"Sonhos em tempo de guerra" - Revista TAG Curadoria Ago/21

Page 1

1

Sonhos em tempo de guerra

PREFÁCIO


2


OLÁ, TAGGER Por que ler livros de outras culturas? Acessar culturas e contextos diferentes dos nossos nos torna pessoas mais abertas e tolerantes. Nos faz apreciar – e não desprezar – diferenças, nos obriga a enxergar pontos de vista outrora distantes. Em resumo: nos torna seres humanos melhores. Esse deslocamento sempre foi uma das propostas da TAG Curadoria. Quando Jeferson Tenório, um dos expoentes da literatura brasileira, incluiu Sonhos em tempo de guerra na sua curta lista de livros favoritos, sabíamos que ali estava uma obra com poder de fazer com que nós, brasileiros do século XXI, nos vejamos frente a um Outro – em um contexto do Quênia da primeira metade do século XX. E aí está a beleza da literatura: abra as páginas do livro do mês e você será transportado para o universo de Ngũgĩ wa Thiong'o. Um universo de brincadeiras infantis que resistiram às dificuldades da pobreza, um universo de uma família gigante com suas vinte e quatro (!) crianças, um universo da busca por educação – uma trajetória inteira impactada pelo colonialismo. Nesta seção, você vai ser apresentado ao autor de Sonhos em tempo de guerra, Ngũgĩ wa Thiong'o, entenderá mais sobre o contexto histórico do Quênia e receberá indicações de outras obras que possam complementar a sua experiência. No posfácio – a segunda parte da revista –, trouxemos um guia de personagens e uma entrevista com o curador do mês. Se você detesta qualquer tipo de spoiler, atenção: sugerimos ler apenas o prefácio e retornar ao posfácio somente após o término de Sonhos em tempo de guerra. O livro do mês é sobre todos os sonhos que podem nascer dentro de uma criança. Boa leitura!


taglivros contato@taglivros.com.br www.taglivros.com

TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200

agosto de 2021

COLABORADORES

RAFAELA PECHANSKY

LAURA VIOLA HÜBNER

LUÍSA SANTINI JANUÁRIO

Assistente

Assistente

Publisher

ANTÔNIO AUGUSTO

LIZIANE KUGLAND

Revisor

Revisora

PAULA HENTGES

GABRIELA BASSO

LAÍS FONSECA

Designer

Designer

Designer

Impressão Gráfica Ipsis

Diagramação Gabriela Heberle


SUMÁRIO prefácio

4 O livro indicado

8 Outras experiências literárias pós-colonialistas

12 Uma testemunha de guerras


O livro indicado

NO CORAÇÃO DAS LUZES LUIZ MAURÍCIO AZEVEDO

4

Publicado originalmente em 2010, Sonhos em tempo de guerra é a primeira parte do projeto autobiográfico do pensador e romancista queniano Ngũgĩ wa Thiong'o. Trata-se de uma revisão corajosa de sua própria história e dos eventos que moldaram seu caráter ao longo do tempo. Nessa primeira parte, o foco é a infância e o conjunto de tradições, vivências e memórias que o constituíram ser humano. Talvez o fato mais conhecido pelo público brasileiro sobre Thiong’o, antes da leitura de Sonhos em tempo de guerra, fosse o fato de que todos os anos seu nome aparece nas bolsas de apostas como cotado para receber o Nobel. Se hoje sua vida de professor da Universidade da Califórnia (no lendário campus de Irvine) parece um exemplo bem-sucedido de estabilidade, a vida pregressa do autor inclui uma longa trajetória de resistência e de luta para edificar e exercer seus direitos básicos de livre expressão. Censurado e preso pelo regime de Daniel


O autor Ngũgĩ wa Thiong'o Kanaka Rastamon

Toroitich arap Moi, Thiong’o só conseguiu ser libertado na década de 1980, graças aos protestos, moções de repúdio e campanhas da Anistia Internacional. Seu pai era membro de uma comunidade onde a poligamia era parte essencial da vida social masculina, o que resultou em uma família extensa, da qual o autor era um dos vinte e quatro filhos reconhecidos. O livro que você tem agora em mãos traz já na abertura uma melodiosa dedicatória que faz referência a um tipo específico de poder literário e à suposição – generosa e militante – de que a literatura pode restituir às pessoas aquilo que o tempo biológico tomou delas. Um aspecto a ser considerado aí é o componente de contraste de culturas, que começa na linguagem e nos fonemas desconhecidos pela maioria de nós e se estende em direção a um conceito de literatura que reconhece as narrativas como elementos legitimadores dos sonhos que nos formaram. Evidentemente, o termo sonho aqui não aparece como sinônimo de meta ou objetivo (que no mundo contemporâneo já se transformou em uma espécie de commodity imaterial, isto é, um produto intangível, e que nos leva de um dia ao outro dentro da rígida e modorrenta rotina de trabalho), mas do sonho como matéria-prima daquilo que sustenta nossos arquétipos mais caros, nosso self profundo. Outros elementos paratextuais dignos de nota são as epígrafes, que aqui oferecem um diálogo com o mundo ocidental e a tradição letrada. Primeiro, surge Victor Hugo, depois, Martin Carter e, por último, Bertolt Brecht. Todos, de um modo ou de outro, ativistas sociais. É importante apontar a proposta de ponte estabelecida pelo autor entre duas culturas – a explorada e a que explora – e o estabelecimento de uma instrumentalização social da literatura. Tanto Victor Hugo – o romântico condoreiro – quanto Martin Carter e o dramaturgo Bertolt Brecht se notabilizaram por produzir literaturas 5


cujo objetivo era tematizar a profunda conexão entre texto literário e vida social. É claro que não se trata aqui de afirmar – como muito se afirmou indevidamente – que a literatura é simplesmente o espelho onde o social se apresenta. A questão é de outra ordem, é de extrair o que de esteticamente profícuo a ética pode fornecer à materialidade literária. O romance abre com a recuperação do célebre verso de T. S. Eliot, Abril é o mais cruel dos meses. Abril é o miolo da primavera. Fase de recuperação, de florescimento, e o mais cruel porque antecederia uma espécie de destino de renovação infinito que, de certa forma – talvez do modo mais cruel –, minimiza o papel protagonista dos seres vivos, ressignificando-os como meros membros de um ecossistema. Essa imagem – de uma engrenagem necessária, porém irrelevante – que atinge nossos egos com punhaladas de morte é muito adequada ao modo como o indivíduo ocupa seu espaço na sociedade capitalista. Outro aspecto interessante desse começo brilhante é o fato de mostrar a coincidência linguística dos homônimos. Enquanto um Eliot produziu um legado criativo, o outro produziu o legado de destruição, e ambos importam na história do autor. Há também uma inteligente sugestão sobre os limites da representação dos signos e dos significantes, mostrando que a aparente familiaridade e o domínio que a Europa sugere ter sobre a linguagem não passam de ilusão. Durante toda a obra, os acontecimentos macro-históricos resultam em reverberações profundas na rotina dos personagens. Assim, a política nacional e a força dos costumes locais condicionam – e por vezes acabam por determinar – o destino de quem aparece no livro. Um exemplo eloquente disso é o fato da administração federal operar medidas administrativas cujo efeito prático é dificultar o exercício do direito à propriedade privada por parte dos indivíduos negros, o que pauperiza ainda mais a infância do protagonista. O Estado surge como entidade castradora das volições individuais, em sucessivas tentativas de repressão e controle que culminam em um trágico episódio de violência policial. 6


O narrador faz constantes menções à precariedade material que o rodeia e à profunda consciência que cresce à medida que fracassam as tentativas de construir uma realidade introspectiva que seja impermeável à influência dos estrondos corrosivos do meio externo. Muitas vezes esse tipo de literatura confessional esbarra na dificuldade de escapar do mero denuncismo. Não é o caso aqui. Ngũgĩ wa Thiong'o é um escritor experiente. E consegue escapar com facilidade das eventuais armadilhas estéticas montadas pela boa vontade de um forte espírito ético. É certo que muitos podem argumentar – com alguma razão – que se trata de um livro cuja força principal está na negação de seu pressuposto fundamental de ficção. Contudo, e isso é o mais importante, essa é uma obra que não apenas desafia as fronteiras dos gêneros literários nos quais está inserida como dissolve os pressupostos lógicos dessas divisões. Para desabilitar os dispositivos que trabalham para aprisionar o potencial transformador de seu artefato artístico, o autor concentra suas fichas no poder político da literariedade, porque sabe que, se é verdade que a atração instantânea que esse romance exerce sobre nós está ligada a nossa síndrome do exotismo tóxico, também é igualmente verdadeiro que não dominamos todas as repercussões e todos os efeitos que aquilo que nos seduz produz sobre nós. Nesse espaço – pequeno, celular, mínimo – cabe, entretanto, muita coisa, inclusive uma literatura que tem aspecto de estado puro, porque paradoxalmente se confunde com a realidade que a construiu. Quanto mais Thiong’o nos conta, menos parece importar a forma como nos conta. Acabamos inseridos em uma encenação sádica, onde sangue, trauma ou desolação são adornos de um pedaço morto da literatura chamado realidade. Muito embora o fetichismo existencial, efeito colateral de nossa precária relação com o continente africano, não encontre lugar no texto de Sonhos em tempo de guerra, do lado de cá, nós, leitores e leitoras, parecemos decididos a levar conosco essa obra para dentro do labirinto das dinâmicas de colonização do outro, reinstalando, em fluxo contínuo, o binômio benjaminiano da barbárie-cultura, porque, afinal, é magnífico poder ler esse livro. E é terrível que possamos fazê-lo. 7


OUTRAS EXPERIÊNCIAS LITERÁRIAS PÓS-COLONIALISTAS PAULA SPERB

8

As marcas sócio-históricas impressas nos povos colonizados se refletem no modo como seus artefatos culturais são produzidos. As estratégias que os indivíduos utilizam para resistirem ao violento processo de exploração coletiva são variadas e constituem um luminoso mosaico de vasta repercussão estética. Aqui estão alguns exemplos de obras que – de um modo particular e com excelência estética – procuram reelaborar os renitentes efeitos sociais de uma longa herança de dor e resistência.


FICÇÃO (PROSA)

O beijo na parede Jeferson Tenório Editora Sulina

Sinopse: Publicado em 2013, esse é o romance de estreia de Jeferson Tenório, autor carioca radicado em Porto Alegre que ganhou projeção nacional com o livro O avesso da pele. A história de João, menino órfão que, aos onze anos, inicia uma jornada de autodescoberta, com tons de investigação dickensiana sobre os limites da linguagem e da fantasia.

Quarto de despejo Carolina Maria de Jesus Editora Ática

Sinopse: Espécie de diário sobre a rotina e as impressões da fértil vida interior da catadora de papel Carolina Maria de Jesus, essa obra tornou-se incontornável no Brasil e foi um best seller de sua época. Com achados linguísticos surpreendentes e construções imagéticas singulares, Jesus faz de seu texto uma poderosa crítica sobre o processo de urbanização e sobre a natureza excludente do projeto civilizador moderno.

Florim Ruth Ducaso/ Luciany Aparecida Editora Paralelo 13S

Sinopse: Um dos principais nomes da nova literatura, a escritora Luciany Aparecida, que assina também como Ruth Ducaso, questiona, em cada um dos elementos constitutivos de suas obras – e em especial nessa –, os fatores estruturantes da dominação. Da linguagem à escolha dos temas, das tensões sociais aos relaxamentos culturais, Luciany tece histórias que procuram desconstruir o modo como a literatura brasileira vem, ao longo das décadas, compactuando com as violências simbólicas que deveria combater.

Cumbe Marcelo D’Salete Editora Veneta

Sinopse: Vencedora do Prêmio Eisner 2018, o mais importante do universo dos quadrinhos, essa obra do mestre em história da arte Marcelo D’Salete aborda o processo de escravidão através do olhar e do traço afrodescendente do autor. Essa magnífica HQ empreende um arquivo de imagens sobre a resistência negra, feito que tem o poder de nos fazer reconhecer o protagonismo desses personagens na construção de um Brasil sem escravidão. 9


FICÇÃO (POESIA)

Pesado demais para a ventania Ricardo Aleixo Editora Todavia

Sinopse: Um dos mais expressivos nomes da poesia brasileira, o mineiro Ricardo Aleixo ganhou essa antologia extremamente necessária para os tempos atuais, na qual sua genialidade e sua combatividade estética ficam evidentes. Trata-se de um poeta completo, que domina tanto o palco quanto o papel, em uma demonstração de que performance também é autoria.

E se alguém o pano Eliane Marques Editora Escola de Poesia

Sinopse: Vencedor do Prêmio Açorianos de 2016, essa obra apresenta a peculiar dicção da psicanalista gaúcha Eliane Marques. Construída sob um ideal de linguagem que se propõe a tornar possível não apenas o ato de escrever poesia mas o direito de refundar suas bases e seus parâmetros, sua produção aponta para novos caminhos da poesia brasileira.

Dessa cor Fernanda Bastos Editora Figura de Linguagem

Sinopse: A estreia literária da jornalista Fernanda Bastos, em 2018, representa a concretização de um ambicioso projeto estético que propunha unificar ativismo e sofisticação estética. Um de seus poemas, "Mãe preta", foi classificado por Sueli Carneiro como “uma obra-prima”. A boa recepção crítica levou ao esgotamento das duas primeiras edições e deu à obra o rótulo de cult seller. Trata-se de uma rara autora que produz tendo em uma das mãos um punhal e na cabeça um imenso e renovado dicionário.

Girassóis estendidos na chuva Louise Queiroz Editora Botocor-de-rosa

Sinopse: Uma das expoentes do processo de renovação da literatura brasileira, Louise Queiroz trabalha com elementos radicais da cultura afro-brasileira, como o candomblé. Com uma impressionante habilidade verbal, Girassóis estendidos na chuva examina metaforicamente a habilidade que os girassóis possuem de procurarem o sol, mas seu fascínio advém do reconhecimento dolorido de nossa capacidade de inventá-lo.

10


NÃO FICÇÃO (TEORIA E ENSAIOS)

Decolonising the Mind: the Politics of Language in African Literature Ngũgĩ wa Thiong'o Editora James Currey

Sinopse: Célebre obra em que o premiado escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong'o constrói, a partir de uma perspectiva crítica particular, um tratado sobre as relações culturais no continente africano e suas repercussões na produção literária local. Uma obra incontornável nos estudos sobre literatura decolonial, uma declaração de emancipação intelectual.

Lugar de fala Djamila Ribeiro Editora Jandaíra

Sinopse: Publicada em 2017, essa obra-prima do pensamento contemporâneo tornou-se rapidamente um fenômeno editorial que catapultou a filósofa Djamila Ribeiro à condição de nome fundamental do debate público no Brasil. Nela, a autora discute o impacto da perspectiva social do observador na construção de sua leitura sobre a realidade que o cerca.

Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra Luiz Maurício Azevedo Editora Sulina

Sinopse: Considerado pelo jornal O Globo um dos melhores livros para se ler em 2021, esse volume traz uma reunião de resenhas e de ensaios sobre a produção literária negra no continente americano. Trata-se de um potente conjunto de reflexões críticas sobre autores como Machado de Assis, Maria Firmina dos Reis, Jeferson Tenório, Colson Whitehead, Toni Morrison e Conceição Evaristo, escrito por um dos mais promissores críticos literários brasileiros.

Memórias da plantação Grada Kilomba Editora Cobogó

Sinopse: Através de uma série de reflexões de cunho psicanalítico e teórico-literário, Grada Kilomba disseca o modo como o racismo se insere nas dinâmicas culturais pós-modernas. A autora tornou-se uma importante voz ao unificar as esferas visuais e linguísticas em uma robusta produção estética, cuja contribuição crítica tem sido essencial para repensar o que significa ser minoria no mundo contemporâneo. 11


Para ir além

UMA TESTEMUNHA DE GUERRAS PAULA SPERB

12

Os títulos dos livros que lemos não são escritos aleatoriamente pelos autores. O escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong'o escolheu para suas memórias de infância o título Sonhos em tempo de guerra. A opção não resulta do acaso. Já no segundo capítulo, ele deixa pistas sobre a escolha de tal título. “Nasci em 1938, à sombra de outra guerra, a Segunda Guerra Mundial, de Thiong’o wa Ndũcũ, meu pai, e de Wanjikũ wa Ngũgĩ, minha mãe”, ele revela. O leitor entende, então, que há ao menos duas guerras como pano de fundo dessa narrativa de não ficção. A primeira, a Segunda Guerra Mundial, que termina apenas em 1945, quando Ngũgĩ tinha sete anos. A outra, uma guerra íntima que, como ele escreveu, fora travada entre seus pais. Todavia, há ainda uma terceira guerra, mais precisamente uma revolução: A Revolta dos Mau Mau, iniciada quando Ngũgĩ tinha 14 anos e que buscava a independência do Quênia em relação à Inglaterra. Para ajudar o leitor a aproveitar ainda mais a experiência, explicamos brevemente os dois fatos históricos que surgem no contexto do enredo das memórias.


O QUÊNIA E A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Guerrilheiros Mau Mau pstu.org

Alguém pode se perguntar: "Mas, afinal, o que o Quênia tinha a ver com a Segunda Guerra Mundial?" Lendo as memórias de Ngũgĩ wa Thiong'o, descobrimos que o Quênia tinha muito a ver com a Segunda Guerra. O resumo do conflito global iniciado em 1939 é mais popular do que a história da participação do país africano no confronto. De um lado, o Eixo, formado pelo nazifascismo da Alemanha, Itália e Japão. Do outro, os Aliados, liderados por Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética. Datam desse período os horrores do Holocausto, genocídio cometido pelos nazistas contra os judeus e outras minorias, como o povo cigano e negros, e também contra desafetos políticos, como os comunistas. O número estimado de vítimas chega a seis milhões de pessoas. Duas pessoas próximas de Ngũgĩ lutaram na Segunda Guerra: Kabae, seu meio-irmão, e Mwangi, seu primo. Ele ouvia desde pequeno as histórias sobre o conflito. “Seria este Hitler, por exemplo, o mesmo que se recusara a apertar as mãos de Jesse Owens [atleta negro e estadunidense que disputou as Olimpíadas de Berlim em 1936]? Eu conseguia entendê-los apenas em termos de ogros assustadores versus heróis na terra de faz de conta da oralidade. Hitler e Mussolini, que ameaçaram escravizar africanos, eram os ogros maus e feios, estando próxima a prova de seu maléfico intento”, escreveu o autor. A condição de colônia da Inglaterra foi o que colocou o Quênia no tabuleiro da Segunda Guerra. Soldados quenianos lutaram, portanto, para defender a “nação-mãe”. Mas não somente isso. De fato, o Quênia estava ameaçado com a intensa presença dos fascistas italianos em territórios muito próximos aos seus. Na sua fronteira norte, estava a Etiópia. O país, o único do continente que tinha um monarca negro, teve seu imperador, Haile Selassie I, deposto pela Itália de Benito Mussolini em 1936. Na fronteira leste do Quênia, estava a Somália, que possuía territórios dominados pelos italianos desde o século anterior. 13


Soldados do King's African Rifles durante a revolta dos Mau Mau coleções dos Museus da Guerra Imperial Soldados britânicos em ação na aldeia Karoibangi, no Quênia, buscando guerrilheiros Mau Mau. Foto de 1963 ensinarhistoria.com

Portanto era necessário proteger uma das principais colônias da Inglaterra. Segundo Meshack Owino, professor da Universidade de Cleveland e pesquisador de História da África, 98 mil quenianos lutaram na Segunda Guerra. Pouco se sabe sobre esses soldados, segundo Owino, uma vez que são raras as pesquisas acadêmicas sobre eles. Entre os poucos trabalhos sobre os soldados quenianos, Owino afirma que eram usados estereótipos como “inocentes”, “ignorantes” e “inconscientes” sobre o que estava em jogo durante o conflito. Ouvindo o depoimento de 153 soldados, a conclusão a que chega Owino na sua tese de doutorado é distinta: os quenianos estavam cientes do contexto da guerra e tinham suas próprias motivações para lutar. De acordo com Owino, os quenianos lutavam com o propósito de reivindicar a liberdade do próprio Quênia em relação à Inglaterra, uma espécie de reconhecimento pelos esforços da colônia. Também visavam à liberdade do povo em geral, uma vez que entendiam a questão racial envolvida no conflito. “Eles não apenas ouviram que o Eixo tinha deposto Haile Selassie da Abissínia [atual Etiópia], o único imperador negro na África, mas eles também tinham escutado que o Eixo planejava escravizar o povo negro em todo o mundo. Os soldados quenianos foram informados de que a liberdade do povo negro estava em jogo”, explica Owino na obra 'For your tomorrow, we gave our today': A history of Kenya African soldiers in the Second World War. A REVOLTA DOS MAU MAU

Outro conflito importante nas memórias de infância de Ngũgĩ wa Thiong'o é a Revolta dos Mau Mau, que durou de 1952 a 1960. O movimento lutava contra a Inglaterra em busca da 14


Jomo Kenyatta, primeiro presidente do Quênia Charleslincolnshire

independência do país. Assim como na Segunda Guerra Mundial, a Revolta dos Mau Mau também chega perto de Ngũgĩ. Dessa vez, a proximidade ainda é maior porque seu irmão mais velho, O Bom Wallace, espécie de ídolo e modelo para Ngũgĩ, se juntará aos rebeldes. Além dele, o Tio Gicini — poucos anos mais velho do que ele apesar do título de tio — também integrará o grupo revoltoso. Nesse contexto, um personagem histórico inspira o escritor. Trata-se de Jomo Kenyatta (1897-1978), integrante dos Mau Mau e que acaba se tornando o primeiro presidente do Quênia independente, em 1964. “Talvez o Kenyatta real, quando e onde quer que eu viesse a conhecê-lo, correspondesse ao Kenyatta das lendas. Mas sua casa ficava muito distante, em Gatũndũ, e nessa região eu não tinha parentes casados. Era improvável que algum dia viesse a estar numa posição de interceptá-lo vestido num terno cinza, passeando sozinho, pensativo, num caminho rural através de milharais”, imaginava o escritor quando era garoto. Segundo Nathaly Xavier Schütz, professora de relações internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e coordenadora do Grupo de Estudos sobre África (GEÁfrica), a Revolta dos Mau Mau é o principal levante africano contra a Inglaterra. “Kenyatta é uma figura muito importante em todo o contexto africano de desenvolvimento e independência dos países africanos como um todo. Ele acaba não só tomando a frente do processo, mas, quando ocorrem as eleições conduzidas pela Inglaterra, acaba se tornando a principal liderança política do país”, explica Schütz à TAG Curadoria. Além disso, segundo a professora, Kenyatta terá papel fundamental na mobilização conjunta que origina a Organização da Unidade Africana (OUA) e fortalece o pan-africanismo e a retomada de raízes africanas. 15


Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.

Ilustração do mês Gabriela Basso é uma designer e ilustradora porto-alegrense de 20 anos, bacharelanda em Design Gráfico na UFRGS e estagiária de design na TAG Livros. Atua em projetos diversos, desde ilustração de livros como Mistérios Perdidos, lançado pela TAG em 2020, até motion graphics e projetos gráficos de álbuns musicais. “Me interesso muito pelo desafio das diferentes maneiras de representar a natureza do movimento, seja em uma imagem estática ou em um vídeo animado, procurando uma estética ideal para cada ocasião.” @gabartes_ A pedido da TAG, a ilustradora representou a dúvida do personagem principal sobre manter os seus estudos quando se depara com a possibilidade de se tornar passageiro em um trem e viajar para longe: "Eu nunca fora à plataforma testemunhar o romantismo do trem, mas é claro que ouvíramos muitas histórias fascinantes sobre ele. [...] E eis que, enfim, eu teria uma oportunidade, não de simplesmente me postar numa plataforma e contemplar um trem em movimento, mas de eu mesmo virar um passageiro. Por que deixaria a escola e meu pacto com minha Mãe ficarem no meio do meu caminho?".




19

Sonhos em tempo de guerra

POSFÁCIO


20


OLÁ, TAGGER Neste posfácio – que, lembrando, contém spoilers! – você vai ler uma entrevista com o curador do mês, Jeferson Tenório, na qual o escritor discorre sobre os motivos que o levaram a indicar Sonhos em tempo de guerra para os leitores da TAG. Jeferson também comenta sobre as suas inspirações (há muitos clássicos nessa lista!), sobre como o mercado editorial está sendo impactado pelos recentes movimentos sociais e, como não poderia deixar de ser, sobre o excelente O avesso da pele, um dos maiores fenômenos recentes da literatura brasileira. Fica a dica para quem ainda não leu. Ainda nas páginas que seguem, Semayat Oliveira faz uma análise de Sonhos em tempo de guerra, relacionando-o ao contexto de obras de Conceição Evaristo, e Paula Sperb faz uma crítica aguda dos personagens cativantes que orbitam ao redor de Ngũgĩ wa Thiong'o, esse grande planeta-sol do mês de agosto. Boas discussões!


"PALAVRAS ESCRITAS TAMBÉM PODEM CANTAR." Ngũgĩ wa Thiong'o


SUMÁRIO posfácio

4 Entrevista Jeferson Tenório

9 Unboxing

10 O insubmisso sonho de uma mulher

13 A incrível família de Ngũgĩ


Entrevista

“A MÁGICA DA FICÇÃO É TRANSFORMAR A VIDA EM LITERATURA”

RAFAELA PECHANSKY

Consagrado como uma das grandes vozes da literatura brasileira contemporânea, Jeferson Tenório, carioca radicado em Porto Alegre, falou à TAG sobre o poder da literatura e discutiu o seu último livro O avesso da pele. A obra, lançada em 2020, se tornou parada obrigatória para todos os que buscam compreender e discutir o racismo estrutural que assola o Brasil. 1. Você já comentou sobre a importância da leitura para os que pretendem escrever. Como funciona esse processo? Você tem uma rotina de escrita e leitura? Jeferson Tenório — Tornei-me escritor por gostar de ler. A leitura é imprescindível para quem quer escrever. Creio que meu processo de escrita é o resultado dos livros que li e das experiências que vivi ao longo da vida. Acho

4


que sou mais disciplinado com a leitura do que com a escrita, mas, na medida do possível, procuro estabelecer uma rotina. Prefiro ler ficção pela manhã. À tarde, busco textos mais acadêmicos. O melhor horário para escrever é do final do dia até a noite.

Jeferson Tenório Carlos Macedo

2. Em um recente evento da TAG sobre clássicos, você citou Dom Quixote como um cânone importantíssimo. Quais outros marcaram a sua vida? Os clássicos são sempre contemporâneos a nós porque continuam a nos dizer algo; um clássico sempre resiste ao tempo. Tive vários livros canônicos que marcaram minha vida: Hamlet, de Shakespeare, A hora da estrela, de Clarice Lispector, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Os dublinenses, de James Joyce, O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, Orlando, de Virginia Woolf, Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. 3. Em uma conversa com o jornalista Pedro Bial, você afirmou que “a polícia sempre sabe quem é negro ou não”, o que é referenciado logo no início do seu romance O avesso da pele, em uma cena de brutalidade desmedida, e, claro, no momento em que Henrique é assassinado. Como as experiências que você teve como homem negro acabaram se refletindo nos acontecimentos de O avesso da pele? Acredito que todo escritor se utiliza, em alguma medida, do seu material biográfico; no meu caso, enquanto homem negro, minhas experiencias com racismo estrutural acabam se refletindo em meus livros. Em O avesso da pele, tenho, talvez, uma espécie de alter ego na figura do professor Henrique. Tenho a impressão de que esse romance seja o mais próximo de mim. Algumas experiências de Henrique também são parecidas com as minhas. 5


Por outro lado, também nos distanciamos no que diz respeito às nossas ações e às relações humanas. E essa é a mágica da ficção: transformar a vida em literatura. 4. Em O avesso da pele um tema muito presente é a questão da família. A paternidade e a maternidade se apresentam de forma complexa e, no contexto do livro, são muito impactadas pelo racismo, que reverbera nas brigas, inseguranças e crises dos personagens. Qual a importância de nomear o racismo e detectá-lo nas múltiplas formas que ele pode assumir? Como a literatura pode contribuir nesse sentido? A proposta do Avesso era justamente tratar das questões humanas mediadas pelo racismo. Para isso, eu precisava tratar da violência, mas com delicadeza, procurando uma certa elegância na linguagem e uma sofisticação narrativa, pois, para mim, essas relações complexas precisavam, embora violentas, de um tom próximo da ternura. Eu queria uma espécie de acerto de contas com a vida, mas mantendo a dignidade e o amor. O racismo em o Avesso assume muitas formas na vida de meus personagens, inclusive nas relações afetivas. O racismo está em todas as relações. Não tenho certeza se a literatura pode fazer muita coisa para mudanças de estrutura nesse sentido. Talvez a literatura consiga sensibilizar as pessoas de modo que o leitor se sinta tocado e afetado pelas histórias. É a partir desse deslocamento existencial que a ficção provoca que podemos fazer algo para contribuir para uma sociedade mais democrática e antirracista.

"MEUS LIVROS SÃO SOBRE AS RELAÇÕES HUMANAS EM PRIMEIRO LUGAR. AS QUESTÕES RACIAIS APARECEM COMO CONSEQUÊNCIA DESSA EXISTÊNCIA NUMA SOCIEDADE RACISTA." 6


* As perguntas cinco, seis e sete foram feitas por associados da TAG, vencendo a votação promovida no app em maio de 2020.

*5. Lázaro Neto: Levando em consideração suas pesquisas na área da literatura, quais foram ou ainda são as principais vozes da literatura africana de língua portuguesa? Quais são suas obras preferidas dentro desse recorte? São muitas vozes importantes, como Paulina Chiziane, Ondjaki, Mia Couto, Luís Bernardo Honwana, Pepetela, Agualusa. Minhas obras preferidas são O outro pé da sereia, de Mia Couto, e Niketche, uma história de poligamia, da Paulina Chiziane. 6. Vilamarc Carnaúba: Jornalistas e pesquisadores negros se dizem saturados de responder questões exclusivamente acerca do racismo. Existe uma cobrança semelhante aos escritores negros para que abordem o racismo/preconceito/discriminação? Até que ponto isso se impõe na escrita de um autor negro? Eu acho que a literatura é um dos poucos campos da vida onde podemos exercer a liberdade. Não me sinto compelido a escrever sobre racismo, até porque meus livros são sobre as relações humanas em primeiro lugar. As questões raciais aparecem como consequência dessa existência numa sociedade racista. Temas que aparecem em minha literatura são fruto de questões que me afetam. O dia em que não for mais afetado pelo racismo, pelas injustiças e pelo preconceito, talvez outras questões também apareçam em meus romances.

Jeferson Tenório Carlos Macedo

7. Lázaro Neto: Você acha que a produção literária brasileira está seguindo uma perspectiva "decolonial"? O que falta para atingirmos um patamar aceitável?

Penso que temos bons autores contemporâneos produzindo uma literatura nesse sentido decolonial. Creio que também houve um certo esgotamento de determinadas narrativas próximas de um discurso eurocêntrico, branco e classista. Nos últimos anos, temos 7


visto um grande interesse em narrativas descentralizadas, periféricas, trans, indígenas e negras. Mas certamente estamos longe do ideal, falta muita coisa ainda para que haja uma reparação de tantos anos de silenciamento dessas vozes. 8. Por que Sonhos em tempo de guerra é um de seus livros favoritos? Acho que tem a ver com a delicadeza de como a memória é tratada no livro, apresentando um tom autobiográfico, forte e honesto sobre a infância. É um livro que nos apresenta uma espécie de educação sentimental em meio à guerra, além de fazer uma análise contundente do ensino mediado pelo colonialismo em território africano. É também uma obra que, em certa medida, promove uma descolonização de nossas mentes ao apresentar o Quênia como um país que poucos de nós conhecemos, sem estereótipos. A ESTANTE

Jeferson Tenório Carlos Macedo

DO CURADOR O último livro que li: Sula, de Toni Morrison O livro que estou lendo: O idiota, de Dostoiévski O livro que eu gostaria de ter escrito: Em busca do tempo perdido (os 7 volumes), de Marcel Proust O último livro que me fez chorar: Terra estranha, de James Baldwin O último livro que me fez rir: Bartleby, o escriturário, de Herman Melville O livro que eu não consegui terminar: A montanha mágica, de Thomas Mann O livro que eu dou de presente: Todos os da escritora Conceição Evaristo O livro que mudou a minha vida: Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

8


Unboxing

PROJETO GRÁFICO

Depois de julho, quando enviamos para os taggers um livro inédito do célebre Mia Couto no aniversário da TAG, sabíamos que, para o kit de agosto, precisávamos criar um projeto tão espe­cial quanto. Narrado a partir das memórias do escritor, Sonhos em tempo de guerra traz um resgate cultural e histórico do Quênia que se mistura com a realidade vivida por ele na época. Desenvolvido internamente pelo time de Design da TAG, o projeto gráfico da capa remete a um desses momentos e lembranças: quando Ngũgĩ wa Thiong'o desejou viajar de trem pela primeira vez. Além do trem em si, você pode notar também que a capa lembra uma passagem (ticket) de viagem. A figura do trem atravessa dois momentos da trajetória do autor, simbolizando tanto as oportunidades quanto a perda delas. Para além da sua forma material, o trem representa os sonhos de um jovem Ngũgĩ e seu destino incerto.

"TODO DOMINGO, MINHAS IRMÃS E IRMÃOS MAIS VELHOS ACORDAVAM E SE APRONTAVAM, NÃO PARA A IGREJA OU PARA AS FESTIVIDADES NATIVAS, MAS PARA VER O TREM."

MIMO O mimo, por sua vez, homenageia a paixão e o respeito do autor pelo poder das histórias, comunicação e educação. O jogo Palavras em tempo de prosa — o título do mimo é uma alusão ao título da obra — propõe uma imersão no enredo através da formação criativa de palavras. A artista Gabriella Gouveia assina as ilustrações do jogo especialmente para os taggers, inspirada na temática dos sonhos e no mapa do Quênia. Esperamos que você goste! 9


Para ir além

O INSUBMISSO SONHO DE UMA MULHER SEMAYAT OLIVEIRA

10

Ao abrir o livro Sonhos em tempo de guerra, de Ngũgĩ wa Thiong'o, repare bem. Os olhos de uma criança se abrirão diante de você. Dois vitrais. Dá pra ler o medo, a dúvida e a coragem descarada de quem se nega a duvidar do amanhã. As linhas de Ngũgĩ são de lascar a colônia ainda tão embrenhada no pensamento contemporâneo. Fuzilam a esperança e fazem com que ela renasça inúmeras vezes. Esperança das brabas, afiada e impiedosamente incansável. Filho de um pai, quatro mães e muitos irmãos, o enredo está longe de ser um registro individual ou apenas observador do seu entorno. As memórias de Ngũgĩ são flechas que levam cada leitora e leitor a diferentes universos. É como se fosse possível usar as lentes de outros personagens, mesmo que por poucas linhas ou parágrafos. As lembranças do autor são povoadas de personalidades que remontam ao contraditório, transgressor e aconchegante de seu tempo. Presenças marcantes e inconfundíveis. Para seu pai, que viveu apagamentos de si próprio e as dilacerações da colonização no seu início, um Quênia. No corpo e na voz de um de seus meio-irmãos, que foi à Segunda Guerra e voltou dizendo que o mundo nunca saberia sobre a participação dos africanos nesse processo, outro. Nas canelas e pensamentos de seu irmão mais velho, embalados pela revolução em nome do seu próprio território, um horizonte ainda mais diferente. Em todos, um certo azedo da sobrevivência, o endurecimento imposto, apunhalado e lançado sem vista para o fim. Sua família teve a poligamia como caracteristica. E quando se tratava de educar as crianças, as mulheres tinham autoridade total. Era na casa da primeira esposa que as


Insubmissas lágrimas de mulheres Conceição Evaristo

noites de contação de história aconteciam ao redor do fogo, momento para ouvir desde contos tradicionais até suposições sobre a Segunda Guerra Mundial. Quem mataria Hitler? Seria um homem africano, alguém do Quênia, talvez? Das mulheres, vinha o alimento já pronto para nutrir o corpo e o enredo para ninar, preparar o sonho. Entre elas, uma é o fio condutor da história de Ngũgĩ wa Thiong'o. Antes mesmo da primeira linha desse livro deslanchar, a primeira informação a ser lida é a sua foto: Wanjikũ wa Ngũgĩ, sua mãe, quem lhe deu a vida na própria barriga. E aqui outro mundo se abre. Além do meio sorriso nos lábios, a imagem é como o momento de silêncio de uma mulher que – mesmo com os dias marcados pela escassez e a crescente militarização da vida – nunca se desfez da independência de sonhar com o futuro. Wanjikũ é parecida com as personagens que se pode conhecer no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo. Ela é como as mulheres que colocam seus corpos à frente da violência policial nos becos e vielas das favelas e periferias brasileiras. A discussão sobre a questão de gênero que Ngũgĩ wa Thiong'o traz nessa obra é grandiosa e transversal. Longe da ideia de discutir o certo ou errado. Sem palavras-chave para que se conectem com a atual forma que mais se fala, diz ou escreve sobre o tema. Não. Nada disso. A questão apenas se impõe. É o que é: com durezas e cicatrizes em homens e mulheres, um contorno que molda o passado, o presente e o futuro. Um rio cursando os afetos, o cuidado, a resiliência e a inteligência de mulheres que geraram o mundo. A força de sua mãe e da mulher que ela foi são como o impulso, o nascedouro do sonho, a esperança afiada, insurgente, radical. Quanto lhe custou dizer a Ngũgĩ, antes de matriculá-lo na escola, ainda tão pequeno: “Me promete que não vai me envergonhar se recusando algum dia a ir à escola por causa da fome ou de outra dificuldade?”? Quanto lhe rendeu a coragem de permitir e incentivar que Ngũgĩ atravessasse ruas e mais ruas em busca de aprender, mesmo com a morte à espreita? Para ela, talvez tenha valido sua existência, seu sonho. Para o mundo, valeu a eternidade de todas as páginas escritas por ele até agora, com seus 83 anos. 11



Para ir além

Recorte da box de Sonhos em tempo de guerra

A INCRÍVEL FAMÍLIA DE NGŨGĨ PAULA SPERB

Imagine o mundo como o vê um menino criado em uma vila de Limuru, no Quênia, nas primeiras décadas do século XX. Não será o olhar infantil moldado pelo que se convencionou chamar de “família tradicional” — pai, mãe e filhos. Nas suas memórias de infância, Ngũgĩ wa Thiong'o tece os fios da teia familiar formada por pai, quatro mães e 24 irmãos. “Nasci numa comunidade já em funcionamento, composta de esposas, irmãos crescidos, irmãs, crianças da minha idade e um único patriarca, e em convenções já estabelecidas acerca de como reconhecíamos nossa relação um com o outro. Mas podia ser confuso, e eu tive que crescer nesse sistema. As próprias mulheres nunca se referiam às outras pelos nomes; entre elas, eram sempre as filhas de seus respectivos pais”, recorda o escritor queniano. A poligamia não era apenas aceita, como era um sinal de status: apenas homens prósperos eram capazes de manter várias esposas e seus respectivos filhos. Como o leitor perceberá, alguns personagens são mais importantes afetivamente para o escritor e, consequentemente, recebem mais destaque na história. Preparamos um breve guia sobre eles: 13


NGŨGĨ WA THIONG’O

Nosso protagonista é também o narrador da própria história. Nascido em 1938, seu primeiro nome se pronuncia “Gugui”. Alfabetizado também em inglês — lembre-se que até 1963 o Quênia era uma colônia da Inglaterra —, ele chegou a ser batizado com o nome cristão “James”, que usou para assinar as primeiras obras. Porém, mais tarde, reafirma sua identidade ao adotar definitivamente o nome em gĩkũyũ, o idioma da sua etnia. Ngũgĩ é o quinto filho da casa da sua mãe. Seu sobrenome, wa Thiong’o, remete ao nome de seu pai, Thiong’o. O protagonista revela sua paixão por ler — inclusive a Bíblia, que soava ao menino como um verdadeiro livro de aventuras —, seu amadurecimento com o ritual de circuncisão e sua vivência em um tempo de guerras, como a Segunda Guerra Mundial e a Revolta dos Mau Mau.

WANJIKŨ WA NGŨGĨ

A mãe do protagonista é uma das figuras mais significativas dessa história. É da sua mãe que o menino cresceu escutando, quase como um mandamento sagrado, a pergunta que acabou moldando todos os seus passos: “Foi o melhor que você conseguiu fazer?”. O questionamento surgia mesmo quando o garoto tirava nota dez nas provas da escola. Wanjikũ é a terceira esposa, entre as quatro, do pai do garoto. “Por que você consentiu com a poligamia?”, perguntou o autor um dia. “Por causa de suas duas primeiras mulheres, Wangarĩ e Gacoki, e seus filhos, disse ela, com luz e sombras da fogueira brincando-lhe na face. Eles estavam sempre juntos, em tamanha harmonia, que eu com frequência me perguntava como é que seria estar na companhia deles”, respondeu a mãe. Após episódios de violência doméstica, a mãe de Ngũgĩ se separou do pai do garoto. O divórcio dá início a uma nova fase na vida do narrador. 14


THIONG’O WA NDŨCŨ

O pai do narrador dessa história chegou a ser considerado um homem rico, situação que não perdurou. Com terra à disposição para o plantio e muitos animais, ele mantinha quatro esposas. Com elas, ele teve 24 filhos. Thiong’o possuía uma cabana, a principal, vizinha das outras quatro cabanas — cada uma para uma esposa. Elas se revezavam para lhe levar comida. Nas memórias do autor, o pai é uma figura distante e reservada. “Meu pai, bastante alheado, falava muito pouco sobre seu passado. Nossas mães, ao redor das quais nossas vidas giravam, pareciam relutantes em divulgar os detalhes que conheciam”, relembra o autor. Thiong’o ficará ainda mais distante do filho após o divórcio, quando a mãe leva os filhos para as terras do avô.

NGŨGĨ WA GĨKONYO

O avô materno do protagonista, de quem herdou o primeiro nome, foi a verdadeira figura paterna na vida do garoto. Com terras e bens, era um líder que tinha contato com a burocracia estatal. É o avô materno que reconhecerá o talento do garoto com as letras e com frequência o chamará para sua cabana tanto para ler cartas em voz alta como para redigir documentos. “Tornei-me seu confidente, embora ele nunca peça minha opinião sobre os conteúdos. Sou simplesmente seu escriba particular. No processo, também passo a comer boa comida e a beber chá com bons punhados de leite”, relembra o autor. O neto passou a ser considerado o “pássaro do bom augúrio” do seu avô e, por isso, precisava visitá-lo todas as manhãs. 15


WALLACE MWANGI

O “Bom Wallace” é o irmão mais velho de Ngũgĩ por parte de mãe. Ele é uma inspiração para o garoto, porque já frequentou a escola, algo raro no povoado, e também porque aprende a profissão de carpinteiro. É o “Bom Wallace” que incentiva o irmão mais novo a cantar e recitar versos. Wallace participou de um importante episódio do Quênia, a Revolta dos Mau Mau (leia mais na página 14), que lutava pela independência do país. Ele chegou a ser capturado, mas conseguiu fugir. Mesmo foragido, correu o risco de voltar à vila para desejar boa sorte para Ngũgĩ nos seus exames finais da escola.

NJINJŨ WA THIONG’O

É o irmão mais novo do protagonista, o sexto filho. “Nos tornaríamos inseparáveis, especialmente após eu tê-lo ensinado a andar, ou assim presumi, já que houve uma época em que ele me imitava em tudo”, relembra o escritor. Quando Ngũgĩ machucou o pé em uma cerca de arame farpado, seu irmão mais novo o carregava por todos lugares em um carrinho de mão. Seu nome era uma homenagem ao Tio Njinjũ, também chamado de Baba Mũkũrũ, irmão do pai dos garotos.

TIO GĨCINI

Quando Ngũgĩ vai morar nas terras do avô materno, após o divórcio dos pais, ganha um novo tio. O tio é filho da esposa mais jovem do seu avô. Essa esposa foi recebida pelo avô de herança quando um de seus primos morreu. “Toda a teia de interconexões familiares era um pouco complicada, e não tenho certeza de que eu tinha capacidade de compreender todas as nuanças”, explica. Tio Gĩcini era poucos anos mais velho do que o garoto e acabam amigos. Tio Gĩcini, assim como Wallace, também integrará a Revolta dos Mau Mau para libertar o Quênia.

16


Próximo mês

VEM POR AÍ

Setembro A escrita lírica e delicada da paulista Aline Bei ressoa em sua indicação para a TAG. Nesse livro em formato de diário, clássico da literatura uruguaia, um viúvo precisa lidar com uma paixão inesperada que faz caírem por terra todas as suas convicções. Para quem gosta de: romance, vozes latinas, crises existenciais Outubro Livro indicado pela escritora e professora Socorro Acioli, esse livro é a estreia (em grande estilo) de uma jovem autora catalã. A história acompanha a protagonista, uma neonatologista de 42 anos, que é forçada a se reposicionar no mundo após o companheiro, com quem conviveu por quinze anos, morrer de forma repentina. Para quem gosta de: fortes emoções, análise de relações humanas, vozes contemporâneas

Aline Bei Lorena Dini Socorro Acioli Arquivo pessoal

Quer descobrir mais sobre as próximas surpresas? Entre no nosso app!

17


Loja


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.