmite ao leitor uma imagem extremamente realista da cultura presente na época, evidenciando a enorme segregação entre negros e brancos. Sir Salman
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Rushdie, aclamado escritor britânico, defende que a ficção é o melhor meio de se conhecer determinada época e região. Rushdie alega que, beneficiados pela qualidade descritiva e pela situação em que se encontrava o escritor, melhor compreendemos diferentes culturas por meio da leitura de um livro do que de um jornal.
A missão do escritor é ajudar o homem a suportar o sofrimento, lembrando-lhe a coragem, a honra, a esperança, o orgulho, a compaixão e o sacrifício que constituíram a glória de seu passado. -William Faulkner, em discurso feito ao receber o Nobel.
No livro enviado pela TAG, William Faulkner representa a coragem e a honra de poucos frente à intolerância e à barbárie de muitos, transmitindo aos leitores a noção de que ainda havia alguma esperança entre os sulistas no amargo passado americano.
Indicação do Mês
POUCAS VEZES, DURANTE A NARRATIVA, FAULKNER REFERE-SE A CHICK MALLISTER UTILIZANDO SEU NOME. O AUTOR RECORRE APENAS AO PRONOME “ELE”, O QUE DIFICULTA UM POUCO O ENTENDIMENTO, ATÉ QUE O LEITOR ACOSTUME-SE. A PRIMEIRA VEZ EM QUE É USADO O NOME DE CHICK É NA PÁGINA 125. EM DETERMINADO MOMENTO DA HISTÓRIA, GAVIN STEVENS REFERE-SE AOS NEGROS EMPREGANDO A PALAVRA SAMBO, QUE É UM TERMO DEPRECIATIVO ANTIGAMENTE UTILIZADO. ACREDITA-SE QUE ESSA PALAVRA TENHA SIDO ORIGINADA A PARTIR DA PALAVRA NZAMBU, QUE SIGNIFICA MACACO, NO CONGO. A MÃE DE CHICK MALLISTER ASSINA O BOOK OF THE MONTH CLUB, SISTEMA DE ASSINATURA DE LIVROS SIMILAR À TAG. EM 1949, FOI LANÇADO UM FILME HOMÔNIMO BASEADO NA TRAMA DE O INTRUSO. O NEW YORK TIMES O CONSIDEROU UM DOS DEZ MELHORES FILMES DO ANO, E O PRÓPRIO FAULKNER ADMITIU QUE, APESAR DE NÃO ASSISTIR A MUITOS FILMES, ESSE LHE AGRADARA. A CASA ONDE WILLIAM FAULKNER E SUA FAMÍLIA VIVERAM POR MAIS DE QUARENTA ANOS É MANTIDA ATÉ HOJE COMO UM MUSEU PELA UNIVERSIDADE DO MISSISSIPI. GRANDES ESCRITORES, COMO JOHN UPDIKE E SALMAN RUSHDIE, LÁ ESTIVERAM PARA PRESTAR-LHE HOMENAGEM.
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18 Ecos da Leitura
ecos da leitura
Ecos da Leitura
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A relação entre Faulkner e Shakespeare vai além de possuírem o mesmo primeiro nome. No eco inicial da revista de janeiro, apresentamos a influência que o eterno poeta britânico exerceu sobre o autor do livro enviado neste mês, além de algumas cômicas Curiosidades, inspiradas pelo clima alegre de Patch Adams. Situar-se na época descrita em O Intruso talvez seja mais fácil a partir de um filme que retrate o mesmo período, e conhecer Patch Adams também é mais divertido ao vê-lo interpretado por Robin Williams. Portanto, em Filmografia Sugerida, trazemos algumas indicações para estender a experiência do mês. O Captain! My Captain! é um emocionante poema escrito por Walt Whitman, um dos preferidos de Patch, e O Mês dos Intrusos aborda boa parte dos temas tratados ao longo desta revista. contato@taglivros.com.br
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CURIOSIDADES FAULKNER E SHAKESPEARE William Faulkner confessou que não saía de casa sem levar Shakespeare em um bolso e o Antigo Testamento em outro. Não é por acaso, então, que o título de seu quarto romance, O Som e a Fúria, tenha sido originado a partir de uma notável passagem de MacBeth.
[Life] is a tale told by an idiot, full of sound and fury. Signifying nothing.
“A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco - faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria. E vazia de significado.”
Quando sua publicação foi rejeitada pelas editoras, Faulkner declarou que iria, finalmente, fazer o que desejava: “Agora posso escrever. Agora posso simplesmente escrever”. Sem as exigências dos editores ou as preocupações de agradar a diferentes tipos de leitores, Faulkner escreveu um dos romances mais importantes da literatura americana: uma “história contada por um idiota, cheia de som e fúria”.
WHAT THE FAULKNER?! Certa feita, uma estudante americana estava lendo O Som e a Fúria quando se deparou com o seguinte trecho: “...cintilando nas miríades de sulcos retalhados pelos sacrifícios, a abnegação e tantos anos”. Ao ter dificuldades para compreender o que havia lido, exclamou “What the F*ck?!”. Foi neste momento que lhe veio uma ideia para a camiseta de formatura de sua turma: What the Faulkner?!
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ALCOHOLIC AUTHORS William Faulkner faz parte da – sempre crescente – lista de célebres escritores que passaram boa parte de suas vidas lutando contra o álcool. Apesar de enfrentar grande dificuldades para largar o vício, Faulkner atestou que nunca bebia enquanto estava escrevendo. Diferentemente de outros autores, não acreditava que o álcool fosse um combustível para ativar a criatividade. Confira outros autores que também padeceram de alcoolismo:
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FILMOGRAFIA SUGERIDA O Grande Desafio Situado durante a Grande Depressão, mesmo período em que se passa O Intruso, o emocionante filme dirigido e estrelado por Denzel Washington baseia-se na história de Melvin B. Tolson, renomado poeta americano, enquanto professor e técnico do time de debatedores da Wiley College, no Texas. Naquela época, era muito comum a realização de debates universitários em torno de temas polêmicos. Tolson buscava elevar seu time ao mesmo patamar em que se situavam os debatedores das universidades brancas – em um período no qual a discriminação com os negros era tratada como normal, e um debate entre brancos e negros era inimaginável. Além de uma excelente história, O Grande Desafio situa o associado no contexto descrito no livro desse mês.
Patch Adams Brilhantemente interpretado por Robin Williams, Patch Adams foi agraciado com uma versão Hollywoodiana em 1998, o que muito ajudou a disseminar seu trabalho e atrair atenções para o Instituto Gesundheit. A história tem início no momento em que Patch é internado na clínica de reabilitação, e retrata os anos seguintes até a fundação do Instituto. Apesar de o próprio Patch ter algumas objeções à maneira como é retratado, assistir a esse filme é tarefa obrigatória para todos os associados da TAG que se interessarem por conhecer um pouco melhor o indicante desse mês.
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FILMOGRAFIA SUGERIDA (pelo Patch!) Zorba, o Grego Baseado no clássico homônimo de Nikos Kazantzakis, esse filme foi uma das grandes fontes de inspiração de Patch Adams. O escritor greco-britânico Basil passa por uma crise de criatividade e decide viajar para a terra de seus ancestrais. Quando chega à Grécia, conhece Zorba, um grego simples e animado, que pede para acompanhá-lo na viagem, a fim de lhe apresentar melhor a região. Indicado ao Oscar de melhor filme de 1965, vale assistir a essa obra e imaginar Patch logo após as tentativas de suicídio, no momento em que encontrou um sentido para sua vida e decidiu dedicar-se a trazer mais alegria às pessoas com quem convivia.
Um filme muito significativo para mim, na época em que estive internado na clínica, foi Zorba, o grego. Meu dilema era o mesmo que o daquele rato de biblioteca que aparece no filme. ‘Você pensa demais, esse é o seu problema’, Zorba falou para ele. ‘Pessoas espertas e vendedores, eles pesam tudo!’ Eu parei de pensar que pensar importava mais que qualquer coisa e comecei a colocar meus sentimentos em primeiro lugar.
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O CAPTAIN! MY CAPTAIN! O livro Folhas de Relva, de Walt Whitman, também indicado por Patch à TAG, é muito citado no aclamado filme Sociedade dos Poetas Mortos. Quem já assistiu ao filme lembrará a cena em que o professor, também interpretado por Robin Williams, declama “O Captain! My Captain!”. O poema foi redigido em 1865, em homenagem a Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos. No poema, Whitman exalta as conquistas de Lincoln na Guerra Civil e no combate à escravidão, e lamenta a morte do presidente.
Ó capitão! Meu Capitão! Finda é a temível jornada, Vencida cada tormenta, a busca foi laureada. O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro, Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero. Mas ó coração, coração! O sangue mancha o navio, No convés, meu Capitão Vai caído, morto e frio. Ó Capitão! Meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos; Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos. Por ti buquês, guirlandas... Multidões as praias lotam, Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam, Capitão, meu querido pai, Dormes no braço macio... É meu sonho que ao convés Vai caído, morto e frio. Ah! Meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso... Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída. E lá vem ela em triunfo da jornada antes temida. Povo, exulta! Sino, dobra! Mas meu passo é tão sombrio... No convés meu Capitão Vai caído, morto e frio. Ó capitão! Meu Capitão! Tradução de Luciano Alves Meira
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26 Ecos da Leitura
O MÊS DOS INTRUSOS A palavra intruso vem do latim in (dentro) – trudere (empurrar): aquele que se empurra para dentro, ou, na definição do dicionário, “que ou quem se introduziu ou foi introduzido em alguma parte sem ter qualidade para tanto”. O intruso é o intrometido, que não pertence e não condiz àquele local ou grupo, uma saliência que destoa e que, sob o julgamento dos outros, talvez não devesse estar ali. No título do livro enviado neste mês, William Faulkner faz um jogo com a palavra. Ao ler a obra, a dúvida a respeito de quem é o intruso da história tornase quase tão intrigante quanto o mistério contido em suas páginas. O próprio Faulkner teve dificuldade em encontrar um nome apropriado para o livro, como atesta em uma carta: “Pela primeira vez em minha vida, não consigo encontrar um título!”. Sua escolha ao menos deixou os leitores questionando-se ao longo do tempo. Seria Lucas Beauchamp a quem se refere o título, por ser uma pessoa negra que não se sente inferior às brancas, tratando-as de igual para igual em uma sociedade onde isso não era tolerado? Ou Chick Mallister, por ser o único que se disponibilizou a ajudar um negro em um momento de dificuldade? Em locais onde os pacientes são definidos por suas doenças, um médico que busca aprofundar-se em suas vidas, conhecer suas preocupações e fazê-los sorrir não é, de fato, alguém “normal” – principalmente quando esse alguém veste camisa colorida e nariz de palhaço. Assim como o Instituto Gesundheit, o “hospital” idealizado por Patch – que ainda precisa de aspas para definir um local onde as consultas não possuem meta de tempo –, as decisões dos médicos não são influenciadas pelos convênios, e saúde é algo muito maior do que a mera ausência de patologias.
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Nenhum desses casos, porém, constitui alguém que “se introduziu em alguma parte sem ter qualidade para tanto”. Pelo contrário. Tanto Patch quanto as personagens do livro realizaram atos admiráveis, apesar de terem destoado em seus ambientes – ou, talvez, por isso mesmo. Apesar de desconfortável, pois nos conduz ao questionamento, talvez intruso seja adjetivação louvável, o ingrediente necessário para o início de qualquer evolução significativa. Em um país onde intrusos são os leitores, também sentimo-nos desta forma ao optar pela literatura e pelos livros como ferramentas de trabalho. A TAG destoa, intromete-se. Ao ousar fazê-lo, encontrou em vocês, nossos associados, os verdadeiros intrusos. Assim como Patch e seu Gesundheit fazem com a saúde, esperamos juntos também fazê-lo pela literatura.
QUANDO OUVI O ASTRÔNOMO ERUDITO (WALT WHITMAN)
QUANDO OUVI O ASTRÔNOMO ERUDITO, QUANDO AS PROVAS, OS NÚMEROS FORAM ENFILEIRADOS DIANTE DE MIM, QUANDO ME FORAM MOSTRADOS OS MAPAS E DIAGRAMAS A SOMAR, DIVIDIR E MEDIR, QUANDO, SENTADO, OUVIA O ASTRÔNOMO MUITO APLAUDIDO, NA SALA DE CONFERÊNCIAS, SENTI-ME LOGO INEXPLICAVELMENTE CANSADO E ENFERMO, ATÉ QUE ME LEVANTEI E SAÍ, PARECENDO SEM RUMO NO AR ÚMIDO E MÍSTICO DA NOITE, E REPETIDAS VEZES OLHEI EM PERFEITO SILÊNCIO PARA AS ESTRELAS. POEMA RETIRADO DO LIVRO FOLHAS DE RELVA, DE WALT WHITMAN
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A INDICAÇÃO De FEVEREIRO
FOTO: MARTIN ST-AMANT
Tragédia e comédia. Essas são duas palavras – que inicialmente soam antagônicas – perfeitas para descrever o livro que será enviado em fevereiro. Um dos mais consagrados autores britânicos da atualidade retrata as desventuras de um cientista, vencedor do Prêmio Nobel de Física, com a intrincada missão de desenvolver uma solução para o aquecimento global. Suas maiores aflições, no entanto, residem em sua burlesca vida pessoal. Com a maestria usual do autor, acompanhamos o raciocínio e mergulhamos nos pensamentos do personagem gordo, beberrão e com diversos problemas com as mulheres, que acaba de arruinar seu quinto casamento, em busca de estabilizar sua vida. Trabalhando ao longo da narrativa com a dualidade entre a importância da vida profissional e o absurdo da vida pessoal do personagem, o autor mostra que o humor também é coisa séria.
Indicação de Fevereiro 29
O INDICANTE: PAUL BLOOM
O livro retrata a história do perfeito anti-herói, e é muito divertido entrar em sua cabeça. Além de imenso prazer, a leitura proporciona um subversivo e inspirador olhar sobre como a Ciência realmente funciona.
Paul Bloom é um psicólogo canadense, autor de O que nos faz bons ou maus, publicado no Brasil no ano passado. Na obra, Bloom utiliza-se de experimentos científicos para suscitar e colocar luz em questões de origem filosófica: o que nos faz bons ou maus? Nossa moralidade é adquirida através do aprendizado, ou inata, produto de evolução biológica? Se for inata, pendemos para qual lado: egoístas e gananciosos; ou empáticos e solidários? Paul Bloom faz parte do seleto grupo de cientistas que servem de interface – abrem mão de jargões específicos e utilizam linguagem acessível – entre a ciência e o público geral, e assim tornou-se um dos mais respeitados psicólogos americanos da atualidade. Informações completas a respeito do indicante do mês e do livro recomendado podem ser encontradas no www.taglivros.com.br ou então na revista do próximo mês. Caso já tenha lido o livro, envie e-mail para contato@taglivros.com.br para conhecer as alternativas.
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-Victor Hugo-